Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
031911
Nº Convencional: JSTJ00004290
Relator: H DIAS FREIRE
Descritores: PENA DE TRABALHOS PÚBLICOS
PRISÃO MAIOR
PRISÃO PREVENTIVA
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ196703080319113
Data do Acordão: 03/08/1967
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DG IS 1967/04/13, PÁG. 645 - BMJ Nº 165, ANO1967, PÁG. 207 - RLJ ANO100, PÁG 150
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: TIRADO ASSENTO.
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CPP29 ARTIGO 628 PAR1 ARTIGO 668 PARUNICO ARTIGO 669 PARUNICO.
CPC61 ARTIGO 764 ARTIGO 765 N1 N5 ARTIGO 766 N3.
D 39817 DE 1954/09/15 ARTIGO 16 PAR7 ARTIGO 21.
D 43898 DE 1961/09/06 ARTIGO 71.
DL 43893 DE 1961/09/06 ARTUNICO.
D 43894 DE 1961/09/06 ARTIGO 72.
CP886 ARTIGO 6 ARTIGO 84 ARTIGO 99 N3.
DL 39997 DE 1954/12/29 ARTIGO 16 PAR1.
DL 39688 DE 1954/06/05.
DL 39666 DE 1954/05/20.
CCIV66 ARTIGO 8.
CONST33 ARTIGO 8 N9.
Sumário :
I - A parte da pena de trabalhos publicos ainda não cumprida a data da entrada em, vigor do Decreto-Lei n. 43893, de 6 de Setembro de 1961, deve ser substituida, com desconto de um terço, pela de prisão maior.

II - Desconta-se por inteiro a prisão preventiva sofrida pelos reus condenados na pena de trabalhos publicos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em Tribunal Pleno:

