Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2737/19.1T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: ABUSO DO DIREITO
DIREITO DE AÇÃO
INTERESSE EM AGIR
INDEMNIZAÇÃO
PREJUÍZO PATRIMONIAL
TERCEIRO
ILICITUDE
PROCESSO ADMINISTRATIVO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
DIREITO ADJETIVO
BOA FÉ
QUESTÃO NOVA
CONDENAÇÃO EM QUANTIA A LIQUIDAR
PRESSUPOSTOS
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A proibição do abuso de direito, cominada no art. 334º do CCivil, consubstancia um princípio geral de direito, também aplicável no domínio do processo civil;

II - À luz deste princípio, é ilícito o exercício do direito de acção quando se demonstra que: i) o autor não tem interesse em agir, por não ser titular de um direito carecido de tutela judiciária; ii) da mera propositura da acção resultam prejuízos para terceiros;

 III - O pedido de indemnização pelos danos causados por abuso de direito de acção pode ser formulado em acção própria, autónoma, da acção abusivamente interposta.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Heliportugal Trabalhos e Transporte Aéreo, Representações, Importação e Exportação, S.A., com sede no Aeródromo de Cascais, Tires, Cascais, instaurou contra HTA Helicópteros, Operações, Atividades e Serviços Aéreos, Ldª, com sede na Casa da Lagoa, Estrada de Vale de Lobo, Almancil, ação declarativa com processo comum pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €220.810,20, acrescida de juros de mora, a título de  indemnização, pelo prejuízo decorrente do não recebimento do preço da disponibilização de três aeronaves e na quantia a liquidar em execução de sentença, referente a horas de voo que deixou de realizar. 


Alegou, em resumo:

No termo de um concurso público em que a proposta da R. ficou classificada em terceiro lugar, a proposta da A. foi graduada em primeiro lugar, obteve a adjudicação do contrato de aquisição de “serviços de operação, gestão de aeronavegabilidade permanente e de manutenção de aeronaves ... do Estado e do respetivo material de apoio operacional complementar” com a finalidade de cumprir as missões relacionadas com o combate a incêndios florestais e transporte de doentes e equipas médicas.

A A. assinou o contrato com o Estado em 16/4/2019 e, nesta data a Ré intentou nos tribunais administrativos e fiscais uma ação com vista à anulação do ato de adjudicação o que determinou, por imperativos legais, a suspensão automática do contrato assinado, a qual durou até 7/6/2019.

Ao intentar a ação de anulação, a Ré agiu com abuso de direito, uma vez que visando a ação exclusivamente o ato de adjudicação do contrato, num concurso em que a Ré ocupou o terceiro lugar, a procedência da ação não lhe traria qualquer vantagem imediata, apenas criando prejuízos à A.


O atraso no início do período operacional - entre 27/6/2019 e 18/8/2019 – ocasionou que a A não recebesse do Estado a quantia de € 220.810,20 a título de custo pela disponibilidade diária de três aeronaves e um prejuízo decorrente das horas de voo que deixou de realizar à razão de € 832,00 por hora.


Contestou a Ré alegando, em resumo, que ao intentar a ação de anulação do ato de adjudicação do contrato não praticou qualquer ato ilícito, agiu de boa-fé e no exercício constitucional do acesso ao direito e à justiça e que, de qualquer forma, as aeronaves só ficaram disponíveis para o combate a incêndios em 17/8/2019, pelo que a A. não sofreu nenhum dos prejuízos que alega.

Ao reclamar prejuízos pela operacionalidade das aeronaves entre 27/6/2019 e 18/8/2019, a A. formula pretensão cuja falta de fundamento não ignora, uma vez que não desconhece que as aeronaves se encontraram impossibilitadas de operar, por falta de certificação da ANAC, até 17/8/2019, incorrendo, assim, em litigância de má fé.


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 Foi proferida sentença que julgou a acção procedente, decidindo:

A) Condenar a no pagamento à autora da quantia que, em função da equidade, se fixa em 400.000,00 (quatrocentos mil euros), sobre a qual vencerão juros à taxa legal, a contar da presente decisão até integral e efetivo pagamento;

B) Absolver a Autora do pedido de condenação como litigante de má-fé”.

 Inconformada, a Ré apelou.

 A Relação ..., por acórdão de 11.02.2021, concedeu parcial procedência ao recurso, tendo condenado a Ré a pagar à Autora a quantia de €161.361,30, “acrescida de juros de mora a contar da presente dada e até integral pagamento, absolvendo-a da parte restante do pedido.”

        

Do acórdão ambas as partes interpuseram recursos de revista, fazendo-a a Ré a título de revista excepcional.

        

A formação admitiu a revista excepcional, considerando verificado o pressuposto do art. 672º, nº 1, a) do CPC, identificando como questão de direito fundamental “saber se ou em que medida a indemnização civil emergente de abuso de direito de acção pode ser pedida em acção autónoma ou se apenas o poderá ser na própria acção abusivamente intentada.”


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 A Ré concluiu como segue as suas alegações:

1ª. O direito de ação é um direito constitucional de garantia do acesso aos tribunais subjetivo e autónomo, distinto do direito material que se pretende fazer valer em juízo e que não está dependente da demonstração do direito substancial.

– O direito de ação só em casos excecionais pode configurar um ilícito gerador de responsabilidade civil, quando o seu titular exceda manifestamente os limites da boa fé, art. 334 do CC.

– A má fé substantiva in agendo, que pressupõe uma atuação dolosa ou com negligência grave, não foi alegada nas instâncias pela recorrida Heliportugal, nem faz parte da matéria de facto assente nos autos, pelo que não podia o tribunal dar como provada a má fé, como sendo o fundamento da condenação da recorrente em responsabilidade civil por abuso do direito de ação.

  – Da decisão proferida no saneador/sentença, ao dar como verificada a exceção dilatória da falta de interesse direito da recorrente em agir, não decorre que a ação administrativa tenha sido instaurada abusivamente, pois não ficou provado que tal ação tenha sido instaurada abusivamente ou de má fé, nem tal ficou provado ou decidido nessa mesma ação.

  – Aquela ação Administrativa tinha por objectivo excluir a recorrida Heliportugal do concurso, por se encontrar legalmente impedida de participar em concursos públicos e ter prestado falsas declarações no procedimento concursal.

– Os impedimentosdarecorridaHeliportugal que serviram de fundamento para a instauração da ação administrativa, foram de novo invocados pela recorrente num concurso da Região Autónoma da Madeira e todos eles ficaram provados pela decisão nº 55/FP/2020 proferida em 13/07/2020 pelo Tribunal de Contas, na recusa do visto prévio ao contrato de adjudicação celebrado com a recorrida Heliportugal.

- Fica assim demonstrado que a ação administrativa estava devidamente fundamentada e que a recorrente não agiu abusivamente do direito de ação.

  – A recorrente, apesar de graduada no concurso em terceiro lugar, a ser excluída a recorrida Heliportugal, tinha uma séria probabilidade de lhe vir ser adjudicado o concurso, caso a segunda classificada viesse a desistir ou não apresentasse os documentos de habilitação e a prestação da caução.

9ª. Não ficou provado que recorrentetivessedesvirtuadoointeresseeo objetivodaação administrativa, com intenção de prejudicar a recorrida Heliportugal ou mesmo terceiros.

10ª - Não há fundamento para a condenação da recorrente por abuso do direito da ação administrativa, instaurada para defesa os seus direitos no concurso e que tão só visava a exclusão da Heliportugal pelos impedimentos legais que a impediam de concorrer, como posteriormente veio a ser comprovado pela decisão do T. de Contas de 13/07/2020.

