Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1936/10.6TBVCT-N.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
FUNDAMENTAÇÃO
IMPUGNAÇÃO
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO.
DIREITO FALIMENTAR - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS.
Doutrina:
- Gravato de Morais, Resolução em Beneficio da Massa Insolvente, 2008, p. 164.
Legislação Nacional:
CIRE: - ARTIGOS 49.º, 120.º, N.º4, 121.º, 123.º, 125.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, 11.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, NA REDACÇÃO ANTERIOR À LEI Nº 41/2013, DE 26-06: - ARTIGOS 266.º-A, 664.º.
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 5.º, N.º2, 8.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
-DE 17/9/2003, WWW.DGSI.PT, PROCESSO Nº 1936/10.6TBVCT-S.G1; DE 12/4/2012.
Sumário :
Nos termos  do art. 663º, nº 7 do Novo Cód. de Proc. Civil, sumaria-se o acórdão da seguinte forma:


I. A carta em que o administrador da insolvência resolve o acto celebrado pela insolvente, nos termos dos  arts. 120º e segs. do CIRE, deve ser fundamentada com a indicação genérica e sintética dos pressupostos que fundamentam a resolução, de modo a permitir que a contraparte possa impugnar esses fundamentos, nos termos do art. 125º do mesmo diploma legal.  
II. Tendo uma sociedade, menos de seis meses antes de dar entrada em juízo do processo onde veio a ser declarada insolvente, procedido à escritura de venda de vários imóveis a favor de outra sociedade em que os respectivos sócios eram filhos de um dos três sócios da insolvente e sobrinhos dos dois restantes, preenche-se a presunção prevista no nº 4 do art. 120º do CIRE.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA– Imobiliária, S.A. intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, ao abrigo do disposto no artigo 125º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, em 9-11-2011, no 2º Juízo Cível de Viana do Castelo, contra a Massa Insolvente da Sociedade ..., Lda., peticionando que o tribunal declare ineficazes os actos de resolução praticados pelo Sr. administrador de insolvência incidentes sobre os contratos de compra e venda em que a autora é compradora e a insolvente é vendedora descritos no artigo 1º da petição inicial.

 Alega, para tanto e em síntese, que os factos invocados pelo Sr. Administrador são falsos.

Citada regularmente, contestou a Ré a acção contra si interposta.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, respondendo-se à matéria de facto.

Foi proferida a seguinte decisão:

“ Em face do exposto, julgo parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente ação declarativa de condenação, sob a forma ordinária, interposta por AA – Imobiliária, S.A. contra a Massa Insolvente da Sociedade ..., Lda., nos termos do disposto no artigo 125º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e, consequentemente:

Declaro ineficaz e de nenhum efeito a resolução do Sr. Administrador de insolvência concretizada na missiva datada de 20.06.2011 e incidente sobre o contrato de compra e venda, celebrado em 31 de dezembro de 2009, por escritura pública, a cargo da Notária Lic. CC, em Esposende, exarada a fls. 90/91-v, do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 75-A, pela qual a sociedade ..., Lda., transmitiu à sociedade AA - Imobiliária, Lda., pelo preço de € 8,700,00, o direito a 296/10000 partes indivisas da fração autónoma designada pela letra "A", correspondente a garagem, na cave, com três arrumos, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua de Monserrate, 176, freguesia de Viana do Castelo (Monserrate), concelho de Viana do Castelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o número 1198 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 2381º;

Declaro ineficaz e de nenhum efeito a resolução do Sr. Administrador de insolvência concretizada na missiva datada de 24.05.2011 e incidente sobre o contrato de compra e venda, celebrado em 7 de abril de 2010, por escritura pública, a cargo da Notaria Lic. DD, em Viana do Castelo, exarada a fls. 82/84, do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 153-B, pela qual a sociedade ..., Lda., transmitiu à sociedade AA - Imobiliária, Lda., pelo preço de € 100,000,00, Fração autónoma designada pelas letras "AC", correspondente ao terceiro andar direito, bloco Nascente, destinado a habitação, com uma garagem na subcave do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito no Gaveto da Avenida 25 de Abril com a Rua de Monserrate, nº 196, Rua de Monserrate, 176, freguesia de Viana do Castelo (Monserrate), concelho de Viana do Castelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o número 1198/20020423 e inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 2381º.