Ao abrigo do disposto nos artigos 669 do Codigo de Processo Penal e 764 do Codigo de Processo Civil, o representante do Ministerio Publico junto do Tribunal da Relação de Lourenço Marques recorreu para o Tribunal Pleno do acordão da mesma Relação, de 7 de Maio de 1965, alegando que não admite recurso ordinario para este Supremo Tribunal e que esta em oposição com o de 13 de Abril de 1962, tambem da Relação de Lourenço Marques.
O recurso foi admitido para subir "em separado e sem efeito suspensivo", nos termos do artigo 765, ns. 1 e 5, do Codigo de Processo Civil, ex vi do paragrafo unico do artigo 669 do Codigo de Processo Penal, que remete para o seu artigo 668, paragrafo unico.
Remetido o processo a este Supremo Tribunal e devidamente distribuido, o ilustre Ajudante do Procurador-Geral da Republica pronunciou-se no sentido de que se verificam os pressupostos formais e de fundo que condicionam o seguimento do recurso.
E efectivamente o acordão a folhas 16 da secção criminal determinou que seguisse para o Tribunal Pleno.
O magistrado do Ministerio Publico apresentou a alegação junta a folhas 21-25.
Nela desenvolve doutas considerações que rematam com a indicação do texto de dois assentos.
Obtidos os vistos legais, cumpre decidir.
I - O disposto no n. 3 do artigo 766 do Codigo de Processo Civil obriga o Tribunal Pleno a conhecer tambem da viabilidade do recurso.
Vejamos, pois:
O acordão recorrido foi lavrado num processo que se iniciou em 1 de Janeiro de 1957, no extinto tribunal municipal de Nampula.
Ora nos processos dos julgados não era admissivel recurso ordinario dos acordãos do tribunal da Relação, por força do disposto no artigo 21 do Decreto n. 39817, de 15 de Setembro de 1954.
O Decreto n. 43898, de 6 de Setembro de 1961, revogou esse artigo, mas o artigo 71 estabeleceu que o novo diploma so se aplica "aos processos ainda não distribuidos a data da sua entrada em vigor".
E assim indubitavel que não era admissivel recurso ordinario do acordão da Relação de Lourenço Marques, de 7 de Maio de 1965.
Nele decidiu-se que depois da extinção do Estatuto dos Indigenas pelo Decreto-lei n. 43893, de 6 de Setembro de 1961, e do começo da vigencia dos Decretos ns. 43898, da mesma data, era de converter a pena de trabalhos publicos aplicada a um indigena - no caso a A - em prisão maior, mas so a partir da vigencia daqueles diplomas, devendo descontar-se por inteiro a prisão preventiva sofrida, como prescrevia a anterior legislação.
Diferentemente no acordão de 13 de Abril de 1962, transitado em julgado, interpretando os mesmos diplomas, decidiu-se que a reconversão da pena de trabalhos publicos em pena maior com redução de um terço, devia efectuar-se desde o inicio, e não so a partir da revogação do Estatuto dos Indigenas, e que o desconto da prisão preventiva se devia fazer por metade, conforme a regra 3 do artigo 99 do Codigo Penal.
Nitido que o acordão recorrido esta em oposição com o de 1962 sobre a mesma materia de direito, e que dele se não podia interpor recurso ordinario para este Supremo Tribunal.
Verificam-se, portanto, os pressupostos descritos no artigo 669 do Codigo de Processo Penal.
Ha, pois, que resolver o conflito de jurisprudencia que os dois acordãos suscitam.
II - O paragrafo 1 do artigo 16 do Decreto-Lei n. 39997, de 29 de Dezembro de 1954, dispunha:
"Para os indigenas, as penas maiores serão sempre substituidas pela pena de trabalhos publicos pelo periodo correspondente, acrescido de um terço".
Em evidente justificação desta norma, escreveu-se no relatorio do diploma que a contem:
"Acolhendo as recomendações da experiencia propria e alheia, estabelece-se a rigorosa separação de indigenas e não indigenas, suprimindo para os primeiros, o regime celular, excessivamente cruel para o seu modo de ser e ineficaz como instrumento de reabilitação".
Bem claro, portanto, que o legislador quis favorecer os indigenas, subtraindo-os ao cumprimento de penas maiores, excessivamente torturantes para o seu modo de ser.
O acrescimo do periodo de trabalho sobre o periodo que corresponderia a pena de prisão aplicavel, apenas reflete o juizo de que o trabalho publico constitui pena cujo cumprimento sera presuntivamente mais suave do que o cumprimento de uma pena maior.
III - Quanto a detenção ou prisão preventiva, o paragrafo 7 - parte final - do artigo 16 do ja citado Decreto n. 39817, de 15 de Setembro de 1954, dispunha que a sofrida pelos indigenas seria "tomada em conta por inteiro na pena cominada".
Maior beneficio do que aquele que concedia o paragrafo 1 do artigo 628 do Codigo de Processo Penal e do que veio a conceder o artigo 99 do Codigo Penal com a redacção do Decreto-Lei n. 39668, de 5 de Junho de 1954, so tornado extensivo ao ultramar pelo citado artigo 16 do Decreto n. 39997, de 29 de Dezembro de 1954.
IV - O artigo unico do Decreto-Lei n. 43893, de 6 de Setembro de 1961, revogou o Decreto-Lei n. 39666, de 20 de Maio de 1954, que tinha promulgado o Estatuto dos Indigenas Portugueses das Provincias da Guine, Angola e Moçambique.
Em sequencia logica desta revogação, foram simultaneamente publicados outros diplomas legais tendentes a uniformização de regimes juridicos aplicaveis a todos os portugueses, mantendo-se embora o tradicional respeito pelo direito privado indigena - essencialmente revelado por meio de usos e costumes - na medida em que, sem contrariar os principios superiores da moral que limitam o proprio poder do Estado (relatorio do Decreto n. 43897), melhor tutele os interesses das populações onde vigora.
Ora precisamente naquele Decreto n. 43897 foi formulada a seguinte disposição:
"As leis penais são iguais para todos, mas o juiz apreciara sempre as condutas e cominara as sanções considerando a influencia que sobre o delinquente e os actos deste exerceram a sua condição social e estatuto de direito privado. O regime de execução das sanções obedecera ao principio da personalização".
E o artigo 72 do mesmo diploma revogou expressamente o citado paragrafo 1 do artigo 16 do Decreto n. 39997 e o tambem citado Decreto n. 39817, com excepção da primeira parte do seu artigo 7, que aqui não interessa.
Criou-se assim um regime de igualdade, sem esquecer o fundamental interesse dos pressupostos da culpabilidade, ampliando, sem duvida, o quadro do artigo 84 do Codigo Penal, certamente ainda em favor dos indigenas.
V - Em face do disposto no transcrito artigo 10 e da revogação do paragrafo 1 do artigo 16 do Decreto n. 39997 e do paragrafo 7 do artigo 16 do Decreto n. 39817 e que surgiram os problemas agora em causa.
Para os resolver basta considerar:
A maxima que nos adverte de que as leis regem para o futuro e-nos afinal imposta pelas normas que acolheram, como regra, o principio da não retroactividade, valido, segundo a opinião dominante, tanto para o direito privado, como para o direito publico.
A lei ordinaria formulou-o no artigo 8 do Codigo Civil e no artigo 6 do Codigo Penal.
A lei constitucional proclamou-o no n. 9 do artigo 8 da Constituição Politica de 1933, limitando-o embora as normas incriminadoras e, portanto, so aplicavel as que descrevem os crimes e cominam as indispensaveis sanções.
A regra da lei penal admite excepções claramente tendentes a favorecer o delinquente.
E assim, se a lei nova eliminar uma incriminação constante da lei anterior, tera, em regra (exceptuam-se as leis de emergencia) efeito retroactivo.
Assim tambem, se a lei nova estabelecer para a infracção ja prevista em lei anterior uma pena mais leve, aplicar-se-a esta ao infractor que ainda não estiver condenado por sentença passada em julgado.
Ainda tera efeito retroactivo a lei nova quanto aos seus efeitos - taxativamente indicados nos artigos 74 a 83 - em tudo o que favoreça os criminosos, desde que não sejam afectados direitos de terceiros.
Salvo estas excepções, tem de respeitar-se o principio
- regra da irrectroactividade da lei, o que conduz, na lição da doutrina, a admitir que, na falta de declaração expressa em contrario, se deve considerar sempre implicito na nova lei, este pensamento: "daqui para o futuro", ou "doravante".
VI - Ora, no caso dos autos, discute-se se, em face da lei nova - que estabeleceu que "as leis penais são iguais para todos" e revogou preceitos que estabeleciam desigualdade entre indigenas e não indigenas - devem ou não modificar-se as situações dos delinquentes indigenas, condenados por decisões transitadas em julgado e relativas a aplicação: a) Do citado paragrafo 1 do artigo 16 do Decreto-Lei n. 39997, de 29 de Dezembro de 1954, que obrigava a substituir a pena maior pela de trabalhos publicos pelo periodo correspondente acrescido de um terço; b) Do tambem citado paragrafo 7 - parte final - do artigo 16 do Decreto n. 39817, de 15 de Setembro de 1954, que mandava tomar em conta por inteiro na pena cominada, a detenção sofrida, com evidente beneficio para os indigenas, uma vez que para os não indigenas vigorava então no ultramar o paragrafo 1 do artigo 628 do Codigo de Processo Penal.
Do que ja dissemos, e seguro que as referidas situações se não podem ajustar as excepções do artigo 6 do Codigo Penal.
Não houve eliminação de uma incriminação, estão em causa decisões transitadas em julgado e não se discutem efeitos dos taxativamente declarados nos artigos 75 e seguintes daquele Codigo.
Logo, tem de funcionar o principio da não retroactividade, por virtude do qual so tem eficacia juridica o que se praticar ou ocorrer depois da entrada em vigor da nova lei.
E como do que nela se dispõe surgem problemas de execução de pena, cujas normas, por sua propria natureza, são de aplicação imediata, temos de considerar imediatamente aplicavel a nova lei.
Sera ela que presuntivamente melhor servira o interesse publico, tal como e considerado no momento da sua promulgação.

Mas o principio da aplicação imediata se, por um lado, impõe que se aplique a lei nova a todos os actos que se praticarem, se produzirem ou ocorrerem posteriormente a sua vigencia, não deixa de permitir que se respeitem os actos ou situações anteriores, para não invalidar ou mesmo violar a utilidade ou conveniencia que lhes reconhecia e assegurava a lei sob cujo dominio se geraram.
Assim, quanto a detenção, uma vez que ocorreu toda na vigencia da lei anterior, mantem-se o efeito juridico que esta lei lhe atribuia: deve descontar-se por inteiro.
Na realidade, a detenção que a lei manda descontar equivale a cumprimento antecipado de pena de prisão.
Tanto que se for igual ou superior a prisão aplicada esta deve ser dada por expiada na propria sentença condenatoria.
Quanto a pena de trabalhos publicos:
A quem se executou, - ocorreu enquanto vigorou a lei que a estabeleceu, - deve considerar-se cumprida.
Era a que melhor servia os interesses que a lei de então quis acautelar. So aquela que tenha de executar-se depois do inicio da vigencia da nova lei se aplicara o principio da igualdade que esta estabeleceu para realizar interesses identicos, mas agora dominados por elementos diferentes.
Por isso so a parte da pena de trabalhos publicos cuja execução ainda estiver a decorrer se deve ajustar a nova lei, substituindo-a por prisão pelo periodo correspondente a essa parte, reduzido de um terço.
VII - Nestes termos negam provimento ao recurso e formulam o seguinte assento:
I) A parte da pena de trabalhos publicos ainda não cumprida a data da entrada em vigor do Decreto-Lei n. 43893, de 6 de Setembro de 1961, deve ser substituida, com desconto de um terço, pela pena de prisão maior.
II) Desconta-se por inteiro a prisão preventiva sofrida pelos reus condenados na pena de trabalhos publicos.
Sem imposto de justiça.

Lisboa, 8 de Março de 1967

H. Dias Freire (Relator) - Gonçalves Pereira - Albuquerque Rocha - Fernando Bernardes de Miranda - Oliveira Carvalho
- Francisco Soares - Adriano Vera Jardim - J. Santos Carvalho Junior - Eduardo Correia Guedes - Lopes Cardoso
- Torres Paulo - Ludovico da Costa - Jose Cabral Ribeiro de Almeida - Joaquim de Melo.