11ª – A má fé e o abuso do direito na modalidade do art. 334º do CC, são apreciados e decididos na ação administrativa 279/19.... onde ocorreram e não em ação autónoma, como aconteceu nos presentes autos.

12ª– Não tendo ficado provados os factos constitutivos damá féou do abuso de direito, só podehaverlugar amulta e indemnização prevista nos arts.542º e 544º do CPC na ação onde ocorreram, acórdão do STJ citado no artigo 15º das alegações.

13ª – O acórdão recorrido ao condenar a recorrente com fundamento no abuso do direito de ação nos termos do art. 334º do CC., não especificou os fundamentos de facto que justificam a decisão, ou seja, os factos demonstrativos e constitutivos da conduta de má fé, que dão causa ao abuso do direito de ação.

14ª – O Acórdão recorrido, ao não ter especificado os fundamentos de facto que integram a conduta de má fé da recorrente, que justificam a decisão proferida, padece de nulidade nos termos do nº 1 b) do art. 615º do CPC.

15ª- O acórdão recorrido não se pronunciou sobre as conclusões das alegações VIII a XII e que são de grande relevância para a decisão de mérito da causa, que consistem em saber se a má fé e o abuso do direito de acção, são apreciados e decididos na ação administrativa onde ocorrem, ou em processo autónomo, como aconteceu na presente ação.

16ª – O acórdão ao não se pronunciar sobre as questões que constam das referidas conclusões e sobre as quais se deveria pronunciar padece de nulidade, art. 615º nº 1 d) do CPC.

17ª – A má-fé, é o pressuposto do abuso de direito na modalidade prevista no art. 334º do CC., que serviu de fundamento para a condenação da recorrente por responsabilidade civil por abuso do direito de ação.

18ª – Não existe abuso de direito sem má fé e sem a condenação da parte, e a má fé e o abuso de direito só podem ser apreciados e decididos no processo onde ocorreram.

19ª - Pela sentença proferida em 18/09/2019 na ação administrativa 279/19…, já transitada em julgado, a recorrente foi absolvida como litigante de má fé.

20ª – O acórdão recorrido ao se pronunciar e decidir nesta ação, ex novo, sobre a má fé e o abuso de direito, veio contradizer a decisão proferida na ação administrativa.

21ª – A decisão proferida na ação administrativa ao ilibar a recorrente como litigante de má-fé, tem força de caso julgado na ação administrativa e neste processo, art. 621º CPC.

22ª – O caso julgado, sendo uma exceção dilatória prevista no art. 577º i) do CPC, do conhecimento oficioso do tribunal, obsta ao conhecimento do mérito da causa, art. 576º nº 2 do CPC.

23ª– Não severifica nexo de causalidade entre a instauração pela Ré da ação para anulação de acto administrativa e o eventual atraso no início do período de aprontamento das aeronaves no contrato de prestação de serviços, celebrado entre a Autora e a Forca Aérea.

24ª – A execução do contrato de prestação de serviços em causa só poderia iniciar-se após a emissão do visto pelo TC, independentemente da instauração ou não da acção administrativa que foi instaurada pela Ré

 25ª – Só existiria nexo de causalidade entre a instauração da referida acção administrativa e o início do período de aprontamento das aeronaves, se este não pudesse iniciar-se por causa da referida acção e após a emissão do visto pelo TC.

 26ª – Do facto provado (26) de ser praxe aeronáutica iniciar a execução das atividades inerentes ao período de aprontamento das aeronaves antes do início da vigência dos contratos de prestação de serviços, não é possível extrapolar que tal ocorreria em todos ou sequer num determinado e concreto contrato.

27ª – O contrato de prestação de serviços celebrado entre a Autora e a Força Aérea afasta expressamente a referida praxe aeronáutica, ao impor expressamente que tal período de aprontamento se inclui no prazo de execução, e a execução só pode ter início após a emissão do visto pelo TC (factos provados 14, 16, 17 e 27).

28ª – A praxe aeronáutica referida apenas existe nos contratos de prestação de serviços em que as aeronaves pertencem ou estão já antes do início da execução do contrato na disponibilidade dos prestadores de serviços.

29ª – No contrato de prestação de serviços em causa as aeronaves pertencem ao Estado, pelo que o prestador de serviços só tem a disponibilidade das aeronaves para iniciar o seu aprontamento após a sua consignação, que contratualmente só tem lugar após o início da execução do contrato, que também contratualmente só tem lugar após a emissão do visto do TC.

30ª – O pedido de indemnização formulado pela Autora decorre do alegado atraso no início da execução de contrato de prestação de serviços causado pela instauração da referida ação administrativa pela Ré.

31ª – A alegação e prova da data da emissão do visto pelo TC, por constituir um momento a partir do qual a acção administrativa instaurada pela Ré poderia causar atrasos ao início da execução do contrato (período do aprontamento), competia à Autora por ser facto constitutivo do seu invocado direito indemnizatório.

 32ª – O acórdão recorrido violou os artigos 20º nº 1 e 5 da CRP, 334º e 483º do CC, 542º nº 2 a), 607º nº 3 e 4, 608º, 615º nº 1 b) e d), 577º i) e 581º do CPC.

33ª - O acórdão recorrido deveria ter interpretado e aplicado os normativos legais no sentido que a recorrente exerceu legalmente o direito de ação, não agiu de má fé e que a má fé e o abuso do direito de ação são apreciados e decididos na ação onde ocorrem, e não em processo autónomo.

 34ª - A interpretação e aplicação dos artigos 334º do CC e 542º nº 2 a) do CPC, no sentido que lhe foi dado pelo acórdão recorrido, violou a garantia constitucional de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efectiva, prevista no art. 20º nº 1 e 5 da CRP.


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 Na revista da Autora são apresentadas as seguintes conclusões:

1ª. A remuneração do contrato, celebrado entre a Recorrente e o Estado Português, envolve uma componente fixa que se traduz no preço de disponibilidade operacional de cada aeronave e numa componente variável, que se prende com o número de horas efetivamente voadas pelas aeronaves.

2ª. A Acórdão a que se recorre reconhece o direito da Recorrente ao ressarcimento do custo de disponibilidade operacional de cada aeronave durante 38 dias, ou seja, durante o período em que o contrato esteve suspenso, por força da ação administrativa proposta, sem interesse agir, pela Recorrida.

3ª. Sucede, porém, o Acórdão não reconhece o direito da Recorrente ao ressarcimento pelas horas de voo que, com toda a probabilidade, seriam necessárias durante esses 38 dias.

4ª. O Supremo Tribunal de Justiça já reconheceu, diversas vezes, a figura do dano por perda chance, tendo ainda traçado os requisitos para sua aplicação: «se se pode afirmar, no caso concreto, que o lesado tinha uma chance, uma probabilidade séria, real, e credível de, não fora a actuação que a frustrou, obter uma vantagem que probabilisticamente era razoável supor que almejasse (…).»;

5ª. Além das horas de voo que se mostrassem necessárias, consoante o número de ignições verificadas no período durante o qual o contrato esteve suspenso (38 dias), a Recorrente seria sempre responsável pela realização de voos de treino das tripulações sendo, por esse motivo, altamente provável (porventura certo), que as aeronaves voassem durante este período.

6ª. O Acórdão proferido pelo douto Tribunal da Relação ... ignora que, naquele hiato temporal, a ora Recorrente poderia ter voado uma hora que fosse, com algumas das três aeronaves alocadas ao cumprimento do contrato.

