Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2341/13.8TBFUN.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: SUCESSÃO POR MORTE
DIREITO INTERNACIONAL
LEI PESSOAL
NACIONALIDADE
RESIDÊNCIA HABITUAL
TESTAMENTO
LEGÍTIMA
INVENTÁRIO
Data do Acordão: 05/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DE REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – LEIS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / DIREITOS DOS ESTRANGEIROS E CONFLITOS DE LEIS / NORMAS DE CONFLITOS / ÂMBITO E DETERMINAÇÃO DA LEI PESSOAL / LEI REGULADORA DAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA / LEI REGULADORA DAS SUCESSÕES – DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO LEGITIMÁRIA / REDUÇÃO DE LIBERALIDADES.
Doutrina:
-Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 3ª ed., pág.240 e 241;
-Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, I, pág.400;
-Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol.I, 4ª ed., pág.804.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 20.º, N.ºS 1 E 2, 25.º, 31.º, 62.º, 2156.º, 2168.º, 2169.º E 2172.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 27-09-01994;
- DE 27-09-1994, IN CJ, ANO II, TOMO III, 71;
- DE 15-01-2015, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 23-1-19/08, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


- DE 28-10-1993.
Sumário :

I - A sucessão por morte de um cidadão de nacionalidade britânica, é regulada, por regra, pela lei da nacionalidade, em concreto, pela Lei britânica – arts. 25.º, 31.º e 62.º, todos do CC.

II - A Lei britânica congrega diferentes sistemas legislativos locais, mas não contém normas de direito interlocal ou normas de direito internacional privado unificado, pelo que, por excepção, a sucessão por morte é regulada pela Lei da residência habitual (ainda que esta não coincida com o Estado de que é nacional), em concreto, pela Lei portuguesa – art. 20.º, n.os. 1 e 2, do CC.

III - A Lei portuguesa prescreve que, por testamento, o de cujus não pode dispor da porção de bens que constituem a legítima, sob pena de redução dessa disposição – arts. 2156.º, 2168.º, 2169.º e 2172.º, todos do CC, pelo que, o facto de o testador ter disposto da totalidade dos seus bens a favor da cônjuge não determina a inutilidade do processo de inventário para partilha do acervo hereditário entre todos os herdeiros.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 – Relatório.

No 3º Juízo Cível do Tribunal do ..., AA requereu que se procedesse a inventário judicial para partilha da herança aberta por óbito de BB, alegando que este faleceu no dia 9/5/19, na freguesia do ... (...) e que tinha residência também no ....

Mais alega que o falecido fez testamento e deixou bens, sendo que, como herdeiras legitimárias, deixou, além do cônjuge CC, as suas três filhas, DD (requerente do inventário), EE e FF.

Para cabeça de casal, indicou a viúva do inventariado.

Esta foi nomeada cabeça de casal nos autos, tendo prestado declarações nessa qualidade, pedindo, a final, um prazo não inferior a 30 dias para a junção da relação de bens.

Porém, tendo-lhe sido concedido o prazo de 30 dias para apresentar aquela relação, veio a cabeça de casal invocar a impossibilidade superveniente da lide, alegando que, no caso, é aplicável à sucessão por morte a lei britânica e que, tendo o falecido disposto validamente, por testamento, da totalidade dos seus bens, não existe qualquer património a partilhar.

Notificadas as demais interessadas para se pronunciarem, as herdeiras DD e FF vieram dizer que entendem haver lugar a inventário.

Foram juntos Pareceres por parte da cabeça de casal e daquelas duas outras herdeiras.

Seguidamente, foi proferida decisão, julgando extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, dada a inexistência de bens a partilhar.

Inconformadas, as herdeiras DD e FF interpuseram recurso de apelação daquela decisão, tendo, então, sido proferido o Acórdão da Relação de 7/3/17, que, julgando procedente a apelação, revogou a decisão recorrida e determinou o prosseguimento do processo de inventário em causa.

Inconformada, a cabeça de casal interpôs recurso de revista daquele acórdão.

Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – Fundamentos.

2.1. No acórdão recorrido consideraram-se provados os seguintes factos:

1. BB faleceu em ... de 2010 no ... no estado de casado com CC

2. O falecido nasceu em Portugal, no dia ... de 1941, no sítio de ...

3. Consta do assento de nascimento que: “Em virtude de declaração de opção de nacionalidade, prestada perante a Câmara Municipal do ..., no dia dois do corrente, pelo pai do registado, este passa a seguir a nacionalidade inglesa, como consta do respetivo termo lavrado no livro competente desta Conservatória, sob o número 64” (sublinhado nosso).

4. O falecido outorgou testamento cerrado, em 1 de Março de 2010, notarialmente aprovado em 2 de Março de 2010 com o seguinte conteúdo: “Lego à minha esposa CC,(…) todos os meus bens móveis, bem como todos os meus bens imóveis situados na Região autónoma da ... e no reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, que à data da minha morte me pertençam, no todo ou em parte, naqueles se incluindo os direitos de crédito (e respectivas garantias que estejam associadas aos mesmos) de que sou titular, e que subsistam à data do meu falecimento, emergentes dos contratos particulares que passo a identificar: Um. O celebrado entre mim e a sociedade “GG”, pessoa colectiva número cinco, um, um, dois, oito, zero, zero, sete, seis, com sede na cidade do ..., aos seis dias do mês de Dezembro do ano de 2007, nos termos do qual vendi à referida sociedade anónima, pelo preço global de três milhões e cento e cinquenta e um mil euros, quatrocentos e sessenta e quatro mil acções ordinárias da Série “A” de que era titular na sociedade “HH”, pessoa colectiva número cinco, um, um, zero, zero ,um, sete, cinco, quatro, com sede no .... Dois, O celebrado entre mim e a sociedade “II”, pessoa colectiva número cinco, um, um, dois, cinco, três, oito. Nove , três, com sede na sociedade do ..., aos seis dias do mês de Dezembro do ano de dois mil e sete, nos termos do qual vendi à referida sociedade anónima, pelo preço global de cinco milhões e setecentos e vinte e um mil euros, trezentos e dez mil acções preferenciais da série “C”, de que era titular na referida sociedade “HH”. E bem assim, o direito de preenchimento das livranças que se encontram anexas aos contratos identificados em “um” e “dois” deste testamento, nos termos que constam do denominado “Anexo 3” dos referidos contratos. Como consta do meu assento de nascimento e seus averbamentos, sou de nacionalidade britânica, pelo que posso dispor livremente de todos os meus bens, de harmonia com a lei inglesa, que pretendo que seja aplicada, com afastamento de qualquer outra, e em conformidade com o disposto no Código Civil português.”

5. O testamento a que se alude em 4. foi redigido e assinado na cidade do ..., onde residia o testador, como do mesmo e da certidão de óbito consta (fls. 94 e 8, respectivamente).

6. BB casou com II, no dia 17.06.1970, na área da 3ª CRC de Lisboa, tendo sido decretada a separação de pessoas e bens entre os cônjuges por sentença de 27.11.1974, convertida em divórcio por sentença de 21.11.1975 – fls. 130 a 132.

7. BB casou com JJ, no dia 4.03.1976, no Registo Civil de Westminster, Inglaterra, tendo sido decretado o divórcio entre os cônjuges por decisão da CRC de 7.01.2008 – fls. 130 a 132.

8. BB casou com CC, no regime de separação de bens, no dia 17.8.2009, no ..., constando da certidão de casamento como morada do ...e da 2ª ... – fls. 133 a 137.

9. CC é natural da ....

10. AA nasceu no dia 8.1.1972, na freguesia do ... (São Pedro), concelho do ..., e é filha de BB e de ... – fls. 142.

11. EE nasceu no dia ....1976, na freguesia do ... (São Pedro), concelho do ..., e é filha de BB e de JJ– fls. 147.

12. No assento de nascimento da EE encontram inscritos os seguintes averbamentos:

            - Averbamento nº 1, de 2008-10-30 - Perdeu a nacionalidade portuguesa nos termos da alínea da base dezoito da Lei nº 2098 de 29 de Julho de 1959, por efeito de declarações prestadas pelos pais. Boletim nº 133. Maço 6. Ano 1978. Em 29 de Março de 1978;

            - Averbamento nº 2, de 2008-10-30 - Casou catolicamente com LL, em 8 de Julho de 2006, na freguesia do ... (São Pedro), concelho do ... e alterou o nome para EE , por efeito do casamento. Assento nº 280 de 2006 da Conservatória do .... Em 14 de Julho de 2006.

            - Averbamento nº 3, de 2008-11-04 - Adquiriu a nacionalidade portuguesa nos termos do artigo 4º da Lei nº 37/81 de 3 de Outubro. Processo nº 11000-P/2008 da Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa. (fls. 148).

13. FF nasceu no dia ....1981, na freguesia do ... (São Pedro), concelho do ..., e é filha de BB e de JJ – fls. 152.

14. No assento de nascimento da FF encontra-se inscrito o seguinte averbamento: - Averbamento nº 1, de 2008-07-30 Casou catolicamente com MM, em 26 de Julho de 2008, na freguesia do ... (São Pedro), concelho do ... e alterou o nome para FF ..., por efeito do casamento. Assento nº 608 de 2008 da Conservatória do ... (fls. 153).

15. AA, EE ... e FF ... foram registadas nos serviços consulares britânicos – fls. 165 a 176.

16. AA e FF ... residem em Lisboa, vivendo ... em Londres.

2.2. A recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. De acordo com o art. 62.º do código civil, conjugado com o art.31.º/1 do mesmo diploma, a sucessão por morte, quer voluntária quer legal, é regida pela lei nacional do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste. No caso em apreço, resulta da conjugação dos arts. 62.º, 31.º/1 e 20.º do Código Civil, bem corno da integração da lacuna suscitada pelo art. 20.º/2 do código civil com base no princípio da conexão mais estreita com um dos sistemas vigentes dentro da ordem jurídica da nacionalidade, que é aplicável o direito do inglês.

