Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
925/09.8JDLSB.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: ARMÉNIO SOTTOMAYOR
Descritores: ACTO SEXUAL DE RELEVO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO APARENTE
CONSUMPÇÃO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
AGRAVANTE
PARENTESCO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CRIME CONTINUADO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 12/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário :


I - Por constituir acto sexual de relevo, integra o tipo de crime previsto no n.º 1 do art. 171.º do CP, a conduta do arguido que leva sua filha, menor de 6 anos, a praticar em si próprio actos de masturbação.
II - E preenche o tipo de crime do n.º 2 do mesmo artigo, a prática de cópula do arguido com a referida menor, após esta ter atingido 13 anos.
III - Integra o tipo de crime de abuso sexual de menores dependentes, previsto no art. 172.º, n.º 1, do CP, a cópula praticada pelo arguido depois de a menor, sua filha, ter completado 14 anos, em virtude de, por lei, a educação desta lhe estar confiada.
IV - Estando em causa situações que configuram a prática de actos sexuais de relevo, incluindo cópula, quer quando a menor tinha idade inferior a 14 anos, quer quando já tinha idade superior, não existe qualquer concurso aparente de normas que legitime a consumpção.
V -Verifica-se, contudo, uma situação de continuação criminosa, visto os vários tipos de crime protegerem o mesmo bem jurídico (liberdade de autodeterminação sexual de criança), terem sido executados por forma essencialmente homogénea e resultarem da existência de circunstâncias exteriores que facilitaram a reiteração das práticas delituosas, diminuindo, de forma relevante, a culpa do arguido.
VI -Exceptuando a circunstância de a menor se ter remetido ao silêncio, o acordo para relacionamento de cariz sexual entre uma criança de 6 anos e um adulto, seu pai, não diminui a culpa deste último.
VII - A diminuição da culpa do arguido resulta, porém, de uma relação de proximidade com atitudes possessivas da menor para com o pai e com criação de uma relação afectiva que não corresponde à normal entre pai e filha, bem como da circunstância de, apesar de o arguido viver com repugnância aquela relação, a mesma se ter instalado nele como um comportamento compulsivo, temporariamente contrariado, mas impossível de controlar.
VIII - Não obstante a prática dos factos se ter prolongado por quase uma dezena de anos, verifica-se no conjunto dos actos não só uma periodicidade regular, como uma unidade de contexto situacional, que faz com que as plúrimas violações normativas se relacionem umas com as outras.
IX -Sendo o crime continuado punível, de harmonia com o disposto no art. 79.º, n.º 1, do CP, com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação, que no caso é a do art. 171.º, n.º 2, agravada pelo disposto no art. 177.º, n.º 1, al. a), haverá que valorar, na determinação da medida concreta da pena, a gravidade e o número de actos individuais como forma de exasperar a sanção.
X - Num juízo unitário de censura, a pena de 7 anos de prisão, com que o arguido vinha condenado, mostra-se proporcional às exigências de prevenção e dentro do limite da culpa do agente.



Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Na Comarca de Grande Lisboa - Noroeste e no âmbito do proc. nº 924/09.8JDLSB, foi AA, acusado pelo Ministério Público da prática, na pessoa de sua filha BB, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelo art. 172º, n.ºs 1 e 2, com referência aos arts. 14º, n.º 1, 26º, 1ª parte, 30º, n.º 2 e 177º, n.º 1 al. a), todos do Código Penal então vigente, e actualmente p. e p. pelo art. 171º, n.ºs 1 e 2, com referência aos arts. 14º, n.º 1, 26º, 1ª parte, 30º, n.º 3 e 177º, n.º 1 al. a), todos do Código Penal, com a redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro e de um crime de actos sexuais com adolescentes agravado, p. e p., à data da prática dos factos, pelo art. 174º, com referência aos art. 14º, n.º 1, 26º, 1ª parte, 30º, n.º 3 e 177º, n.º 1 al. a), todos do Código Penal então vigente, e actualmente p. e p. pelo art. 173º, n.ºs 1 e 2, com referência aos arts. 14º, n.º 1, 26º, 1.ª parte, 30º, n.º 3 e 177º, n.º 1 al. a), todos do Código Penal, com a redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
Após julgamento pelo tribunal colectivo da 2ª Secção do Juízo de Grande Instância de Sintra, foi o arguido condenado pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 171º, n.º 2, 177º, n.º 1 al. a), 14º, 26º, 1ª parte, e 30º, n.ºs 2 e 3 do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão.

Inconformado o arguido interpôs recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões:
a) Atendendo aos princípios gerais de direito e à tão visada reinserção social, afere-se como excessivamente gravosa a medida da pena aplicada ao ora recorrente;
b) Ao contrário do que julgou o Tribunal a quo, na decisão ora recorrida, entende-se ser possível fazer-se o tal juízo de prognose favorável à reintegração social do arguido;
c) Salvo o devido respeito, não foram levados em consideração os critérios enunciados no n.o 2 do artigo 71.º do C.P.;
d) Nomeadamente no que diz respeito ao disposto na sua alínea d);
e) A própria condição pessoal do agente, é de molde a decidir-se por medida que contribua para a reintegração e não para a segregação, cumprindo-se assim o disposto no artigo 40,° do C.P.;
f) Tão pouco foram levadas em consideração as circunstâncias pessoais que depondo a favor do recorrente, concorriam para uma atenuação da pena situada nos mínimos legais admissíveis;
g) Bem como não foi levado em consideração o teor do relatório social efectuado ao arguido;
h) O doseamento da pena arbitrado pelo tribunal a quo denuncia uma nítida violação do princípio da proporcionalidade das penas;
i) A este respeito, desde já se advoga que as normas constitucionais que se consideram violadas são as vertidas no n.º 2 do artigo 32.°, n.º 6 do artigo 29.° e n.º 4 do artigo 30.0 da Constituição da República Portuguesa.
j) Crê-se que estão reunidas as condições de facto e de direito para uma efectiva atenuação da pena situando-se esta nos mínimos legais admissíveis, ou seja, quatro anos de prisão.
k) Assim, e nestes termos é forçoso colocar a hipótese de suspensão da pena, ao abrigo do artigo 50.°, n.º 1 do C.P., concluindo-se, como pugnamos, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
l) Ameaça essa, que em último caso poderá ser sujeita a regime de prova, nos termos dos art.º 53 e ss. do Cód Penal, em vez da prisão efectiva, podendo o Tribunal ter optado pelo regime de prova, impondo assim ao recorrente certas injunções, tais como a proibição de quaisquer contactos com a menor.
Nestes termos e mais de direito aplicáveis, deverá revogar-se o acórdão recorrido, e consequentemente:
1. Ser atenuada a pena em que o recorrente foi condenado, fixando-se a mesma nos mínimos legais admissíveis, ou seja, nos quatro anos de prisão;
2. Ser aplicada a figura da suspensão da execução da pena, nos termos e para os efeitos do artigo 50.0 do C.P..