7ª. A posição propugnada pelo Tribunal da Relação ... parte do pressuposto de que a três aeronaves podem ainda atingir as 3.750 horas previstas na “bolsa” do contrato até ao final da sua execução, desresponsabilizando totalmente a Recorrida pela sua ação e que teve como consequência a impossibilidade de a Recorrente voar durante 38 dias.

. Tal pressuposto não corresponde à realidade, uma vez que o contrato prevê, na sua cláusula 16.ª, a possibilidade de realização de mais horas de voo para além das 3.750 horas.

9ª. Ainda que assim não fosse, a verdade é que a posição vertida no Acórdão em crise desresponsabiliza Recorrida de um dano que efetivamente causou com a sua conduta ilícita, encarregando a sorte e o acaso de ressarcir, ou não, a Recorrente.

10ª. Uma posição desta natureza é em si mesma antagónica, pois a mesma conduta da Recorrida não pode, em simultâneo, ser causa adequada para gerar a obrigação de indemnizar no montante correspondente à componente fixa da remuneração contratual e não ser idónea para gerar a obrigação de indemnizar no montante correspondente à componente variável do contrato, que sempre estará dependente da componente fixa uma vez que as aeronaves não podem voar se não estiverem elas próprias disponíveis do ponto de vista operacional

11ª. O doutro Tribunal da Relação ... confunde o momento da produção do dano da perda de chance com a chance de a Recorrente poder eventualmente compensar (por si mesma e na dependência do acaso) as horas de voo que poderia ter voado durante os 38 dias durante os quais o contrato esteve suspenso.

12ª.  Cabe aos Tribunais, ao abrigo do instituto da responsabilidade civil, tentar reconstruir a situação de facto que existiria se não tivesse ocorrido o ato lesivo, não devendo tal reconstituição estar dependente do futuro e de fatores imprevisíveis.

13ª. A averiguação das horas que a Recorrente não é possível face os elementos dos presentes autos.

14ª. Contudo, a verdade é que existem registos do número de ignições verificadas durante o período de suspensão do contrato, bem como informações relativas aos centros de meios aéreos onde as aeronaves estariam estacionadas, pelo que é facilmente estimável o número de horas voadas por cada uma das aeronaves durante o período de suspensão do contrato.

15ª. Por este motivo, a Recorrente não pede, nem nunca pediu, qualquer montante a título de indemnização pelos lucros cessantes relativos à componente remuneratória variável que possa ter sofrido em virtude da suspensão do contrato

16ª. A Recorrente pede o mero reconhecimento da perda do seu direito a faturar horas de voo e, consequentemente, a averiguação, em sede de liquidação de sentença, do número de horas que poderia ter voado durante os 38 dias durante os quais o contrato esteve suspenso.

17ª. Como se espera, caso se julgue procedente o pedido formulado pela Autora, de reconhecimento da perda de chance, deverá proferir-se decisão que condene a Ré ao pagamento à Autora, aqui Recorrente, da quantia, que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença, pelas horas que não voou, e poderia ter voado, durante o período de suspensão do contrato.

Contra alegou a ré HTA – Helicópteros Lda, pugnando pela improcedência do recurso da Autora.


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Do teor das conclusões com que as Recorrentes rematam as respectivas alegações, em função das quais se delimita o objecto do recurso, as questões a apreciar são as seguintes:

Da revista da Ré:

- Se a indemnização civil emergente de abuso de direito de acção pode ser pedida em acção autónoma ou se apenas o poderá ser na própria acção abusivamente intentada;

- Se a Ré ao intentar a acção a acção administrativa supra referida agiu com abuso de direito de acção;

- Se se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar.

 Da revista da Autora:

- Se a Autora tem direito a indemnização pelas horas de voo não realizadas durante a suspensão do contrato, a apurar em liquidação de sentença.


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    Fundamentação.

Na Relação foi julgada provada a seguinte matéria de facto:

1. A autora é uma sociedade comercial cujo objeto consiste na exploração e comercialização de trabalhos aéreos e na indústria do transporte aéreo não regular em Portugal ou no estrangeiro; o desenvolvimento de comércio de representações, importação e exportação de meios aéreos, marítimos e terrestres, suas peças e acessórios, desmontados e completos, bem como a prestação dos respetivos serviços de manutenção; escola de cursos de piloto de aeronaves, escola para cursos de pilotos em qualificação tipo, aulas de manutenção (de licenças), instrução teórica e prática de diversos tipos de aeronaves, e quaisquer outras atividades aeronáuticas permitidas por lei.

2. A ré é uma sociedade comercial que desenvolve a sua atividade no ramo da aviação.

3. No âmbito do contrato de prestação de serviços de operação e manutenção das aeronaves do Estado anteriormente em vigor a autora assumiu em 20 de novembro de 2015, perante a Autoridade Nacional de Proteção Civil (doravante, ANPC), o compromisso de, até 1 de maio de 2016 proceder à transferência da propriedade da aeronave CS-HHO para a ANPC;

4. Na data da celebração do referido compromisso, a aeronave já não pertencia à Heliportugal e estava registada desde 16/12/2012 a favor da Empresa Nova SN SAS com sede em ...;

5. Em 16 de janeiro de 2019 a autora transferiu para o Estado a aeronave CS-HHO, sendo que só após tal transferência poderia ser encetado o procedimento pré-contratual relativo ao novo concurso de operação, manutenção e gestão da aeronavegabilidade das aeronaves do

Estado.

6. Por despacho de 23 de janeiro de 2019, exarado na Informação n.º ...9, com a mesma data, do Gabinete Coordenador de Missão no Âmbito dos Incêndios Rurais, o General

Chefe do Estado-Maior da Força Aérea aprovou as peças do procedimento e nomeou o júri do procedimento pré-contratual referente ao Concurso Público n.º ...72, para aquisição dos serviços de operação, gestão de aeronavegabilidade permanente e manutenção das aeronaves ..., da frota própria do Estado e do respetivo material de apoio operacional complementar, sendo publicado em Diário da República, Série II, n.º 16, Parte L, o anúncio do procedimento concursal sob o n.º 616/2019, com a mesma data.

7. Até ao dia 22 de fevereiro de 2019, pelas 23h:00m – data limite para entrega das propostas – apresentaram proposta:

(i) HTA – Helicópteros, Operações Atividades e Serviços Aéreos, Lda., ora Requerida,

(ii) Babcock Mission Critical Services Portugal, Unipessoal, Lda.,

(iii) Sky Helicópteros, S.A.,

(iv) HELIPORTUGAL – Trabalhos e Transporte Aéreo, Representações, Importação e Exportação, S.A., aqui Requerente; e

(v) HELIBRAVO – Aviação, Lda.

8. Todas as propostas referidas na alínea anterior foram admitidas, tendo o júri procedido à sua análise e avaliação, em resultado das quais ficaram as mesmas ordenadas da seguinte forma:

1.º HELIPORTUGAL – Trabalhos e Transporte Aéreo, Representações, Importação e Exportação, S.A.;

2.º Sky Helicópteros, S.A.;

3.º HTA – Helicópteros, Operações Atividades e Serviços Aéreos, Lda.;

4.º Babcock Mission Critical Services Portugal, Unipessoal, Lda.; e

5.º HELIBRAVO – Aviação, Lda.

9. Tendo sido dada oportunidade para os concorrentes se pronunciarem, o que a ré fez.

10. Em 29 de março de 2019, o júri elaborou o Relatório Final que manteve a ordenação

das propostas constantes do Relatório Preliminar

11. Por despacho de 1 de abril de 2019, exarado na Informação n.º ...9, de 29 de

março de 2019, do Gabinete Coordenador de Missão no Âmbito dos Incêndios Rurais, o General

Chefe do Estado-Maior da Força Aérea autorizou a adjudicação da aquisição dos serviços que

constituíram o objeto do Concurso Público n.º ...72 à concorrente HELIPORTUGAL.