2. A lei inglesa considera-se competente para reger a sucessão mobiliária, bem como a sucessão quanto aos imóveis situados em Inglaterra. O retorno para a lei portuguesa quanto aos imóveis situados em Portugal não é de aceitar perante o disposto no art. 18.0/1 do código civil. Mesmo que se adotasse a posição contrária, o retorno seria paralisado pelo disposto no art. 19.0/1 do código civil. Por estas razões, a lei inglesa é chamada a reger toda a sucessão.

3. A aplicação do direito inglês à sucessão do de cujus radica em valores básicos e princípios fundamentais do direito internacional privado (mormente o princípio da conexão mais estreita, o princípio da personalidade dos indivíduos e o princípio democrático), é postulada pela justiça deste ramo do direito e, por esta via, pela justiça da ordem jurídica.

4. As disposições testamentárias feitas pelo de cujus são válidas e eficazes perante o direito inglês, razão por que as filhas, em caso de necessidade, poderão requerer da herança atribuições patrimoniais para o seu sustento, conforme o permite a lei inglesa no Inheritance (provision for family and dependants) act 1975.

5. A ordem publica é uma clausula geral, de caracter excecional, impreciso e atual, que vai evoluindo e possui um conteúdo indeterminado, que terá que ser aferida em concreto, perante cada caso, e em função das circunstâncias da realidade histórica e social.

6. A cláusula de ordem pública internacional caracteriza-se pela sua excecionalidade: esta cláusula só intervém como limite à aplicação do direito estrangeiro quando a solução dada ao caso for não apenas divergente da que resultaria da aplicação do direito português, mas também manifestamente intolerável.

7. A ordem pública internacional não pode ser confundida com a ordem pública interna: os princípios e regras veiculados pela ordem pública internacional representam um núcleo muito mais restrito do que aqueles que subjazem à ordem pública de direito material. As regras e princípios imperativos da lei ordinária só excecionalmente relevam para a reserva de ordem pública internacional.

8. O direito à legítima atribuído pela lei portuguesa aos descendentes do autor da sucessão é de ordem pública interna, e não matéria de ordem pública internacional pelo que, ao concluir em sentido diverso o acórdão recorrido violou o artigo 22 nºl do CC.

9. O direito à legitima estabelecido na lei portuguesa representa uma opção político­-legislativa sem fundamento constitucional que limita o direito fundamental de disposição da propriedade e que tende hoje a ser crescentemente posta em causa.

10. Não ficaram demonstrados nos autos quaisquer factos e/ou circunstâncias de onde resulte o caracter intolerável da aplicação da lei inglesa à presente sucessão. Pelo que, não ficando demonstrado que a solução da lei inglesa é manifestamente intolerável face a este caso concreto, não se pode concluir pela violação da ordem pública internacional do estado português, como o faz o acórdão recorrido, que também por este fundamento violou o artigo 22 nºl e 31 ° do CC e ainda o artigo 62° da CRP.

11. O instituto da legítima não constitui um princípio fundamental da ordem pública internacional portuguesa. É este o entendimento da melhor jurisprudência dos nossos tribunais superiores e da doutrina intemacionalprivatístiva portuguesa. O mesmo entendimento se tem vindo a impor na generalidade dos sistemas jurídicos em que a questão se tem colocado (por consagrarem, no seu direito material interno, o direito dos filhos à legítima). Ao entender em sentido diferente o acórdão recorrido violou também por esta razão que acresce ás demais, o artigo 22 nºl do Código Civil.

12. Mesmo que se entendesse que a privação da legítima poderia constituir uma violação da ordem pública internacional portuguesa caso o único elemento de estraneidade fosse a nacionalidade do de cuius - o que só por mera hipótese académica se admite -, teria de se reconhecer que no caso em apreço há outros elementos de estraneidade muito importantes.

13. O acórdão recorrido violou ainda o 62° nºl da Constituição da Republica Portuguesa ao limitar a transmissão da propriedade privada por sucessão, em violação deste principio constitucional.

14. A lei inglesa aplicável, contem disposições -aplicáveis quer em caso de sucessão testamentária ou não- que protegem determinadas pessoas, nomeadamente os filhos, no caso de terem sido privados de bens e capacidade financeira por óbito do de cujus. Essas disposições são entre outras as contidas no inheritance ( provision for family and dependants) act 1975, secção 1 e 2.

15. Ainda que o acórdão considerasse haver violação da reserva de ordem publica internacional do estado português deveria ter indagado acerca da existência das normas mais apropriadas da legislação inglesa, estando-lhe vedada a aplicação imediata da lei material portuguesa, o que só poderia acontecer a titulo subsidiário, na falta de preceitos apropriados da lei inglesa. Ao aplicar de imediato a lei portuguesa o acórdão recorrido violou o artigo 22º nº2 do CC.

16. E o acórdão recorrido não curou de interpretar e averiguar o contéudo da lei estrangeira, e as normas mais apropriadas dessa lei competente, nomeadamente o contido no inheritance ( provision for family and dependants) act 1975, secção 1 e 2, limitando-se a remeter sem mais para a lei material portuguesa, pelo que, ao omitir tal averiguação o acórdão recorrido violou também e por estas razões o artigo 22º nº2 e o artigo 23º do código civil.

17. Em suma, as disposições testamentárias feitas pelo de cujus são plenamente válidas e eficazes na ordem jurídica portuguesa. Ao não o considerar a sentença recorrida violou o artigo 62° do CC.

18. Consequentemente, estando a sucessão do "de cujus" abrangida pelas disposições testamentárias, não existe herança a partilhar, pelo que os presentes autos devem ser julgados extintos por inutilidade superveniente da lide. Ao não o considerar o acórdão recorrido violou o artigo 277° do CPC.

Termos em que o acordão recorrido deve ser substituído por outro que considere que, considerando a aplicação da lei inglesa à sucessão de BB determine que tal não envolve ofensa dos princípios de reserva da ordem publica international do Estado Português e, consequentemente, ordene a extinção dos autos por inutilidade superveniente da lide.

2.3. As recorridas contra-alegaram, concluindo nos seguintes termos:

A. A alegação da Recorrente, no que concerne a determinação da Lei aplicável à sucessão do de cujus, baseia-se praticamente em exclusivo no entendimento de que, tendo o falecido nacionalidade britânica e dispondo o artigo 62º do Código Civil que a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão, impõe-se concluir que é aplicável ao caso em apreço a lei inglesa.

B. Tal entendimento, no que ao caso concreto diz respeito, constitui uma tremenda injustiça, sendo violadora, não apenas da Lei, substantiva e processual, como dos mais basilares princípios orientadores do ordenamento jurídico português.

C. Basta uma leitura das alegações da Recorrente e do parecer pela mesma junto, para verificar que as mesmas apresentam vários "saltos de lógica", baseando-se, em vários casos, em determinações factuais pouco precisas e mesmo incorrectas (como seja a questão fulcral da nacionalidade das filhas do inventariado ou a definição da residência habitual deste).

D. Sendo a lei pessoal, nos termos do disposto no artigo 31° do Código Civil, a lei da nacionalidade, é entendimento da Recorrente, que será a lei inglesa a aplicável à sucessão por morte de BB

E. Sucede que, tal entendimento não se coaduna, salvo melhor entendimento, com as circunstâncias específicas do caso sub judíce e com as disposições concretas da Lei, em matéria de normas de conflitos.

F. Ao remeterem para o direito da nacionalidade, as regras de conflitos do nosso sistema jurídico apontam para o direito de um Estado que não possui um ordenamento jurídico unitário. Ou seja, uma questão que podia revelar-se de grande simplicidade - determinação da lei pessoal do inventariado nos termos, conjugadamente, do disposto nos artigos 62° e 31°, nº 1 do Código Civil - traduz, no caso concreto sub judíce, um factor de complexidade adicional, uma vez que o inventariado é nacional de um Estado em que coexistem diferentes ordenamentos jurídicos locais, o denominado ordenamento jurídico plurilegislativo.

G. Sendo este o caso, impõe-se a apreciação da questão concreta em decisão com recurso às normas legais aplicáveis, i.e. com recurso ao disposto no artigo 20° do Código Civil, o qual prevê, precisamente, os critérios de decisão a adaptar no tipo de situação em apreço.

H. Assim, decorre da norma em questão (artigo 20° do Código Civil) que o nosso ordenamento jurídico estabelece um mapa claro a seguir na eventualidade de estarmos perante a atribuição de competência em razão da nacionalidade, sendo esta a de um Estado em que coexistem diferentes sistemas legislativos, a saber: (i) em primeiro lugar, deve averiguar-se se o direito interno do Estado da nacionalidade determina, para o tipo de caso específico em análise, qual o sistema aplicável; (ii) em segundo lugar e caso o referido em (i) não ocorra, determina a Lei que deve recorrer-se ao direito internacional privado do Estado em apreço, ou seja, devem aplicar-se aos conflitos de leis interlocais os princípios aplicáveis no Estado à solução dos conflitos de leis em situações privadas internacionais; (iii) em terceiro lugar e caso não tenha sido possível recorrer a qualquer das formas previstas em (i) e (ii), a Lei é clara ao determinar que deverá considerar-se como lei pessoal a lei da residência habitual, ou seja, que deverá abrir-se uma excepção à regra geral do artigo 31° nº 1 do Código Civil quanto à determinação da lei pessoal do interessado.

I. Conforme é aliás plenamente reconhecido pela Recorrente nas suas alegações, o Reino Unido é precisamente um dos casos em que se revela impossível, por inexistente, o recurso a regras unificadas de direito interlocal e de regras de conflitos num sistema internacional privado, o que obriga, precisamente, ao recurso à solução prevista na parte final do nº 2 do artigo 20° do Código Civil.

