Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
Descritores: | RECURSO DE REVISTA INSOLVÊNCIA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE ADMISSIBILIDADE DE RECURSO OPOSIÇÃO DE JULGADOS REGIME APLICÁVEL | ||
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Data do Acordão: | 06/28/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA (COMÉRCIO) | ||
Decisão: | RECLAMAÇÃO INDEFERIDA. | ||
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Sumário : |
I- O recurso de revista interposto contra um acórdão proferido no incidente de exoneração do passivo restante está submetido ao regime previsto no art.14º do CIRE, não lhe sendo aplicável o regime da revista excecional (prevista no art.672º do CPC). II- Não se verifica a oposição de acórdãos relevante para efeitos do art.14º do CIRE quando o acórdão recorrido e o acórdão fundamento não fazem uma diferente interpretação do conceito de “sustento minimamente digno do devedor” (para efeitos de fixação do montante indisponível, nos termos do 239º, n.3, alínea b) do CIRE), apenas divergindo parcialmente nos seus concretos sentidos decisórios por terem assentado em factualidades distintas. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.232/21.8T8RMZ-C.E1.S1 Recorrente: AA
Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO 1. O insolvente AA requereu a exoneração do passivo restante. Decorridos os pertinentes trâmites legais, a primeira instância deferiu esse pedido e determinou que: «(…) durante o período de cessão, de três anos, contados desde o encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir se considere todo cedido à fiduciária ora nomeada, com exclusão da quantia mensal correspondente a uma retribuição mínima mensal garantida em vigor, doze meses por ano.»
2. Inconformado com a decisão respeitante ao montante excluído da cedência à fiduciária, por considerar tratar-se de montante insuficiente ao seu sustento, o insolvente interpôs recurso de apelação. Porém, o TRE, por acórdão de 25.01.2023, confirmou a decisão da primeira instância. 3. Discordando desse acórdão, o insolvente interpôs o presente recurso, que qualificou como “revista excecional”, com base no art.672º, n.1, alínea c) do CPC, por entender existir oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão do TRE, de 10.04.2014, proferido no processo n.94/13.9TBCUB-B.E1)[1], que indicou como acórdão fundamento. Subsidiariamente, sustentou ainda a admissibilidade do recurso no art.672º, n.1, alínea a) do CPC. Nas suas alegações de recurso, a recorrente formulou 50 conclusões, que aqui se não transcrevem por se traduzirem, essencialmente, numa repetição da matéria de facto exposta no corpo dessas alegações. 4. Distribuídos os autos no STJ, e prefigurada a não admissibilidade do recurso, foram as partes notificadas para se pronunciarem nos termos do art.655º do CPC (ex vi do art.17º do CIRE). 5. Em resposta a essa notificação, veio o recorrente reiterar o seu entendimento sobre a admissibilidade da revista, reafirmando a ideia de existir oposição de acórdãos relevante para efeitos do art.14º do CIRE, bem como a admissibilidade da revista excecional nos termos do art.672º do CPC. 6. Em 08.05.2023, foi proferida decisão singular que, nos termos do artigo 652º, n.1 alínea h), ex vi do artigo 679º do CPC e do artigo 17º do CIRE, julgou findo o recurso por não haver que conhecer do seu objeto. 7. O recorrente apresentou reclamação contra tal decisão, pedindo que a mesma fosse submetida à Conferência.