12. Tais serviços enquadravam-se no dispositivo de meios aéreos para combate aos incêndios florestais e com a Diretiva Operacional Nacional n.º 2 (DECIR), de 2 de abril de 2019,

segundo a qual “o DECIR organiza-se e funciona permanentemente, sendo reforçado, conformidade com os níveis de empenhamento operacional em função dos níveis de

probabilidade de ocorrência de incêndios (…)”.

13. Nessa sequência, em 16 de abril de 2019, foi celebrado entre o Estado Português e a

HELIPORTUGAL, o acordo denominado “contrato ...”, referente à aquisição dos serviços de operação, gestão de aeronavegabilidade permanente e manutenção de três aeronaves ... da frota própria do Estado e do respetivo material de apoio operacional complementar.

14. De acordo com a clausula 4.ª do acordo escrito celebrado entre a autora e a Força

Aérea:

“1 – Os serviços objeto do CONTRATO devem ser assegurados e executados pelo ADJUDICATÁRIO desde o dia 1 de maio de 2019 até ao dia 31 de dezembro de 2022, sem prejuízo das obrigações acessórias que devam perdurar para além da cessação do CONTRATO.

2 – O prazo de execução contratual referido no número anterior compreende:

a) O PERÍODO DE APRONTAMENTO das AERONAVES a realizar no prazo máximo de 31 dias; e,

b) O PERÍODO OPERACIONAL que se inicia após o PERÍODO DE APRONTAMENTO e validação por parte da ENTIDADE ADJUDICANTE da documentação prevista na cláusula 52.º, até 31 de dezembro de 2022”.

15. De acordo com a cláusula 15.ª do acordo escrito celebrado entre a autora e a Força Aérea:

“1 – O preço contratual é composto pelo somatório dos seguintes preços:

a) O preço de 46 450,00 € (quarenta e seis mil, quatrocentos e cinquenta euros) acrescido de imposto sobre o valor acrescentado à taxa legal em vigor, perfazendo um total de 57 133,50 € (cinquenta e sete mil, cento e trinta e três euros e cinquenta cêntimos), correspondente aos serviços compreendidos no PERIODO DE APRONTAMENTO;

b) O preço máximo de 8 808 300,00 € (oito milhões, oitocentos e oito mil e trezentos

euros) acrescido do imposto sobre o valor acrescentado à taxa legal em vigor, perfazendo o total de 10 834 209,00 € (dez milhões, oitocentos e trinta e quatro mil, duzentos e nove euros correspondente aos serviços compreendidos no PERIODO OPERACIONAL que compreende:

i) O preço do custo da HORA DE VOO de 832,00 € (oitocentos e trinta e dois euros), acrescido do imposto sobre o valor acrescentado à taxa legal em vigor, perfazendo um total de 1 023,36 € (mil e vinte e três euros e trinta e seis cêntimos), para a execução no máximo de 3 750 HORAS DE VOO, a realizar por 3 (três) AERONAVES;

ii) O preço do custo da disponibilidade operacional diária por AERONAVE 1 415,00€ (mil, quatrocentos e quinze euros), acrescido do imposto sobre o valor acrescentado à taxa legal em vigor, perfazendo um total de 1 740,45 (mil, setecentos e quarenta euros e quarenta e cinco cêntimos)”

16. De acordo com o n.º 1, da cláusula 40.ª do acordo escrito celebrado entre a autora e a Força Aérea:

“O CONTRATO entra em vigor no dia seguinte à emissão de visto prévio pelo Tribunal de Contas, nos termos previstos no n.º 4, do artigo 45.º, da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto.”

17. De acordo com a cláusula 56.ª do acordo escrito celebrado entre a autora e a Força Aérea:

“1 – O PERÍODO DE APRONTAMENTO inicia-se após a assinatura do auto de consignação das AERONAVES e do respetivo MATERIAL DE APOIO OPERACIONAL COMPLEMENTAR ao ADJUDICATÁRIO termina com a validação da documentação identificada no n.º 2, da Clausula 57.ª pela ENTIDADE ADJUDICANTE.

2 – A conclusão do PERÍODO DE APRONTAMENTO apenas ocorre quando a ENTIDADE ADJUDICANTE notificar o ADJUDICATÁRIO de que validou a documentação prevista na cláusula seguinte.”


18. De acordo com a cláusula 57.ª do acordo escrito celebrado entre a autora e a Força Aérea:

“1 – Os serviços a executar pelo ADJUDICATÁRIO necessários ao aprontamento das AERONAVES são, nomeadamente, os seguintes:

a) Despreservação das AERONAVES;

b) Execução das ações de MANUTENÇÃO devidas (…);

c) Cumprimento das diretivas de aeronavegabilidade (AD´s), boletins de serviço (SB´s) e modificações, que os respetivos fabricantes, ele próprio ou as autoridades aeronáuticas competentes, vierem a considerar mandatórios ou obrigatórios para garantir a segurança do voo ou que resultem de alteração legal ou regulamentar imposta pela autoridade primária de certificação ou qualquer outra autoridade aeronáutica (…);

d) Renovação, junto da Autoridade Aeronáutica competente, dos Certificados de Aeronavegabilidade das AERONAVES.

2 – Concluídos os serviços elencados no número anterior, o ADJUDICATÁRIO deve apresentar à ENTIDADE ADJUDICANTE a seguinte documentação:

a) Certificados de Aeronavegabilidade das AERONAVES;

b) Autorização especial identificada na Clausula n.º 45;

c)    Certificações   da    autoridade    aeronáutica    competente    para    a   gestão   da aeronavegabilidade permanente e manutenção, de acordo com as Clausulas 46.º e 47.º;

d) Documentação elaborada pelo ADJUDICTÁRIO e submetida à autoridade aeronáutica competente no âmbito da renovação dos certificados de aeronavegabilidade das AERONAVES”

19. Em 16 de abril de 2019, a ré intentou contra a Força Aérea no Tribunal Administrativo e Fiscal ... uma ação de contencioso pré-contratual de impugnação do ato de adjudicação à contrainteressada HELIPORTUGAL (ora autora), a qual correu os seus termos sob o n.º 279/19…, pedindo, a final, a anulação do ato de adjudicação, a exclusão da concorrente HELIPORTUGAL e a subsequente classificação dos candidatos em conformidade.

20. Em 22 de abril de 2019, a Força Aérea Portuguesa foi citada no âmbito da ação de contencioso pré-contratual a que se refere o ponto anterior.

21. Com o efeito suspensivo automático ao ato impugnado, o acordo assinado ficou imediatamente suspenso, ficando os contraentes impossibilitados de receber as aeronaves e iniciar as tarefas de preparação das aeronaves para as operações de combate aos incêndios previstas no contrato.

22. Por apenso ao referido processo, a Força Aérea deduziu incidente de levantamento do efeito suspensivo automático previsto no n.º 1, do artigo 103.º-A, do C.P.T.A.

23. No dia 7 de junho de 2019, foi proferida decisão no âmbito do referido apenso, onde se pode ler:

“(…)

Ora, a manutenção da paralisação da execução do contrato (ou dos efeitos da respetiva adjudicação), relativamente à prestação de serviços de operação, gestão de aeronavegabilidade permanente e manutenção das aeronaves ..., e do respetivo material de apoio operacional complementar, implica necessariamente que estes helicópteros da frota do Estado fiquem parados, inclusivamente sem qualquer tipo de manutenção por tempo indeterminado, durante todo o período de tempo em que estiver a decorrer em juízo a ação de impugnação e até ao seu trânsito em julgado, que é, por natureza, imprevisível.