J. Como resulta claramente do ensinamento de Baptista Machado, estamos perante uma escolha concreta e expressa do legislador, depois de ponderadas as diversas soluções possíveis para os casos em apreço, i.e., o legislador português, em face das diversas opções que podiam legitimamente ter sido adaptadas no que concerne a determinação do direito material aplicável (como sejam a aplicabilidade da lei vigente na capital do Estado da nacionalidade ou da tentativa de determinação da subnacionalidade do interessado) optou por definir como lei pessoal a lei da residência habitual do interessado, sempre que a lei da nacionalidade do mesmo remetesse para um ordenamento de um Estado plurilegislativo onde não existem normas de conflitos de direito inter-regional ou de direito internacional privado comuns às várias circunscrições legislativas.

K. Esta determinação legal impõe, salvo o devido respeito, que no caso concreto sub judice se tivesse concluído que a lei pessoal do inventariado é a lei do Estado onde o mesmo tinha a sua residência habitual, ou seja, a Lei Portuguesa.

L. Assim sendo, é desde logo inaceitável a alegação da Recorrente no sentido da tese defendida por Isabel de Magalhães Collaço e Lima Pinheiro no sentido de que só releva a residência habitual dentro do Estado da nacionalidade.

M. Sem prejuízo da discussão doutrinária sobre a melhor solução legislativa para o problema e, consequentemente, sobre as vantagens claras em termos de segurança jurídica e previsibilidade das soluções encontradas, dúvidas não podem existir sobre a escolha do legislador.

N. No mesmo sentido da maioria da doutrina nacional e em respeito pela solução escolhida pelo legislador, impbrta ainda salientar que a defesa da tese constante da alegação da Recorrente ignora igualmente o parecer apresentado nos presentes autos, da autoria do Prof. Luís Barreto Xavier.

O. A noção de prevalência da nacionalidade na determinação da lei pessoal é acolhida no ordenamento jurídico português como uma opção entre duas possíveis (nacionalidade e residência habitual) e não como uma radical prevalência da nacionalidade sobre a residência habitual.

P. Aliás, no sentido de que há vantagens e desvantagens quer da conexão nacionalidade quer da conexão residência habitual se pronunciou o próprio Professor Doutor Lima Pinheiro nas suas lições, ao referir expressamente que "Será antes de concluir que tanto a lei da nacionalidade como a lei da residência habitual devem desempenhar um papel na definição do estatuto pessoaf' (sublinhado e realce nosso).

Q. De facto, no que concerne a aplicação da lei do país da residência habitual como lei pessoal, importa deixar claro que não existe nenhum factor que possa determinar tal solução como inaceitável ou chocante. Bem pelo contrário, ignorar que a residência habitual desempenha, no nosso sistema jurídico, tal como em muitos outros, uma importância fundamental, estando, em todos os campos relativos aos elementos de conexão, ao mesmo nível que a lei da nacionalidade.

R. Da mesma forma e pese embora seja inaplicável ao caso sub judice o Regulamento nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, na medida em que o mesmo passou a ser aplicável em Portugal apenas nos casos de pessoas falecidas a partir de 17 de Agosto de 2015, a verdade é que, dando primazia à lei escolhida pelo autor da sucessão, remete, em igualdade de circunstâncias para "as regras do direito internacional privado em vigor no momento em que a escolha foi feita, no Estado em que o falecido tinha a sua residência habitual ou em qualquer dos Estados de que era nacionaf' (sublinhados e realces nossos), conforme artigo 83° nº 2 do mesmo.

S. Ou seja, o facto de o legislador português ter escolhido como lei pessoal a lei da nacionalidade, não significa, nem pode ser entendido, como significando que a lei da residência habitual não constitui uma escolha perfeitamente válida e justificável em termos de estatuto pessoal. Bem pelo contrário, muitos casos concretos - entre os quais o caso sub judice, conforme intra se demonstrará - apontam precisamente em sentido contrário, uma vez que, em não poucas situações, a ligação, o vínculo, entre uma pessoa e o Estado onde a mesma escolheu estabelecer-se e residir com carácter de ermanência e estabilidade, é muito mais relevante e significativo do que o vínculo de natureza política decorrente da nacionalidade.

T. E não se diga, conforme pretende defender a Recorrente - em verdadeiro "salto de mágica" - que o falecido tinha residência tanto em Portugal como no Reino Unido.

U. Saliente-se, aliás, que no acórdão recorrido foi expressamente fixado, ao abrigo do disposto no artigo 607º, nº 4 do CPC, ex vi artigo 663°, nº 2 do mesmo Código, que "O testamento a que se alude em 4. foi redigido e assinado na cidade do ..., onde residia o testador, como do mesmo e da certidão de óbito consta (fls. 94 e 8, respectivamente)." (sublinhado e realce nosso).

V. Assim sendo, não é possível alegar, em sede de recurso de revista, que o inventariado tinha residência habitual em ambos os Estados, uma vez que, conforme factualidade assente pelo Tribunal da Relação de Lisboa, está demonstrado que o inventariado tinha residência habitual exclusivamente em Portugal.

W. Conforme resulta da factualidade assente, para além de BB ter nascido em Portugal (mais precisamente no ...) onde a sua família residia estavelmente há várias gerações, residiu aí praticamente durante toda a sua vida e aí faleceu. Contrariamente, atente-se que o inventariado residiu no Reino Unido durante curtos períodos de tempo da sua vida, motivados por questões específicas como os estudos, embora tenha retornado sempre a Portugal, onde desenvolveu a sua actividade empresarial, onde constituiu família e onde, conforme acima se referiu, veio a morrer.

X. Acresce que o próprio testamento em causa nos presentes autos foi redigido e assinado na cidade do ... (cfr. ponto 5 dos factos assentes do acórdão recorrido) e está escrito em língua portuguesa.

Y. Saliente-se, ainda, que as únicas três filhas do inventariado nasceram igualmente no ..., tendo duas delas nacionalidade (exclusiva) portuguesa e uma dupla nacionalidade (portuguesa e britânica) em virtude de casamento com nacional britânico, sendo que apenas esta última reside fora de Portugal.

Z. Aliás, quanto à questão da nacionalidade das filhas do inventariado - questão fulcral para a boa decisão da presente causa - importa deixar claro que a alegação da Recorrente e o parecer do Exmo. Senhor Professor Doutor Lima Pinheiro baseiam-se numa falsidade.

AA. Com efeito, duas das três filhas do inventariado têm nacionalidade exclusiva. Ou seja, apenas uma das três filhas do inventariado tem dupla nacionalidade, conforme resulta claro dos assentos de nascimento das mesmas que foram juntos aos autos.

BB. Resulta da factualidade concreta em questão que o elemento de conexão decorrente da residência habitual do inventariado - que era indiscutivelmente Portugal - é extremamente significativo, sendo alias perfeitamente aceitável considerar que comporta um carácter de maior relevância e significado do que a nacionalidade do mesmo.

CC. Resulta do disposto no nº 1 do artigo 22° do Código Civil que, mesmo que a norma de conflitos nacional aponte para a aplicação ao caso concreto de determinada lei estrangeira, esta não será aplicada se, dessa mesma aplicação, resultar um efeito manifestamente ofensivo dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português.

DD. Na impossibilidade de recorrer a uma lista de princípios ou normas fundamentais concretizadoras do conceito de ordem pública internacional do Estado português, cumpre apreciar qual a consequência da aplicação da lei inglesa ao caso concreto em decisão.

EE. Tal como nos ensina a melhor e unânime Doutrina, para apurar se a aplicação de determinada lei estrangeira passa o crivo da ordem pública internacional do Estado português, é fundamental ter em consideração as características do caso concreto, em particular no que concerne os elementos de conexão do mesmo ao Estado português.

FF. Caso se admitisse que a lei aplicável à sucessão por morte do inventariado é a lei inglesa, conforme resulta do postulado na alegação da Recorrente - o que se considera a mero benefício de raciocínio, sem conceder - estaríamos perante a aplicação de um direito que desconhece o instituto da sucessão legitimária, prevendo, antes, uma total amplitude na liberdade de testar do de cujus.

GG. Ou seja, independentemente de o de cujus deixar cônjuge, descendentes e/ou ascendentes, estaríamos perante a aplicação de um direito sucessório que em nada limitaria a capacidade de testar, inclusive possibilitando, em termos práticos, o "deserdar" de todos os seus descendentes, conforme sucede no caso em apreço.

HH. Dúvidas não podem existir de que o direito sucessório português e, em particular, a sucessão legitimária fazem parte do quadro fundamental da nossa ordem jurídica, conforme tem vindo também a ser defendido pela maioria e mais ajuizada jurisprudência.

II. Se é certo que ninguém coloca em causa a excepcionalidade da intervenção da cláusula de ordem pública internacional, é igualmente certo que não é questionável a possibilidade de um tribunal entender que a aplicação do direito estrangeiro ao caso concreto colide com a unidade essencial do ordenamento jurídico do foro, sendo, por essa razão, incompatível com a ordem pública nacional.

JJ. No apuramento da verificação de uma violação da ordem pública internacional, deve ter-se em conta todos os vectores fundamentais do ordenamento jurídico nacional, nos quais tem natural relevância a Constituição, o Direito da União Europeia, o direito convencional, mas também outros valores e princípios jurídicos axiais do direito interno, ainda que não expressamente consagrados na Constituição ou em direito supranacional.

KK. Os valores e princípios que conformam a Ordem Pública Internacional do Estado são, embora mutáveis, por acompanhamento das alterações sociais e culturais ao longo dos tempos, são tanto mais claros e efectivos quando correspondem à verdadeira genética do sistema em que se inserem, fazendo assim parte dos quadros fundamentais do sistema jurídico e da visão que todos, enquanto comunidade social organizada, temos desse mesmo sistema.

