Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
66/16.1T8RGR-C.L1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: PRINCÍPIO DA OFICIOSIDADE
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CREDITO LABORAL
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
BEM IMÓVEL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
PRINCÍPIO DA AQUISIÇÃO PROCESSUAL
INSTRUÇÃO DO PROCESSO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
Data do Acordão: 11/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – DISPOSIÇÕES INTRODUTÓRIAS / PRINCIPIO DO INQUISITÓRIO / VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS, RESTITUIÇÃO E SEPARAÇÃO DE BENS / VERIFICAÇÕES DE CRÉDITOS / RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / PROVAS ATENDÍVEIS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 11.º E 128.º, N.º 1, ALÍNEA C).
CÓDIGO DE TRABALHO (CT): - ARTIGO 333.º, N.º 1, ALÍNEA B).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 413.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 07-02-2013, PROCESSO N.º 148/09.6TBPST-F.L1.S1;
- DE 23-01-2014, PROCESSO N.º 1938/06.7TBCTB-E.C1.S1, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A participação alargada de credores, do devedor e do administrador de insolvência (e, eventualmente, da comissão de credores) no processo especial de insolvência afasta a bilateralidade que caracteriza a acção declarativa e permite mitigar os efeitos usualmente associados ao incumprimento dos ónus de alegação e de prova, facultando-se ao tribunal a hipótese de adquirir factos na sequência da sua actividade e dos contributos trazidos pelos intervenientes (art. 11.º do CIRE).

II - Tendo os trabalhadores recorridos, em resposta à impugnação dos créditos por eles reclamados que foi apresentada pelo recorrente, alegado e demonstrado que prestaram trabalho nos imóveis apreendidos para a massa insolvente, é de considerar tais factos como adquiridos para o processo, pese embora não tenham sido alegados no requerimento de reclamação de créditos.
Decisão Texto Integral:
PROC. 66/16.1T8RGR-C.L1.S2

REVISTA EXCEPCIONAL

            REL. 49[1]

                                                                       *

     ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Na sequência de sentença da declaração da insolvência de “AA, Lda.”, veio o “Banco BB, S.A.”, na qualidade de credor da insolvente, impugnar a lista de credores reconhecidos elaborada pelo Administrador da Insolvência a fls. 2 a 61, nos termos do artigo 130º do CIRE, alegando, em síntese que:

- O Administrador da Insolvência qualificou os créditos dos trabalhadores, indistintamente, como privilegiados, sem fazer qualquer destrinça entre privilégios imobiliários ou mobiliários, gerais ou especiais, e quais os concretos bens sobre os quais os privilégios incidem;

- Os créditos laborais reclamados pressupõem a alegação e prova por parte dos trabalhadores de que era no ou nos imóveis apreendidos à insolvente que prestavam a sua actividade;

- Era no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 1 que a insolvente tinha a sua sede social;

- Nunca os trabalhadores exerceram qualquer actividade no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 2, pelo que, relativamente a este imóvel, os mesmos não gozam de qualquer privilégio imobiliário especial.

Nos termos do artigo 131.º do CIRE responderam a esta impugnação: CC, o qual, para além do mais, esclareceu que, entre Maio de 1993 e 2006, prestou serviço como trabalhador da insolvente no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 2 e, de 2006 até 2013, no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 1, factualidade que alegou e demonstrou na respectiva reclamação de créditos (fls. 156 a 176); DD, o qual, para além do mais, esclareceu que, entre Julho de 1992 e 2006, prestou serviço como trabalhador da insolvente no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 2 e, de 2006 até 2013, no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 1, factualidade que alegou e demonstrou na respectiva reclamação de créditos (fls. 194 a 231); e EE, o qual, para além do mais, esclareceu que, entre Março de 1992 e 2006, prestou serviço como trabalhador da insolvente no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 2 e, de 2006 até 2013, no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 1, factualidade que alegou e demonstrou na respectiva reclamação de créditos (fls. 234 a 264).

Todos defenderam a improcedência da impugnação.

 

O Administrador da Insolvência, na resposta à impugnação de FF, veio esclarecer que não fez qualquer destrinça entre privilégios imobiliários ou mobiliários, gerais ou especiais dos trabalhadores da insolvente, porque, em seu entender, o privilégio abrange todos os bens apreendidos para a massa insolvente e que, por outro lado, se desconhece onde os trabalhadores da insolvente desempenhavam as suas funções, dado o facto de a ora insolvente ter encerrado as suas actividades muito antes da apresentação à insolvência (fls. 322 a 323).

Foi, então, proferida decisão do seguinte teor:

Da impugnação apresentada por Banco BB, S.A.:

(…)

Tendo o Senhor Administrador da Insolvência limitado a qualificar todos os créditos como privilegiados, não se pode deixar de entender que o fez relativamente a todos os bens apreendidos para a massa insolvente, sejam eles os bens imóveis ou móveis (conforme, aliás, consignou na resposta que apresentou à impugnação apresentada por FF).

Suscitam-se, pois, as duas seguintes questões: se o privilégio imobiliário dos créditos laborais respeita apenas ao(s) concreto(s) imóvel(eis) onde cada um dos trabalhadores prestava a sua atividade e se é necessário resultar a verificação (seja por via da alegação do trabalhador enquanto credor reclamante, seja por via dos elementos disponíveis nos autos) de uma ligação entre o trabalhador e a universalidade de imóveis afetos ao exercício da atividade comercial da devedora.

Quanto à primeira questão, a jurisprudência mais recente tem vindo a adotar uma corrente mais flexível no que concerne à natureza do privilégio imobiliário, que perfilhamos, decidindo que os créditos dos trabalhadores gozam de privilégio imobiliário especial sobre a universalidade de imóveis do insolvente onde era exercida a actividade comercial do insolvente, em alternativa à corrente que, mais restritivamente, interpretava o art.º 333.º, n.º 1, al. b,) do Código do Trabalho (CT) como apenas conferindo o privilégio ao bem em concreto no qual o trabalhador prestava a sua atividade, cenário este suscetível de conduzir a injustificadas discriminações, como, por exemplo, quanto aos trabalhadores que prestam serviço externo [vide, a título de exemplo, o Ac. TRL de 28-09-2010, processo n.º 345/09.4TBRMR-C.L1-1, relatado por RIJO FERREIRA, o Ac. TRL 18-06-2015, processo n.º 293/09.8TBHRT-E.L1-8, relatado por OCTÁVIA VIEGAS e o Ac. TRL de 22-05-2012, processo n.º 148/09.6TBPST-F.L1-1, relatado por PEDRO BRIGHTON (e a vasta jurisprudência nele citada); e, embora tratando de uma questão paralela, mas aflorando esta temática, cfr. o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2016, de 23-02-2016, processo n.º 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1-A, todos integralmente disponíveis em www.dgsi.pt].

Assim sendo, entendemos que os créditos laborais gozam de privilégio imobiliário especial sobre os imóveis afetos à atividade comercial da insolvente, independentemente de qualquer uma concreta conexão específica entre os bens e a actividade laboral daqueles, seja esta num ou noutro local ou, inclusivamente, no exterior.

Relativamente à segunda questão, é inequívoco que os credores da insolvência, incluindo os trabalhadores, devem indicar a natureza do crédito e os bens objecto de garantia (art.º 128.º, n.º 1, al. c,) do CIRE), porquanto se tratam de factos constitutivos do seu direito (art.º 342.º, n.º 1, do CC).

Mas, não cuidando os trabalhadores de indicar a natureza do crédito, nem tão pouco os bens objeto de garantia, “(…) há que não esquecer a actividade oficiosa do Juiz de verificar a conformidade dos títulos e demais elementos de que disponha com vista a evitar a violação de lei substantiva, devendo ter em consideração tudo o que resulta da globalidade do processo de insolvência, em aplicação do princípio da aquisição processual (…)” (cit. Ac. TRL de 22-05-2012). Ou seja, mesmo havendo omissão de alegação quanto aos fundamentos da garantia do crédito, do mesmo, deve o Tribunal atender aos elementos disponíveis nos autos “susceptíveis de, só por si, e de acordo com a invocada aquisição processual, revelarem aqueles fundamentos”, de acordo com o princípio consagrado no art.º 413.º do CPC (vide, no mesmo sentido, o Ac. TRL de 24-02-2015, processo n.º 1288/10.4TYLSB-AB.L1-7, integralmente disponível em www.dgsi.pt e a jurisprudência nele referenciada).

Revertendo estas considerações para o caso dos autos, verificamos que tendo sido apreendidos os dois imóveis em questão para a massa insolvente (sendo a verba n.º 1 o lugar da sede da devedora), é de presumir (e nada resulta dos autos em contrário) que ambos se encontravam inscritos no âmbito da sua atividade comercial (nada aponta em sentido contrário), pelo que, no quadro já desenhado, nada obsta à conclusão de que, efetivamente, aqueles créditos beneficiam de tal privilégio.

Em face do exposto, julgo improcedente a impugnação, com custas do incidente a cargo da credora Banco BB, S.A. (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC) com referência ao valor tributário correspondente à soma dos créditos laborais impugnados quanto à sua natureza.

(…)

Assim sendo, julgo verificados os créditos nos precisos termos constantes da lista dos credores reconhecidos, mais os graduando em conformidade com o que aí resulta pela seguinte ordem (arts.º 333.º, n.ºs 1, als. a) e b) e 2, als. a) e b) do CT, e 47.º a 50.º do CIRE):

a)         Quanto aos bens imóveis:

1.º lugar: créditos privilegiados de todos os trabalhadores (privilégio imobiliário especial);

2.º lugar: créditos garantidos da credora Banco BB, S.A., na exata medida e com os limites das garantias reais (hipotecas), quanto ao valor reconhecido de € 1.276.450,47;

3.º lugar: créditos privilegiados da Fazenda Nacional quanto ao valor global reconhecido de € 13.263,05 (privilégio imobiliário geral); e

4.º lugar: demais créditos (comuns).

b)         Quanto aos bens móveis:

1.º lugar: créditos privilegiados de todos os trabalhadores (privilégio mobiliário geral);

2.º lugar: créditos privilegiados da Fazenda Nacional quanto ao valor reconhecido de € 13.263,05 (privilégio mobiliário geral); e

3.º lugar: demais créditos (comuns).

Deverão ainda ser atendidos os créditos sob condição das credoras Banco GG, S.A., HH, S.A. e Banco BB, S.A., com a natureza de garantido ou comum, consoante o caso, conforme resulta da lista.

O pagamento dos créditos sobre a insolvência abrange os que estiverem verificados pela presente decisão.

O pagamento dos créditos em igualdade de condições deve ter lugar na correspondente proporção caso a massa seja insuficiente para a respetiva satisfação integral.

Antes de se proceder ao pagamento dos créditos reconhecidos e graduados, devem ser deduzidos à massa insolvente os valores necessários à satisfação das dívidas da massa insolvente que saem precípuas.

Registe e notifique.”.

Inconformado com essa decisão, o credor “Banco BB, S.A.” apelou, mas sem sucesso, uma vez que a Relação de Lisboa confirmou aquela decisão por unanimidade e sem fundamentação essencialmente diferente.

Ainda inconformado, interpôs recurso de revista excepcional, admitido pela Formação, conforme douto acórdão de fls. 794 e ss.

O recorrente remata as alegações de recurso do seguinte modo: 

1.         Veio o Tribunal da Relação de Lisboa confirmar a sentença proferida, que julgou improcedente a impugnação apresentada pela recorrente, reconhecendo todos os créditos dos trabalhadores da insolvente como créditos que beneficiam de privilégio imobiliário especial quanto a todos os bens móveis e imóveis arrolados para a massa e, consequentemente, graduou quanto aos bens imóveis tais créditos em primeiro lugar.

2.         Acontece que, os trabalhadores quando reclamaram os créditos emergentes de contratos de trabalho, por forma a beneficiarem de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis, estavam obrigados a alegar e provar não só os factos que consubstanciem a existência e o montante desses créditos, como também os que permitissem identificar qual o imóvel onde prestavam a sua actividade, fazendo a prova de tais factos nas respectivas reclamações de créditos.

3.         O que não aconteceu.

4.         É entendimento da jurisprudência e da doutrina que é necessário provar-se a conexão entre o imóvel penhorado e a actividade da entidade patronal, cabendo às titulares dos créditos laborais o ónus da respectiva alegação e prova para que os créditos laborais gozem do privilégio creditório imobiliário especial previsto no artigo 333º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho.

5. Conforme resulta do Acórdão que ora se recorre, os trabalhadores não identificaram, nas suas reclamações de créditos, como era sua obrigação nos termos do artigo 333º do CT e artigo 128º, n.º 1 do CIRE, em qual dos dois imóveis é que prestavam a sua actividade laboral.

6.         Pelo que, os créditos dos trabalhadores não podem beneficiar do privilégio imobiliário especial previsto no artigo 333º do Código do Trabalho.

7.         Mesmo que assim não se entendesse, o privilégio imobiliário de que os créditos dos trabalhadores gozam incide apenas e tão só sobre o imóvel relativamente ao qual estes efectivamente provem que prestavam a sua actividade e não sobre todo o acervo patrimonial imobiliário de que a insolvente disponha.

8.         A sede da empresa insolvente é no local correspondente à verba n.º 1 (artigos 349º e 351º do CC), por esse motivo, nunca tendo os seus trabalhadores prestado qualquer actividade no imóvel sito à Rua ..., n.º …, concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º … (verba n.º 2), relativamente a este imóvel, nunca poderão gozar de privilégio imobiliário especial.

9.         Ao decidir em sentido contrário, o Acórdão recorrido fez uma incorrecta interpretação dos artigos 128° do CIRE e 333° do CT.

Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o douto Acórdão recorrido revogado, considerando que os créditos dos trabalhadores não gozam de privilégio imobiliário especial sobre o prédio si to à Rua ..., n.º 10, concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º … (verba n.º 2), assim fazendo, V. Exas. Senhores Conselheiros, o que é de inteira Justiça.

Não houve contra-alegações.

                                                                       *

Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente, a única questão a dirimir é a de saber se o incumprimento do ónus de alegação e prova de que os credores reclamantes exerciam a sua actividade laboral em determinado imóvel da insolvente, tem como consequência o aniquilamento do privilégio imobiliário especial.

                                                                       *

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Além do que consta do precedente relatório, importa considerar os seguintes factos:

1.        Em 21.04.2016 foi proferida a sentença da declaração da insolvência de “AA, Lda.”, com sede na ..., n.º 3-1.ª, km 10, ..., ... (fls. 346 a 350).

2.        Em 26.05.2016 foi feita a Apreensão de Imóveis, Viaturas e Bens Móveis pertencentes à Insolvente “AA, Lda.” (fls. 351 a 354).

3.         Do Auto de Apreensão de Imóveis constam, como Verbas ns.º, 1 e 2, respectivamente, o prédio urbano destinado a armazém e a actividade industrial, sito na ..., n.º 3-1., km 10, ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Grande, sob o n.º ..., da freguesia de ..., com o valor patrimonial de € 349.352,19, e o prédio urbano correspondente ao r/c e 1.º andar do prédio, sito na Rua ..., n.º 10, concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …, da freguesia de ... (...), com o valor patrimonial de € 119.140,00 (fls. 351).

            O DIREITO

           Uma das vertentes em que se corporiza a especial tutela da situação dos trabalhadores num contexto de crise da empresa empregadora é a que resulta do artigo 333º do Código de Trabalho, onde se confere a protecção dos créditos laborais mediante a atribuição de privilégios creditórios em sede concursal.

            Eis o que dita a norma:

“1- Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a)        Privilégio mobiliário geral;

b)    Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.

2- A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do art.º 747.º do Código Civil; b) o crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no art.º 748.º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.”.

Conforme sublinha o acórdão da Formação, o acórdão fundamento (também da Relação de Lisboa) considerou que, para que os créditos laborais gozem do privilégio creditório imobiliário especial previsto no artigo 333º, n.º 1, al. b), do Código do Trabalho, é necessário provar-se a conexão entre o imóvel penhorado e a actividade da entidade patronal, cabendo aos titulares dos créditos laborais o ónus da respectiva alegação e prova.

Já o acórdão recorrido entendeu que, mesmo havendo omissão de alegação quanto aos fundamentos da garantia do crédito, deve o tribunal atender aos elementos disponíveis nos autos, susceptíveis de, só por si, e de acordo com o princípio da aquisição processual, revelarem aqueles fundamentos, de acordo com o artigo 413º do CPC.

É nesta dissensão que reside o fundamento da revista excepcional.

Importa, pois, averiguar se, havendo omissão da alegação relativa à conexão entre o imóvel apreendido para a massa e a actividade laboral da insolvente, pode o tribunal socorrer-se de elementos do processo que conduzam à demonstração desse facto, com base no princípio da aquisição processual.

Para já pode adiantar-se que nenhuma dúvida existe quanto ao facto de que, segundo as normas do artigo 5º, n.º 1, do CPC e 342º do CC, é ao autor/reclamante que cabe alegar e provar os factos constitutivos do direito invocado. Como assim, o artigo 128º, n.º 1, alínea c), do CIRE, também determina que os credores da insolvência devem fazer acompanhar o requerimento de reclamação de créditos de “todos os elementos probatórios de que disponham”, indicando, designadamente, a natureza comum, subordinada, privilegiada, ou garantida desses créditos[2], e, neste último caso, os bens ou direitos objeto da garantia e respetivos dados de identificação registral, se aplicável.

Nos requerimentos em que reclamaram os respectivos créditos, os trabalhadores da insolvente não aludiram à natureza garantida desses créditos, nem identificaram o bem imóvel do empregador onde prestavam trabalho e sobre o qual incidiria a referida garantia real. Esta a razão por que a recorrente sustenta o efeito preclusivo do privilégio imobiliário especial consagrado na alínea b) do n.º 1 do artigo 333º do CT.

A verdade é que tal preclusão podia, efectivamente, verificar-se como consequência dessa omissão[3], não fosse o facto de estarmos no domínio de um processo (especial) de insolvência, de natureza eminentemente executiva[4], cuja finalidade essencial é a satisfação dos interesses dos credores, e em que também participam, além dos credores e do devedor, o administrador da insolvência e a comissão de credores, quando esta tenha sido nomeada.

Esta participação alargada, mormente na fase declarativa da verificação e graduação de créditos, com atribuições procedimentais e processuais específicas para cada um dos intervenientes, afasta-se da regra da bilateralidade que domina a típica acção declarativa, mitigando os efeitos normais ligados ao não cumprimento dos ónus de afirmação e da prova característicos desta. Com efeito, a aquisição de factos para o processo de insolvência, e seus apensos, pode decorrer da própria actividade do tribunal, consentida em termos amplos pelo princípio da oficialidade do artigo 11º do CIRE, ou dos contributos trazidos ao processo pelo administrador da insolvência ou outros intervenientes. 

Ora, conforme vem assente das instâncias, nas respostas à impugnação do Banco BB sobre a lista dos credores reconhecidos pelo administrador da insolvência, os reclamantes lograram demonstrar o seguinte:

CC, prestou serviço como trabalhador da insolvente, entre Maio de 1993 e 2006, no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 2 e, de 2006 até 2013, no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 1; DD, prestou serviço como trabalhador da insolvente, entre Julho de 1992 e 2006, no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 2 e, de 2006 até 2013, no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 1; e EE, prestou serviço como trabalhador da insolvente, entre Março de 1992 e 2006, no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 2 e, de 2006 até 2013, no imóvel apreendido para a massa insolvente sob a verba n.º 1.

Estes factos, conquanto não tenham sido oportunamente alegados pelos credores reclamantes, devem ter-se por adquiridos para o processo, ao abrigo do princípio da aquisição processual consagrado no artigo 413º do CPC, por resultarem da actividade instrutória desenvolvida ao longo dos autos.

Veja-se o que se escreveu no acórdão deste STJ, de 23.01.2014[5], num caso similar.

“Aliás, bem vistas as coisas, o que a entidade recorrente parece, em última análise, pretender é que se atribuísse um efeito irremediavelmente preclusivo à circunstância de os trabalhadores, no próprio requerimento de reclamação de créditos, não terem logo especificado que prestavam serviço num determinado imóvel, comprometendo irremediavelmente tal omissão a viabilidade da respectiva pretensão, sem que fosse possível que este facto viesse a ser ulteriormente adquirido para o processo.

Considera-se que tal tese - formalista e desproporcionadamente preclusiva - não pode, porém, proceder, já que, por um lado, não teria na devida conta a peculiar natureza do processo de insolvência (e a consequente possibilidade de se considerarem processualmente adquiridos factos que, embora não expressamente alegados pela parte em certo requerimento, possam resultar da globalidade do processo de liquidação universal do património do insolvente, por nele estarem retratados ou documentados - cfr. Ac. de 22/10/09, proferido pelo STJ no P. 605/04.0TJVNF-A.S1) e o reforço do princípio da inquisitoriedade que resulta da norma contida no art. 11º do CIRE ; e, por outro lado, não se compaginaria sequer com as regras vigentes no domínio do actual processo civil – e com a atenuação das rígidas preclusões que vigoravam anteriormente à reforma de 1995/96 - permitindo há muito a norma que constava do art. 264º, n.º 3, do CPC (que corresponde ao actual art. 5º do Código vigente) a aquisição processual de factos que (sendo substantivamente relevantes, por condicionarem decisivamente a procedência da pretensão deduzida) se devam qualificar como concretizadores ou complementares do núcleo essencial da causa de pedir invocada.

Ora, na situação dos autos, será esta a qualificação adequada para o facto em questão, consubstanciado no exercício da actividade laboral em determinado edifício, integrado num estabelecimento comercial ou industrial unitário da entidade patronal insolvente: na verdade, integrando o fundamento factual da reclamação deduzida uma causa de pedir complexa, o respectivo núcleo essencial assenta na invocação e especificação da natureza e origem laboral do crédito reclamado, dependendo ainda a alegada garantia real - o invocado privilégio creditório sobre determinado imóvel, incluído na massa insolvente - da demonstração do referido facto complementar, sujeito a um regime menos preclusivo no que se refere à sua alegação e aquisição processual – de onde decorre a admissibilidade da sua consideração na sentença, desde que resulte demonstrado em função da globalidade dos actos e diligências que integram o processo de insolvência”.

Já no acórdão de 07.02.2013[6] se tinha seguido esta linha de entendimento, ao decidir-se que “o princípio da aquisição processual (…) e a regra de que o tribunal pode decidir com base em factos de que teve conhecimento em virtude do exercício das suas funções permitem considerar o facto (não alegado nem provado pelos trabalhadores) de que os trabalhadores exerciam a sua actividade no imóvel em causa”.

Tendo-se, portanto, provado que os credores reclamantes exerceram actividade profissional, ao serviço da insolvente, nos dois únicos imóveis apreendidos para a massa (verbas nºs 1 e 2), e havendo que considerar-se adquirido para o processo tal material probatório, nos momentos processuais que permitiram a recolha desses elementos, tem de concluir-se que o acórdão recorrido decidiu correctamente.

                                                                       *


III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista.

                                                                       *

Custas pelo recorrente.

                                                                       *


                                                                       LISBOA, 6 de Novembro de 2018

Henrique Araújo (Relator)
Catarina Serra
Salreta Pereira

___________________
[1] Relator:       Henrique Araújo
  Adjuntos:    Catarina Serra
                        Salreta Pereira                        
[2] De acordo com o artigo 47º, n.º 4, alínea a), do C.I.R.E., são “«Garantidos» e «privilegiados» os créditos que beneficiem, respetivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes.”
[3] Como refere Mariana França Gouveia, “O Princípio Dispositivo e a Alegação de Factos em Processo Civil”, em “Estudos em Homenagem aos Professores Palma Carlos e Castro Mendes”, o processo civil português, de cariz preclusivo muito acentuado, hipervaloriza o momento da alegação dos factos (nos articulados) em detrimento do julgamento e da produção de prova aí realizada
[4] Ainda que alguns dos seus incidentes ou apensos possam seguir os moldes do processo declarativo, como sucede, por exemplo, com a verificação e graduação de créditos.
[5] Processo n. 1938/06.7TBCTB-E.C1.S1 (Conselheiro Lopes do Rego), em www.dgsi.pt.
[6] No processo n.º 148/09.6TBPST-F.L1.S1 (Conselheira Maria dos Prazeres Beleza), em www.dgsi.pt.