Além disso, o retardamento da execução do contrato faz perigar, de modo gravoso, a prossecução do interesse público levado a cabo pela Entidade Adjudicante, na salvaguarda da vida, da segurança e do património dos cidadãos e do próprio Estado, bem como na defesa do território e do meio ambiente, sobretudo na época do ano mais propícia aos incêndios (Níveis III e IV do DECIR)

(…)

Por outro lado, se atentarmos no teor da resposta da requerida HTA (…) é evidente o défice de alegação e de prova quanto aos eventuais danos ou prejuízos, de qualquer índole, que possam para si advir em virtude do levantamento do efeito suspensivo. Note-se, aliás, que a Requerida nem sequer poderia alegar o seu interesse na realização/ execução do contrato e os proventos daí decorrentes, na medida em que o Relatório Final homologado pelo júri do concurso público ordenou-a na terceira posição.

(…)

Nos termos, e pelos fundamentos anteriormente expostos, julga-se o presente incidente de levantamento do efeito suspensivo automático totalmente procedente, nos termos do disposto no artigo 103.º-A, n.ºs 2 e 4 do CPTA, com todas as consequências legais.”.

24. Nesse dia, o referido acordo voltou a produzir os seus efeitos perante as partes signatárias, quando deveria ter iniciado a sua execução no dia 1 de maio de 2019.

25. Em virtude do atraso na execução do acordo, provocado pela interposição da ação pela ré, o acordo apenas voltou a produzir efeitos em período correspondente ao empenhamento REFORÇADO NÍVEL III, período no qual existe a segunda maior probabilidade de ocorrência de incêndios (de 1 a 30 de junho).

26. É da praxe aeronáutica iniciar-se a execução das atividades inerentes ao período de aprontamento das aeronaves antes do início da vigência dos contratos de prestação de serviços aeronáuticos refletindo a reconhecida importância de disponibilidade dos meios aéreos durante o período de vigência dos contratos, bem como a complexidade e vicissitudes que ocorrem durante as fases de aprontamento das naves.

27. O auto de consignação veio a ser assinado em 14 de junho de 2019, quando poderia ter sido assinado cerca de uma semana depois da assinatura do acordo, isto é, em 23 de abril de 2019 (uma semana após a assinatura do acordo).

28. As aeronaves poderiam ter estado aptas a funcionar, aproximadamente, a partir do dia 27 de junho de 2019.

29. O período de aprontamento implica a execução de um moroso processo de alteração e aditamento de documentos que são depois enviados para a ANAC para validação.

30. Podendo a ANAC exigir mais alterações e aditamentos aos documentos, o que veio a suceder.

31. Devido à complexidade dos procedimentos exigidos à autora e ao elevado número das alterações que tiveram de ser feitas, tanto ao nível da manutenção, como ao nível da gestão da aeronavegabilidade permanente.

32. De acordo com notícias publicadas no jornal “PUBLICO” datadas de 22 de julho de 2017, o porta-voz da autora referiu-se a atraso por parte da ANAC no tratamento dos processos, à qual esta respondeu, alegando atrasos por parte da autora na entrega de documentação e considerando ser da “exclusiva responsabilidade da empresa qualquer dano emergente da não disponibilização atempada dos meios aéreos contratados com o Estado Português”

33. A autora só em 17 de agosto de 2019 concluiu o aprontamento das aeronaves, com a obtenção da certificação da ANAC e iniciou em 18 de agosto o período da sua disponibilidade para o combate a incêndios.

34. O atraso no período de aprontamento veio a determinar o atraso no início do período operacional.

35. Deixando a autora de receber a contrapartida pelos serviços que, não fosse a ação intentada pela ré, teria prestado, designadamente, as contrapartidas referentes às horas de voo e ao custo da disponibilidade diária das aeronaves em causa.

36. Por cada dia de atraso no início do período operacional, relativo às 3 aeronaves, a autora deixou de receber o valor de € 4 246,35 (quatro mil, duzentos e quarenta e seis euros e trinta e cinco cêntimos)

37. No período em causa seria previsível que a autora executasse entre 120 a 200 horas de voo, por mês, dependendo das missões executadas.

38. Em 18 de setembro de 2019 foi proferido saneador/sentença no âmbito do processo referido em …, onde se decidiu julgar verificada a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir da aí autora HTA (ora ré) para a propositura da ação, obstando a conhecimento do mérito da ação e dando lugar à absolvição da Força Aérea da instância, em conformidade com o disposto no artigo 89.º, n.º 2, do C.P.T.A., aplicável por força do artigo 102.º, n.º 1, do C.P.T.A..

39. Em tal sentença pode ler-se o seguinte:

“(…)

Vertendo o anteriormente exposto ao caso sub iudice, inexistem dúvidas quanto à legitimidade processual ativa da A. para a propositura da presente ação de contencioso pré- contratual, não tendo a mesma, em rigor, sequer sido posta em causa pelas Contrapartes nos termos restritos em que supra delineamos este conceito.

De facto, uma vez perspetivada a relação jurídica controvertida, tal como ela é configurada pela A. na P.I., à luz do disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 30º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 1º do CPTA, a A. é parte legítima por ser ela própria titular da relação jurídica em causa num dos seus polos, por ter visto a sua proposta apresentada no âmbito do concurso público em apreço preterida em favor da Contrainteressada HELIPORTUGAL, a qual foi adjudicada, pela Entidade Demandada, aprestação de serviços objeto de concurso público. A A. possui por isso legitimidade processual ativa para impugnar o ato de adjudicação e para formular contra a Entidade Demandada um pedido condenatório de exclusão da Contrainteressada do concurso, com a consequente reordenação dos candidatos.

Por conseguinte, o que importa verdadeiramente aferir, em seguida, é do benefício direto e pessoal que a A. pode retirar da ação proposta e em que medida é que este se projeta na sua esfera jurídica, ou seja, averiguar do seu interesse em agir.

   (…)

a verdade é que a A. não retira da presente ação qualquer benefício direto e imediato, uma vez que, tendo ficado classificada em terceiro lugar, a eventual procedência da mesma – com a anulação do ato de adjudicação e a condenação da Entidade Demandada a excluir a proposta da HELIPORTUGAL e a proceder à classificação dos concorrentes em conformidade -–apenas acarretaria uma vantagem direta para a esfera jurídica da segunda classificada, a SKY Helicópteros, S.A., a quem seria consequentemente adjudicada a prestação de serviços objeto do concurso.

O argumento da A. Em como sempre lhe assiste a legítima expetativa de uma vez anulado o ato e reformulado o ordenamento das propostas, ainda lhe poder vir a ser adjudicada a prestação de serviços (…) não merece aqui acolhimento.

Com efeito, a A. limita-se a apelar a um interesse meramente hipotético, indireto e reflexo, que é insuficiente para que se considere preenchido o pressuposto processual do interesse em agir (…)”

40. No âmbito do referido processo, a ora autora (ali contrainteressada) pediu a condenação da ora ré (ali autora) com fundamento na junção, por esta, de documentação sigilosa e confidencial.

41. Tal pedido veio a ser indeferido com base nos seguintes fundamentos: “No caso sub judice, a A. apresentou articulado superveniente ao qual juntou três documentos (…) ficou demonstrado, através do doc. 2 que o mesmo foi obtido junto da ANEPC, na sequência de pedido formulado pela A., e na sequência do pagamento da taxa respetiva, ficando por provar em que medida foi exercida pela A. qualquer tipo de pressão ou insistência junto daquela entidade pública nesse sentido”.