LL. A legítima hereditária dos herdeiros forçosos (integradora do conceito de ordem pública) está assente em tradição jurídica que permeia o Direito sucessório português, ininterruptamente, desde data anterior à da própria nacionalidade, sendo incontornável e inquestionável que o princípio da tutela dos herdeiros legitimários é um dos princípios fundamentais do nosso direito sucessório, tento até sido reforçado pela reforma de 1977 do Código Civil.

MM. Por outro lado, nada no Direito da União Europeia, em convenções internacionais de que Portugal seja parte ou em instrumentos internacionais de direitos humanos contraria a legitimidade desta protecção dos herdeiros legitimários.

NN. Não se pretende concluir que, sempre e em todos os casos, a existência de uma diferença entre a tutela sucessória prevista na lei portuguesa e numa lei estrangeira acarrete a violação da ordem pública internacional. Mas há casos em que essa violação é realmente manifesta: aqueles em que herdeiros legitimários são totalmente privados de uma quota hereditária, especialmente quando estes herdeiros têm nacionalidade portuguesa, como é o caso da sucessão de BB

OO. É indisputável a proximidade entre a sucessão em causa e a ordem jurídica portuguesa: basta atentar no local de nascimento e na residência habitual em Portugal do autor da sucessão, durante toda a sua vida; na nacionalidade das filhas; no lugar da redacção do testamento; na existência de património em Portugal.

PP. Deste modo, a aplicação da lei portuguesa como consequência da intervenção da ordem pública internacional está em total conformidade com os valores, princípios e normas do Direito Internacional Privado Português, não viola qualquer obrigação decorrente do Direito da União Europeia ou de direito convencional e, atendendo à bem conhecida jurisprudência maioritária dos nossos tribunais superiores, em nada lesará a segurança jurídica ou a previsibilidade das soluções.

QQ. Assim, mesmo que se entendesse que a protecção dos herdeiros legitimários não constitui, por si só, um princípio suficientemente fundamental para enquadrar o restrito leque que compõe, em cada 1omento, o conceito de ordem pública internacional do Estado português, é imperativo que se considere quais as consequências, qual o efectivo impacto e efeito prático da aplicação ao caso concreto sub judice de um direito estrangeiro que ignora por completo o referido princípio.

RR. No caso em apreço, a aplicação da lei inglesa, tal como postulado pela Recorrente, para além de violar frontalmente a lei na determinação da lei substantiva aplicável, conforme acima já demonstrado, produz um resultado manifesta e flagrantemente contrário a princípios fundamentais, basilares e estruturantes da nossa ordem jurídica, atenta, precisamente, a quantidade e a densidade dos elementos de conexão existentes com a ordem jurídica portuguesa.

SS. Dificilmente poderíamos estar perante um caso concreto com maior quantidade e qualidade de elementos de conexão com o Estado Português, contrariamente ao que tenta defender a Recorrente.

TT. Permitir que ao caso concreto sub judice seja aplicada a lei inglesa implica, para todos os efeitos, afastar integralmente as descendentes do património do inventariado, nacionais portuguesas, impedindo-as de tomar parte na sucessão do seu pai, tudo em sentido diametralmente oposto ao postulado na lei portuguesa, chocando o mais íntimo sentido de justiça decorrente do direito sucessório nacional.

UU. Nem sequer é possível afirmar que existe uma imposição de respeito absoluto pelo princípio da aplicação da lei da nacionalidade, uma vez que nenhum dos herdeiros afectados pela decisão sub judice - incluindo a própria cabeça-de-casal - é nacional britânico. Com efeito, nem sequer a cabeça-de-casal, cônjuge do inventariado, é nacional britânica.

VV. Para além da vontade do testador ser juridicamente irrelevante, uma vez que, conforme já amplamente demonstrado supra, a escolha do autor da sucessão não é critério aceite nas normas de conflitos nacionais para determinação da lei aplicável em matéria sucessória, tal vontade nunca poderia ser de molde a contrariar a aplicação da reserva da ordem pública internacional.

WW. Em consequência da aplicação ao caso sub judice da reserva da Ordem Pública Internacional do Estado português, nos termos do disposto no artigo 22º do Código Civil, deverá, necessariamente e nos termos do nº 2 in fine da mesma norma, concluir-se que a lei aplicável ao presente caso deverá ser a lei portuguesa, não esquecendo que esta, para além de tudo o demais, tem a virtualidade de corresponder (i) à lei do Estado em que o inventariado tinha a sua residência habitual, (ii) à lei da nacionalidade de todas as suas descendentes, (iii) à lei da residência habitual da maioria das suas descendentes e, ainda, (iv) à lei da situação da maioria dos bens, nomeadamente imobiliários, que compõem a herança do inventariado.

2.4. A questão essencial que importa apreciar no presente recurso consiste em saber qual a lei aplicável à sucessão por morte de BB, já que, se se entender que é a lei inglesa, o processo de inventário instaurado pela filha daquele, DD , carece de utilidade, tendo em conta que o falecido dispôs de todos os seus bens por testamento, ao passo que, se se entender ser aplicável a lei portuguesa, aquele processo deve prosseguir, por se estar perante liberalidade inoficiosa susceptível de redução.

A sentença proferida na 1ª instância considerou ser aplicável ao caso a lei inglesa e, por isso, entendeu ser inútil o prosseguimento do inventário, julgando extinta a instância.

O acórdão recorrido considerou ser aplicável ao caso a lei portuguesa e, por isso, entendeu que o processo de inventário em causa devia prosseguir seus termos.

Vejamos a fundamentação expendida naquelas decisões.

Assim, na sentença da 1ª instância desenvolveu-se a seguinte argumentação:

«É inquestionável que o “de cuius” é súbdito britânico, pelo que tratando-se de estrangeiro, estabelece a lei portuguesa (v. artigo 25º Código Civil) que a sucessão deverá ser regulada pela sua lei pessoal, logo, a lei inglesa. (artigo 31° do mesmo diploma).

Acresce que tendo o autor dá sucessão outorgado testamento, nos termos do disposto nos artigos 62º e 63° do Código Civil, a sucessão por morte dele, assim como a sua capacidade para fazer, modificar ou revogar disposições por morte, são reguladas pela lei inglesa.

Por força de tal lei o testador pode dispor livremente de todo o seu património pessoal [ponto 3 da Lei Testamentária Britânica de 1837 (Wills Act 1837), in wwwhttp://www.legislation.gov.uk/].

Refira-se que em Portugal tal não é admissível atento o que dispõem os artigos 2156°, e segs do Código Civil, ao consagrar a legitima, ou seja, a porção de bens de que o testador não pode dispor.

Poder-se-ia assim considerar que a aplicação das normas estrangeiras na presente situação seriam de afastar atento o que dispõe o artigo 22° do Código Civil, ou seja, “1. Não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português. 2. São aplicáveis, neste caso, as normas mais apropriadas da legislação estrangeira competente ou, subsidiariamente, as regras do direito interno português.”

No entanto também nos termos da ordem jurídica interna há que atender ao que dispõe o artigo 2187. ° Código Civil: "1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.".

Ora da leitura do testamento resulta claramente que o falecido quis dispor de todos os seus bens em favor da sua esposa, ( "Lego à minha esposa CC, (...) todos os meus bens móveis, bem como todos os meus bens imóveis situados na Região autónoma da Madeira e no reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, que à data da minha morte me pertençam, no todo ou em parte ... ) e quis que fosse aplicada a lei inglesa (... dou de nacionalidade britânica, pelo que posso dispor livremente de todos os meus bens, de harmonia com a lei inglesa, que pretendo que seja aplicada, com afastamento de qualquer outra, e em conformidade com o disposto no Código Civil português ... ) .

Assim, pese embora da aplicação da lei inglesa na situação presente ponha em causa o direito à legítima que assiste aos filhos, também não é menos verdade que a aplicação da lei inglesa foi a que inquestionavelmente foi a escolhida pelo testador, devendo pois, tal instrumento ser interpretado segundo a vontade manifestada.

Pelo exposto, nos termos de facto e de direito que antecedem, entende-se ser de aplicar a lei inglesa.

Tendo o falecido disposto de todos os seus bens por testamento cerrado por ele outorgado em l de Março de 2010 e notarialmente aprovado em 2 de Março de 2010 e sendo de aplicar a lei inglesa ao caso vertente ( conforme acima referido) verifica-se que inexistem bens a partilhar.

Ora destinando-se o processo de inventário a pôr termo à comunhão hereditária e tendo o autor da herança disposto de todos os seus bens, legando-os à sua esposa, inexistem motivos para a manutenção dos presentes autos.

Resulta pois ser inútil o prosseguimento dos autos, pelo que se julga extinta esta instância por inutilidade superveniente da lide (artigo 277º, al.e) do Código de Processo Civil)».

Por seu turno, o acórdão recorrido argumentou nos seguintes termos:

«Como resulta do relatório, a questão fundamental que se coloca no processo ( e neste recurso) é a da determinação da lei aplicável à sucessão por morte de BB e, consequentemente, a ponderação sobre a validade legal do testamento por este outorgado no dia 1 de Março de 201 O, sopesando a factualidade concreta do caso, nomeadamente, ser o referido BB, cidadão britânico, nascido e falecido no ..., onde outorgou o referido testamento.

Uma vez que as relações jurídicas em causa se acham em contacto com dois sistemas jurídicos ( o português e o britânico), cumpre determinar a lei aplicável fazendo intervir as Regras de Conflitos, previstas nos arts. 14 º e ss. do CC.

Por força do disposto nos arts. 25º, 62º e 63°, à sucessão por morte e especificamente quanto à capacidade de disposição por morte, é aplicável a lei pessoal, a qual corresponde, nos termos do disposto no art. 31 º, à lei da nacionalidade do indivíduo.

A significar, no caso, a lei britânica, face à factualidade provada sob os nºs 2 e 3.

Dispõe o art. 16 que ''a referência das normas de conflito a qualquer lei estrangeira determina apenas, na falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno dessa lei", prevendo-se, porém, nos arts. 17º e 18º situações de reenvio da lei estrangeira aplicável para a lei de um terceiro estado ou para a lei portuguesa, por força das regras de direito de conflitos respectivas, e em que poderá aceitar-se esse reenvio.

As normas de conflito britânicas de direito internacional privado no que à sucessão respeita distinguem entre bens móveis e imóveis, remetendo para a lei do domicílio do falecido, no que aos primeiros respeita, e para a lei do local onde os imóveis se encontrem (lex rei sitae ), quanto aos segundos, o que poderia levar a aplicar a lei portuguesa, por força do disposto no art. 18º.

Contudo, a remissão feita pelas referidas normas não é feita para o direito interno português, mas opera, pelo contrário, como referência global para o direito interno e para as normas de conflito portuguesas, que, como vimos, mandam aplicar a lei britânica, entrando-se num conflito em círculo, que deverá ser solucionado pela aplicação da lei britânica que aceita o retorno - neste sentido decidiram os Acs. do STJ de 27.09.1994, em CJAST, Tomo III, pág. 71, e o Ac. da RE de 28.10.1993, CJ, Tomo V, pág. 276 .

Aqui chegados, um outro problema se coloca, que o tribunal recorrido não equacionou: é que a lei britânica é um ordenamento jurídico plurilegislativo ( ou complexo, como lhe chama o Prof. Luís Lima Pinheiro, na ob. cit., pág. 57 e ss).

Assim sendo, haverá que aplicar o art. 20° que dispõe que "l - Quando, em razão da nacionalidade de certa pessoa, for competente a lei de um Estado em que coexistam diferentes sistemas legislativos locais, é o direito interno desse Estado que fixa em cada caso o sistema aplicável. 2 - Na falta de normas de direito interlocal, recorre-se ao direito internacional privado do mesmo Estado; e, se este não bastar, considera-se como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual. ... ".

Ou seja, de acordo com o artigo mencionado, é ao ordenamento complexo que compete fixar o sistema de direito interno aplicável ( através, nomeadamente, do sistema unitário de direito interlocal); não existindo, deve aplicar-se aos conflitos de leis interlocais o direito internacional privado unificado; e na falta de ambos, atende-se à lei da residência habitual, no caso, do de cujus.

Tal como referem as apelantes, o Reino Unido é precisamente um dos casos em que se revela impossível, por inexistente, o recurso a regras unificadas de direito interlocal e de regras de conflitos num sistema internacional privado unificado, o que obriga ao recurso à solução prevista na parte final do nº 2 do artigo 20º.

A interpretação deste normativo não é, porém, unânime.

Para a Escola de Coimbra, a que as apelantes aderem, a parte final do artigo aplica-se, mesmo que a lei da residência habitual se situe fora do Estado da nacionalidade, atendendo, nomeadamente, aos trabalhos preparatórios que estão na génese do art. 20º, por ser a interpretação que resulta, clara e expressamente, do texto legal, e por substituir a referência à lei da nacionalidade em favor da residência habitual, que é a conexão subsidiária em matéria de lei pessoal (nº 2 do art. 32°) e uma vez que se esgotaram as possibilidades de determinação do direito competente no interior do Estado da nacionalidade.

Para a Escola de Lisboa só releva a residência habitual dentro do Estado da nacionalidade, existindo uma lacuna resultante de uma interpretação restritiva da parte final do referido nº 2 do art. 20º, que deve ser integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita.

Propendemos a seguir esta posição, baseando-nos nos argumentos do Prof. Luís Lima Pinheiro, na ob. cit., págs. 525 e 526, que escreve que "Para Isabel de Magalhães Colaço há uma lacuna descoberta através da interpretação restritiva do art. 20º/2 in fine. A função deste preceito é indicar o sistema aplicável de entre os que integram o ordenamento complexo. Como este preceito não fornece um critério para determinar o sistema aplicável quando a residência habitual se situa fora do Estado da nacionalidade, surge uma lacuna. Esta lacuna deve ser integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita. Creio ser este o melhor entendimento. Por certo que o recurso à lei da residência habitual, quando o ordenamento complexo não dispõe de Direito Interlocal ou de Direito Internacional Privado unificados, evita certas dificuldades na determinação da lei aplicável. Mas é de rejeitar, porque significa tratar como apátrida quem tem uma nacionalidade e menospreza a primazia da nacionalidade em matéria de estatuto pessoal. Dos trabalhos preparatórios que estão na génese do art. 20º pode retirar-se um argumento em sentido contrário. O art. 32º do Anteprojecto de 1951 consagrava esta solução e, no entanto, foi alterado no Anteprojecto de 1964 (art. 6º), que adoptou a redacção que veio a constar do art. 20º. Este argumento é invocado por Ferrer Correia para defender uma interpretação declarativa do art. 20º. Mas este argumento não é conclusivo de uma intenção legislativa de aplicar a lei da residência habitual quando a pessoa tenha residência habitual fora do Estado da nacionalidade. Além disso a interpretação exige uma inserção do preceito no seu contexto significativo e a consideração dos vectores do sistema. Estes critérios de interpretação apontam claramente para o entendimento defendido por Isabel de Magalhães Colaço. Por conseguinte, em matéria de estatuto pessoal, quando a residência habitual for fora do Estado da nacionalidade, devemos aplicar, de entre os sistemas que integram o ordenamento complexo, aquele com que a pessoa está mais ligada. Neste sentido também pode invocar-se a analogia com o disposto no art. 28º da Lei da Nacionalidade, relativo ao concurso de nacionalidades".

No mesmo sentido vai Florbela de Almeida Pires, em Conflitos de Leis, Comentário aos artigos 14º a 65º do Código Civil, págs. 35 e 36, ao escrever que " ... , existem argumentos importantes que apontam no sentido de uma interpretação restritiva da parte final do nº 2 do artigo 20°, segundo a qual a referência à lei da residência habitual só fará sentido nos casos em que o interessado resida no país da sua nacionalidade, pois essa referência, no contexto dos nºs 1 e 2 do artigo 20º, mais não é do que um critério para a determinação da ordem jurídica local competente. Com efeito, a aplicação da lei da residência habitual quando a mesma se situa fora do ordenamento jurídico da nacionalidade originaria uma discriminação inaceitável entre os nacionais de ordenamentos plurilegislativos (sem direito interlocal ou direito internacional privado unificado) e os nacionais de outros Estados. Por exemplo, a capacidade de um norte­americano, residente habitualmente em Lisboa, seria regulada pela lei portuguesa, ao passo que a capacidade de um francês, residente em Portugal, seria determinada segundo a lei francesa. Na perspectiva do direito de conflitos, o norte-americano estaria a ser tratado como apátrida pois, não obstante ser detentor de uma nacionalidade, a sua lei pessoal seria a da residência habitual, elemento de conexão relevante para o caso dos apátridas (artigo 32°). Da análise do artigo 20º resulta que o seu objectivo se centra efectivamente na determinação da ordem jurídica local competente, não visando modificar a lei pessoal competente".

Também se nos afigura que o nº 2 do art. 20º deve ser interpretado, na "lógica" do preceito, considerado na sua unidade, devendo recorrer-se ao princípio da conexão mais estreita, no caso da residência habitual se situar fora do Estado da nacionalidade.

Para determinar a conexão mais estreita há que atender, nas palavras de Luís Lima Pinheiro, ob. cit., págs. 526 e 527, "a todos os laços objectivos e subjectivos que exprimam uma ligação entre a pessoa em causa e um dos sistemas vigentes no ordenamento complexo ... , ao vínculo de domicílio e, na sua falta, à última residência habitual ou último domicílio dentro do Estado da nacionalidade".

E no caso em apreço a conexão mais estreita é com a lei inglesa (única, aliás, com a qual ressaltam pontos de conexão), quer objectiva quer subjectivamente, porquanto dois dos casamentos do falecido foram realizados no distrito de Westminster, e aquele declarou, no testamento que outorgou, pretender que fosse aplicada a lei inglesa.

Assim sendo, embora com fundamento diverso, sufraga-se o entendimento do tribunal recorrido de ser aplicável, in casu, a lei inglesa, improcedendo a apelação nesta parte.

De acordo com o ordenamento jurídico inglês, não há limitações à liberdade de testar, ou seja, a lei inglesa desconhece o instituto da sucessão legitimária.

Nessa medida, o testamento outorgado por BB, no qual legou à esposa CC, "todos os meus bens móveis, bem como todos os meus bens imóveis situados na Região !utónoma da ... e no reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, que à data da minha morte me pertençam, no todo ou em parte" é válido perante a lei inglesa.

Cumpre, então, apreciar a 2ª questão colocada pelas apelantes, à cautela 9, e que se prende com o disposto no art. 22º.

Dispõe este preceito, com a epígrafe "Ordem Pública", que "1 - Não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português. 2 - São aplicáveis, neste caso, as normas mais apropriadas da legislação estrangeira competente ou, subsidiariamente, as regras de direito interno português".

O Código não define o que é a ordem pública internacional, estando em causa um conceito indeterminado que ao juiz compete concretizar no momento da sua aplicação.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, no CC Anotado, Vol. I, pág. 56, "trata-se, pois, de um princípio geral, de uma ideia mestra, cujo conteúdo positivo terá de ser preenchido pelo julgador na análise de cada caso", concretizando mais adiante que, "o que interessa, para saber se houve ou não violação da ordem pública internacional, não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto: ...".

João Baptista Machado, em Lições de Direito Internacional Privado, 2ª ed., pág. 256, escreve que" ... , o próprio DIP está ainda sob o comando daquela concepção mais elementar de justiça que gerou as linhas de rumo essenciais da ordem jurídica global (incluindo as normas de Direito dos Conflitos) e à qual nenhuma lei pode renunciar sem se negar a si própria. Daqui se segue que o juiz precisa de ter à sua disposição um meio que lhe permita precludir a aplicação de uma norma de direito estrangeiro, quando dessa aplicação resulte uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que informam a sua ordem jurídica. Este meio ou expediente é a excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública".

Sobre esta matéria, escreve Luís Lima Pinheiro, na ob. cit., págs. 659 e ss., que "perante a diversidade das situações em que o resultado a que conduz a aplicação do Direito estrangeiro ... pode ser intolerável perante a concepção de justiça do foro, o legislador formulou uma cláusula geral. Esta cláusula geral actua quando, perante o conjunto das circunstâncias do caso concreto, esse resultado seja incompatível com princípios e normas fundamentais da ordem jurídica portuguesa. A cláusula geral da ordem pública internacional é um veículo para a actuação dos princípios e normas fundamentais da ordem jurídica portuguesa. . . . Uma característica fundamental da cláusula de ordem pública internacional consiste na sua excepcionalidade. Esta cláusula só intervém como limite à aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional quando a solução dada ao caso for não apenas divergente da que resultaria da aplicação do Direito português, mas também manifestamente intolerável. . . . Nas ordens jurídicas em que a Constituição constitui a sede dos valores básicos da comunidade, como sucede com a Constituição portuguesa, o conteúdo da ordem pública internacional tende a ser determinado à luz dos princípios constitucionais. Excepcionalmente, poderão existir princípios fundamentais estruturantes da ordem jurídica portuguesa que não tenham dignidade constitucional, mas terão de resultar de uma sedimentação e consolidação de sectores importantes da ordem jurídica, mediante uma consagração legislativa ou consuetudinária, facultada pela vontade colectiva manifestada pelos órgãos do poder político com competência legislativa ou pelo consenso social. ... Uma outra característica da cláusula de ordem pública internacional é o seu carácter evolutivo. O conteúdo da ordem pública internacional acompanha a evolução da ordem jurídica, designadamente dos seus valores fundamentais que se encontram consagrados constitucionalmente. . . . O tribunal tem de atender ao conteúdo actual da ordem pública internacional, no momento em que aprecia a questão".

Retomando ao caso sub judice, quid juris?

Aplicando ao caso a lei inglesa, e, consequentemente, considerando-se válido o testamento outorgado pelo de cujus, a única herdeira de todos os seus bens, móveis e imóveis, é a sua esposa, nos autos cabeça de casal, nada recebendo as suas 3 filhas, em manifesta violação do direito destas interessadas consagrado na lei portuguesa (art. 2156º e ss.).

O de cujus era de nacionalidade britânica, e não obstante tenha nascido em Portugal e aqui residido quase 69 anos, aqui tendo nascido as 3 filhas, nunca quis adquirir a nacionalidade portuguesa, tendo, no testamento, outorgado em Portugal, não só reafirmado a sua nacionalidade britânica, como declarado que pretendia que fosse aplicada a lei inglesa.

Como se referiu, todas as filhas do de cujus nasceram em Portugal e são filhas de mães portuguesas, tendo, pelo menos uma delas, nacionalidade portuguesa, residindo duas em Portugal.

A legítima não tem consagração constitucional.

Contudo, a jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido, maioritariamente, que a quota indisponível tem como fundamento o interesse dos filhos do autor da herança e é inspirada por razões de interesse e ordem pública, devendo afastar-se a lei estrangeira que tenha permitido ao testador dispor livre e ilimitadamente de todos os seus bens em prejuízo dos filhos, desde que existam fortes elementos de conexão com Portugal, nomeadamente a nacionalidade e residência dos filhos, a residência do de cujus e a situação dos bens, por atingir o sentimento ético e jurídico dominante e lesar gravemente interesses de primeira grandeza da comunidade local - ver, com interesse, os Acs. da RL de 5.05.1992, P. 0057701 (Coutinho Figueiredo), do STJ de 23.10.2008, P. 07B4545 (Pires da Rosa), do STJ de 15.1.2015, P. 317/11.9YRLAB.Ll.Sl (Orlando Afonso), todos em www.dgsi.pt.

Afigura-se-nos que o referido entendimento não é afastado com a vigência do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, que não é aplicável à situação em apreço, atenta a data da morte do de cujus e por não se verificarem os pressupostos previstos no art. 83° do referido Regulamento, devendo, pois, fazer-se funcionar a excepção prevista no nº 1 do art. 22º, aplicando-se, subsidiariamente a lei portuguesa nesta matéria (nº 2 do mencionado preceito), que deverá conduzir à aplicação do disposto no art. 2172º.            

Por quanto se deixa dito, conclui-se proceder, nesta parte a apelação, devendo revogar-se a sentença recorrida e determinar o prosseguimento do processo».

Segundo a recorrente, resulta do disposto nos arts.20º, 31º, nº1 e 60º, nº2, do C.Civil, que é aplicável o direito inglês, sendo que o retorno para a lei portuguesa não é de aceitar, atento o disposto nos arts.18º, nº1 e 19º, nº1, do mesmo Código.

Mais alega que o direito à legítima atribuído pela lei portuguesa aos descendentes do autor da sucessão é de ordem pública interna e não de ordem pública internacional, pelo que, ao concluir em sentido diverso, o acórdão recorrido violou o art.22º, nº1, do C.Civil.

Sendo que, a lei inglesa aplicável contém disposições que protegem determinadas pessoas, nomeadamente os filhos, no caso de terem sido privados de bens e capacidade financeira por óbito do de cujus.

Alega, também, que o acórdão recorrido violou, ainda, o art.62º, nº1, da CRP, ao limitar a transmissão da propriedade privada por sucessão.

Alega, ainda, que, mesmo tendo o acórdão recorrido considerado haver violação da reserva da ordem pública internacional do estado português, deveria ter indagado acerca da existência das normas mais apropriadas da legislação inglesa, estando-lhe vedada a aplicação imediata da lei material portuguesa, atento o disposto no art.22º, nº2, pelo que aquele acórdão violou também este último artigo.

Alega, por último, que, sendo as disposições testamentárias feitas pelo de cujus plenamente válidas e eficazes na ordem jurídica portuguesa, não existe herança a partilhar, e que, assim, deverão os presentes autos ser julgados extintos.

Conclui, deste modo, que o acórdão recorrido dever ser substituído por outro que considere que a aplicação da lei inglesa à sucessão de BB não envolve ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado português e, consequentemente, que ordene a extinção dos autos por inutilidade superveniente da lide.

Por seu turno, as recorridas alegam que do art.20º, nº2, o que resulta é que, no caso dos autos, a lei pessoal do inventariado é a lei do Estado onde o mesmo tinha a sua residência habitual, ou seja, a lei portuguesa, sendo inaceitável a alegação da recorrente no sentido da tese defendida por Magalhães Collaço e Lima Pinheiro.

Mais alegam que, de todo o modo, a aplicação da lei inglesa produz um resultado manifesta e flagrantemente contrário a princípios fundamentais e estruturantes da nossa ordem jurídica, já que afasta integralmente as descendentes do património do inventariado, impedindo-as de tomar parte na sucessão do seu pai.

Concluem, assim, que, seja directamente por via do art.20º, nº2, seja indirectamente em consequência da aplicação da reserva de ordem pública internacional do Estado português, nos termos do art.22º, nº2, deverá considerar-se aplicável ao presente caso a lei portuguesa.

Vejamos.

Nos termos do art.25º, do C.Civil (serão deste Código as demais disposições citadas sem menção de origem), em princípio, as sucessões por morte são reguladas pela lei pessoal dos respectivos sujeitos.

Sendo que, por força do disposto no art.31º, nº1, a lei pessoal é a da nacionalidade do indivíduo.

Por último, de harmonia com o disposto no art.62º, a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste.

Logo, no caso dos autos, tendo o falecido nacionalidade britânica, será, em princípio, a lei britânica a aplicável.

Mas, sendo assim, estamos perante uma situação em que é competente a lei de um Estado em que coexistem diferentes sistemas legislativos locais, designadamente o direito inglês, o direito escocês e o direito da Irlanda do Norte.

Trata-se, pois, de um ordenamento jurídico plurilegislativo, caso em que, nos termos do art.20º, a concretização do elemento de conexão (a nacionalidade) se fará com recurso ao direito interlocal do Estado estrangeiro e, na sua falta, ao respectivo DIP.

Se nem assim puder resolver-se a questão, então considera aquela disposição legal como lei pessoal do interessado a da sua residência habitual.

Resulta, ainda, da mesma disposição legal que, no caso dos autos, o ordenamento jurídico plurilegislativo é de base territorial, já que o âmbito de aplicação de cada um dos sistemas de normas depende do território (cfr. os nºs 1 e 2, do citado art.20º).

O princípio fundamental adoptado pelo legislador no nº1, do art.20º, é o de que compete ao Estado para o qual se remeteu determinar qual o sistema normativo que deve ser aplicado.

Naturalmente, bem se compreende que pertença ao legislador do sistema complexo determinar a esfera de competência de cada um dos sistemas particulares.

Porém, no caso sub judice, todos estão de acordo em que não existem regras unificadas de direito interlocal no Reino Unido, assim como também não existe aí um Direito Internacional Privado unificado.

O que implica que, nos termos da parte final do nº2, do art.20º, haja que considerar como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual.

E é quanto a esta solução que não há unanimidade de pontos de vista, porquanto uns defendem que se trata de um critério subsidiário destinado a determinar apenas um dos sistemas regionais vigentes dentro do Estado nacional, ao passo que outros entendem que se prevê aí o recurso imediato a uma regra de conflitos subsidiária, considerando que tudo se devia passar como se não fosse possível determinar a nacionalidade do interessado.

A 1ª orientação foi seguida, designadamente, por uma lei sueca e pelo anteprojecto de 1951 do Professor Ferrer Correia, onde a ideia basilar era a de que a solução do problema tinha de procurar-se sempre no âmbito do sistema jurídico que fosse concretamente designado pelo factor de conexão nacionalidade (cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Internacional Privado, I, pág.400, e Baptista Machado, in Lições de Direito Internacional Privado, 3ª ed., pág.240, autores que seguiremos de perto na exposição subsequente).

Nesse anteprojecto mandava-se atender, em 1º lugar, à nacionalidade de cada um dos Estados federados (quando se trate de um Estado federal e, além da nacionalidade federal, se reconheça ainda um vínculo de nacionalidade estadual), e, na falta deste vínculo, recorrer-se-ia, sucessiva e subsidiariamente, ao domicílio actual num dos territórios do Estado em causa, ao último domicílio num desses territórios (se o interessado estivesse agora domiciliado noutro país) e, por último (no caso de o interessado nunca ter tido domicílio num dos territórios do Estado em causa), aplicar-se-ia o direito vigente na capital do Estado plurilegislativo.

A 2ª orientação foi a preconizada no anteprojecto Ferrer Correia de 1964, por se ter considerado que a orientação do anteprojecto de 1951, além de complexa e um tanto arbitrária numa das suas soluções (aquela que consistia em aplicar o direito vigente na capital do país, quando o interessado nunca teve domicílio no seu Estado nacional) talvez não fosse inteiramente justificável.

E foi por esta 2ª orientação que o nosso legislador optou, seguindo a linha do anteprojecto de 1964, considerado bastante mais simples e prática.

Assim, o legislador do Código Civil considerou o mesmo ponto de partida, isto é, em princípio, o problema pertence ao sistema jurídico que se pretende aplicar e deve resolver-se de acordo com os critérios que ele mesmo forneça.

Porém, na hipótese de falharem sucessivamente os dois expedientes descritos no nº1 e na 1ª parte do nº2 do art.20º - direito interlocal e DIP do Estado estrangeiro – desiste-se de resolver a questão pela lei nacional do interessado, trocando-se a perspectiva desse sistema jurídico pela da lei da residência habitual.

Ou seja, face à impotência da lex patriae em resolver o problema que ela própria gerou, tudo se passa como se o interessado não tivesse nacionalidade, ou como se a nacionalidade dele fosse de averiguação impossível.

Deste modo, a regra da 2ª parte do nº2 do art.20º tanto se aplica no caso da pessoa que reside habitualmente no Estado de que é nacional, como no daquela que sempre residiu, ou pelo menos reside agora, em país estrangeiro.

Foi esta, pois, a opção do legislador português, embora possa, eventualmente ser susceptível de crítica, designadamente tendo em conta que a orientação das legislações mais recentes não é a mesma, mas sim a correspondente ao critério da conexão mais estreita.

Segundo Baptista Machado, ob.cit., pág.241, o vínculo de subnacionalidade que liga a pessoa a um dos Estados federados tem em geral um reduzido significado jurídico e pesa bem pouco no ânimo do interessado.

E acrescenta, ob. e loc. cits., «Além de que, em regra, a nacionalidade particular de um dos Estados federados estará ligada ao domicílio nesse Estado; e, em casos em que isso se não verifique, essa nacionalidade particular dilui-se quase por completo em face da nacionalidade federal, sobretudo se o interessado tem o seu domicílio em país estrangeiro».

Termina, dizendo que «Por outro lado, havia que considerar a importância fundamental da lex domicilii em matéria de estatuto pessoal. A aplicação da lex patriae não é nenhum imperativo categórico; é antes o resultado duma opção necessária entre duas conexões, ambas fundamentalmente válidas e legítimas em matéria de estatuto pessoal. Por último, há-de notar-se que o problema apresenta uma certa semelhança com aquele que resolve o nº2 do art.23º: perante a impossibilidade de determinar com segurança o conteúdo das normas materiais da lex patriae aplicáveis ao caso, haverá que recorrer a uma regra de conflitos subsidiária».

É certo que, dada a conexão existente entre as relações de direito privado e várias ordens jurídicas, a solução mais natural é escolher dessas ordens jurídicas a que lhes seja mais próxima, isto é, a que tenha com elas o contacto mais forte e estreito.

Aliás, é esse, justamente, o problema a que o DIP se propõe dar resposta – determinar se é essa a solução a seguir ou qual seja a solução a seguir.

Assim, as regras de conflito do DIP propõem-se resolver um problema de concurso entre preceitos jurídico-materiais procedentes de diversos sistemas de direito.

Para o efeito, a técnica usada consiste em a regra de conflitos deferir determinada questão ao ordenamento jurídico que for determinado por certo elemento da situação de facto, a que se chama, precisamente, elemento ou factor de conexão.

É, pois, através da concretização desse factor de conexão que se  tornam conhecidas a lei e a norma material chamadas a resolver a questão de direito em causa.

Na determinação do elemento de conexão, no que respeita aos interesses individuais, tem-se em consideração que os indivíduos tiram vantagens de serem submetidos, em tudo o que concerne ao seu estatuto pessoal, a uma lei a que se sintam ligados de maneira estreita e permanente.

Essa lei, obviamente, só poderá ser a do Estado nacional ou a do Estado do domicílio, sendo a tendência legislativa e doutrinária no sentido de substituir ao domicílio a residência habitual do indivíduo.

Na verdade, tanto a competência da lei da residência habitual como da lei nacional na definição do estatuto pessoal representam soluções justas e praticamente equivalentes.

Aliás, no próprio Parecer junto pela recorrente, da autoria do Professor Lima Pinheiro, faz-se referência a várias situações em que releva a residência habitual em matéria de estatuto pessoal (arts.17º, nº2, 18º, nº2, 31º, nº2, 32º, nº1, 52º, nº2, 53º, nº2, 54º, 56º, nº2, 57º, nº1 e 60º, nº3).

A 1ª orientação atrás referida é seguida, designadamente, por Magalhães Collaço e Lima Pinheiro, defendendo estes ilustres Professores que, no caso de o interessado não ter residência habitual dentro do Estado da nacionalidade, há uma lacuna, resultante da interpretação restritiva que fazem do art.20º, nº2, in fine, já que, segundo eles, a função deste preceito é indicar o sistema aplicável de entre os que integram o ordenamento complexo.

Lacuna essa que deve ser integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita com um dos sistemas vigentes dentro da ordem jurídica da nacionalidade, que, no caso dos autos, seria o sistema inglês.

Foi este, também, o entendimento seguido no acórdão recorrido, com base essencialmente na argumentação expendida pelo Professor Lima Pinheiro, aí citado.

No entanto, salvo o devido respeito, tal argumentação não se nos afigura decisiva, ou, pelo menos, suficientemente decisiva para o efeito de impedir a interpretação da lei em causa nos termos preconizados pelo art.9º.

Na verdade, o nº1 deste último artigo, manda reconstituir o pensamento legislativo e atender às circunstâncias em que a lei foi elaborada.

Ora, o que resulta das circunstâncias históricas em que a lei foi elaborada é que o legislador do Código Civil optou pela orientação preconizada no anteprojecto Ferrer Correia de 1964, em detrimento da do anteprojecto de 1951, pelos motivos atrás referidos.

Sendo que tal orientação é no sentido de, no caso de falharem os dois expedientes descritos no nº1 e na 1ª parte do nº2 do art.20º, se trocar a perspectiva do sistema da lei nacional do interessado pela da lei da residência habitual, ainda que esta não coincida com o Estado de que é nacional.

Note-se que a expressão utilizada na 2ª parte, do nº2, do art.20º, é a seguinte: «considera-se como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual».

A nosso ver, o texto da lei é fortemente impressivo no sentido de se ter pretendido, naquelas circunstâncias, substituir a lei pessoal da nacionalidade pela da residência habitual.

Não se pode, pois, dizer que o pensamento legislativo não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (cfr. o nº2, do art.9º). Antes pelo contrário, consideramos que a vontade real do legislador está clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal.

A outra tese, interpretando restritivamente a 2ª parte, do nº2, do art.20º, implica a descoberta de uma lacuna, o que é pouco compaginável com a regra fixada no nº3, do art.9º, nos termos da qual: «Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».

Refira-se, por último, que, no já aludido Parecer junto aos autos, da autoria do Professor Lima Pinheiro, diz-se, a dada altura (pág.7, nota 7) que o entendimento de Isabel Magalhães Collaço foi seguido no Acórdão da Relação de Évora de 28/10/93 e no Acórdão do STJ, de 27/9/94.

Todavia, consultados os referidos Acórdãos, não se vê que assim seja, já que os mesmos não tomaram posição quanto a essa questão, limitando-se a aplicar a lei inglesa por via do disposto no art.16º e a considerar que a aplicação daquela lei não envolve ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português.

Entendemos, pois, que, no caso dos autos, há que considerar como lei pessoal do falecido BB a lei da sua residência habitual ao tempo do seu falecimento, ocorrido em 9/5/2010 (arts.62º e 20º, nº2, 2ª parte).

Ora, resulta da matéria de facto dada como provada que o falecido tinha a sua residência habitual em Portugal, mais concretamente na ..., ... (cfr. o assento de óbito de fls.8, a habilitação de fls.11 e o testamento de fls.94, bem como o ponto 5º da matéria de facto considerada assente).

Note-se que os referidos documentos não foram impugnados e que a aludida habilitação foi promovida pela ora recorrente, que declarou como última residência do seu marido, precisamente, a Rua ..., ....

Refira-se que o facto de constar do registo de casamento da ora recorrente com o autor da sucessão que, à data do seu casamento, a residência dele era em ..., não significa, só por si, que o mesmo tivesse aí a sua residência habitual, atenta a menção expressa à residência habitual constante dos documentos atrás referidos.

