Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1371/12.1TBAMT-A.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
TÍTULO EXECUTIVO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
LIVRANÇA
MORA
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
DIRECTIVA COMUNITÁRIA
DIRETIVA COMUNITÁRIA
Data do Acordão: 12/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / RESOLUÇÃO DO CONTRATO / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / MORA DO DEVEDOR.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
-Fernando Gravato de Morais, União de Contratos de Crédito e de Venda para Consumo, Efeitos para o Financiador do Incumprimento do Devedor, Almedina, p. 79 e ss.;
-Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, p. 311 e 312;
-João Baptista Machado, Obra Dispersa, Volume I, Scientia Ivridica, 1991, p. 162 a 164;
-João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume II, 7.ª edição, Coimbra Editora, p. 125;
-Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2016, 3.ª Edição, Almedina, p. 293, 337, 338, 341, 342 e 343;
-José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 2009, Almedina, p. 285, 510 a 512;
-L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito Bancário, Almedina 2017, p. 342;
-Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Almedina, p. 1053;
-Menezes Cordeiro, Liber Amicorum Mário Frota, A causa dos Direitos dos Consumidores, Almedina, 2012, p. 51 a 59;
-Paulo Duarte, Liber Amicorum, Mário Frota, A causa dos Direitos dos Consumidores, Almedina, 2012, p. 417 e 418.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 432.º, N.º 1 E 808.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4 E 639.º, N.º 1.
CONTRATOS DE CRÉDITO A CONSUMIDORES, APROVADO PELO DL N.º 133/2009, DE 02 DE JUNHO: - ARTIGO 18.º, N.ºS 2 E 3.
VENDA DE BENS DE CONSUMO E DAS GARANTIAS A ELA RELATIVAS, APROVADO PELO DL N.º 67/2003, DE 08 DE ABRIL: - ARTIGOS 3.º, 4.º, 5.º E 9.º.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA 2008/48/CE, DE 23 DE ABRIL.
Sumário :
I - Na sequência da Directiva 2008/48/CE, de 23-04, o DL n.º 133/2009, de 02-06, consagrou, entre nós, a responsabilidade do financiador perante o consumidor, na área dos contratos de crédito ao consumo, surgindo, assim, a figura do contrato de crédito coligado e da inerente responsabilidade do concedente do crédito, prevista genericamente no art. 18.º do DL n.º 133/2009, de 02-06.

II - Pese embora na compra e venda financiada existam dois contratos distintos (um de compra e venda e outro de crédito, normalmente o mútuo), apresentam-se ambos unidos e funcionalmente conexos, o que “investe o financiador numa responsabilidade subsidiária perante o consumidor pelo exacto e pontual cumprimento do contrato celebrado com o vendedor” (art. 18.º, n.º 3, do DL n.º 133/2009, de 02-06, e arts. 3.º, 4.º, 5.º e 9.º, do DL n.º 67/2003, de 08-04).

III - Entre os participantes nesta cadeia contratual estabelece-se uma coligação ou dependência negocial em que as vicissitudes de cada um desses contratos se reflecte reciprocamente no outro, ficando, por isso, o financiador também responsável perante o comprador pelo cumprimento do contrato celebrado com o vendedor.

IV - Na compra e venda financiada, a comprovada perda de interesse do comprador decorrente da mora determina, por si só, o incumprimento definitivo (art. 808.º, n.º 1 – primeiro segmento – do CC), e é fundamento válido para a resolução contratual, quer perante o vendedor, quer perante o financiador (arts. 432.º, n.º 1, do CC, e art. 18.º, n.º 2, do DL n.º 133/2009, de 02-06).

V - Perante o efeito extintivo operado pela resolução, o financiador (a exequente) deixou de ficar legitimado a proceder ao preenchimento da livrança, preenchimento que, nesse contexto, se tem por abusivo, e que, nessa medida, não pode constituir título executivo.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I Banco AA, SA instaurou execução comum para pagamento de quantia certa contra BB e mulher, CC, tendo por base livrança subscrita por estes, com vencimento em 11.07.2012.