Fundamentação de direito.

Importa começar por apreciar a revista da Ré, por razões de precedência lógica: se proceder, fica prejudicado o conhecimento da revista da Autora.

E a primeira questão a decidir é a de saber se a Autora podia recorrer a uma acção autónoma para responsabilizar civilmente a Ré por abuso de direito de acção.

Em causa está a acção administrativa instaurada pela Ré no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., acção de contencioso pré-contratual de impugnação do ato de adjudicação à contrainteressada HELIPORTUGAL (ora autora), dos serviços de operação, gestão de aeronavegabilidade permanente e manutenção das aeronaves ..., da frota própria do Estado e do respetivo material de apoio operacional complementar.

A citação da ré Força Aérea naquela acção determinou a imediata suspensão do contrato celebrado entre a Força Aérea e a Autora, pretendendo esta agora ser ressarcida pelos danos que sofreu com a propositura da acção administrativa, que em seu entender não tinha fundamento sério.

           

Defende a Ré que o pedido de indemnização por alegado abuso de direito de acção não pode ter feito em acção autónoma e que a Autora deveria ter formulado o pedido na própria acção administrativa (em que interveio a título principal), tal como decidiu o Acórdão da Relação de Lisboa de 26.06.2014, P. 1524/10, que invocou como fundamento da revista excepcional que interpôs.

Decidiu o referido acórdão da Relação de Lisboa, disponível em www.dgsi.pt:

“Não é admissível que em acção autónoma se afira da litigância de má fé, o que advém da circunstância do art. 457º/1, alínea c), dizer expressamente que o juiz fixará a indemnização “sempre” em quantia certa.

A litigância de má fé tem de ser reconduzida à importância que o legislador lhe terá dado – a de um mero incidente. O que é suposto num processo, é que o tribunal se pronuncie sobre o pedido material formulado pelo autor, e pelo réu, caso este tenha reconvindo, sendo apenas incidentalmente que vai apreciar a conduta processual das partes envolvidas na lide, seja porque tal tenha sido suscitado pela outra parte, seja porque a gravidade da actuação de uma ou de ambas despoletou no julgador a necessidade de penalizar quem assim abusa do processo.

O apuramento e a fixação das ocorrências materiais sobre que pretende assentar-se a existência de má fé é uma questão de facto que apenas o juiz que assistiu ao seu desenrolar pode valorar para decidir se efectivamente essas ocorrências traduzem ou não má fé.”

   Subscrevem-se inteiramente estas considerações.

Sucede não estar em causa eventual litigância de má fé na acção administrativa, mas sim o abuso do direito de acção.

O abuso de direito de acção tem sido reconhecido na doutrina e na jurisprudência como comportamento distinto do litigar doloso ou temerário, sancionáveis ao abrigo da litigância de má fé – arts. 542º e seguintes do CPCivil.

O abuso de direito pressupõe a existência do direito, embora o titular exceda no exercício os seus poderes; o litigante de má fé não exerce um direito, não existe um direito de litigar de má fé, existe o dever de boa fé processual (art. 8º do CPC).

           

Neste sentido, Francisco Manuel Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, I, 3ª edição, pag. 138:

“Não é legítimo afirmar que o abuso de direito (processual) será pura e simplesmente absorvido pela litigância de má fé. Sem embargo da afinidade entre os dois institutos, ao nível das consequências jurídico e jurídico-substantivas, a litigância de má fé prevalece como instituto especial relativamente ao instituto geral do abuso de direito. Desde logo porque – em termos processuais - a litigância de má fé é apreciada imediatamente, a requerimento da parte ou ex-oficio no seio da própria acção, enquanto nada impede que o abuso de direito possa ser irrestritivamente apreciado numa acção autónoma (…).

Também a jurisprudência vem reconhecendo que o abuso do direito de acção não se confunde com a litigância de má fé, podendo ser fonte da obrigação de indemnizar.

Neste sentido decidiu Acórdão deste STJ de 04.11.2008, P. 08A3127:

“O princípio da boa fé não é exclusivo do direito substantivo, também pode ser violado numa perspectiva de actuação processual, mormente pelo recurso a juízo através de acção ou procedimentos cautelares.”

O acórdão da Relação de Lisboa de 13.03.2014, CJ, 2014, tomo 2, pag. 323, relatado pelo ora Conselheiro Tibério Silva, que subscreve o presente acórdão, decidiu que “como defesa perante o uso indevido do exercício do direito de acção judicial, o lesado pode reagir através de três vias: a litigância de má fé; o abuso do direito de acção; a responsabilidade pela acção ou culpa in agendo.”

Assim, se o direito de acção não escapa ao crivo do abuso de direito definido no art. 334º do CC – “é ilegítimo o abuso de direito, quando o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito” -  não se vê como negar a possibilidade de ser proposta acção para ressarcimento dos danos causados pela propositura de uma acção sem fundamento sério, em consonância, aliás, com o princípio fixado no nº2 do art. 2º do CPC: “A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele (…).”

           

As razões que justificam que a litigância de má fé seja apreciada no próprio processo – ser o julgador da causa o mais habilitado a avaliar o comportamento processual das partes – não se verificam quando o que está em causa é saber se a propositura de uma acção representa um abuso do direito de acção, não a forma como a parte litigou numa acção anterior.

O próprio acórdão fundamento expressamente admite que “a responsabilidade civil que advenha do abuso de direito pode ser feita valer em processo autónomo, em que caberá a autor alegar e provar os demais requisitos da responsabilidade civil, para além da ilicitude.”

Conclui-se do exposto que a indemnização civil emergente de abuso de direito de acção pode ser pedida em acção autónoma.

Com o que improcede este fundamento da revista.


*


Se se verifica o abuso de direito de acção.

 Ao contrário do que parece pensar a Recorrente o direito de acção não é irrestrito, deve ser exercido de forma responsável. Como qualquer direito o seu exercício está sujeito aos limites do abuso de direito, um princípio geral de direito aplicável também no domínio do processo civil.


Basta lembrar a norma do artigo 374º do CPC que prevê, no domínio dos procedimentos cautelares, a responsabilidade do requerente pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência norma, acolhendo, no domínio processual, o abuso de direito de acção.

Posição esta que é sustentada por Menezes Cordeiro na obra “Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo, Almedina, 2ª edição, que a fls. 30, de forma expressiva refere que “o direito de acção não é absoluto. Uma acção pode ser intentada dolosamente, sem quaisquer fundamentos ou com alegações falsas, apenas para incomodar e causar danos.”


Escreveu-se no citado acórdão do STJ de 04.11.2008:

O instituto do abuso de direito traduz a aplicação, nas diversas situações jurídicas, do princípio da boa fé.

E o princípio da boa fé equivale à capacidade que o sistema jurídico tem de, mesmo nas decisões mais periféricas, reproduzir os valores fundamentais.

A boa fé age através de dois princípios mediantes já expostos: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.

Ambos se concretizam numa constelação de situações típica, acima ponderadas: desde o venir ao desequilíbrio do exercício.

 (…)

As acções judiciais intentadas em grave desequilíbrio de modo a provocar danos máximos a troco de vantagens mínimas, são abusivas.”


Assente que em certas circunstâncias a propositura de uma acção pode representar um abuso de direito, importa saber se foi isso que sucedeu com a acção administrativa interposta pela Ré.