 Absolvo a Ré do demais peticionado, designadamente, do pedido de declaração de ineficácia da resolução do Sr. Administrador de insolvência concretizada na missiva datada de 24.05.2011 e incidente sobre o contrato de compra e venda, celebrado em 7 de abril de 2010, por escritura pública, a cargo da Notaria Lic. DD, em Viana do Castelo, exarada a fls. 82/84, do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 153-B, pela qual a sociedade ..., Lda., transmitiu à sociedade AA - Imobiliária, Lda., pelo preço de € 40.000,00 a fração autónoma designada pela letra "I", correspondente ao rés do chão, lado Nascente, destinada a comércio, com uma garagem na subcave, pelo preço de € 40.000,00 do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito no Gaveto da Avenida 25 de Abril com a Rua de Monserrate, nº 196, Rua de Monserrate, 176, freguesia de Viana do Castelo (Monserrate), concelho de Viana do Castelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o número 1198/20020423 e inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 2381º.”

Inconformada a massa insolvente interpôs recurso tendo a Relação de Guimarães julgado procedente o mesmo recurso e declarando improcedente o pedido que a 1ª instância havia julgado procedente, ou seja, ficando os pedidos da autora totalmente improcedentes.

Desta vez foi a autora que inconformada veio interpor a presente revista, tendo nas suas alegações formulado conclusões que por falta de concisão não serão aqui transcritas e das quais se deduz que aquela recorrente, para conhecer neste recurso, levanta apenas as duas questões seguintes:
a) O tribunal não pode declarar válida e eficaz uma resolução operada pelo administrador da insolvência por fundamento diverso do expressamente invocado por este nas cartas de resolução ?
b) O elenco do art. 49º, nº 2 al. d) do CIRE não pode ser interpretado extensivamente no sentido de englobar como especialmente relacionadas com a sociedade insolvente, as pessoas colectivas cujo administrador é familiar ( de acordo com o nº 1 do art. 49º ) do administrador da sociedade insolvente ?

A recorrida contra-alega defendendo a improcedência dos fundamentos do recurso alegados pela recorrente.

Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.

Como é sabido – arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Novo Cód. de Proc Civil -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.

Já acima vimos as concretas questões levantadas pela aqui recorrente.

Mas antes de mais, há que especificar a matéria de facto que as instâncias deram por apurada e que é a seguinte:  

1. A sociedade por quotas ..., Lda. foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais em 22 de setembro de 2010 e já transitada em julgado;

2. O processo de insolvência teve o seu início no dia 24 de junho de 2010;

3. Em 07 de abril de 2010, por escritura pública de compra e venda, celebrada  no Cartório a cargo da Notaria Lic. DD, em Viana do Castelo, exarada a fls. 82/84, do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 153-B, a sociedade ..., Lda., transmitiu à sociedade AA - Imobiliária, Lda., pelo preço de € 140,000,00, os seguintes imóveis:

- Fração autónoma designada pela letra "I", correspondente ao rés do chão, lado Nascente, destinada a comércio, com uma garagem na subcave, pelo preço de € 40.000,00;

- Fração autónoma designada pelas letras "AC", correspondente ao terceiro andar direito, bloco Nascente, destinado a habitação, com uma garagem na subcave, pelo preço de € 100.000,00;

Ambas do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito no Gaveto da Avenida 25 de Abril com a Rua de Monserrate, nº 196, Rua de Monserrate, 176, freguesia de Viana do Castelo (Monserrate), concelho de Viana do Castelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o número 1198/20020423 e inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 2.381º, conforme se retira da escritura pública constante de fls. 28 a 32 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

4. Em 31 de dezembro de 2009, por escritura pública de compra e venda, celebrada no Cartório a cargo da Notária Lic. CC, em Esposende, exarada a fls. 90/91-v, do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 75-A, a sociedade ..., Lda., transmitiu à sociedade AA - Imobiliária, Lda., pelo preço de € 8,700,00, o seguinte direito: 296/10000 partes indivisas da fração autónoma designada pela letra "A", correspondente a garagem, na cave, com três arrumos, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua de Monserrate, 176, freguesia de Viana do Castelo (Monserrate), concelho de Viana do Castelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o número 1198 e inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 2381º, conforme se retira da escritura pública constante de fls. 41 a 44 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

5. Em missiva enviada à Autora em 24 de maio de 2011, o Sr. Administrador de Insolvência declarou resolvido e ineficaz a transmissão referida na alínea c), nos termos e com os fundamentos que constam da cópia da referida missiva, junta aos autos de fls. 23 a 25 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

6. Em missiva enviada à Autora em 20 de junho de 2011, o Sr. Administrador de Insolvência declarou resolvido e ineficaz a transmissão referida na alínea d), nos termos e com os fundamentos que constam da cópia da referida missiva, junta aos autos de fls. 33 a 35 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

7. Aquando da inscrição daquelas frações na respetiva matriz predial, o Serviço de Finanças de Viana do Castelo somente atribuiu às mesmas o seguinte valor patrimonial: 

 - Fração autónoma "I": € 22.451,54;

 - Fração autónoma "AC": € 32.176,72;

 - Fração autónoma "A": € 8.667,28;

8. As frações autónomas descritas no nº 3.supra indicado valiam, à data da transmissão, o total global de € 211.540,00, sendo que a fração “AC” valia € 129.000,00 e a fração “I” valia € 82.540,00; 

9. 296/10000 partes indivisas da fração autónoma descrita no facto nº 4. acima especificado valia, à data da transmissão, € 8.797,29;

10. As frações autónomas “A”, “I” e “AC” do prédio sito nesta cidade, à GNR, estavam a ser comercializadas do modo seguinte: 

 - Nos escritórios da Insolvente sito na Rua Nova de Sant’Ana, n.º 190, nesta cidade;

 - Na agência imobiliária “Promotora ...”, com escritório no edifício do antigo mercado municipal, nesta cidade;

11.  A fração autónoma “I” tem de área 78 m2;

12. E está localizada no interior do pátio traseiro do prédio onde se insere, não confrontando com a via pública;

13. Tal fração se encontra afastada do centro da cidade, pois o prédio onde se insere localiza-se junto à entrada Norte da cidade de Viana do Castelo; 

14. A fração autónoma “AC” tem a área de 161,45 m2 com garagem na subcave;

15. E está integrada num prédio que se localiza na entrada Norte da cidade de Viana do Castelo;

16. Encontra-se longe do centro cívico da cidade;

17. Tal como de zonas comerciais;

18. Sendo o prédio onde se insere circundado por duas ruas com muito movimento rodoviário e muito barulhentas;

19. O direito descrito no nº 4 incide sobre uma zona do prédio destinada a garagem de automóveis;

20. E localiza-se longe das zonas comerciais e de prestação de serviços;

21. Em abril de 2010, a Insolvente continuava a laborar na execução de um prédio em construção na Rotunda da Abelheira, em Viana do Castelo;

22. Tendo até à data da sua insolvência, em 22 de setembro de 2010, mantido ao seu serviço mais de 20 trabalhadores;

23. Sendo que até à data da insolvência, a firma ..., Lda., teve sempre materiais ao seu dispor para aplicar naquela obra;

24. Designadamente granito para forrar exteriormente aquele prédio de cave, rés do chão e 3 andares, como forrou;

25. Até cerca de um mês antes da data da sua insolvência a insolvente manteve os seus funcionários de escritório ao seu serviço;

26. À data das transmissões descritas nos números 3 e 4 era administrador  único da autora EE conforme se retira da cópia da certidão de matrícula daquela junta aos autos de fls. 87 a 88 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

27. EE é filho de FF e de GG, conforme se retira da certidão junta aos autos de fls. 96 e 97 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

28. FF e HH são sócios da Insolvente, conforme certidão junta aos autos principais de fls.

Vejamos agora as acima apontadas questões como objecto desta revista.

a) Nesta primeira questão defende a recorrente que o tribunal não podia declarar válida e eficaz uma resolução operada pelo administrador da insolvência por fundamento diverso do expressamente invocado por este nas suas cartas de resolução.

Pensamos que a recorrente não tem razão na pretensão.

O art. 123º do CIRE não especifica o grau de fundamentação ou até mesmo se ela deve existir.

Segundo Gravato de Morais, in Resolução em Beneficio da Massa Insolvente, 2008, pág. 164, essa fundamentação deve ser especifica invocando os factos que a originam.

Porém, se não pode exigir uma fundamentação exaustiva ou rigorosa própria de um jurista, bastando uma indicação genérica e sintética dos pressupostos que fundamentam a resolução de modo a que a contraparte se possa aperceber efectivamente desses fundamentos para os poder impugnar na eventual acção de impugnação da resolução que pretenda propor ao abrigo do previsto no art. 125º do CIRE.

No caso de resolução condicional regulada no art. 120º do CIRE exige-se que se invoque o acto que se resolve, a causa que leva a considerar o acto como prejudicial, e o circunstancialismo que integre a má fé, se não vigorar a presunção iuris tantum prevista no nº 4 do mesmo artigo.

Já no caso da resolução incondicional do art. 121º do mesmo diploma legal, exige-se a identificação do acto que se resolve, e tratando-se da situação da al. h) do seu nº 1 - como foi o caso apreciado definitivamente na sentença de 1ª instância –, a indicação da data em que foi outorgado, a data do início do processo de insolvência e a factualidade de que resulta o excesso manifesto de obrigações assumidas pela insolvente em relação às obrigações da contraparte.

Ora passemos a analisar o teor das cartas enviadas pelo administrador da massa insolvente, constantes de fls. 23 e segs. dos autos.

Na carta em que se pretendeu resolver o contrato de compra e venda celebrado por escritura de  7-04-2010, o administrador da massa começou por referir que aquele ao abrigo “do disposto nos arts. 120º, 121º e 123º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas,” vem notificar a autora do que se segue, resumidamente:

- A acção de insolvência deu entrada em juízo em 24 de Junho de 2010;

- A insolvente e a autora ao efectuar a transmissão em causa – que ali se identifica completamente, nomeadamente, indicando-se a data da celebração, o preço e o objecto da mesma -, não ignoravam que da mesma resultava um privilégio de credores;

- As fracções transmitidas valiam antes da data da mesma transacção quantia nunca inferior a € 180 000,00 e foram transmitidas por € 140 000,00 , o que frustra, dificulta, impossibilita ou põe em perigo a satisfação dos outros credores, alheios à transmissão;

- Ao ser fixado aquele valor da transacção, a autora não ignorava que da mesma resultava para os outros credores a impossibilidade de obterem a integral satisfação dos seus créditos ou o agravamento dessa impossibilidade;

- Tanto mais que a então difícil situação económico-financeira da insolvente era do conhecimento público, sendo igualmente do conhecimento da autora, até porque os sócios gerentes da insolvente tinham laços de parentesco com os representantes da autora;

- A autora ao aceitar celebrar o contrato de transmissão em causa, naquelas condições, designadamente, no que ao valor estabelecido se refere, tinha plena consciência de que de tal acto iria resultar manifesto prejuízo para os outros credores da insolvente;

- Consciência essa que era bilateral, uma vez que a própria insolvente, melhor que ninguém, era conhecedora da sua desastrosa situação económico-financeira;

- Pretenderam assim a insolvente e a autora, ao transmitirem os imóveis em causa, por valores consentâneos com a real valia do mesmo, prejudicar os outros credores da insolvente;

- Tornando impraticável a sua transacção, no âmbito das execuções que se anunciavam, face ao incumprimento das dívidas por parte da insolvente;

- Inviabilizando a aquisição dos imóveis pelos outros credores ou por terceiros cujos interesses fossem exclusivamente movidos pelo concreto interesse económico do negócio;

- Agindo deste modo, conseguiram que as fracções em causa ficassem fora da esfera jurídico-patrimonial dos outros credores, ficando tais credores com os respectivos créditos irrecuperáveis.      

A carta é terminada com as seguintes expressões:

“ Verificam-se, assim, os requisitos da resolução em benefício da massa insolvente estabelecidos nos arts. 120º, nºs 1 e 3 e alínea h) do nº 1 do art. 121º do CIRE.

Nestes termos, declaro incondicionalmente resolvido e ineficaz a transmissão (…) celebrada entre a insolvente e V. Exas., devendo as fracções autónomas serem entregues, no prazo de 15 dias devolutas de pessoas e bens”.

O acórdão referido declarou que a resolução é válida e eficaz, com base no preenchimento da situação prevista no nº 4 do art. 120º do CIRE.

Este preceito estipula o seguinte:

“Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro de dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data”.

Ora a carta de resolução já integrava os factos pelos quais se veio a declarar validamente resolvidas as transmissões.

É que naquela carta foi referida a situação de parentesco que veio a integrar o preenchimento do referido nº 4 do art. 120º, com referência ao art. 49º, nº2 al. d) do CIRE.