Os Executados deduziram oposição à execução, alegando, em síntese, que:

Apesar de haverem subscrito contrato de crédito associado a contrato de compra e venda de viatura, nunca receberam a viatura cuja compra foi financiada pela exequente.

Perante o não cumprimento do contrato de compra e venda por parte do vendedor, perderam interesse na viatura e resolveram os contratos de aquisição de viatura e crédito associado.

Após a resolução do contrato, não é a exequente legítima possuidora do título executivo (livrança), tendo-a preenchido abusivamente e actuando além dos limites da boa fé.

Com tais fundamentos, concluíram pela extinção da instância executiva.

A Exequente apresentou contestação a refutar os fundamentos da oposição, alegando, em resumo, que:

O Executado, à data do contrato, era funcionário do stand vendedor, não sendo credível a não entrega da viatura, até porque fora emitida autorização de circulação da mesma viatura.

Foi emitida a respectiva factura e o vendedor solicitou o pagamento do empréstimo logo que entregou a viatura.

A não entrega da viatura não é oponível ao Exequente, pois não é parte no contrato de compra e venda, inexistindo qualquer exclusividade por parte do Banco exequente junto do vendedor enquanto entidade financiadora.

Há abuso de direito por parte dos executados, dado que liquidaram sete prestações do contrato de crédito, o que criou no exequente a legítima confiança de que o contrato de crédito fora aceite pelos executados e de que estes tinham intenção de o cumprir.

Com tais fundamentos, concluiu pela improcedência da oposição e continuação da execução.

O processo seguiu a normal tramitação e, finda a audiência final, foi proferida sentença, datada de 17/06/2016, a julgar procedente a oposição e a extinguir a execução.

Inconformada, apelou a Exequente, com total êxito, tendo a Relação do Porto, na procedência do recurso, revogado a sentença e ordenado o prosseguimento da execução.

Agora inconformados, interpuseram os Executados recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as conclusões que, na íntegra, se transcrevem:

A) Os Executados, ora recorrentes, não se podem conformar com o teor do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, porquanto o mesmo não aplica corretamente o direito à matéria de facto provada nos presentes autos.

B) Ora, a douta sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, não merecia qualquer reparo e deveria ter sido mantida pelo Tribunal da Relação, uma vez que esta é a única decisão que está em conformidade com a realidade dos factos e que consubstancia uma melhor aplicação do direito.

C) De facto, os executados, na qualidade de consumidores exerceram o seu direito e ao abrigo do DL 133/2009 de 02 de junho e nos termos do disposto no seu artigo 18°, considerando que apenas recorreram ao crédito para comprar a viatura, resolveram o contrato de compra e venda e o conexo contrato de crédito.

D) Analisados os factos dados como provados, não se deu como provado em momento algum que os executados apenas subscreveram uma livrança sem mais.

E) Os factos provados indicam que os oponentes/executados para adquirir uma viatura celebraram um contrato de crédito, com uma livrança anexa. Apenas e só recorreram ao crédito porque lhes permitia a aquisição da viatura.

F) Assim, o que está em causa nestes autos não é apenas e só um negócio cambiário independente do caso em concreto, mas sim um contrato de compra e venda coligado com um contrato de crédito.

G) Verificou-se e consta dos factos provados o incumprimento do vendedor do dever de entrega da viatura.

H) Resultou provado que os executados/oponentes/consumidores:

9. Além de não terem recepcionado a viatura financiada, tão pouco receberam a quantia indicada no contrato de mútuo.

10. Perante a persistência na não entrega da viatura e ao fim de mais de sete meses, os oponentes perderam o interesse na compra da viatura, tendo enviado ao Stand Vendedor a carta registada de fls. 11 a 13 (cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido), com o assunto "Resolução do contrato n.° 802…7 por falta de entrega da viatura por parte do fornecedor", datada de 24.08.2011.

11. Pelas mesmas razões, os oponentes enviaram ao Banco exequente a carta registada de fls. 14 a 16 (cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido), com o assunto "Resolução do contrato n.° 802…7 por falta de entrega da viatura por parte do fornecedor". datada de 24.08.2011.

I) Acresce que, quer o Banco/Exequente, quer o vendedor recepcionaram as comunicações de resolução dos contratos coligados e não as contestaram.

J) Ora, a resolução foi feita pela via extrajudicial e sendo um modo de extinção do vínculo obrigacional, pela via da declaração unilateral condicionada a um motivo previsto na lei.

K) Nos presentes autos foi uma resolução legal, nos termos do disposto no artigo 432°, n° 1 do CC e no artigo 18° do DL 133/2009 de 02 de junho.

L) A referida resolução efetuada pelos Oponentes/Executados está relacionada com o incumprimento da prestação contratual devida pelo vendedor da viatura.

M) De facto, a resolução por incumprimento é invocável na generalidade dos contratos.

N) Não tendo os executados recebido a viatura objeto do contrato, sendo impossível a sua entrega por parte do vendedor, como resulta do depoimento da testemunha DD, tendo resultado provado ainda que 10. Perante a persistência na não entrega da viatura e ao fim de mais de sete meses, os oponentes perderam o interesse na compra da viatura, tendo enviado ao Stand Vendedor a carta registada de fls. 11 a 13 (cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido), com o assunto "Resolução do contrato n.° 802…7 por falta de entrega da viatura por parte do fornecedor", datada de 24.08.2011.

O) De facto, persistir significa manter a não entrega ou permanecer na não entrega, ao que acresce o facto de os Oponentes perderem o interesse na viatura, tanto mais que estavam a liquidar as prestações do contrato de crédito há sete meses sem beneficiar da viatura ou da quantia mutuada que não receberam.

P) Acresce ainda o facto de o legal representante da vendedora ter afirmado perante o tribunal que era impossível a entrega da viatura, pois a Mercedes deixou de fornecer viaturas e a que seria dos executados foi vendida a terceiros.

Q) Assim, verifica-se que o ato resolutivo levado a cabo pelos oponentes, na qualidade de consumidores é um acto válido, que não exigia a intervenção de órgão judicial para ser validado.

R) Verifica-se também que o ato teve um fundamento subjetivo que foi o incumprimento da entrega da viatura por parte do vendedor.

S) Nos termos do artigo 801° do CC, nos contratos sinalagmáticos, o incumprimento definitivo permite aos oponentes que resolvam o contrato. Verificou-se que o vendedor não cumpriu. Verificou-se também que os contratos de compra e venda estão coligados. Verificou-se ainda que os oponentes são consumidores e, portanto, não se verificando a entrega da viatura mutuada ou outra equivalente (e não tendo sequer os oponentes recebido a quantia mutuada) podem resolver o contrato.

T) Acresce ainda que, o vindo de expor, considerando o regime dos contratos de crédito a consumidores e considerando a relação de consumo e os contratos coligados, verifica-se que os Oponentes beneficiam duma proteção legal especial, pois são o contraente débil na relação contratual, pois que se prevê concretamente no artigo 18° do DL 133/2009 de 02 de junho a resolução dos contratos na venda financiada.

U) O DL 133/2009 de 02 de junho legitima o comportamento dos oponentes a recusar o pagamento das prestações do empréstimo. O acto resolutivo afecta ambos os contratos. Note-se que não houve incumprimento do Exequente, mas sim incumprimento do devedor, no quadro da compra e venda que se repercute de forma direta no contrato de crédito.

V) Assim, a compra e venda foi a base negocial do contrato de crédito, pelo que cessando a compra e venda extingue-se o contrato de crédito. Ou seja, o contrato de compra e venda não seria concluído sem o contrato de crédito.

W) Ora, a obrigação de pagamento das prestações do empréstimo encontra-se na estrita dependência do dever de entrega de uma coisa conforme ao contrato por parte do vendedor.

X) Da colaboração entre financiador e vendedor resulta a aquisição do bem. O que permite imputar ao credor a conduta inadimplente do vendedor e o consumidor ao pagar fá-lo no pressuposto de que lhe foi entregue um bem em conformidade com o contrato de compra e venda.

Y) Ora, se nada foi entregue aos Oponentes, nem eles receberam a quantia mutuada, a lei confere-lhe a possibilidade de demandar o credor resolvendo o contrato de crédito.

Z) A Declaração Resolutiva dos Consumidores, Oponentes nestes autos, foi feita extrajudicialmente e dirigida à contraparte no contrato de compra e venda e no contrato de crédito.

AA) Ao recepcionarem a mesma, nada disseram, ou seja, não reagiram.

BB) O envio da mesma por parte dos Oponentes deu-lhes a possibilidade de reagir, seja no confronto com os consumidores/Oponentes, seja perante o vendedor.

CC) Ora, esta interpelação possibilitou os modos de reação por parte da Exequente e do vendedor, que nada fizeram.

DD) Contudo, a Exequente, ignorando ter recebido a comunicação de resolução conforme consta dos factos provados, veio executar a livrança em singelo, como se não existisse a relação de compra e venda e de crédito associado, atempadamente e fundadamente resolvida, cujos fundamentos nunca foram postos em causa.

EE) Assim, a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto é lesiva dos interesses dos Oponentes/Consumidores, não considerou que os mesmos são consumidores e que exerceram os seus direitos com base no DL 133/2009 de 02 de junho, que visa a proteção do consumidor e os afasta do regime geral do cumprimento das obrigações, designadamente no que respeita ao cumprimento de contratos coligados para acesso a bens de consumo e tal resulta devidamente dos factos provados.

FF) No que respeita ao alegado prazo para a entrega da viatura, resulta da fundamentação da sentença proferida em 1ª Instância que (…) á data da outorga do contrato de compra e venda de veículo e crédito associado era o legal representante do Stand vendedor, tendo por isso revelado conhecimento direto sobre os factos. Não revelou qualquer interesse no desfecho da causa, tendo deposto de forma objetiva e credível. Esta testemunha fora essencial para dar como provado que a viatura nunca fora entregue aos executados. Esclareceu que apesar dos executados terem outorgado o contrato de compra e venda, ocorreu um erro no funcionamento do stand e outro vendedor da "Garagem do EE" terá vendido a mesma viatura a terceiro. Nessa altura o stand também começou a ter problemas financeiros e a "Mercedes" deixou de enviar carros para o stand, pelo que nunca foi possível entregar o veículo aos executados. Esclareceu que não era o executado que tratava da celebração dos contratos de crédito, cabendo essa função a outro funcionário. A quantia financiada para aquisição do veiculo não fora entregue aos executados, dado que ela entrava sempre diretamente na firma. Quanto às guias de circulação do veiculo ou autorização dessa circulação e declaração na fatura que artigo foi posto à disposição, referiu que isso é obrigatório constar do contrato, é um "pró-forma", porém o contrato celebrado com os executados não fora acompanhado da entrega da viatura. Confirmou a recepcão da carta de resolução do contrato, enviada pelo executado.

GG) Ao que acresce o facto do próprio contrato de financiamento constar que a viatura seria entregue de imediato.

HH) Contudo, o Tribunal da Relação do Porto não considerou o supra exposto e proferiu uma decisão lesiva dos interesses do consumidor, sem o devido enquadramento legal, sem considerar a conexão entre os contratos e a sua interdependência e repercussão da compra e venda no contrato de crédito, tanto mais que nenhum dos intervenientes contratuais reagiu à comunicação de resolução dos consumidores/oponentes.

II) De facto, não era obrigação dos oponentes nos termos do artigo 777° do CC recorrer ao Tribunal para fixação do prazo, porquanto, os mesmos não receberam nem o bem, nem a quantia e estavam a liquidar prestações sem qualquer contrapartida, sendo certo que nenhum cidadão/consumidor aceitaria pagar um bem, ter a perceção que o mesmo jamais seria entregue e aceitar de "ânimo leve" o pagamento sem a entrega do bem.

JJ) Aliás, esta interpretação além de lesiva dos interesses do consumidor, viola o princípio da boa-fé na medida em que resulta do contrato de crédito associado à venda que o bem seria entregue de imediato e tal não sucedeu.

KK) Ao que acresce ao facto do Exequente ter exigido a reserva de propriedade ao vendedor e nem desse seu interesse ter cuidado (cfr.- doc. 1 em anexo à Contestação à Oposição à Execução).

LL) Acresce ainda que a livrança não foi emitida isoladamente, mas sim como garantia do contrato de crédito para financiamento de um veículo de marca Mercedes Benz E 250 CDI AVANTGADE BLUEEFFIC, com a matrícula …-LA-…, que nunca foi entregue aos Executados, ora Recorrentes.

MM) Por outro lado, tendo em consideração as comunicações resolutivas efetuadas pelos Oponentes/Consumidores e que foram rececionadas quer pela Exequente, quer pelo Stand Vendedor, crê-se que a atuação dos mesmos, é cumpridora do princípio "bónus pater famílias".

NN) Nessa medida, a resolução levada a cabo pelos Oponentes/Consumidores traduz-se na diligência exigível a um homem médio, medianamente sagaz, prudente, cuidadoso e de seriedade (nomeadamente perante aquilo que assume, seja em que fase for), a de um "bónus pater famílias".

OO) De facto, os ora Recorrentes efectuaram todas as diligências necessárias para proceder à resolução do contrato de compra e venda e ao coligado contrato de crédito em conformidade com o disposto no DL 233/2009 de 02 junho, mas também em conformidade com o princípio do "bónus pater famílias".

PP) Por outro lado, a decisão constante do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação e do qual se recorre, no entendimento aí sufragado consubstancia um claro abuso de direito, na medida em que condena os Executados ao pagamento da quantia exequenda, quando os mesmos não obtiveram qualquer benefício.

QQ) Na verdade, os Executados/Oponentes não têm na sua posse o veículo objeto do contrato de compra e venda coligado com o contrato de crédito (ambos legalmente resolvidos) e nem sequer lhes foi entregue a quantia mutuada.

RR) De facto, os executados ao subscreverem a livrança dada à execução, fizeram-no na convicção de que iriam adquirir o veículo automóvel de marca Mercedes Benz, com a matrícula …-LA-…, o que conforme resultou provado nestes autos, não chegou a suceder, uma vez que aos mesmos jamais foi entregue qualquer viatura e disso o Banco Exequente teve conhecimento através da comunicação que lhe foi remetida pelos Executados/Recorrentes.

SS) Actua assim com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o banco que acionou a livrança que os executados subscreveram, na condição de lhe ser entregue o veículo com a matrícula …-LA-…, - o que não sucedeu - e quando tem conhecimento de que os contratos de compra e venda e de crédito coligados haviam sido legalmente resolvidos pelos Executados.

TT) Em face do supra exposto, e como muito bem resultou da sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, a livrança enquanto título dado à execução, foi abusivamente preenchida.

UU) Pelo que, em consequência deverá o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto ser revogado e ser proferida decisão que ordene a extinção dos presentes autos de execução.

WW) Mostra-se assim violado o disposto no DL 133/2009 de 02 de junho, designadamente quanto ao seu artigo 18° e ainda o disposto nos artigos 334°, 432°, 801° e 808° do CC.  

A exequente contra-alegou a pugnar pelo insucesso do recurso e, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação de facto

As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

1. O exequente “Banco AA, S. A.” é portador da livrança de fls. 92 destes autos (cujo conteúdo se dá por reproduzido) e que constitui o título executivo nos autos principais de execução.

2. Esta livrança tem o valor de € 69.194,51 euros e fora subscrita pelos executados BB e mulher CC, que a assinaram com os seus próprios punhos, e tem vencimento em 11/07/2012.

3. Os Executados junto da “Garagem do EE”, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de Celorico de Basto, subscreveram contrato de compra e venda e contrato de crédito a ele associado, e apenas com o intuito de adquirir uma viatura.

4. Para o efeito, por intermédio do ponto de venda (stand vendedor) foi pedido e efectuado o contrato de crédito, tendo os executados BB e mulher CC assinado o contrato de crédito n.º 802…7 de fls. 31 destes autos (cujo teor se dá por reproduzido) e onde consta que os executados ajustaram com a “Garagem EE, Lda.” a aquisição a crédito da viatura Mercedes Benz E250 matrícula …- LA-… pelo preço total de € 73.585,62 sendo o número de prestações de amortização do crédito de 84 e o crédito concedido de € 62.547,78.

5. Para a celebração dos aludidos contratos de mútuo e de aquisição de viatura, os Executados jamais tiveram qualquer contacto com o Banco exequente ou seus colaboradores, mas apenas com o stand vendedor, que se predispôs a tratar de tudo o que se relacionava com o crédito para aquisição da viatura pretendida.

6. Os Executados assinaram a declaração de fls. 34, cujo teor se dá por reproduzido, onde declaram que o exequente prestou os esclarecimentos necessários e os por eles solicitados relativamente ao contrato de financiamento.

7. Consta de fls. 42 a fatura n.º 100…8 datada de 15/12/2010 relativa ao veículo de matrícula …-LA-…, sendo indicado como comprador o oponente e onde consta que o “artigo foi colocado à disposição do adquirente nessa data”.

8. Porém, a viatura Mercedes Benz E250 matrícula …-LA-…, ou qualquer outra viatura com caraterísticas idênticas à viatura financiada, e/ou os seus documentos, nunca foram entregues aos Executados pelo stand vendedor.

9. Além de não terem recepcionado a viatura financiada, tão pouco receberam a quantia indicada no contrato de mútuo.

10. Perante a persistência na não entrega da viatura e ao fim de mais de sete meses, os Oponentes perderam o interesse na compra da viatura, tendo enviado ao Stand Vendedor a carta registada de fls. 11 a 13 (cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido), com o assunto “Resolução do contrato n.º 802…7 por falta de entrega da viatura por parte do fornecedor”, datada de 24.08.2011.

11. Pelas mesmas razões, os Oponentes enviaram ao Banco exequente a carta registada de fls. 14 a 16 (cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido), com o assunto “Resolução do contrato n.º 802…7 por falta de entrega da viatura por parte do fornecedor”, datada de 24.08.2011.

12. O oponente BB era empregado do stand vendedor à data do contrato de crédito acima referido (15/12/2010), não tendo, no entanto, intervenção no departamento de crédito e não tendo o contrato sido celebrado na qualidade de funcionário do stand.

13. Os Executados liquidaram sete prestações do contrato de crédito acima referido.

14. As cláusulas do contrato de crédito acima referido foram comunicadas e explicadas na íntegra aos executados, tendo sido entregue um exemplar aos Executados.


III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão da revista, atentas as conclusões da alegação dos Recorrentes (art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), passam pela análise e resolução da única questão jurídica por eles suscitada e que consiste em determinar se, como decidiu a 1ª instância, a resolução dos contratos de compra e venda e do mútuo associado ao financiamento da compra do veículo é válida e implicou a extinção desses vínculos contratuais, ou se, pelo contrário, como decidiu a Relação, a resolução foi realizada prematuramente, por não precedida de interpelação admonitória, o que legitimaria o accionamento da livrança dada à execução.

As instâncias convergiram no tocante à qualificação dos aludidos contratos e à sua conexão, referindo tratar-se de uma compra e venda financiada em que o mútuo é enquadrável na figura de contrato de crédito ao consumo, dado ter por exclusivo objetivo possibilitar a compra, por parte dos executados (ora, Recorrentes) de um veículo automóvel, nada havendo a objectar a tal conclusão.

Como é bem sabido, um dos traços característicos das actuais aquisições de bens é serem realizadas com recurso ao crédito, sendo frequente os vendedores finais proporem aos compradores o financiamento total ou parcial da aquisição por uma empresa financiadora, usualmente uma instituição de crédito. Para esse efeito, no «acto de aquisição paralelamente ao contrato de compra e venda celebrado com o vendedor, o comprador subscreve uma proposta de contrato de mútuo (ou outras formas de crédito alternativas) que o vendedor envia ao financiador com que habitualmente trabalha, a fim de obter a respectiva aprovação e conclusão»[1].

Foi exactamente isso o que sucedeu no caso em apreço, como evidenciam os factos provados e as instâncias lucidamente entenderam, na medida em que os Recorrentes compraram um veículo automóvel, cujo preço de aquisição foi financiado pela Exequente, caindo no âmbito de aplicação do art.º 4º, n.º 1, alínea o), do DL n.º 133/2009, de 2 de Junho.

Acontece que o legislador, no intuito de proteger os consumidores[2]  e atenta a íntima conexão, por um lado, entre o vendedor e o financiador e, por outro, entre os dois contratos (compra e venda e mútuo), no âmbito do circuito económico de bens e serviços, passou a olhar esta realidade na perspectiva de uma unidade funcional e não apenas em função da autonomia formal das obrigações deles emergentes[3]. E, na sequência da Directiva 2008/48/CE, de 23 de Abril, o DL n.º 133/2009, de 2 de Junho, consagrou, entre nós, a responsabilidade do financiador perante o consumidor, na área dos contratos de crédito ao consumo, surgindo, assim, a figura do contrato de crédito coligado e da inerente responsabilidade do concedente do crédito, prevista genericamente no art.º 18º do DL n.º 133/2009, de 2 de Junho. Quer dizer, muito embora na compra e venda financiada existam dois contratos distintos (um de compra e venda e outro de crédito[4]), apresentam-se ambos unidos e funcionalmente conexos, o que «investe o financiador numa responsabilidade subsidiária perante o consumidor pelo exacto e pontual cumprimento do contrato celebrado com o vendedor (art.º 18º, n.º 3, do DL n.º 133/2009, de 2 de Junho, e art.ºs 3º, 4º, 5º e 9º do DL n.º 67/2003, de 8 de Abril)»[5]

Entre os participantes nesta cadeia contratual estabelece-se uma coligação ou dependência negocial em que as vicissitudes de cada um desses contratos se reflecte reciprocamente no outro, ficando, por isso, o financiador também responsável perante o comprador pelo cumprimento do contrato celebrado com o vendedor.

Ora, no caso, não restam dúvidas de que o vendedor não cumpriu o contrato, uma vez que não procedeu à entrega aos Recorrentes (consumidores) do veículo automóvel, cuja compra fora financiada pela Exequente, através do mútuo coligado, sendo certo que o veículo deveria ter sido entregue, de imediato, como consta da documentação junta e do ponto 7. do elenco factual provado. E, perante a persistência da não entrega, os Recorrentes, que continuaram a pagar durante sete meses as prestações do mútuo, sentiram-se frustrados com a ocorrida perturbação contratual e, como consta do ponto 10. do elenco factual provado, perderam naturalmente o interesse na aquisição do veículo.

Não é razoável exigir a alguém que compra um veículo automóvel, bem de consumo diário, e paga mensalmente durante longos meses a contraprestação devida, continuar nessa situação, sendo, pelo contrário, compreensível e justificado que perca o interesse na aquisição desse veículo e na manutenção dos contratos. Essa perda de interesse que está comprovada, como decorre do ponto 10. do elenco factual provado, determinou, por si só, o incumprimento definitivo (art.º 808º, n.º 1 - primeiro segmento - , do Cód. Civil), dispensando a necessidade da prévia interpelação admonitória, concebida e reservada para o simples atraso na prestação e interesse em o transformar em incumprimento definitivo[6].

Com efeito, a prestação devida (a entrega do veículo), conquanto fisicamente realizável, deixou de ter oportunidade, pelo que «juridicamente não existe simples atraso», como entendeu o acórdão recorrido, «mas verdadeira inexecução definitiva»[7], sendo certo que tal incumprimento conferiu aos Recorrentes o direito de resolução (art.ºs 432º, n.º 1, do Cód. Civil, e 18º, n.º 3, do DL n.º 133/2009, de 2 de Junho) que exerceram, quer perante o vendedor, quer perante o financiador, a Exequente, a qual perante o efeito extintivo operado pela resolução deixou de ficar legitimada a proceder ao preenchimento da livrança, preenchimento que, nesse contexto, se tem por abusivo, e que, nessa medida, não pode constituir título executivo.

De salientar, no entanto, que a solução seria exactamente a oposta, se acaso não se estivesse perante contratos coligados e submetidos ao regime consagrado pelo DL n.º 133/2009, de 2 de Junho.

Na verdade, ao invés do que sucede no caso vertente em que ocorre a apontada conexão/dependência entre os dois contratos, nesse caso, os contratos seriam autónomos e independentes, pelo que o destino de um (o incumprimento e resolução da compra e venda) não teria automaticamente reflexos extintivos no outro (o mútuo).

Uma última nota ainda para dizer que não deixou de se ponderar que a relação do Recorrente e o vendedor do veículo (empregado/patrão) pode suscitar alguma suspeita sobre a existência de outra diferente realidade. Ainda que não se descarte essa eventualidade, o certo é que não se encontra espelhada nos factos provados e não pode, por isso, ser tida em conta.

Em suma, procedem as conclusões dos Recorrentes, o que implica o êxito da revista, com repristinação do veredicto da 1ª instância, quanto à procedência da oposição à execução e o destino desta.

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se conceder a revista, revoga-se o acórdão recorrido, ficando a subsistir o sentenciado pela 1ª instância.

Custas pela Exequente.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).


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Lisboa, 20 de Dezembro de 2017

António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Cfr. José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 2009, Almedina, pág. 285, e Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2016, 3ª edição, Almedina, pág. 293.
[2] Vide sobre a evolução da tutela do consumidor, António Menezes Cordeiro, in Liber Amicorum, Mário Frota, A causa dos Direitos dos Consumidores, Almedina, 2012, págs. 51 a 59.
 
[3] Cfr, neste sentido, Fernando Gravato de Morais, União de Contratos de Crédito e de Venda para Consumo, Efeitos para o Financiador do Incumprimento do Devedor, Almedina, págs. 79 e ss., e Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2016, 3ª edição, Almedina, págs. 337 e 338.
[4] Cfr. Sobre a noção e caracterização deste tipo de contrato, José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 2009, Almedina, págs. 510 a 512, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito Bancário, Almedina 2017, pág. 342, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2016, 3ª edição, Almedina, pág. 338, e Paulo Duarte, in Liber Amicorum, Mário Frota, A causa dos Direitos dos Consumidores, Almedina, 2012, págs. 417 e 418.
[5]Cfr, neste sentido, José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 2009, Almedina, pág. 512, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2016, 3ª edição, Almedina, págs. 341 e 342, e Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2016, 3ª edição, Almedina, pág. 343.
[5]

[6] Cfr, a este propósito, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 1053, João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, Coimbra Editora, pág. 125, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, pág. 312, e João Baptista Machado, Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Ivridica, 1991, págs. 162 a 164.
[7] Cfr., neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, pág. 311.