O acórdão recorrido considerou que sim, decisão que justificou nos termos seguintes:

A Recorrente veio pedir a anulação do ato de adjudicação, não ignorando que tal determinaria, por força da lei, a suspensão imediata do contrato destinado a preparar e a operar helicópteros do Estado para o combate a incêndios, assistência a cidadãos no âmbito da emergência médica e missões no âmbito da segurança interna (clª 49º do contrato, fls. 24 a 57 dos autos), em pleno mês de Abril, não ignorando a complexidade técnica do aprontamento das aeronaves e os curtíssimos prazos que a Recorrida dispunha para o efeito, dada a proximidade do verão com a previsibilidade - nos últimos tempos, inevitabilidade - de incêndios rurais e fê-lo sem que da procedência da ação lhe resultasse qualquer interesse direto e pessoal, uma vez que, anulado o ato, o contrato seria adjudicado à proponente que no concurso ficou em segundo lugar e não à Recorrente que ficou em terceiro, ou seja, sem demonstrar interesse em agir motivo da sucumbência da ação de anulação (cfr. sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal ..., fls. 103 a 112 dos autos).

A recorrida tinha o direito de intentar a ação, com diz, mas o exercício deste direito, nas apontadas circunstâncias, ofende, estamos em crer, clamorosamente, o sentimento jurídico socialmente dominante e, como tal, é ilegítimo, o que significa que o exercício do direito foi ilícito.”

           

Dissentindo deste entendimento a Recorrente sustenta no essencial:

- Tinha interesse em propor a acção administrativa, pois que, tendo ficado graduada em 3º lugar se o 2º classificado desistisse ou fosse afastado passaria a ocupar o 1º lugar;

- As razões que invocou na impugnação do concurso, foram por ela também invocadas num concurso aberto na Região Autónoma da Madeira, e aí foram acolhidas, tendo levado o Tribunal de Contas em 13/07/2020, a recusar o visto prévio ao contrato de adjudicação celebrado com a recorrida Heliportugal. (6ª conclusão);

- Só poderia ser condenada por abuso de direito de acção se tivesse sido sancionada como litigante de má fé na acção administrativa, o que não sucedeu, pois aí foi absolvida como litigante de má fé;

- A decisão que a ilibou por má fé processual na acção administrativa tem força de caso julgado na presente acção.

           

       Que dizer?

O interesse em agir é um pressuposto processual que embora não referido expressamente na lei, é reconhecido na doutrina e jurisprudência.

Consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pag. 180).

Ou nas palavras de Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag. 79, “o direito de agir, também chamado interesse processual, “consiste em o direito de o demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo.”

Na jurisprudência, reconheceram a necessidade do pressuposto interesse em agir, entre outros, os Acórdãos do STJ de 06.10.2016, P. 1946/09, de 19/12/2018, P. 742/16 e de 09.122021, P. 225/20.

           

Posto isto, qual o interesse da Recorrente na impugnação do concurso?

Não o vemos, pois que nenhum benefício retiraria da procedência da acção; se tal viesse a suceder, quem passaria a ocupar o 1º lugar seria o candidato classificado em 2º lugar, não a Recorrente.

A alegação de que a proceder a impugnação e, caso a 2ª classificada, desistisse iria ocupar a 1ª posição no concurso, não tem, com o devido respeito, qualquer consistência.

Nada se provou que permita concluir que a 2ª classificada tenha encarado desistir do concurso, ou ser desclassificada. O interesse invocado pela Recorrente é meramente hipotético, sem qualquer suporte factual.

           

Concorda-se com a conclusão a que chegou a 2ª instância sobre a ausência de interesse válido, consistente, na propositura da acção administrativa.

Quanto ao argumento retirado do alegado sucesso da impugnação do concurso feito na Região Autónoma da Madeira, cabe dizer que se trata de uma questão suscitada pela primeira vez em sede do recurso de revista, constituindo, pois, questão nova de que não cumpre conhecer.

Acresce, que da matéria de facto nada resulta que sustente o alegado.

Relativamente à alegada absolvição da litigância de má fé na acção administrativa e que decisão tem força de caso julgado na presente acção, é igualmente improcedente.

Em primeiro lugar, por o abuso de direito de acção e a litigância de má fé serem figuras distintas. Depois, na acção administrativa não foi apreciado se a Ré litigou com má fé; entendeu-se apenas que a Ré não deveria ser sancionada por má fé pela junção de documentação alegadamente confidencial e sigilosa (nºs 40 e 41).

Concluindo-se que a Ré interpôs acção administrativa sem fundamento sério, não ignorando que, por força da lei, tal iria determinar a imediata suspensão do contrato celebrado entre a Autora e a Força Aérea, está demonstrada a ilicitude. Cabe verificar se se verificam os demais requisitos da responsabilidade civil, a saber, o dano e o nexo de causalidade entre um e outro (art. 562º do CC).

           

O acórdão recorrido considerou que a Aurora sofreu um dano pelo preço da disponibilidade das aeronaves, que deixou de receber, tendo ponderado para tanto:

“Os factos provados (…) permitem afirmar com segurança que os trabalhos contratados deveriam ser executados e assegurados a partir do dia 1/5/2019 e que o início da execução dos trabalhos, por decorrência do efeito suspensivo automático da ação de anulação do ato de adjudicação, só veio a ser possível a partir do dia 7/6/2019, data do levantamento da referida suspensão [pontos 14, 21, 23 e 24 dos factos provados], ou seja, a ação de anulação intentada pela Recorrente ocasionou um retardamento de 38 dias [1/5/2019 a 7/6/201] na prestação dos serviços que a Recorrida se havia obrigado a prestar ao Estado

Retardamento que se projetou, em idêntica medida, no período operacional [ponto 34 dos factos provados] durante o qual a Recorrida deveria receber – e não recebeu - do Estado a contrapartida pela disponibilidade operacional das aeronaves, ou seja, a quantia diária de € 4.246,35 [ponto 36 dos factos provados], prejuízo assim quantificável em € 161.361,30 [4.246,35 x 38] e cuja reparação incumbe à Recorrente por diretamente decorrente do exercício abusivo da ação de anulação, facto gerador da responsabilidade.

Em contrário, argumenta a Recorrente que o contrato, nos termos da sua disciplina, só entraria em vigor com o visto prévio do Tribunal de Contas o qual veio a ocorrer em 30/5/2019 e que a suspensão dos efeitos do ato impugnado poderia ter sido levantada antes desta data se os prazos administrativos tivessem sido cumpridos assim concluindo pela inexistência de nexo causal entre a propositura da ação de anulação e os danos [cclºs XIV a XXIII].

No decurso da apreciação da impugnação da decisão de facto já se analisou a primeira das apontadas observações por forma a afirmar que não obstante a vigência do contrato estivesse dependente do visto prévio do Tribunal de Contas [clª 40º, nº1], os primeiros serviços nele previstos – período de aprontamento – iniciar-se-iam em 1/5/2019 [ponto 14 dos factos provados] segundo uma prática corrente neste tipo de contratos que a decisão recorrida julgou provada [ponto 26 dos factos provados] e a Recorrente não impugnou por forma a, repete-se, minimizar os inconvenientes decorrentes dos atrasos na formalização dos contratos, a morosidade técnica (e burocrática) que reveste o aprontamento das aeronaves e a urgência da sua prontidão para efeitos de combate a incêndios.

O período de aprontamento das aeronaves deveria, de acordo com o contrato e a praxe aeronáutica ocorrer em momento anterior ao da vigência do contrato o que não se verificou, por efeito da suspensão automática do contrato, provocada pela ação de anulação, com repercussão direta no início do período operacional em que se verificaram os prejuízos.