O Ministério Público no tribunal recorrido respondeu, manifestando-se no sentido da improcedência do recurso, salvo quanto à medida da pena, que admite possa ser reduzida a 6 anos de prisão.

O recurso foi interposto para a Relação de Lisboa e como tal recebido. Remetidos ao autos ao referido tribunal, o Ministério Público, no visto inicial, pronunciou-se no sentido da incompetência da Relação e da competência do Supremo Tribunal de Justiça, por se tratar de uma pena de prisão superior a 5 anos e o recurso suscitar apenas questões de direito. Com tal parecer concordou o relator, que determinou a remessa dos autos a este Supremo Tribunal.

Afirma-se a competência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer do recurso. Com efeito, nos termos do art. 432º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal, de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça. E, percorrendo as conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, verifica-se que, no recurso, são suscitadas apenas questões de direito, como são a da medida da pena e a da suspensão da execução da pena de prisão.

Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público, no visto a que se refere o art. 416º do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido do provimento parcial do recurso, na medida em que admite a diminuição da pena de prisão, fixando-a em 6 anos, o que impede, por falta dos necessários pressupostos legais, a suspensão da respectiva execução.
Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal, mas o recorrente nada disse.

Uma vez que o recorrente não requereu a realização de audiência, os autos foram a vistos e vêm agora à conferência para decisão.

2. Os factos que o tribunal colectivo considerou provados são os seguintes:
1. BB nasceu no dia 28 de Novembro de 1993 e é filha do ora arguido, AA, e de CC.
2. Desde a data do seu nascimento até, aproximadamente, Setembro de 1999, a BB e os pais viveram com a avó materna, na residência desta, sita na Rua ..., em Lisboa.
3. Em Setembro de 1999 o casal foi residir para Massamá, para o Largo ..., permanecendo a BB, até aos seus 12 (doze) anos de idade, aos cuidados e guarda da avó materna, na residência referida em 2).
4. A partir de então a BB começou a passar os fins-de-semana com os seus pais, AA e CC, na residência destes, em Massamá.
5. Em data não concretamente apurada mas posterior a Setembro de 1999, contando a menor BB com 6 (seis) anos de idade, quando esta se encontrava a passar o fim-de-semana em casa dos seus pais, mais concretamente num sábado, o arguido AA, aproveitando o facto de a progenitora se ter ausentado de casa, solicitou-lhe que se deslocasse ao quarto onde se encontrava e, aí, questionou-a se queria acariciar-lhe o pénis, ao que a BB acedeu, muito embora, atenta a sua idade, não tivesse ainda percepção do significado de tal contacto de natureza sexual.
6. O arguido AA baixou os calções do pijama que trazia vestido, de forma a manter o seu pénis erecto descoberto, após o que a menor BB o acariciou com as mãos, iniciando movimentos rítmicos em sentido ascendente e descendente, até que o arguido ejaculou.
7. O arguido solicitou à sua filha que não contasse o que acontecera a ninguém, mormente à sua mãe, sob o pretexto de que se tratava de um segredo de ambos.
8. Os contactos de natureza sexual descritos repetiram-se por um número de vezes não concretamente apurado, mas praticamente todos os sábados, até data não concretamente apurada, mas seguramente até à idade de 12 (doze) anos da BB, sempre que esta passava os fins-de-semana com os pais, na residência destes, aproveitando o arguido o facto de a progenitora da menor se ausentar de casa.
9. Após completar os 13 (treze) anos de idade, a menor BB passou a residir com os pais, na morada supra referida, em Massamá.
10. Em data não concretamente apurada, mas pouco tempo depois de aquela ter ido residir definitivamente para a habitação dos progenitores, num sábado, ao final da tarde, e mais uma vez aproveitando a ausência da sua mulher CC, o arguido chamou a BB para se deslocar até à sala da habitação, onde se encontrava, e aí questionou-a se “queria fazer outras coisas” e se não se importava de praticar relações sexuais consigo, ao que aquela acedeu.
11. Em seguida, o arguido solicitou à menor para retirar as roupas que trazia vestidas, tendo também ele retirado a sua roupa, e depois de ter colocado um preservativo no pénis erecto, deitou-se no sofá, voltado para cima, e solicitou à menor que se deitasse em cima dele e que abrisse as pernas, tendo aquela actuado em conformidade.
12. Após o arguido introduziu o seu pénis erecto na vagina daquela, iniciando movimentos rítmicos em sentido ascendente e descendente, apenas logrando parar quando ejaculou.
13. A situação descrita em 11) e 12) repetiu-se por um número indeterminado de vezes, com frequência semanal, sempre no interior da habitação do arguido e nos momentos em que a progenitora da menor se ausentava da residência, sendo que tal situação perdurou até data não concretamente apurada, mas aproximadamente até 12 de Junho de 2009, data em que a BB tinha já 15 (quinze) anos de idade.
14. Em todas as inúmeras ocasiões acima referidas, entre os 13 (treze) e os 15 (quinze) anos de idade da menor, no interior da residência onde a família habitava, o arguido solicitou à menor que se deitasse sobre si e, após esta abrir as pernas, introduziu-lhe o pénis na vagina e ejaculou, praticando com a sua filha relações de cópula completa.
15. Em data não concretamente apurada, o arguido retirou e escondeu as chaves do quarto da BB, de forma a evitar que a menor ali se refugiasse e assim evitasse manter relações sexuais consigo.
16. O arguido AA actuou do modo supra descrito, aproveitando-se da oportunidade favorável à prática dos factos, dado que após a prática dos primeiros a menor não revelou o sucedido a ninguém, entendendo, assim, que podia repetir tais comportamentos com esta, o que concretizou ao longo de vários anos, ou seja, entre os 6 (seis) e os 15 (quinze) anos de idade da BB.
17. Ao actuar da forma descrita o arguido beneficiou da circunstância de a sua filha BB, numa primeira fase, passar consigo os fins-de-semana, e numa segunda fase residir permanentemente na sua habitação, ou seja, de manter com a menor uma relação familiar, e em consequência de confiança e proximidade, e ainda da circunstância desta não ter contado nada a ninguém.
18. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, aproveitando-se da relação de parentesco e de confiança que mantinha com a menor, e sua filha, BB, para a levar a praticar consigo os actos supra descritos, actuando movido pelo desejo de satisfazer os seus impulsos sexuais e com o intuito de se excitar sexualmente, abusando da sua inexperiência, bem sabendo que a BB era, à data da prática dos factos, menor de 14 (catorze) anos de idade, e persistindo com tal conduta até esta perfazer os 15 (quinze) anos de idade.
19. Bem sabia o arguido que ao agir da forma descrita atentava contra o desenvolvimento psíquico e sexual da sua filha, causando-lhe traumas difíceis de ultrapassar.
20. Mais sabia o arguido que a sua conduta é proibida e punida por lei.
21. Pelo menos em duas ocasiões, o arguido, ciente do mal que estava a fazer à menor, interrompeu os contactos sexuais com a mesma.
22. Actualmente a BB reside com a mãe, em casa de um tio materno, e frequenta o 9º ano de escolaridade, na Escola Damião de Góis, em Chelas, tendo um razoável aproveitamento escolar.
23. O relacionamento entre a BB e a progenitora foi sempre marcado por alguma conflituosidade e, sobretudo, pela ausência de afectos, mantendo a menor uma relação de grande afectividade com o pai.
24. Aparentemente, a menor continua a ser uma adolescente sociável e afectuosa, encontrando-se em acompanhamento psicoterapêutico, no Centro de Saúde de Chelas.
25. O arguido AA viveu com os pais até aos 6 anos de idade, em Glória do Ribatejo, ficando aos cuidados da avó materna durante o horário de trabalho daqueles.
26. Frequentou a escola até ao 7º ano de escolaridade, denotando um rendimento escolar razoável, pese embora na fase da adolescência se tenha observado um desafio às regras, preterindo o arguido a frequência das aulas pela manutenção de relações de namoro avivadas, facto que influiu nas sucessivas reprovações e consequente desistência escolar.
27. Após, o arguido inscreveu-se num curso técnico-profissional, do qual desistiu ao fim do 2º ano de frequência.
28. Aos 16 anos passou a trabalhar na construção civil, como servente de carpintaria.
29. Frequentou um curso de torneiro mecânico, o qual concluiu aos 19 anos, com distinção, passando a trabalhar neste ramo de actividade laboral.
30. Exerceu, depois, diferentes ocupações, e sentindo-se vocacionado para a electrónica de precisão, investiu ultimamente nesta área de trabalho, apesar da precariedade laboral.
31. O arguido estabeleceu várias relações afectivas, uma das quais mais significativa, mas que não chegou a ser consumada, e em 1994 casou com a mãe da sua filha, situação que não se afigurou intrinsecamente gratificante.
32. Aos 8 anos de idade AA foi vítima de violação, por parte de um homem com 20 anos, irmão de uma amiga e vizinha com quem brincava diariamente, situação que nunca relatou aos familiares mais próximos.
33. Esta situação acompanhou o crescimento do arguido de modo traumático e não elaborado, repercutindo-se na sua passividade perante a necessidade de confronto com terceiros em situações menos positivas da sua vida.
34. À data da detenção o arguido vivia num turbilhão de dificuldades ao nível financeiro, decorrentes do baixo salário e precariedade laboral, situação agudizada pela manutenção de um casamento fracassado e pela própria conflituosidade interna, inerente à relação mantida com a filha, absolutamente contrária aos valores e normas sociais exemplarmente transmitidos pelos pais.
35. Apesar de viver com repugnância aquela relação, a mesma instalou-se como um comportamento compulsivo, temporariamente contrariado mas impossível de controlar.
36. O arguido dispõe do apoio familiar dos progenitores e da irmã, designadamente ao nível habitacional e ao nível profissional, perspectivando a sua admissão numa empresa de camionagem e/ou o desenvolvimento de um projecto profissional na área da exploração/venda de energias renováveis, designadamente colocação de painéis solares em condomínios.
37. O arguido confessou a quase totalidade dos factos constantes da acusação e demonstrou arrependimento.
38. Não tem antecedentes criminais.

Não se provou, contudo, que:
a) A BB sentia-se obrigada a praticar relações sexuais com o arguido, porquanto este obrigava-a a vestir roupas velhas e usadas, que por vezes já nem sequer lhe serviam, quando aquela não actuava de acordo com os seus desejos libidinosos.

Nenhum facto foi impugnado, nem da análise da matéria de facto resulta a existência de qualquer dos vícios a que se refere o art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal, pelo que se tem a matéria de facto como estabilizada.

3. O arguido foi acusado da prática, em concurso real, de um crime de abuso sexual de crianças agravado e de um crime de actos sexuais com adolescente agravado, vindo a ser condenado pela prática do primeiro destes crimes, na forma continuada.
Para tanto, o tribunal considerou:
Ora, com interesse para o caso presente, ficou provado que desde os seis anos de idade da menor, e numa fase que perdurou até aos seus treze anos, o arguido levava aquela a acariciar-lhe o pénis erecto, com as mãos, fazendo movimentos rítmicos em sentido ascendente e descendente, até à ejaculação, actos que se repetiram por número de vezes não determinado, mas praticamente todos os sábados, na residência do arguido, onde a BB passava os fins-de-semana, e aproveitando o facto de a progenitora da menor se ausentar de casa.
Perante esta factualidade, cumpre concluir, desde logo, que os actos supra descritos, de masturbação, consubstanciam actos sexuais de relevo, nos moldes explicitados aquando da análise do n.º 1 do art. 172º do Código Penal, pelo que, verificando-se os demais elementos do tipo, tais como a idade da menor, inicialmente muito inferior a 14 anos, e o dolo do agente, a conduta do arguido é susceptível de integrar o crime de abuso sexual de crianças, previsto no referido normativo.
No entanto, mais se provou que após a BB perfazer os treze anos de idade, quando passou a residir permanentemente com os progenitores, em Massamá, o arguido passou a introduzir o seu pénis erecto na vagina da filha, efectuando movimentos rítmicos em sentido ascendente e descendente, até à ejaculação, ou seja, passou a manter com a BB relações de cópula vaginal.
E, uma vez mais, tais relações de cópula repetiram-se por número indeterminado de vezes, com frequência semanal, aos sábados, até 12 de Junho de 2009, aproveitando o arguido, uma vez mais, as ausências da mãe da BB.
Nesta medida, a conduta do arguido preenche a tipicidade, objectiva e subjectiva, do art. 172º, n.º 2, a qual, conferindo maior tutela penal ao bem jurídico protegido, acaba por consumir a conduta anteriormente subsumida no n.º 1.

Relativamente ao crime de actos sexuais com adolescentes, que também vem imputado ao arguido, o tribunal teceu, no acórdão, as considerações seguintes:
Com interesse, provou-se que após a BB perfazer os catorze anos de idade, o arguido continuou a praticar os actos supra descritos, que já praticava desde os treze anos daquela, de introdução do pénis erecto na vagina, efectuando movimentos rítmicos em sentido ascendente e descendente, até à ejaculação, ou seja, continuou a manter com a BB relações de cópula vaginal.
E, uma vez mais, tais relações de cópula repetiram-se por número indeterminado de vezes, com frequência semanal, aos sábados, até 12 de Junho de 2009, aproveitando o arguido, uma vez mais, as ausências da mãe da BB.
Nesta medida, e sem necessidade de ulteriores considerações, importa concluir que a conduta do arguido preenche a tipicidade, objectiva e subjectiva, dos arts. 173º, n.º 2 e 177º, n.º 1 al. a) do Código Penal, tratando-se, outrossim, pelo que supra se expôs, de um crime de actos sexuais com adolescente agravado, na forma continuada (art. 30º, n.ºs 2 e 3).
*
Perante a verificação, in casu, dos dois crimes que vinham imputados ao arguido – o crime de abuso sexual de crianças e o crime de actos sexuais com adolescentes -, perpetrados na mesma ofendida – a BB, e na presença da figura jurídica do crime continuado, a que se fez referência, cremos não se verificar, entre eles, uma relação de concurso real, mas antes de concurso aparente, ou concurso de normas.
Na verdade, independentemente das várias resoluções criminosas que presidiram à actuação do arguido, unificadas apenas pela figura da continuação criminosa, a verdade é que a sua actuação foi, em termos factuais, una e prolongada no tempo, desde os seis anos de idade da filha e até aos quinze anos da mesma.
Não faz sentido, desde modo, desmembrá-la conceptualmente, apenas porque a dado momento da conduta do arguido a ofendida atingiu a idade dos catorze anos, deixando de ser qualificada legalmente como criança e passando a sê-lo como adolescente. Fazê-lo, seria ainda punir mais gravemente o arguido, pela prática de dois crimes autónomos, em concurso real, quando na realidade houve um aligeiramento da punibilidade da sua conduta, porquanto é evidente que os actos sexuais praticados com menor de idade compreendida entre os 14 e os 16 anos são menos graves do que aqueloutros praticados com menor de idade inferior a 14 anos.
E, assim sendo, entendemos estarmos perante um concurso aparente, ou concurso de normas, na forma de consunção.
A relação de consunção verifica-se quando – por referência a um caso concreto -, as normas se encontram numa relação de inclusão material, ou seja, quando o conteúdo de um facto ilícito típico inclui normalmente o outro facto ilícito típico e a punição do primeiro esgota o desvalor de todo o acontecimento. A consequência da consunção é a de que a norma consumptiva (norma dominante) pretere a norma consumida (norma dominada) - vide, neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Penal, Universidade Católica Portuguesa, pág. 134.
Transpondo para o caso em análise, encontrando-se a norma que pune crime de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelos arts. 173º, n.º 2 e 177º, n.º 1 al. a), consumida pela norma que pune o crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171º, n.º 2 e 177º, n.º 1 al. a), do Código Penal (já que esta esgota, no fundo, a protecção do mesmo bem jurídico igualmente protegido pela primeira), o arguido deverá ser apenas condenado pelo crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 171º, n.º 2, 177º, n.º 1 al. a), 14º, 26º, 1ª parte, e 30º, n.ºs 2 e 3 do Código Penal.

A transcrição a que procedemos dos dois trechos da decisão recorrida mostra que o tribunal colectivo entendeu, com recurso ao instituto da consumpção, que o arguido deveria ser apenas condenado pelo crime do nº 2 do art. 171, agravado nos termos do art. 177º nº 1 al. a), na forma continuada, tendo decidido em conformidade.
Caiu o tribunal numa confusão de conceitos que, oficiosamente, importa dilucidar e corrigir.

3. Ensinava Eduardo Correia (Direito Criminal, II, pág. 204) que “muitas normas do direito criminal estão umas para as outras em relação de hierarquia, no sentido precisamente de que a aplicação de algumas delas exclui, sob certas circunstâncias, a possibilidade de eficácia cumulativa de outras”, ou seja, que aparentemente são aplicáveis várias leis penais, mas que uma delas exclui as demais. Nessas circunstâncias ocorria o então designado concurso legal ou aparente de infracções. Verdadeiramente, porém, nessas situações não existe sequer um concurso de leis, mas uma convergência de normas jurídicas, constituindo um problema de determinação da norma aplicável. (Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, I, pág 992 e nota 2, onde refere que Roxin designa de “infeliz” a expressão “concurso legal” ou “concurso aparente”, tendo a doutrina optado por designar a questão como de “unidade de norma ou de lei”). Sendo através da interpretação e do uso das categorias da especialidade, da subsidiariedade e da consumpção, que virá a ser determinada a norma prevalecente, com preterição das demais.

Verifica-se a consumpção, “quando o conteúdo de um ilícito-típico inclui em regra o de outro facto, de tal modo que, em perspectiva jurídico-normativa, a condenação pelo ilícito-típico mais grave exprime já de forma bastante o desvalor de todo o comportamento.” (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 1000) Ou, dito de outro modo: “Entre os valores protegidos pelas normas criminais verificam-se por vezes relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros, de tal maneira que uma norma consome já a protecção que outra visa. Daí que, ainda com fundamento na regra «ne bis in idem», se tenha de concluir que «lex consumens derogat legi consumptae».” (Eduardo Correia, op. cit., II, pág. 205). A consumpção assume, assim, carácter valorativo, dependendo das características concretas que ocorrem nos factos. É, porém, essencial que a conduta do agente preencha mais do que um tipo legal. Como referem Simas Santos e Leal Henriques (Noções Elementares de Direito Penal 3, pág. 150), “o preenchimento de um tipo legal (mais grave) inclui o preenchimento de outro tipo legal (menos grave), devendo a maior ou menor gravidade ser encontrada na especificidade do caso concreto”.

Com a revisão do Código Penal operada em 1995, os crimes sexuais, considerados até então como crimes contra valores e interesses da vida em sociedade, passaram à categoria de crimes contra as pessoas e contra o valor da liberdade e autodeterminação sexual, estendendo-se a protecção deste bem jurídico “a casos que ou não seriam crime praticados entre adultos, ou o seriam dentro de limites menos amplos, ou assumiriam em todo o caso uma menor gravidade; e estende-a porque a vítima é uma criança ou, em todo o caso, um menor de certa idade. .. O bem jurídico protegido … a liberdade e auto-determinação sexual é-o quando ligado a um outro bem jurídico, a saber, o do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual” (Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 442).
Erradicado todo o dogmatismo moral com a reforma de 1995, o cerne do tipo objectivo do ilícito é constituído pelo “acto sexual de relevo”, como tal se entendendo a acção que “de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou pratica” (Figueiredo Dias, Comentário I, pág. 447) ou, na definição sintética de Paulo Pinto de Albuquerque, como “o acto de conotação sexual de uma certa gravidade objectiva realizada na vítima”. (Comentário do Código Penal 2, pág. 504).
No caso de crimes sexuais em que a vítima seja menor, agrupados na secção epigrafada de “crimes contra a autodeterminação sexual”, a decisão normativa-axiológica do legislador português foi a de proteger a autodeterminação sexual perante condutas que, face à pouca idade da vítima, possam, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade. “A lei presume com razoável correcção […] – escreve Figueiredo Dias no Comentário citado, I, pág. 541-2) – que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor (presume este prejuízo, não que ‘a pessoa não é livre para se decidir em termos de relacionamento sexual’ …) e considera este interesse (no fundo um interesse de protecção da juventude) tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob ameaça de pena criminal”.

Da matéria de facto resulta que, a partir da idade de 6 anos da menor BB, o arguido começou a praticar com ela actos de natureza sexual, que, consistiram em actos de masturbação do arguido.
As práticas que o arguido regularmente levou a efeito integram a categoria de acto sexual de relevo, conforme o tribunal colectivo correctamente as qualificou, sendo a conduta desenvolvida durante o período que decorreu entre os 6 e os 12 anos da menor como típica do crime previsto no nº 1 do art. 171º do Código Penal, na sua actual redacção, única norma que a prevê e pune, não havendo, portanto, que fazer apelo à consumpção, contrariamente ao que foi decidido no acórdão recorrido.

Após a BB ter completado 13 anos, altura em que passou a viver regularmente em casa dos pais, o arguido “questionou-a se «queria fazer outras coisas» e se não se importava de praticar relações sexuais consigo, ao que aquela acedeu” (facto nº 10), tendo levado a efeito a cópula.
Estando em causa actos de cópula, de coito anal, de coito oral ou de introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o legislador entendeu justificar-se a agravação do crime, cuja previsão surge no art. 171º nº 2 do Código Penal.
Também neste caso há uma unidade de norma, uma vez que o nº 2 do art. 171º é a única norma que prevê e pune os actos de cópula com menor de 14 anos.
E só se, simultaneamente, tivesse sido praticado um acto sexual de relevo que não se enquadrasse na descrição do nº 2, o que os autos não revelam, é que haveria que falar numa situação de consumpção, sendo, então, nesse caso, o crime previsto no nº 1 do art. 171º do Código Penal consumido pelo do nº 2, tido como norma prevalecente. Mas, como se referiu, tal não se provou e, por isso, não haverá que fazer referência a qualquer situação de consumpção.

As relações de cópula prolongaram-se para além dos 14 anos da menor até cerca de Junho de 2009, quando ela tinha 15 anos.
De novo, o tribunal colectivo considerou que o crime do art. 171º nº 2 consumiu esta actividade. A inaplicabilidade desta norma, que visa proteger a autodeterminação sexual de menores até aos 14 anos, é evidente. E, deste modo, não há que falar em consumpção, uma vez que para efeito da aplicação desta categoria, conforme com clareza referia Eduardo Correia, “os dois tipos comportam-se entre si, na protecção de bens jurídicos, como dois círculos que coincidem na sua parte mais importante e valiosa”. Ora, no caso presente, os dois círculos de protecção não são em momento algum coincidentes, por não haver concordância na previsão legal quanto à idade da vítima: o art. 171º destina-se a proteger o menor de 14 anos da prática de acto sexual de relevo, enquanto, a prática de acto sexual de relevo praticado com menor de idade superior a 14 anos é punido pelo art. 172º, se tiver sido confiado ao arguido para educação ou assistência, ou no art. 173º, se houver abuso da sua inexperiência. Não existe, portanto, entre os art. 171º e os artigos seguintes qualquer concurso aparente de normas que legitime a existência de consumpção.
Os actos de cópula praticados pelo arguido depois de a BB ter completado 14 anos devem ser considerados como integradores do crime de abuso sexual de menores dependentes, em virtude de, por lei, a educação da menor lhe estar confiada, por ser seu pai. (Cfr. Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 556 e Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., pág. 541). Com a norma do art. 172º [“quem praticar ou levar a praticar acto descrito nos nºs 1 ou 2 do artigo anterior relativamente a menor entre 14 e 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, é punido com pena de prisão de um a oito anos”] visa proteger-se também a autodeterminação sexual do menor, isto é, o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual, mas ligada “à ideia de que a liberdade e autodeterminação sexual de menores entre 14 e 18 anos, confiados a outrem para educação ou assistência, se encontra em princípio carecida de uma protecção particular”. (Maria João Antunes, op. cit. I, pág. 554).

Estando em causa, nos presentes autos, situações de prática de actos sexuais de relevo, incluindo cópula, quer quando a menor tinha idade inferior a 14 anos, quer quando já tinha idade superior, e sendo o arguido, seu pai, detentor do poder paternal, não há justificação alguma para considerar o crime do art. 172º consumido pelo do nº 2 do art. 171º.
Por isso, diferentemente do que se decidiu no acórdão recorrido que julgou todos os crimes consumidos pelo do nº 2 do art. 171º do Código Penal, o arguido, com os diversos actos de natureza sexual que praticou durante todo o período que se iniciou em data não concretamente apurada mas posterior a Setembro de 1999 e se prolongou até Junho de 2009, constitui-se autor de actos materiais subsumíveis nas seguintes infracções:
- pelos actos sexuais de relevo praticados após Setembro de 1999 e até data incerta quando a menor BB tinha 13 anos de idade, do tipo legal previsto no art. 172º nº 1, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março e, actualmente, do tipo legal do art. 171º nº 1, punível com pena de 1 a 8 anos de prisão;
- pelas relações sexuais de cópula ocorridas depois da menor completar 13 anos e antes de perfazer 14 anos, do tipo legal previsto no 172º nº 2 do Código Penal, na redacção da Lei 65/98 e, actualmente, no art. 171º nº 2, punível com pena de 3 a 10 nos de prisão;
- pelos relacionamentos sexuais, após a vítima BB ter completado 14 anos de idade e até Junho de 2009, do tipo legal previsto no art. 172º do Código Penal, na redacção actual, punível com pena de prisão de 1 a 8 anos.
A moldura penal abstracta de cada um dos crimes é agravada nos seus limites mínimo e máximo de um terço, conforme dispõe o art. 177º nº 1 al. a) do Código Penal.

3.2 Em virtude de a actividade do arguido se haver prolongado no tempo, com frequência semanal, sendo constituída por actos sexuais de relevo praticados com a menor BB, o tribunal colectivo julgou verificada uma situação de continuação criminosa, que fundamentou da seguinte forma:
“Pressuposto da continuação criminosa é, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comportasse de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.
Entre as situações exteriores típicas que, preparando as coisas para a repetição da actividade criminosa, diminuem consideravelmente o grau de culpa do agente, podem destacar-se aquelas em que se verificam, designadamente, as seguintes circunstâncias: ter-se criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação de acordo entre os sujeitos; voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa; perdurar o meio apto para executar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa; verificar o agente, depois de executar a resolução que tomara, que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da actividade criminosa (neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2008, em www.dgsi.pt).
De qualquer modo, a lei impõe sempre um denominador comum, qual seja, a diminuição considerável da culpa do agente; não basta qualquer solicitação exterior; é necessário, por um lado, que ela facilite de maneira apreciável a reiteração criminosa, e, por outro, que a situação exterior não seja normal ou geral, pois com estas deve o agente contar para modelar a sua personalidade de acordo com as normas jurídicas (vide a decisão supra citada).
In casu, para além da reiteração da conduta do arguido ao longo dos anos e da pluralidade de resoluções criminosas, temos como provado que o mesmo agiu sempre aproveitando-se da circunstância de ficar sozinho em casa com a filha, nas ausências da sua mulher e progenitora daquela, e ainda do facto da menor, após os primeiros factos, não os ter revelado a ninguém, situação que facilitou apreciavelmente tal reiteração criminosa, diminuindo consideravelmente, nesta medida, a culpa do agente. Logo, estarmos perante a existência de um crime continuado (art. 30º, n.ºs 2 e 3 do Código Penal).”

No art. 30º do Código Penal, depois de se afirmar o princípio de que “o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente” (nº 1), define-se, no número segundo, crime continuado como sendo “a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”
Com esta norma, ancorada no pensamento do Prof. Eduardo Correia, procura encontrar-se a solução ajustada à situação em que uma série de actividades que deveria constituir uma pluralidade de infracções, porque a elas presidiu a reiteração de uma resolução, deva ser objecto de um juízo unitário de censura. Para tanto a lei exige a violação do mesmo bem jurídico, a execução por forma essencialmente homogénea e no quadro de uma mesma situação exterior e com diminuição considerável da culpa do agente.

A primeira questão que pode colocar-se é a de saber se pode existir no caso em apreço uma continuação criminosa que abarque os três tipos legais que a conduta do arguido integrou..
Segundo a norma do nº 2 do art. 30º, a realização plúrima pode abranger vários tipos de crime, desde que protejam o mesmo bem jurídico.
Tal preceito corresponde ao pensamento do Prof. Eduardo Correia, que, já em 1965, no vol. II de Direito Criminal, escrevia a pág. 209: “…quando bem se atente, vers-e-á que certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime – ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico – e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, em princípio, atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente.”
Por seu turno, Figueiredo Dias (Direito Penal, I 2, pág. 1029) escreve: “A realização continuada deve violar de forma plúrima o mesmo ou fundamentalmente o mesmo bem jurídico. Não haverá razão para atribuir demasiado valor, neste contexto, à velha questão de saber se cada tipo legal protege um bem jurídico próprio ou se pode verificar-se uma pluralidade de tipos legais que protejam o mesmo bem jurídico. O que se deve exigir é que entre os bens jurídicos lesados exista uma relação de estreita afinidade, parentesco ou proximidade, análoga à que vimos constituir para Puppe a ideia mestra do concurso ideal (rectius aparente). Podem caber na previsão por isso, em nosso entendimento, não apenas casos como o da relação entre realizações típicas fundamentais e qualificadas ou privilegiadas, mas também como o da conexão entre realizações típicas diferentes, v.g. contra o património, contra a liberdade, contra a liberdade sexual, etc. De bens jurídicos diferentes se tratará, porém, sempre que eles assumam natureza pessoal e se verifique uma pluralidade de vítimas.”
Deste modo, importa verificar se os três tipos legais em causa – art. 171º nº1 e nº 2 e 172º do Código Penal – violam o mesmo bem jurídico. A resposta é, necessariamente, afirmativa. Nenhuma dúvida se coloca quanto ao tipo previsto no art. 171º, violado nos seus nºs 1 e 2. Conforme já atrás se deixou referido, com esta norma protege-se a autodeterminação sexual face a condutas que possam prejudicar gravemente o livre desenvolvimento do menor. Relativamente ao tipo do art.172º, “o bem jurídico protegido é, tal como no abuso sexual de crianças, o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual” (Maria João Antunes, ibidem), Também para Paulo Pinto de Albuquerque, o bem jurídico protegido pelos dois tipos é a liberdade de autodeterminação sexual da criança, isto é, do menor de 14 anos de idade e do menor entre 14 e 18 anos. (Comentário do Código Penal, 2, pag. 536 e 541).

Um segundo requisito diz respeito à execução por forma essencialmente homogénea. Figueiredo Dias (Direito Penal, I, 2, pág. 1030) trata este requisito ainda dentro da conexão objectiva e aproxima-o do quadro duma mesma situação exterior. “Há na verdade”- escreve este autor – “crimes diversos cuja execução, todavia, pode apresentar a homogeneidade requerida (v. g. diferentes crimes sexuais, contra a liberdade, contra o património, etc.). Enquanto outros há que, protegendo o mesmo bem jurídico ou bens jurídicos próximos, todavia supõem formas de execução heterógeneas”. Por seu turno, Eduardo Correia (A Teoria do Concurso em Direito Criminal – Unidade e Pluralidade de Infracções, reimpressão, pág. 269) refere: “É realmente impossível fixar com rigor onde começa e onde acaba tal homogeneidade. Por sua natureza, ela há-de ser muito diferente de caso para caso. Assim, não será preciso determiná-la com tanto rigor, a sua determinação será mesmo praticamente indiferente, quando as diversas actividades preencherem o mesmo tipo de delito. Pelo contrário, dever-se-á tentar fixá-la com maior precisão quando foram realizados vários tipos criminais referidos ao mesmo bem jurídico. Mas isto não quer dizer que esse requisito perca alguma vez o seu lugar e os seus direitos. O que sucede é ser por vezes a sua exigência compensada pela verificação num grau óptimo dos outros requisitos do crime continuado”.
Ora, os actos sexuais praticados pelo arguido, quer sejam do tipo “acto sexual de relevo”, quer de cópula, referem-se ao mesmo tipo de crime – abuso sexual de crianças – embora a cópula justifique um agravamento da pena do referido crime. E, por isso, conforme referia Eduardo Correia, a determinação da homogeneidade será praticamente indiferente.
E o mesmo se diga do crime do art. 172º que, quanto aos actos típicos, remete para a definição do artigo anterior.

A solicitação de uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente, requisito com incidências de carácter objectivo e subjectivo, constitui o elemento essencial que permite fazer a distinção entre as situações de concurso de crimes e de crime continuado. Essencial à “continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” (Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág. 209). Segundo este mesmo autor, "quando um delinquente se encontra de novo ante uma determinada situação que, convidando à realização de um certo crime, já uma vez foi por ele aproveitada com êxito, há-de, sem dúvida, sentir-se fortemente solicitado a reiterar a sua conduta criminosa, e só muito dificilmente se manterá no caminho do direito" (A Teoria do Concurso, pág. 247).


No acórdão recorrido os pressupostos da continuação criminosa foram julgados verificados nos seguintes termos: In casu, para além da reiteração da conduta do arguido ao longo dos anos e da pluralidade de resoluções criminosas, temos como provado que o mesmo agiu sempre aproveitando-se da circunstância de ficar sozinho em casa com a filha, nas ausências da sua mulher e progenitora daquela, e ainda do facto da menor, após os primeiros factos, não os ter revelado a ninguém, situação que facilitou apreciavelmente tal reiteração criminosa, diminuindo consideravelmente, nesta medida, a culpa do agente. Logo, estarmos perante a existência de um crime continuado (art. 30º, n.ºs 2 e 3 do Código Penal).
Os factos que o tribunal colectivo pôs em evidência constituem, sem dúvida, circunstâncias exteriores susceptíveis de facilitar a reiteração das práticas delituosas, mas revelam pouco quanto à diminuição da culpa do agente, excepto na parte em que refere um eventual acordo entre os sujeitos, que o próprio arguido fomentou logo na primeira vez que abusou sexualmente da filha quando a aconselhou a “que não contasse o que sucedera a ninguém, sob o pretexto de que se tratava de um segredo de ambos.” (facto nº 7). É certo que o acordo ligado ao crime de abuso sexual de crianças, constitui, no dizer de Figueiredo Dias (Direito Penal, I, pág. 1032), um dos exemplos paradigmáticos utilizados por Eduardo Correia como exemplo de menor exigibilidade. Todavia, exceptuando a circunstância de a menor BB se ter remetido ao silêncio, não se vê como pode existir um acordo para um relacionamento de cariz sexual entre uma criança de 6 anos e um adulto, seu pai, capaz de justificar uma diminuição de culpa deste último, diminuição que, nos termos da lei, terá de ser considerável para que se verifique a continuação criminosa.
A diminuição da culpa do arguido resulta, porém, bem mais evidente dum conjunto de circunstâncias exteriores, a que a decisão recorrida faz referência, nomeadamente a uma relação de proximidade com atitudes possessivas da menor para com o pai, havendo-se criado uma relação afectiva que não corresponde à normal entre pai e filha e que propiciou a repetição dos actos sexuais, e a que não foi indiferente, tendo para tal contribuído, especialmente, a circunstância de o arguido “apesar de viver com repugnância aquela relação, a mesma instalou-se como um comportamento compulsivo, temporariamente contrariado mas impossível de controlar.” (facto nº 35).

O arguido, como se referiu, praticou factos subsumíveis nos tipos legais de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes, que se sucederam no tempo. De todo o circunstancialismo exposto resulta a existência de uma situação exterior que levou o arguido à prática de novos factos, nomeadamente à cópula quando a menor atingiu a puberdade.
E a tanto não se opõe a circunstância de os factos se terem prolongado por quase uma dezena de anos. Com efeito, verifica-se no conjunto de factos cometidos pelo arguido não só uma periodicidade regular, como uma unidade de contexto situacional, que faz com que as plúrimas violações normativas se relacionem contextualmente umas com as outras.

A norma do artigo 30º sofreu alterações durante o período em que se verificou a prática pelo arguido dos actos delituosos. Assim, na reforma de 2007 foi aditado do número 3, com a seguinte redacção: “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.
Esta norma não veio, contudo, trazer qualquer inovação. Com um sentido semelhante à proposta em 1964 pela Comissão Revisora do Código Penal para ser acrescentada ao respectivo Projecto, “a supressão desse período [no Código Penal] não significou que outra solução devesse ser adoptada, mas tão só que o legislador considerou a afirmação desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado” (Maia Gonçalves, Código Penal Português – Anotado e Comentado 18, pág. 154). Por isso se pode afirmar que, com a introdução, em 2007, do referido número 3, em nada se alterou a posição jurisprudencial sobre esta matéria, conforme, aliás, se reconhece na própria Exposição de Motivos desse projecto de reforma: “O crime continuado é objecto de uma restrição que supera dificuldades interpretativas. Assim, determina-se que o seu regime se não aplica a crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, se estiverem em causa diferentes vítimas, de acordo, aliás, com o entendimento da jurisprudência”.

Já depois de publicado o acórdão condenatório e de interposto o recurso, foi publicada a Lei nº 40/2010, de 3 de Setembro, cujo art. 4º alterou a redacção do nº 3 do art. 30º do Código Penal, a qual passou a ser do seguinte teor: “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”. Esta nova alteração introduzida no preceito que, segundo Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 2, pág. 162 – nota 32 ao art. 30º), afasta a aplicação do instituto da continuação criminosa aos crimes praticados contra bens iminentemente pessoais, mesmo que se trate da mesma vítima, não tem, contudo, aplicação no caso presente. Desde logo, por força do princípio da não retroactividade da lei penal consagrado no nº 1 do art. 4º do Código Penal, que estabelece que “as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem”. Mas também porque o instituto do crime continuado tem, na sua génese, o reconhecimento de que uma série de actividades que deveria ser tratada no quadro da pluralidade de infracções apresenta características que a levam a dever ser considerada como um crime só, permitindo, numa construção teleológica do conceito, “atender […] à gravidade diminuída que uma tal situação revela em face do concurso real de infracções” (Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág. 209). Por isso, não tem também aplicação por força da regra do nº 4 do art. 4º, segundo a qual “quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”, visto a punição no quadro do crime continuado ser sempre mais favorável do que a pena em caso de concurso de crimes.

4. No seu recurso, o arguido considera a pena de 7 anos de prisão como desproporcionada, pretendendo que a mesma se situe “nos mínimos legais admissíveis”, ou seja, em quatro anos de prisão, e que seja suspensa na sua execução, ainda com regime de prova e com a injunção de não ter contactos com a menor.
Na motivação do seu recurso, invoca depoimentos de testemunhas em audiência, donde resulta que “a menor nutria pelo recorrente um afecto e uma dependência que não eram normais, mas que, para quem se encontrava de fora, a relação de ambos era muito forte acima de tudo eram muito cúmplices, acrescentando que aquando da detenção do recorrente a menor tentou negar tudo para que nada de mal acontecesse ao seu pai”. Mas porque “a vida do recorrente sempre se pautou dentro dos parâmetros normais da vivência em comunidade” estando entretanto divorciado da mãe da BB, serão menores, na sua óptica, as razões de prevenção especial. Considera violados pela decisão recorrida os arts. 32º nº 2, 29º nº 6 e 30º nº 4 da Constituição da República.
Em resposta, o Ministério Público no tribunal recorrido defende que o arguido terá de ser condenado numa pena de prisão efectiva, “por ser a adequada aos factos, e ao direito e também à sua culpa e personalidade”, admitindo que pudesse ser fixada em 6 anos de prisão.
Também o Ministério Público neste Supremo Tribunal se pronuncia em idêntico sentido, justificando a diminuição da pena face à primariedade do arguido, à confissão integral dos factos, ao arrependimento demonstrado e à sua modesta condição sócio-económica.

4.1 Em mera nota, porque a questão, tal como se apresenta colocada, não merece mais, dir-se-á que não se lobriga em que termos pode a decisão recorrida ter violado os preceitos constitucionais que o recorrente indicou. Com efeito, ao arguido foram dados os adequados meios de defesa e não se mostra que tenha havido violação do princípio da presunção de inocência (art. 32º nº 2); não tendo transitado em julgado a decisão é a despropósito que invoca a norma que concede a quem seja injustamente condenado o direito à revisão da sentença (art. 29º nº 6); da aplicação da pena não resulta, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos (art. 30º nº 6). Fechado o parêntesis, vejamos a questão da medida da pena.

4.2 O crime continuado é punível, de harmonia com o disposto no art. 79º nº 1, com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação, havendo que valorar, na determinação da medida concreta da pena, a gravidade e o número de actos individuais como forma de exasperar a sanção.
Dos três tipos que a conduta do arguido integra, o mais grave é o do art. 171º nº 2, ao qual, por força da agravação prevista no art. 177º nº 1 al. a), corresponde a moldura abstracta de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão.

Segundo o art. 40º do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo, porém, em caso algum, a pena ultrapassar a medida da culpa. A pena assume, assim, como finalidade última, para a qual todas as outras convergem, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, ou seja, finalidades de prevenção. Neste conceito compreende-se, desde logo, a prevenção geral, não já no sentido negativo, de intimidação do delinquente, que pressupunha a aplicação de penas severas, mas antes entendida como o reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma que protege os bens jurídicos (prevenção positiva ou de integração). Nele sendo também abrangida a prevenção especial de socialização do delinquente, ou seja de reintegração do agente na sociedade.
A necessidade de tutela de bens jurídicos adquire um significado prospectivo traduzido na tutela das expectativas da comunidade na manutenção, senão mesmo reforço, da vigência da norma infringida. Como refere Anabela Miranda Rodrigues, “onde o meio de prevenção (a ameaça penal) falhou, exige-se a aplicação da pena para que aquela ameaça não seja vazia e a medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face à norma concretamente violada deve determinar a medida da pena” (A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, pág. 547). Constitui, assim, um acto de valoração em concreto que o julgador deve levar a efeito tendo em vista as circunstâncias do caso. Trata-se de “determinar as exigências que ressaltam do caso sub iudice, no complexo da sua forma concreta de execução, da sua específica motivação, das consequências que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - Parte II - As consequências jurídicas do crime, pág. 241). Encontrar-se-á, desse modo, uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e da expectativas comunitárias consentida pela culpa, a qual admite a existência gradativa de pontos inferiores, em que aquela tutela é ainda efectiva, até se atingir o limiar mínimo abaixo do qual a fixação da pena perde, face à comunidade, a sua função tutelar. Entre aquele ponto óptimo e este limiar mínimo há-de ser fixada a pena concreta, com recurso às razões de prevenção especial de socialização, sempre na mira de evitar a quebra da inserção social do agente, na busca da sua reintegração na sociedade.

As sociedades ocidentais despertaram no último quartel do séc. XX para o fenómeno da pedofilia, o que determinou um agravamento das molduras penais e uma exigência da comunidade numa punição mais severa dos crimes desta natureza. Mas, como adverte Figueiredo Dias, “não pode o juiz – sob pena de irremissível violação do principio de dupla valoração – invocar aquelas mesmas circunstâncias [que motivaram o legislador a agravar a moldura penal] para agravar a medida da pena no caso concreto”. (op. cit., pág. 236). O que não significa – segundo a rigorosa lição que continuamos a seguir – “que, em matéria de determinação da pena só ao legislador, não já ao juiz, pertence motivar-se por razões de política criminal; ... ao juiz pertence, de forma irrenunciável, a aludida tarefa de concretização não só das modalidades de realização do tipo, mas de intenções político-criminais legislativamente definidas” (ibidem).
Tudo isto, porém, dentro do limite consentido pela culpa, pois por mais fortes que sejam as razões da prevenção, aquele limite nunca por nunca pode ser ultrapassado, em homenagem ao princípio inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, estruturante dum Estado de Direito. Com efeito, sendo o direito penal um direito penal de culpa, condição essencial para aplicação duma pena, jamais o condenado pode servir de instrumento às exigências de prevenção.

Para fixar a pena em 7 anos de prisão, considerou o tribunal colectivo que “são de sopesar as elevadas exigências de prevenção geral, no sentido de repor a confiança dos cidadãos na validade das normas jurídicas violadas com o comportamento lesivo dos bens jurídicos protegidos, porquanto os crimes de abuso sexual de crianças têm ganho avanços preocupantes na nossa sociedade, gerando justificado alarme social nos mais diversos estratos populacionais.
Contrariamente, não se impõem com grande acuidade as necessidades de prevenção especial, dada a ausência de antecedentes criminais do arguido e a existência de um adequado suporte familiar, sobretudo da parte dos seus progenitores e irmã.
No que concerne aos elementos elencados no art. 71º, n.º 2 do Código Penal, há ainda que considerar:
- O elevado grau de ilicitude, moldando-se o dolo do arguido num dolo directo e intenso;
- A culpa, elevada;
- O lapso temporal em que os factos decorreram – quase cerca de dez anos -, e a regularidade semanal da sua ocorrência;
- A tenra idade da menor aquando do seu começo;
- A grave violação dos deveres impostos ao agente, sobretudo dos resultantes do exercício do poder paternal, pese embora, no caso, se tenha igualmente de considerar que inicialmente não existia uma convivência diária entre o arguido e a filha;
- As consequências para o desenvolvimento psíquico e sexual da menor, com o eventual comprometimento do seu desenvolvimento emocional e necessidade de acompanhamento psicológico;
- O arrependimento, que se afigurou sério;
- A confissão dos factos;
- A ausência de antecedentes criminais.”

O tribunal colectivo não teve na devida conta o facto provado nº 35. Todavia, sendo este facto, que, conjuntamente com as circunstâncias respeitantes ao relacionamento entre arguido e ofendida, veio servir para justificar a existência duma continuação criminosa, não deve ser valorado de novo para quantificação da culpa ou da prevenção, sob pena de violação do princípio da dupla valoração.
Assim, num juízo unitário de censura que tome em consideração todas as práticas delituosas do arguido, a pena de 7 anos de prisão mostra-se proporcional às exigências da prevenção e dentro do limite da culpa do agente.

5. A condenação do arguido a uma pena de 7 anos de prisão, que excede o limite máximo para a suspensão de execução da pena, impede, por razões legais, a aplicação da referida pena de substituição, não havendo, em consequência, que examinar a questão que a tal respeito suscita.

DECISÃO
Termos em que acordam na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I) Em alterar a qualificação jurídica dos factos provados, integrando-os num único crime continuado (previsto no art. 30.2 e punível nos termos dos art.s 171º nº 2 e 177.º, n.º 1, al. a) do CP) que realiza, plurimamente, a) o tipo de crime previsto no art.º 172º nº 1, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março e no art. 177º nº 1 al a) do CP; b) o tipo de crime previsto nos art.º 171º nº 2 e 177.º, n.º 1, al. a) do CP na sua versão actual e c) o tipo de crime previsto no art. 172º do CP na sua versão actual;
II) E em, apesar disso, julgar improcedente o recurso, confirmando a condenação do arguido na pena de 7 (sete) anos de prisão aplicada pela decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 7 (sete) UC.

Lisboa, 9 de Dezembro de 2010

Arménio Sottomayor (relator) *
Souto Moura