Também na carta se referiu à má fé por parte da autora por saber da situação económico-financeira difícil da insolvente e da consequente impossibilidade de satisfazer os demais credores resultante das mesmas transmissões.

Igualmente na carta se refere às datas das transmissões e à data da entrada em juízo da acção de insolvência que também preenche aqueles dispositivos legais.

Por isso, o tribunal não extravasou a fundamentação fáctica de que se serviu o administrador da insolvente para resolver o negócio.

O que se pode dizer foi que o administrador qualificou a situação de forma diversa da que o tribunal qualificou, como integrando a causa de resolução incondicional prevista no art. 121º do CIRE – causa esta que também alegou factualmente, nomeadamente ao referir que a transmissão onerosa era manifestamente prejudicial à insolvente.

Mas a diversa qualificação jurídica adoptada pelo tribunal não tem qualquer relevância, tal como resulta do disposto no art. 664º do Cód. de Proc. Civil, na redacção anterior à Lei nº 41/2013 de 26/06, em vigor na data da instauração da presente acção, e hoje previsto no art. 5º, nº 2 do Novo Cód. de Proc. Civil em vigor.

A única coisa que se poderia discutir era se a alegação factual da carta de resolução, no tocante ao grau de parentesco existente entre os sócios da insolvente e os sócios ou administradores da autora era bastante.

Porém, a referida fundamentação exigida tem em vista facultar à autora a possibilidade de impugnar os apontados fundamentos de resolução.

Mas foi a própria autora que, na sua petição inicial, precisou  esse grau de parentesco, dizendo – no cumprimento louvável, mas raro, do dever de verdade, de lealdade e probidade processual exigidos às partes pelo art. 266º-A do Cód. de Proc. Civil, em vigor na data da instauração da presente acção, e hoje previsto no art. 8º do Novo Cód. de Proc. Civil – que os três sócios da insolvente são irmãos entre si e sendo um deles pai dos dois sócios da autora, tendo até indicado os respectivos nomes.

Daqui que a hipotética deficiência da fundamentação da resolução, de modo algum, coarctou à autora a possibilidade de impugnar os respectivos fundamentos da resolução.  

Por outro lado, a carta em que o administrador resolveu o negócio de 31-12-2009 consta de fls. 33 a 35 e nela se repete textualmente o que constava da carta já analisada, apenas se alterando a identificação da compra e venda resolvida, nomeadamente, identificação da fracção transaccionada e do respectivo valor que é referido como tendo sido fixado no contrato de € 8 700,00 enquanto o então valor de mercado da mesma era nunca inferior a  €  27 500,00.

Fazendo a aplicação a esta do que se acabou de dizer para a outra transacção resolvida, também aqui falecem os argumentos da recorrente.

Por isso soçobra, este fundamento do recurso.


b) Nesta segunda questão a recorrente defende que se não pode interpretar  extensivamente o disposto no art. 49º, nº 2 , al. d) do CIRE , no sentido de englobar como especialmente relacionadas com a sociedade insolvente, as pessoas colectivas cujo administrador é familiar ( de acordo com o nº 1  do art. 49º referido ) do administrador da sociedade insolvente.  

Pensamos que também aqui a recorrente carece de razão tal como doutamente precisou o acórdão recorrido.

Este sobre a questão escreveu:

“ O ato presume-se prejudicial para a massa, nos termos do artigo 120, nº 2 e 3 do CIRE.

O nº 4 do artigo 120 refere:

4 - Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.

A má-fé presumida depende da verificação de dois pressupostos, a saber:

- Que o acto ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

- Existência de uma relação especial (ainda que já não existisse à data da prática do acto), entre a insolvente e a pessoa (singular ou colectiva) que participou ou tirou proveito daquele.

No caso presente, não há dúvidas que quer a sociedade que contratou com a insolvente (como participante e aproveitador), quer o seu único sócio gerente (como pessoa que tirou proveito), se enquadram na previsão de “pessoa” constante do nº 4 aludido. Contudo isso não basta, havendo que verificar do relacionamento à luz do artigo 49.

Verificar-se-á o especial relacionamento, tal como o prevê o artigo 49, 2 do CIRE?