O segundo argumento colocado no recurso destinado a demonstrar que o cumprimento dos prazos na ação administrativa determinaria o levantamento da suspensão em data anterior àquela em que, em concreto, se verificou e que, por tal razão, o atraso no início da execução do contrato não é imputável à Recorrente, ou não o é em toda a extensão, independentemente de outras considerações que houvesse que justificar, supõe o conhecimento de factos (v.g. a data da citação do Estado e demais contrainteressados no procedimento administrativo) que a Recorrente, em tempo oportuno, não carreou para os autos e que constituem agora o suporte, não demonstrado, desta sua argumentação [a sua defesa, nesta parte, consistiu exclusivamente em afirmar:

“acresce que a Ré nunca poderá ser responsável pelo tempo que os órgãos judiciais levam a tomar as suas decisões” - artº 26º da contestação].

O recurso assenta, nesta parte - conclusões XX a XXIII - em factos que não se provam, nem foram oportunamente alegados, razão da sua improcedência.

O recurso procede parcialmente e, em consequência, a decisão recorrida deverá ser alterada por forma a condenar a Recorrente no pagamento da quantia de € 161.361,30, medida dos danos que a Recorrida não teria provavelmente sofrido caso a primeira, com abuso de direito, não houvesse intentado se a ação de anulação do ato de adjudicação.”

           

Sustenta, no entanto, a Recorrente que embora seja praxe a execução do contrato iniciar-se antes do visto do Tribunal de Contas, com o período de aprontamento, não está provado que fosse sempre assim e, de todo o modo, não se provou um nexo de causalidade entre a propositura da acção e o alegado prejuízo pela disponibilidade das aeronaves.

Crê-se que não lhe assiste razão, e que a Relação ajuizou bem.

           

A matéria de facto é, nesta parte concludente:

- Os serviços objeto do CONTRATO devem ser assegurados e executados pelo ADJUDICATÁRIO desde o dia 1 de maio de 2019 até ao dia 31 de dezembro de 2022 (…);

– O prazo de execução contratual referido no número anterior compreende:

a) O PERÍODO DE APRONTAMENTO das AERONAVES a realizar no prazo máximo de 31 dias (…);

- O período de aprontamento inicia-se após a assinatura do auto de consignação das AERONAVES e do respetivo MATERIAL DE APOIO OPERACIONAL COMPLEMENTAR ao ADJUDICATÁRIO (facto 17;

- O auto de consignação veio a ser assinado em 14 de junho de 2019, quando poderia ter sido assinado cerca de uma semana depois da assinatura do acordo, isto é, em 23 de abril de 2019 (uma semana após a assinatura do acordo). (27).

Ou seja, o início do contrato entre a Autora e a Força Aérea – com o chamado período de aprontamento – não dependia do visto do Tribunal de Contas; podia iniciar-se logo no dia 01 de maio de 2019, o que só não sucedeu por virtude da acção administrativa que a Ré interpôs no próprio dia em que foi assinado o contrato entre o Estado e Autora (16 de Abril de 2019), privando assim aquela de receber a contrapartida diária convencionada pela disponibilização das aeronaves (€1.450,00/dia por aeronave).

A decisão da Relação ao julgar verificado este dano não merece reparo, pelo que se confirma.

Termos em que improcedem na totalidade as conclusões da Recorrente.


///


Da revista da Autora.

Insurge-se a Recorrente contra o acórdão recorrido na parte em que julgou improcedente o pedido de condenação da Ré “em quantia a liquidar em execução de sentença referente a horas de voo que deixou de realizar.”

           

A Relação justificou nos seguintes termos a improcedência desta parte do pedido:

“Segundo o contrato a Recorrida tem direito ao pagamento da quantia de € 832,00 por cada hora de voo realizado por aeronave mas o preço global acordado apenas prevê a realização máxima de 3.750 horas de voo, pelas três aeronaves, durante o período operacional, ou seja, entre 1/6/2019 e 31/12/2022 [pontos 14 e 15 dos factos provados]; ora, a Recorrida não alegou na petição inicial - nem o podia fazer porquanto o contrato vigora até final do ano de 2022 – as horas de voo, de entre as referidas 3750, que deixou de poder realizar por efeito do retardamento na execução do contrato e era esta diferença que, a existir, poderia, a nosso ver, constituir o seu prejuízo, pois pode muito bem acontecer que até ao final de 2022 venha a realizar as 3750 horas de voo contratadas, caso em que não se configura - nem se pode prever no futuro – qualquer prejuízo, uma vez que receberá do Estado todas as horas de voo previstas no contrato, independentemente da execução do contrato, por causa imputável à Recorrente, se haver iniciado em data posterior à acordada.

Por ausência de alegação e demonstração do dano o recurso procede nesta parte.”

A Recorrente reconhece que não é possível determinar com os elementos dos autos a horas de voo que não realizou. (conclusão 13ª).

Pede o reconhecimento da perda do seu direito a faturar horas de voo e, consequentemente, a averiguação, em sede de liquidação de sentença, do número de horas que poderia ter voado durante os 38 dias durante os quais o contrato esteve suspenso.

E que seja proferida decisão que condene a Ré a pagar-lhe a quantia a apurar em sede de liquidação pelas horas que não voou, e poderia ter voado, durante o período de suspensão do contrato.

Julga-se que também neste particular o acórdão recorrido decidiu.

           

O tribunal não tinha que proferir decisão a reconhecer à Autora o direito a faturar horas de voo por isso não ser matéria controvertida. É um direito contemplado no contrato.  (cf. ponto 15 da matéria de facto).

A condenação “no que vier a ser liquidado”, nos termos do art. 609º nº 2 do CPC, só tem lugar no caso de estar provado o dano, mas o tribunal não dispor de elementos para fixar o seu valor.

Ora, sabido que o contrato vigora até final de 2022, que a componente relativa ao pagamento pelas horas de voo prevê um máximo de 3.750 horas de voo a realizar por 3 (três) aeronaves, e não estando demonstrado que por força da suspensão a Autora já não pode realizar o máximo de horas previsto, não se vê que tenha sofrido um prejuízo por não ter podido voar no período em que o contrato esteve suspenso.

 É que ainda que em sede de liquidação se viesse a apurar o número exacto de horas de voo que não pode realizar durante a suspensão, não se segue daí que tenha sofrido um prejuízo; a Recorrente pode efectuar o máximo das horas contratadas durante a vigência do contrato, ou pelo menos, não está demonstrado que tal não é possível.

 Argumenta a Recorrente que o contrato prevê na cláusula 16ª a possibilidade de realização de mais horas de voo para além das 3.750.

 A matéria de facto é omissa a esse respeito, e o STJ é um tribunal de revista, estando-lhe vedado julgar questões de facto (art. 674º, nº 3 do CPC).

Com o que improcedem in totum as conclusões da Recorrente.

   Decisão.

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar as revistas e em confirmar o douto acórdão recorrido.

Cada uma das partes suportará as custas do seu recurso.

           

    Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC):

I - A proibição do abuso de direito, cominada no art. 334º do CCivil, consubstancia um princípio geral de direito, também aplicável no domínio do processo civil;

II - À luz deste princípio, é ilícito o exercício do direito de acção quando se demonstra que: i) o autor não tem interesse em agir, por não ser titular de um direito carecido de tutela judiciária; ii) da mera propositura da acção resultam prejuízos para terceiros;

III - O pedido de indemnização pelos danos causados por abuso de direito de acção pode ser formulado em acção própria, autónoma, da acção abusivamente interposta.

Lisboa, 24.05.2022

Ferreira Lopes (relator)

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva