Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5338/21.0T8MTS.P1.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 11/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: NÃO ADMITIDA A REVISTA.
Sumário :

I- Os interesses de particular relevância social respeitam a aspetos fulcrais da vivência comunitária, suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação.


II- Não há contradição de acórdãos se, quanto à matéria em apreço, ambos coincidem na mesma ideia fundamental: o trabalhador tem os direitos inerentes à categoria correspondente às funções efetivamente exercidas, sem que isso configure abuso de direito da sua parte.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 5338/21.0T8MTS.P1.S2 (revista excecional)


MBM/RP/JG


Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA instaurou ação emergente de contrato individual de trabalho, com processo declarativo comum, contra M.A.D.A. – Movimento de Apoio ao Diminuído Intelectual de Vila do Conde, relativa a créditos decorrentes de atualizações salariais, de atualizações de subsídios de férias e de Natal, de formação contínua não promovida pelo R. e da cessação do contrato de trabalho.


2. A ação foi julgada parcialmente procedente na 1ª Instância (apenas na parte atinente a formação não ministrada e férias não gozadas).


3. Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação do Porto (TRP) confirmou a decisão recorrida.


4. A A. veio interpor recurso de revista excecional, com fundamento no art. 672º, nº 1, b) e c), do CPC.


5. O R. contra-alegou.


6. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso.


7. As questões a decidir consistem em determinar se o recurso de revista excecional deve ser admitido por:


– Particular relevância social dos interesses em causa;


– Contradição entre o acórdão recorrido e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.09.2018, Proc. n.º 14891/15.7T8PRT.P11 (acórdão-fundamento).


Uma vez que a abordagem da segunda questão auxilia a compreensão das razões subjacentes à solução a dar à primeira, esta será tratada depois daquela.


E decidindo.


II.


8. Com relevância para a decisão, há a considerar os seguintes factos:


1) Na sequência da abertura de um novo Pólo do réu na freguesia de ..., e da recolocação de trabalhadores afetos ao Polo de ... naquele novo Pólo, o réu, que é uma instituição particular de solidariedade social, teve necessidade de contratar novos trabalhadores para o Polo de ....


2) A autora já antes tinha colaborado com o réu na valência de formação profissional, enquanto formadora externa, prestando três horas semanais de formação.


3) Quando a necessidade de novas contratações se colocou, o nome da autora foi sugerido à Direção do réu, tendo sido proposto à autora o exercício das funções de monitora do Centro de Atividades Ocupacionais (CAO).


4) A direção do réu, em reunião com a autora, na presença da Coordenadora Geral, Dr.ª BB, acedeu a dar-lhe uma oportunidade e a integrar a autora no seu quadro de pessoal.


5) Nessa reunião foi transmitido à autora que seria contratada para o exercício de funções de monitora do CAO, designadamente para, de acordo com os planos individuais de desenvolvimento dos utentes, participar na definição das atividades a desenvolver, elaborar os programas das áreas temáticas definidas, selecionar os métodos essencialmente demonstrativos a utilizar, preparar e desenvolver as atividades diárias, participar nos projetos do Centro e nos processos de avaliação individual, o que a autora aceitou.


6) O contrato foi reduzido a escrito em 01/10/2015, data a partir da qual a autora passou a exercer as funções referidas em 5), constando da sua cláusula 2ª que a autora desempenharia as funções de Professora e da cláusula 6ª que pelas funções exercidas a autora auferia o vencimento mensal ilíquido correspondente ao salário em vigor de acordo com BTE – Boletim do Trabalho e Emprego, para trabalhadores ao serviço de I.P.S.S. (Tabela B – Nº 4 – Educadores de infância e professores com licenciatura profissionalizante – Nível IX - € 840,00), sendo o valor diário do subsídio de alimentação atribuído em espécie.


(...)


10) Os utentes do réu têm uma média de idades de 38 anos, tratando-se de pessoas com deficiências profundas, sem capacidade de aprendizagem a nível académico.


11) O réu não tem qualquer trabalhador ao seu serviço que exerça as funções de professor, tendo apenas três utentes cujo ensino é assegurado por um professor ali colocado pelo Ministério da Educação.


12) Durante os anos em que o réu teve utentes em idade escolar, possibilidade, entretanto, limitada pelo Ministério da Educação, o respetivo ensino sempre foi assegurado por professores ali colocados pelo Ministério da Educação.


13) No caso de dois outros trabalhadores do réu, tendo sido detetada uma desconformidade entre a categoria profissional atribuída pelo réu nos contratos de trabalho e as funções pelos mesmos exercidas, aqueles aceitaram a retificação da categoria.


14) Já a autora, não aceitou tal retificação, ainda que a mesma não implicasse diminuição da retribuição e apesar de, até essa data nunca ter reclamado ser credora de qualquer atualização salarial, daí em diante passou a exigir o pagamento das diferenças na retribuição.


III.

a. Sobre a alegada contradição entre acórdãos:

9. No acórdão recorrido pode ler-se1:


«Na fundamentação da sentença, na parte em que se debruça sobre esses pedidos, o Tribunal a quo pronunciou-se como segue:


“(…)


Considerando as pretensões deduzidas pela autora o tribunal terá que decidir se a autora tem direito aos valores que reclama a título de atualizações salariais não pagas durante a vigência do contrato, (…).


A autora, com único fundamento no texto do contrato de trabalho celebrado com o réu, do qual consta que aquela foi admitida para desempenhar as funções de Professora, categoria profissional prevista naqueles instrumentos de regulamentação coletiva, bem como consta que por tais funções a autora auferia o vencimento mensal ilíquido correspondente ao salário em vigor de acordo com BTE – Boletim do Trabalho e Emprego, para trabalhadores ao serviço de I.P.S.S. (Tabela B – Nº 4 – Educadores de infância e professores com licenciatura profissionalizante – Nível IX - € 840,00), veio reclamar o pagamento de diferenças salariais desde 01/01/2017, alegando que o réu nunca atualizou o seu vencimento em conformidade com as sucessivas alterações introduzidas pelos instrumentos de regulamentação coletiva supra identificados.


E, na verdade, ficou provado que o réu nunca aumentou a retribuição base da autora ao longo de toda a vigência do contrato de trabalho, tendo-lhe pago sempre mensalmente a quantia de € 840,00.


Tal seria bastante para que a pretensão da autora fosse procedente, não fosse a circunstância de ter ficado demonstrada a existência de uma desconformidade entre aquilo que foi acordado entre as partes com vista à respetiva vinculação contratual e foi executado ao longo da relação contratual e o teor da previsão contratual, no que respeita às funções efetivamente desempenhadas pela autora.


A autora não alegou quais as concretas funções que desempenhava ao serviço da ré, limitando-se a alegar que celebrou o contrato para exercer as funções de professora, categoria cujo conteúdo funcional, nas CCT aplicáveis se encontra definida como “exerce atividade pedagógica em estabelecimento socioeducativo”.


O réu logrou, contudo, provar que na sequência da abertura de um novo Pólo na freguesia de ..., e da recolocação de trabalhadores afetos ao Polo de ... naquele novo Pólo, teve necessidade de contratar novos trabalhadores para o Polo de ... tendo o nome da autora sido sugerido à Direção do réu […] e tendo sido proposto à autora o exercício das funções de monitora do Centro de Atividades Ocupacionais (CAO), o que foi transmitido à autora pela Presidente da Direção e a autora aceitou.


E não só aceitou como passou daí em diante a exercer aquelas funções, ou seja, de acordo com os planos individuais de desenvolvimento dos utentes, participava na definição das atividades a desenvolver, elaborava os programas das áreas temáticas definidas, selecionava os métodos essencialmente demonstrativos a utilizar, preparava e desenvolvia as atividades diárias, participava nos projetos do Centro e nos processos de avaliação individual.


Tais funções não correspondem, pois, ao núcleo funcional da categoria de professor, mas antes como refere o réu ao núcleo funcional da categoria de monitor de CAO igualmente prevista pelos CCT supra referidos e aplicáveis à relação de trabalho entre a autora e o réu.


[…]


O trabalhador deve, portanto, ser classificado na categoria que corresponde às funções efetivamente desempenhadas, seja qual for a categoria que a entidade empregadora lhe atribua, seja no contrato, seja nos recibos de vencimento.


Assim, no caso dos autos, ainda que a cláusula 2ª do contrato de trabalho dos autos pudesse ser interpretada no sentido de que a categoria atribuída à autora era a de Professora, e apesar de nos recibos de vencimento da autora constar como categoria “Professor do 2º e 3º Ciclos Ensino”, tendo em conta as funções efetivamente exercidas pela autora, que não se reconduziram em qualquer momento a atividade pedagógica, nunca essa categoria lhe poderia ser reconhecida.


E em bom rigor a autora também não pede o reconhecimento de tal categoria, mas o reconhecimento do estatuto remuneratório que lhe corresponde por via quer do contrato de trabalho, no qual foi convencionada que a sua remuneração seria a correspondente à de professores com licenciatura profissionalizante (Tabela B – Nº 4, Nível IX), quer das sucessivas alterações salariais daquele estatuto remuneratório nas sucessivas CCT.


Ora, não podendo ser reconhecida à autora a categoria-função de professora, afigura-se-nos que a mesma fica impedida de reclamar da ré o reconhecimento do estatuto remuneratório correspondente, o que leva à improcedência do pedido relativo às diferenças salariais.


De qualquer modo, não podemos deixar de considerar que, nada obsta a que no exercício da estrita liberdade contratual, as partes estipulem como contrapartida do trabalho prestado uma retribuição diversa, desde que superior, às retribuições mínimas fixadas por instrumento de regulamentação coletiva, pelo que mesmo que no caso dos autos não possa ser reconhecida à autora a categoria profissional de professora, com a consequência supra referida quanto ao peticionado, não podemos ignorar que no contrato outorgado pela autora e pelo réu foi efetiva e expressamente convencionado que a retribuição da autora seria a correspondente àquela categoria, de valor significativamente superior à retribuição mínima correspondente à de monitor CAO.


O réu não deu qualquer explicação para a desconformidade existente entre a sua vontade contratual expressa nas negociações prévias à outorga do contrato e o teor do contrato, quer quanto às funções, quer quanto à retribuição contratada. De resto, quanto à retribuição o réu não alegou que em tais negociações tal matéria tenha sido discutida, isto é, que tenha sido acordada uma retribuição seja a constante do contrato, seja outra e que esta tenha sido indevida ou erradamente transposta para o contrato.


Não foi, de resto, invocado qualquer vício da vontade ou da declaração negocial, nem peticionada a anulabilidade da cláusula contratual que estipulou a retribuição da autora.


Terá, por isso, a autora legitimidade para reclamar da ré os valores relativos às atualizações salariais[?]


Do ponto de vista do tribunal diremos, desde já, que não.


Com efeito, mesmo que a cláusula 6ª do contrato de trabalho seja interpretada no sentido de que, independentemente de a categoria da autora não ser a constante do contrato e dos recibos, tendo a retribuição sido fixada como sendo a correspondente ao salário fixado pela CCT em vigor para a categoria de Professor, Tabela B, Nº 4, nível IX, ela ficaria obrigatoriamente indexada aos aumentos salariais decorrentes das atualizações convencionais posteriores, a pretensão da autora não pode deixar de ser considerada manifestamente abusiva.


Na verdade, nos termos do art. 334º do Código Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.


E existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um direito válido, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural ou da razão justificativa da sua existência e em termos ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.


[…]


No caso concreto, não podemos deixar de considerar que a retribuição reclamada pela autora, mesmo que tenha respaldo na previsão contratual, não tem qualquer correspondência com as funções efetivamente exercidas.


Por outro lado, às funções efetivamente exercidas pela autora corresponde uma retribuição substancialmente inferior à contratada e efetivamente paga pelo réu. De resto, mesmo considerando as atualizações salariais ocorridas e, sendo, na melhor das hipóteses, reconhecido à autora o estatuto remuneratório correspondente à categoria de monitora de CAO principal, de acordo com a última tabela salarial em vigor, a retribuição mínima devida a partir de 01/07/2020 em diante seria de € 727,00, tendo a autora recebido sempre quantia superior, ou seja, € 840,00.


Mais relevante, contudo, do nosso ponto de vista, é a circunstância de a autora não ignorar que a sua contratação se destinava ao exercício das funções de monitora de CAO, de sempre terem sido essas as funções que exerceu ao longo da relação laboral e de, quando foi detetada a desconformidade, ao contrário do que aconteceu com outros dois trabalhadores, não ter aceite a retificação da sua categoria, que não implicava diminuição da retribuição, só a partir daí ter passado a reclamar o pagamento de diferenças na retribuição, não podendo, o que agora reclama, deixar de ser considerado manifestamente contrário à boa fé contratual, à qual estava especificamente vinculada nos termos do art. 126º do Código do Trabalho e em termos gerais nos termos do art. 762º, nº 2 do Código Civil.


Neste contexto, afigura-se-nos que a autora ao reclamar o direito às diferenças salariais, atua em manifesto abuso de direito, por a sua atuação, ser manifestamente contrária princípio da boa fé, conduzindo a condenação da ré um resultado manifestamente injusto e constituindo uma clamorosa ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante.


Nestes termos, a pretensão da autora terá, nesta parte, que ser julgada improcedente”.


[…]


[C]omo assinala a sentença recorrida, cabe ter presente que a autora não veio pedir o reconhecimento da categoria profissional de “Professora”, mas o reclamar o direito às atualizações salariais decorrentes do estatuto remuneratório que corresponde àquela categoria, usando como único fundamento o facto do contrato de trabalho celebrado com a ré mencionar na cláusula 2.ª que desempenharia as funções de professora e na cláusula 6ª que auferia o vencimento mensal ilíquido correspondente ao salário em vigor de acordo com BTE – Boletim do Trabalho e Emprego, para trabalhadores ao serviço de I.P.S.S.


[…]


Melhor precisando, com recurso à petição inicial, a autora não alegou quais as funções concretamente exercidas […].


Sucede, porém, ter-se provado o alegado pela Ré para defender não serem devidas tais atualizações à autora, nomeadamente, o que consta nos factos provados 3 a 6 (primeira parte deste], onde se lê:


[…]


Dito em poucas palavras, atento o que resultou apurado nos factos 3 a 6 (primeira parte deste), acima transcritos, o Tribunal a quo não só concluiu que essa factualidade retira fundamento à Autora para reclamar da ré o reconhecimento do estatuto remuneratório correspondente à categoria de Professor, no essencial, por não ter sido contratada para o exercício dessas funções nem efetivamente as ter desempenhado, mas também que bem sabendo ela quais as funções para que foi contratada e de facto exerceu, que a dedução desse pedido alicerçado na cláusula do contrato de trabalho, consubstancia uma atuação em abuso de direito […].


[C]oncordamos com a decisão recorrida também quanto a este juízo.


[…]


Como vimos, decorre dos factos provados 4 a 6, que em reunião realizada com a autora, foi-lhe “transmitido [..] que seria contratada para o exercício de funções de monitora do CAO, designadamente para, de acordo com os planos individuais de desenvolvimento dos utentes, participar na definição das atividades a desenvolver, elaborar os programas das áreas temáticas definidas, selecionar os métodos essencialmente demonstrativos a utilizar, preparar e desenvolver as atividades diárias, participar nos projetos do Centro e nos processos de avaliação individual, o que a autora aceitou”, bem assim que passou a exercer essas funções a partir da data em que o contrato foi reduzido a escrito.


Ignorar-se essa realidade para acolher a pretensão da autora, isto é, reconhecer-lhe o direito às diferenças salariais reclamadas, atendendo ao único argumento que vem esgrimir - o conteúdo da cláusula do contrato de trabalho –, sabendo-se, assim como o sabe a autora, que não tem correspondência com aquela realidade, conduziria de facto a uma decisão injusta e contrária aos princípios da boa-fé.


Não é despiciendo referir que os factos provados levam a crer que não foi por acaso, ou sequer por inépcia, que a autora apenas veio usar aquele argumento, nada referido quanto às funções efetivamente exercidas, como seria expectável, por ser lógico e normal em situações similares, que minimamente alegasse e procurasse demonstrar a correspondência entre as funções desempenhadas e a categoria profissional com base na qual reclama diferenças salariais.


[…]


Por último, não tem razão a recorrente ao invocar o art.º 476.º do CT, para defender que “mesmo que pudesse existir um acordo entre as partes (o que não se concebe) nunca tal acordo poderia afastar a imposição do que se estabelece no CCT aplicável ao caso, ao abrigo do disposto no artigo 476º”.


Está provado, que a necessidade de contratação que a Ré tinha era para as funções de monitora do Centro de Atividades Ocupacionais (CAO), tendo sido essa a proposta apresentada à autora [facto 3]. Foi nesse contexto e para responder a essa necessidade que “A direção do réu, em reunião com a autora, na presença da Coordenadora Geral, Dr.ª BB, acedeu a dar-lhe uma oportunidade e a integrar a autora no seu quadro de pessoal” [facto 4]. E, “Nessa reunião foi transmitido à autora que seria contratada para o exercício de funções de monitora do CAO, designadamente para, de acordo com os planos individuais de desenvolvimento dos utentes, participar na definição das atividades a desenvolver, elaborar os programas das áreas temáticas definidas, selecionar os métodos essencialmente demonstrativos a utilizar, preparar e desenvolver as atividades diárias, participar nos projetos do Centro e nos processos de avaliação individual, o que a autora aceitou”.


[…]


De acordo com o estabelecido no art.º 115.º, do CT, cabe às partes definir a atividade para cuja prestação o trabalhador é contratado, podendo a sua definição ser feita por remissão para uma categoria profissional do instrumento de regulamentação coletiva aplicável. Daí dizer-se, que a posição do trabalhador na organização em que se integra define-se a partir daquilo que lhe cabe fazer, isto é, pelo conjunto de tarefas serviços e tarefas que formam o objeto da prestação de trabalho, o qual determina-se a partir da atividade contratada com o empregador [art.º 115.º n.º 1, do CT 09].


[…]


Haveria violação desta disposição se no contrato de trabalho celebrado entre a R e a Autora tivesse sido acordada uma retribuição que fosse inferior à prevista para as funções contratadas, no CCT aplicável. Mas como decorre da matéria provada, não foi essa a situação que se configurou.


[…]


Por último, se é certo que não se logrou perceber qual a razão subjacente àquela desconformidade, importa assinalar que se porventura tivesse havido um propósito objetivo por acordo das partes, designadamente, o de atribuir à autora um estatuto remuneratório mais vantajoso a manter ao longo da execução do contrato de trabalho - pese embora não estivesse a ser contratada para exercer as funções de professora, nem de facto as tivesse exercido -, então, de acordo com as regras gerais de repartição do ónus de prova, incumbia a esta a alegação e prova dos factos essenciais para sustentar a existência desse eventual acordo como base para sustentar a sua pretensão [art.º 342.º /1, do CC].


Não foi certamente esse o caso, pois se tivesse sido a autora não deixaria de o ter invocado e alegado os factos que entendesse pertinentes.


Concluindo, o Tribunal a quo decidiu com acerto, não se reconhecendo fundamento ao recorrente, logo, improcedendo o recurso.»


10. Entende a recorrente que o acórdão recorrido se encontra em contradição com o acórdão-fundamento, invocando para tal o seguinte segmento deste último:


“A tutela ou a regra geral da coincidência entre a atividade para que foi contratado, a categoria profissional e as funções a exercer pode, todavia, sofrer a restrição prevista no artigo 120º do CT/2009, designada de mobilidade funcional, nos termos do qual, desde que verificados os requisitos previstos na norma, o empregador poderá exigir do trabalhador o exercício temporário de funções não compreendidas naquelas.


Por apelo ao regime aí previsto, o mesmo é passível de ser afastado por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho (CCT), do que resulta, em conformidade, a plena validade e eficácia de cláusula de CCT, sobre mobilidade funcional, que estabeleça que o trabalhador adquire a categoria profissional correspondente às funções que exerça temporariamente durante determinado período.


Estando nesse caso em causa a aplicação de cláusula estabelecida em CCT que vincula as partes, sendo aplicável o princípio estabelecido no artigo 476.º ao contrato de trabalho ao acordo das partes, esse princípio é a este aplicável, assim sobre exercício de funções e categoria associada, em particular, no que aqui importa, à transição, imposta pela citada cláusula, do trabalhador para a categoria correspondente às funções que exerceu durante o período em causa.


Estando nesse caso em causa a aplicação de princípio plasmado na lei, assim o disposto no artigo 476.º do CT, que impõe o primado de que as disposições de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho só podem ser afastadas quando se trate de estabelecer condições mais favoráveis para o trabalhador, impõe-se o nesse estabelecido, independentemente pois de qualquer eventual acordo anterior em contrário celebrado entre as partes, sem que se possa dizer que ocorre abuso de direito, na modalidade venire contra factum proprium”.


11. Não se verifica, manifestamente, qualquer contradição entre os arestos em causa.


Desde logo, o acórdão-fundamento reporta-se a desvios à “regra geral da coincidência entre a atividade para que foi contratado, a categoria profissional e as funções a exercer” em situações de mobilidade funcional (art. 120º, do CT), caso que não tem qualquer ponto de contacto com o caso sub judice.


Por outro lado, no acórdão recorrido foi apreciado o abuso de direito da trabalhadora, enquanto no acórdão-fundamento estava em causa o do empregador, situações, pois, absolutamente díspares.


Acresce que se afirma neste último acórdão a “plena validade e eficácia de cláusula de CCT, sobre mobilidade funcional, que estabeleça que o trabalhador adquire a categoria profissional correspondente às funções que exerça temporariamente durante determinado período de tempo”, entendimento consentâneo com o cerne da argumentação do acórdão recorrido, que é, em síntese, o seguinte: de acordo com o estabelecido no art. 115.º, do CT, cabe às partes definir a atividade para cuja prestação o trabalhador é contratado; é relativamente a esta atividade que rege o art. 476º, do mesmo diploma; a A. foi contratada para exercer as funções de monitora, o que aceitou, passando daí em diante a exercer tais funções (que nada têm a ver com o núcleo funcional da categoria de professor, cujo estatuto remuneratório a A. se arroga); o facto de ter sido convencionada uma retribuição da autora correspondente à categoria de professor, de valor significativamente superior à retribuição mínima correspondente à de monitor, confere-lhe apenas direito a tal remuneração (mas não aos demais direitos inerentes a uma categoria com conteúdo funcional diferente das funções contratadas entre as partes e exercidas pela A.).


Vale por dizer que ambos os arestos coincidem na mesma ideia fundamental: o trabalhador tem os direitos inerentes à categoria correspondente às funções efetivamente exercidas, sem que isso configure abuso de direito da sua parte.


Efetivamente, como se refere no sumário do acórdão-fundamento, “a categoria profissional de um determinado trabalhador afere-se em razão das funções efetivamente exercidas, em conjugação com a norma ou convenção que, para a respetiva atividade, indique as funções próprias dessa categoria, sendo elemento decisivo o núcleo funcional que essa caracteriza ou determina.


Inexistindo qualquer contradição, não se verifica, pois, o condicionalismo previsto no art. 672º, nº 1, c), do CPC, invocado pela recorrente.

b. Se estão em causa interesses de particular relevância social:

12. Quanto aos invocados interesses de particular relevância social, que não se descortinam minimamente, não se vê que estejam em causa “aspetos fulcrais para a vida em sociedade” (Ac. do STJ de 13.04.2021, P. 1677/20.6T8PTM-A.E1.S2), assuntos suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação (Acs. do STJ de 14.10.2010, P. 3959/09.9TBOER.L1.S1, e de 02.02.2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1), ou que “exista um interesse comunitário significativo que transcenda a dimensão inter partes (Ac. do STJ de 29.09.2021, P. n.º 686/18.0T8PTG-A.E1.S2), sendo certo que nesta matéria “não basta o mero interesse subjetivo do recorrente” (Ac. do STJ de 11.05.2021, P. 3690/19.7T8VNG.P1.S2).


Ao contrário do sustentado pela recorrente, não se vislumbra, qualquer “situação em que possa haver colisão de uma decisão jurídica com valores socioculturais dominantes que a devam orientar e cuja eventual ofensa possa suscitar alarme social determinante de profundos sentimentos de inquietação que minem a tranquilidade de uma generalidade de pessoas”.


Na verdade, o acórdão recorrido lançou mão de quadros jurídicos que, encontrando-se doutrinária e jurisprudencialmente estabilizados, se nos afiguram estar de acordo com o sentimento jurídico da comunidade.


III.


13. Nestes termos, acorda-se em não admitir o recurso de revista excecional em apreço.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 3 de novembro de 2023


Mário Belo Morgado (Relator)


Ramalho Pinto


Júlio Manuel Vieira Gomes





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1. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