Acresce que o que releva é a residência habitual ao tempo do falecimento do de cujus, porquanto o art.62º considera competente para regular a sucessão por morte a lei pessoal daquele a esse tempo.

Sendo que o autor da sucessão contraiu casamento em Inglaterra, com a ora recorrente, em 17/8/2009 e faleceu no ... em 9/5/2010.

Haverá, assim, que concluir que a lei aplicável à sucessão por morte de BB é a lei portuguesa, pelo que o processo de inventário instaurado pela sua filha DD deve prosseguir, tendo em conta que, nos termos daquela lei, o testador não pode dispor da porção de bens que constituem a legítima, sob pena de redução dessa disposição (arts.2156º, 2168º, 2169º e 2172º).

Na verdade, a lei portuguesa atribui o direito à legítima através de normas imperativas, considerando inoficiosas as liberalidades que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários e prevendo a sua redução, como resulta dos citados preceitos legais.

Já a lei do Reino Unido permite que o testador deixe todos os seus bens a quem entender, não tendo o cônjuge, nem os filhos, direito a uma quota fixa da herança.

Refira-se, ainda, que, no caso, existem fortes elementos de conexão com Portugal, a nosso ver mais importantes do que os que existem em relação a Inglaterra.

Assim, o de cujus nasceu em Portugal no dia .../1941, mais concretamente no sítio de ..., concelho do ....

Casou no dia 17/6/1970, com 29 anos, com a portuguesa II, em Portugal (Lisboa), de quem teve uma filha, DD , que nasceu no ... no dia .../1972 e reside em Lisboa.

Após o divórcio, casou no dia .../1976, com 34 anos, com outra portuguesa, JJ, de quem teve duas filhas, EE e FF , que nasceram no ..., respectivamente, no dia .../1976 e no dia .../1981, tendo a FF casado em Portugal com um cidadão português e residindo em Lisboa, enquanto que a EE casou em Portugal com um cidadão inglês e reside em Londres, tendo nacionalidade portuguesa.

Após novo divórcio, casou no dia 17/8/2009, com 68 anos, com CC, natural da ..., então com 30 anos, como consta da cópia autenticada do registo de casamento de fls.135 dos autos.

No dia 1/3/2010, outorgou testamento cerrado, redigido e assinado na cidade do ..., legando à sua esposa CC todos os seus bens móveis, bem como todos os seus bens imóveis situados na Região Autónoma ... e no Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, que à data da sua morte lhe pertencessem, no todo ou em parte.

No dia 9/5/2010 faleceu na cidade do ..., onde residia habitualmente, no estado de casado com a referida CC

Os elementos de conexão com Inglaterra traduzem-se na circunstância de o de cujus ter mantido a nacionalidade britânica, de ter contraído os seus 2º e 3º casamentos em Inglaterra, de ter indicado uma sua morada naquele país aquando do seu 3º casamento, de esta sua 3ª mulher também ter indicado, nessa altura, uma morada em Inglaterra, e de uma das três filhas residir em Londres.

O facto de o testador ter referido no testamento que «sou de nacionalidade britânica, pelo que posso dispor livremente de todos os meus bens, de harmonia com a lei inglesa, que pretendo que seja aplicada, com afastamento de qualquer outra e em conformidade com o disposto no Código Civil português», não é relevante enquanto critério de escolha da lei aplicável.

Embora seja provável que o disponente tenha acreditado que podia dispor dos seus bens para depois da morte nos termos latíssimos consentidos pelo respectivo direito nacional, o que é certo é que não estava legalmente consagrada a possibilidade de escolha da lei aplicável à sucessão.

Sendo que, o princípio da autonomia da vontade em direito internacional privado só passou a ser relevante em Portugal, em matéria sucessória, por força do Regulamento (UE) nº650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4/7/2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um certificado sucessório Europeu.

Porém, tal Regulamento não é aplicável ao caso em apreço, já que o mesmo apenas se aplica às sucessões das pessoas falecidas em 17/8/2015 ou após essa data, e, no caso dos autos, o autor da sucessão faleceu no dia 9/5/2010 (Cfr. o seu art.83º).

Trata-se, pois, de uma situação em que o valor da harmonia jurídica vem a prevalecer sobre o do respeito pela vontade do testador.

Deverá, assim, manter-se a decisão recorrida, embora com fundamentação diferente da expendida naquela decisão.

Atenta a solução dada a esta questão, fica prejudicada a decisão da questão relacionada com a ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português.

Na verdade, esta última questão só teria razão de ser se fossem aplicáveis os preceitos de lei estrangeira e essa aplicação envolvesse ofensa daqueles princípios (cfr. o art.22º, nº1).

Mas como, no caso, se concluiu que é aplicável a lei portuguesa, tal ofensa não tem cabimento.

No entanto, sempre se dirá que, ainda que se considerasse aplicável ao caso a lei inglesa, que desconhece o instituto da sucessão legitimária e que, por isso, considera perfeitamente eficaz o testamento outorgado pelo de cujus, que deixou todos os seus bens à sua última esposa, ora recorrente, entenderíamos, tal como no acórdão recorrido, que a aplicação daquela lei envolve ofensa dos aludidos princípios, pelos motivos constantes daquele acórdão, pelo que haveria, igualmente, que concluir pela aplicação da lei portuguesa (art.22º, nº2).

Assim, a jurisprudência mais recente do STJ tem entendido que o princípio da lei sucessória portuguesa que pretende salvaguardar para os filhos ao menos uma parte da herança dos seus pais é um princípio da ordem pública internacional do Estado português (cfr. os Acórdãos do STJ, de 23/10/08 e de 15/1/15, in www.dgsi.pt). Em sentido contrário, pode ver-se o Acórdão do STJ, de 27/9/94, in C.J., Ano II, tomo III, 71.

A excepção de ordem pública internacional contém a seguinte ressalva: a lei definida por competente não será aplicada na medida em que essa aplicação venha a lesar algum princípio ou valor básico do ordenamento nacional, tido por inderrogável, ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local.

Trata-se, pois, da concepção aposteriorística da ordem pública, já que se visa evitar a situação que se produziria com a aplicação da norma estrangeira aos factos a regular, atenta a necessidade de preservar os princípios ou valores de maior significado do ordenamento jurídico local.

É o que resulta do disposto no art.22º, nº1, onde transparece a ideia de que se trata aí de ajuizar da compatibilidade com as concepções ético-jurídicas fundamentais da lex fori da situação que adviria da aplicação da lei estrangeira aos factos da causa.

A gravidade da divergência entre a norma estrangeira e o direito nacional reputada necessária para justificar a intervenção da ordem pública, varia na razão inversa da intensidade do nexo apurado entre a relação em causa e o ordenamento jurídico do foro.

Isto é, a intensidade da ordem pública, determinada pela divergência entre as concepções da justiça material fori e as da lei estrangeira, seria tanto maior quanto mais forte fosse a ligação do caso com o Estado do foro.

Ora, já vimos que, no caso dos autos, existem fortes elementos de conexão com Portugal, a nosso ver mais importantes do que os existentes em relação a Inglaterra.

Por outro lado, segundo cremos, não é a circunstância de a lei inglesa conter disposições, no Inheritance (Provision for Family and Dependants) Act 1975, que protegem, nomeadamente, os filhos, no caso de terem sido privados de bens e capacidade financeira por óbito do de cujus, que altera os dados da questão, porquanto, além de terem que alegar uma situação de carência económica semelhante à que se verifica quando se pretende exercer o direito a alimentos, o que é certo é que aquela lei concebe um caminho sucessório que elimina por completo os filhos da sucessão dos seus pais.

Caminho esse nunca trilhado pela lei portuguesa, segundo a qual haverá sempre ao menos uma porção da herança dos pais que se destina aos filhos, o qual é inspirado por razões de interesse e ordem pública.

É certo que quando a aplicação de preceitos da lei estrangeira envolver ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português, serão aplicáveis, nesse caso, as normas mais apropriadas da legislação estrangeira competente e só subsidiariamente é que serão aplicáveis as regras do direito interno português (art.22º, nº2).

Na verdade, a legislação estrangeira não foi afastada in toto, mas tão só num determinado preceito.

Todavia, não se vê que, para o caso dos autos, na legislação inglesa se encontrem «normas apropriadas», isto é, que a partir dessa legislação se consiga descobrir uma solução que seja adequada ao caso, que não se afaste muito da que a ordem pública forçou a recusar.

Aliás, a recorrente também não indica essas normas, pelo que, sendo a aplicação da lei estrangeira de todo em todo inviável, sempre haveria que recorrer às regras do direito interno português, ao abrigo do disposto no nº2, do art.22º.

Dir-se-á, por último, que também não se vislumbra qualquer violação do art.62º, nº1, da CRP, onde um dos aspectos explicitamente garantidos é a liberdade de transmissão, inter vivos ou mortis causa.

Note-se que, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol.I, 4ª ed., pág.804, aquele direito deve ser entendido no sentido restrito de direito de não ser impedido de transmitir a propriedade, mas não no sentido genérico de liberdade de transmissão, a qual pode ser mais ou menos profundamente limitada por via legal, designadamente quanto à transmissão mortis causa, onde, precisamente, são admitidos limites à liberdade de disposição testamentária no caso de sucessão legitimária.

Nada impede, pois, a conclusão de que a lei aplicável à sucessão por morte de BB é a lei portuguesa, pelo que deverá manter-se a decisão recorrida, embora, como já acentuámos, com fundamentação diferente da aí expendida.

Improcedem, deste modo, as conclusões da alegação da recorrente, não merecendo, assim, censura aquela decisão.

3 – Decisão.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso de revista, confirmando-se a decisão proferida no acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.   

 Roque Nogueira (Relator)

Alexandre Reis

Lima Gonçalves