Dispõe o artigo 49 do CIRE:

Pessoas especialmente relacionadas com o devedor

1 - São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa singular:
a) O seu cônjuge e as pessoas de quem se tenha divorciado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

b) Os ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor ou de qualquer das pessoas referidas na alínea anterior;

c) Os cônjuges dos ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor;

d) As pessoas que tenham vivido habitualmente com o devedor em economia comum em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2 - São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa coletiva:

a) Os sócios, associados ou membros que respondam legalmente pelas suas dívidas, e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

b) As pessoas que, se for o caso, tenham estado com a sociedade insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do artigo 21.º do Código dos Valores Mobiliários, em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

c) Os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
d) As pessoas relacionadas com alguma das mencionadas nas alíneas anteriores por qualquer das formas referidas no n.º 1.

3 - Nos casos em que a insolvência respeite apenas a um património autónomo são consideradas pessoas especialmente relacionadas os respetivos titulares e administradores, bem como as que estejam ligadas a estes por alguma das formas previstas nos números anteriores, e ainda, tratando-se de herança jacente, as ligadas ao autor da sucessão por alguma das formas previstas no n.º 1, na data da abertura da sucessão ou nos dois anos anteriores.

Visou a lei acautelar as situações que, pela natureza dos vínculos tidos com o devedor, ou proximidade com este, merecem um regime particular, dado o maior risco que os “atos” que os envolvem, acarretam para o conjunto dos credores.

Conquanto no nº 1 do normativo se refira ao devedor pessoa singular, a previsão do mesmo é aplicável ao devedor pessoa coletiva por força do disposto na al. d) do nº 2 do normativo. Este não tem outro sentido. Veja-se ainda o nº 3 do normativo.

Assim e relativamente a uma sociedade, são pessoas especialmente relacionadas com ela não apenas os sócios nas condições referidas na al. a) do n. 2, as pessoas referidas na al. b) e os administradores tal como referidos na al. c), mas ainda, verificadas aquelas condições em relação aos diretamente relacionados; os cônjuges destes, nas condições plasmadas na al. a) do nº 1, bem como as restantes pessoas previstas nas als. b), c) e d) do nº 1.

No caso, temos que o negócio não é efetuado com nenhuma das pessoas elencadas no nº 1, relacionadas com o administrador da insolvente. O negócio é efetuado com uma outra firma, de que o filho do administrador desta é administrador.

Conquanto se trate de norma excecional, insuscetível de aplicação analógica - artº 11 do CC., nada obsta a uma interpretação extensiva, como vem sendo aliás efetuado pela jurisprudência que cremos maioritária. Tendo em conta o que se pretendeu acautelar (risco de certos atos em virtude do relacionamento especial dos intervenientes – situação que plenamente se verifica em casos como o dos autos), não pode senão entender-se que o legislador pretendeu acautelar situações como estas, assim se evitando a fraude à lei. Aliás, pode dizer-se que em tais casos a figura da pessoa coletiva funciona apenas como instrumento para a consecução do negócio prejudicial à massa, sendo pertinente a este propósito a referencia que a recorrente tece em redor do “lucro” resultante do negócio, € 29.000, que reverte a final para os sócios daquela, designadamente o filho do administrador da insolvente. Sobre o assunto vd. RG de 17/9/2003, www.dgsi.pt, processo nº 1936/10.6TBVCT-S.G1; de 12/4/2012.

Verifica-se assim a presunção consagrada no n. 4 do artigo 120 do CIRE.”

Estamos em inteira sintonia com o que acabamos de transcrever e por isso remetendo para o mesmo se decide pela improcedência deste fundamento do recurso.

Apenas queremos lembrar que as duas ilustres Desembargadoras que, como Juízas-Adjuntas, subscreveram o acórdão recorrido fizeram declaração de voto em que concordando com a decisão, discordam da caracterização da aplicação do preceito do nº 4 do art. 120º referido como interpretação extensiva, defendendo a sua aplicação directa ao caso em apreço sem necessidade de usar da referida extensão da interpretação.

De qualquer modo, embora pensemos que a opinião do Relator  transcrita é a mais correcta atendendo às normas do art. 9º do Cód. Civil que regem a interpretação das leis, a decisão mais aprofundada sobre esse pormenor é inócuo para a decisão da revista.

Pelo exposto, nega-se a revista pedida.

Custas pela recorrente.

*

2014-03-2014
João Moreira Camilo ( Relator )
António da Fonseca Ramos
José Fernandes do Vale.