* II. FUNDAMENTOS 1.) O recorrente veio reclamar contra a decisão singular, proferida em 08.05.2023 (que entendeu que o STJ não devia conhecer do objeto do recurso). Sintetizou as suas razões, apresentando as seguintes conclusões: «1. A decisão, ora reclamada, de não conhecimento do objeto do recurso de revista consubstancia erro sobre a verificação dos pressupostos legais para a admissão do referido recurso, nomeadamente, erro sobre a verificação do pressuposto da oposição do acórdão recorrido com o acórdão fundamento. 2. A questão conhecida no acórdão recorrido que se mostra em oposição à questão conhecida no acórdão fundamento consiste, dentro do tema da concretização do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar, na concreta questão da (in)suficiência de um salário mínimo nacional para a subsistência condigna de um Insolvente num contexto em que as despesas alegadas não tenham sido todas comprovadas. 3. No acórdão recorrido e no acórdão fundamento, foi feita uma diferente interpretação e aplicação “do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor” (art.º 239.º, n.º 3, al. b), parágrafo i) do CIRE) por referência a uma mesma situação factual concreta, em que as despesas alegadas não tinham sido todas comprovadas. 4. Houve uma ponderação diferente dos mesmos factos essenciais dados como provados e não provados, à luz do que se entende por “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor”, em sede de incidente de exoneração do passivo restante. 5. Diferentemente do acórdão recorrido, no acórdão fundamento teve-se em consideração não só as despesas provadas, mas também as despesas não provadas pela insolvente para a determinação do valor do rendimento indisponível e, consequentemente, acima do salário mínimo nacional, designadamente, despesas com alimentação, vestuário e higiene da insolvente (cfr. no mesmo sentido, excerto acima transcrito do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 16/05/2013, proferido no proc. n.º 4466/11.5TBGMR-F.G1, que excluiu um determinado valor do rendimento a ceder ao Fiduciário apenas por conta de despesas com saúde ainda que não totalmente comprovadas). 6. No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação julgou que a falta de prova (designadamente, documental ou testemunhal) das despesas invocadas pelo Insolvente (ora Reclamante) levaria ao afastamento da respetiva valorização, e confirmou a decisão do Tribunal de Primeira Instância que fixou o montante correspondente a uma retribuição mínima mensal garantida como o montante necessário para o sustento minimamente digno do Reclamante. 7. Ou seja, em face dos factos dados como provados pelo Tribunal de Primeira Instância, designadamente a composição do agregado familiar apenas pelo devedor, considerou adequado um salário mínimo nacional para a respetiva subsistência condigna. 8. Em sentido contrário, no acórdão fundamento, o Tribunal da Relação considerou, para um agregado familiar composto apenas por uma pessoa (o Insolvente), um valor significativamente superior a um salário mínimo nacional. 9. Sendo que, no caso subjacente ao acórdão fundamento, tal como no caso “sub judice”, a Insolvente também não tinha apresentado quaisquer comprovativos relativamente a diversas despesas alegadas, tais como despesas com alimentação, vestuário, calçado e higiene e, ainda assim, foram as mesmas consideradas pelo Tribunal da Relação 10. Apesar da relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão recorrido e a questão de direito apreciada no acórdão fundamento, bem como da similitude da situação factual subjacente (existência de despesas provadas, mas também não provadas) num e noutro acórdão, o Tribunal da Relação, no acórdão recorrido, entendeu (erradamente) desconsiderar as despesas invocadas pelo Insolvente (ora Reclamante), que não tivessem sido objeto de prova (designadamente, documental ou testemunhal). 11. Esta oposição revelou-se essencial na determinação do resultado, que foi oposto num e noutro acórdão, uma vez que, no acórdão recorrido, a fixação do valor do rendimento indisponível limitou-se ao valor do salário mínimo nacional, enquanto no acordo fundamento, ultrapassou significativamente aquele valor. 12. Por fim, estando em causa a fixação do valor do rendimento indisponível do Insolvente necessário à sua subsistência condigna, sempre estaria em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica (capaz de influir na decisão da causa), seria claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, donde decorreria, igualmente, a admissibilidade da revista excecional por via do disposto no art.º 672.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE. Nestes termos, requer-se a V. Exas. que seja revogada a decisão singular proferida pela 6.ª secção deste Supremo Tribunal de Justiça, datada de 08/05/2023, ora posta em crise, e, consequentemente, seja apreciado o objeto do recurso de revista apresentado pelo Reclamante, com todas as consequências legais.»
2.) O reclamante reitera e repete, na essência, os argumentos que já havia apresentado nas suas alegações de recurso. Os fundamentos da sua posição reconduzem-se, em síntese, a duas ordens de razões. Por um lado, o recorrente insiste em defender que no caso concreto devia haver revista excecional, com base no art.672º, n.1, alínea a) do CPC. Por outro lado, entende que, mesmo aplicando o art.14º do CIRE, o tribunal devia concluir que existiria oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento quanto ao modo como havia sido apreciada a questão do rendimento “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor” [art.239º, n. 3, al. b), parágrafo i) do CIRE].
Constata-se que tais questões foram devidamente respondidas na decisão reclamada, a qual fez a correta aplicação da lei e seguiu a jurisprudência que reiteradamente tem sido produzida pelo STJ, particularmente a desta 6º Secção (à qual cabe a competência específica em matérias de natureza insolvencial). Subscreve-se, assim, a fundamentação e o dispositivo da decisão reclamada, que aqui se transcreve e para a qual se remete: «1. A questão da admissibilidade do recurso. 1.1. Está em causa um acórdão proferido no incidente de exoneração do passivo restante, a correr nos autos de um processo de insolvência (no qual o agora recorrente foi declarado insolvente), pelo que ao presente recurso tem aplicação o regime específico previsto no artigo 14º do CIRE e não a revista excecional prevista no art.672º do CPC. Por esta razão, foi o recorrente notificado (no despacho proferido ao abrigo do art.655º do CPC) que, nos termos do art.193º, n.3 do CPC, se corrigia oficiosamente a errada qualificação do recurso, não sendo este tramitado como revista excecional, mas sim como revista prevista no art.14º do CIRE. 1.2. Dispõe o art.14º do CIRE: Por se tratar de uma regra específica do recurso de revista em matéria de insolvência, esta disposição afasta as regras previstas nas várias alíneas do art.672º, n.1 do CPC respeitantes à “revista excecional” em geral, como a jurisprudência do STJ tem entendido. Veja-se, por exemplo: - Acórdão do STJ, de 09.11.2022 (relatora Maria Olinda Garcia)[2], no processo n. 13509/20.0T8SNT-D.L1.S1, no qual se sumariou: “O art.14º do CIRE estabelece um regime específico de admissibilidade do recurso de revista em matéria de insolvência, baseado na oposição de acórdãos, que afasta o regime geral da revista excecional (previsto no art.672º do CPC).”
- Acórdão do STJ, de 26.05.2021 (relator Pinto de Almeida)[3], no processo n. 5483/12.3TBFUN-I.L1.S1: “(…) o regime de recursos previsto no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, é um regime especialíssimo, o qual afasta o regime geral recursivo e todas as impugnações gerais que constam do art. 629.º do CPC, assim como afasta o regime respeitante à revista excepcional”. Como decorre do art.14º do CIRE, os tribunais da Relação são, em regra, a última instância em processos de insolvência, dada a natureza urgente do processo em causa (art.9º do CIRE). Assim, para que o STJ seja chamado a pronunciar-se, orientando a jurisprudência em tais tipos de processos, é necessário concluir, previamente, que existe uma frontal oposição de entendimentos (expressos em dois acórdãos) sobre a aplicação de determinada solução legal a quadros factuais equiparáveis, e que tal divergência se projeta decisivamente no modo como os casos foram decididos. Para se concluir que dois acórdãos decidiram de forma oposta a mesma questão fundamental de direito é necessário que se tenham baseado em factualidades tipologicamente equiparáveis e, essencialmente, que a razão dos diferentes sentidos decisórios tenha sido, precisamente, o diferente entendimento quanto às normas aplicadas para decidir a mesma questão. Tal oposição não se verificará quando as divergências decisórias assentem nas particularidades factuais de cada um dos casos concretos, e não num diferente modo de interpretar a mesma norma. Sobre o âmbito de aplicação do artigo 14º do CIRE na jurisprudência do STJ (particularmente da 6ª Secção à qual cabe a competência especializada em matéria de insolvência), e especificamente no que respeita à oposição de acórdãos, veja-se, a título exemplificativo, o que se sumariou em excertos de alguns acórdãos mais recentes: - Ac. do STJ, de 26.05.2021 (relator Pinto de Almeida), no processo n. 5483/12.3TBFUN-I.L1.S1: «(…) A oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação. (…)[4]» - Ac. do STJ, de 09.03.2021 (relator José Rainho), no processo n. 4359/19.8T8VNF.G1.S1: «(…) Duas decisões só são divergentes quanto à mesma questão fundamental de direito se têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, e que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso (isto é, que integre a ratio decidendi dos acórdãos em confronto).[5]» - Ac. do STJ, de 16.06.2020 (relatora Ana Paula Boularot), no processo n. 4987/19.1T8SNT.L1.S1: «(…) A oposição de acórdãos pressupõe, assim, que a decisão e fundamentos do acórdão - recorrido se encontrem em contradição com outro relativamente às correspondentes identidades. Se os Acórdãos em confronto assentarem a decisão jurídica numa apreciação factual completamente distinta, não se poderá concluir pela existência de uma contradição jurisprudencial.[6]» 1.3. Uma leitura atenta da fundamentação dos dois acórdãos aqui em confronto permite facilmente concluir que, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, entre eles não existe a divergência essencial exigida pelo art.14º do CIRE, quanto à interpretação do disposto no art.239º, n.3, alínea b) do CIRE, nem quanto à interpretação e aplicação de qualquer outra norma deste diploma. Concluiu-se que os acórdãos em confronto não fizeram qualquer interpretação divergente do direito, nomeadamente do art.239º, n.3, alínea b) do CIRE. Em ambos se identifica uma interpretação coincidente sobre o que deve entender-se por “sustento minimamente digno do devedor”, para efeitos de fixação do montante indisponível. O facto de o acórdão fundamento ter fixado um salário mínimo acrescido de 25% (e não um valor “bem superior ao salário mínimo”, como o recorrente afirma) como rendimento excluído da cedência ao fiduciário baseou-se, exclusivamente, nas concretas circunstâncias factuais desse caso e, concretamente, nas despesas provadas pela insolvente, e não em eventuais despesas não provadas, como o agora recorrente afirma nas suas alegações de recurso. Efetivamente, no acórdão fundamento, a insolvente comprovou ter despesas com renda da casa, eletricidade, água, gás e telefone. Diversamente, no caso do acórdão recorrido fixou-se como rendimento excluído daquela cedência apenas o salário mínimo nacional, porque o requerente não comprovou as despesas que alegou, como a lei lhe impunha (nos termos do art.342º, n.1 do CC) e não comprovou ter outros membros no seu agregado familiar. Não existe qualquer divergência quanto ao modo como nos dois acórdãos foi interpretado e aplicado o art.239º, n.3, alínea b) do CIRE. Efetivamente, o modo como o critério estabelecido no art.239º, n.3, alínea b) do CIRE foi aplicado em cada um dos acórdãos em confronto não apresenta qualquer discrepância quanto à compreensão do seu alcance normativo. Existem, sim, diferenças quanto à factualidade que sustentou cada um dos acórdãos; factualidade essa que foi determinante para as concretas decisões, as quais, em rigor, apresentam apenas uma diferença de 25% no seu quantitativo. 1.4. Como se lê na fundamentação do acórdão do TRE, de 10.04.2014, proferido no processo n.94/13.9TBCUB-B.E1 – acórdão fundamento: «Tendo-se provado que a insolvente, que está divorciada desde 17.09.2008 (presumindo-se que vive sozinha) e, estando desempregada, recebe subsídio de desemprego no valor líquido de € 617,00, provou-se que a mesma tem as seguintes despesas (presumivelmente mensais): € 250,00 de renda da casa; € 50,00 de electricidade; € 10,00 de água; € 30,00 de gás e € 40,00 de telefone – o que perfaz a quantia global de € 380,00. Tal significa que, uma vez descontado este valor, a apelante, conforme esta salienta, acaba por ficar para as restantes despesas (como sejam, e mormente, as despesas com a alimentação e vestuário) apenas e tão só com a quantia de € 153,50. Diz a apelante que a insolvente necessita de fazer face a outras despesas com alimentação, medicamentos, vestuário, calçado, cabeleireiro, artigos de higiene pessoal, artigos de limpeza e de higiene da casa, deslocações entre ... e ... (onde residem os seus familiares), alimentação de algum familiar que a visite - dizendo ainda que se trata de despesas básicas, imprescindíveis à sua subsistência condigna. Todavia, e em certa medida sem razão. Com efeito, conforme já supra referidos, traduzindo-se a exoneração do passivo restante no perdão de dívidas, em prejuízo dos credores e em benefício do devedor, este tem que reajustar os seus hábitos de consumo, havendo apenas que assegurar, ainda que com um mínimo de dignidade, as necessidades básicas deste – o que significa que o devedor não pode assumir a pretensão de continuar a fazer uma vida perfeitamente normal. E o certo é que a apelante acaba por invocar despesas que, no contexto da situação de insolvente em que se encontra, não podem ser consideradas, como sejam as deslocações a ... para visitar os familiares e alimentação de familiares que a visitem e até em certa medida as despesas com o cabeleireiro. E não pode deixar de se ter em consideração que a apelante vive sozinha, não tendo qualquer outra pessoa a seu cargo. Todavia, e dentro do conceito de “sustento minimamente digno” estabelecido pelo legislador, sempre se deverá reconhecer que os tais € 153,50 são manifestamente exíguos para a alimentação, vestuário e higiene da insolvente. Porém, o valor pretendido pela apelante (2 salários mínimos nacionais: € 970,00), para uma pessoa que vive sozinha, também tem que ser considerado como manifestamente exagerado. De resto, actualmente a insolvente até vive com um rendimento bem menor, ou seja, do subsídio de desemprego, no valor de € 617,00. Assim, tendo em conta a necessidade de satisfação destas últimas e de todas as demais provadas despesas, afigura-se-nos como sendo mais ajustado um valor próximo daquilo que recebe a título de subsídio de desemprego, correspondente ao valor de um salário mínimo acrescido de 25%: € 606,25. Com este valor, a insolvente, uma vez descontado o valor das despesas dadas como provadas (supra enunciadas), ainda pode dispor de € 226,25, um valor que se nos afigura de todo ajustado para os efeitos em questão.» Diversamente, no acórdão recorrido, que confirmou a decisão da primeira instância, deu-se como provada a seguinte factualidade: «- O devedor atualmente trabalha na A..., IP, na qual desempenha as funções de médico, pelas quais aufere um vencimento base de 1.859,52€, acrescido de subsídio de alimentação. - O agregado é composto apenas pelo devedor. Com base nesta factualidade, o acórdão recorrido subscreveu a fundamentação da decisão da primeira instância no que respeita à fixação do montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do insolvente, coincidindo, na essência com o sentido interpretativo que se colhe no acórdão fundamento. Assim, entendeu-se no acórdão recorrido (subscrevendo a decisão da primeira instância) que: «Importa considerar que é essencial que o Insolvente altere as suas despesas e as adeque à sua nova situação financeira. Sustento mínimo condigno é assegurar as despesas de alimentação, vestuário no mínimo indispensável e alojamento, que se não for numa zona agradável, será numa mais económica. Note-se que muitas pessoas recebem o ordenado mínimo nacional e nem assim se apresentaram à insolvência. Por fim sempre se dirá que não pode o Insolvente, pela sua condição de insolvente, sair muito mais beneficiado face ao que resultaria num processo executivo, pois é preciso não esquecer que o condão mágico da exoneração do passivo apaga todas as dívidas, decorridos os três anos, permitindo um novo começo (que não sucede nas execuções). E esse novo começo tem o seu preço, a pagar durante três anos. Isso significa que tem que importar um esforço para ser sentido e importar um processo de reaprendizagem de gastos, e não pode implicar a manutenção do nível de vida que antes se tinha.» E concluiu: «Ora, no desconhecimento de que despesas efetivamente suporta, quem compõe o seu agregado familiar e o que fazem, não pode o tribunal conjeturar o que ao apelante cabe comprovar. Desse modo, nenhuma censura merece a decisão recorrida.» 1.5. Os acórdãos em confronto não divergem, assim, quanto ao modo como interpretam o alcance normativo do disposto no artigo 239º, n.2, alínea b) do CIRE. Assentando a diversidade parcial dos casos em confronto apenas nas particularidades das correspondentes factualidades, e não em divergente interpretação de alguma norma do CIRE, não se encontra legalmente justificada, portanto, a intervenção do STJ no sentido de orientar a jurisprudência, que é o primeiro desiderato do art.14º do CIRE ao definir os requisitos de admissibilidade do recurso de revista. Constata-se, assim, que não se encontram preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista exigidos pelo art.14º do CIRE.» *
3.) Uma leitura atenta da fundamentação da decisão reclamada permitirá, certamente, ao reclamante concluir que os argumentos por si apresentados se encontram destituídos de base legal, não lhe assistindo qualquer razão quanto à pretensão da aplicabilidade do regime da revista excecional [art.672º, n.1, alínea a) do CPC], nem quanto à alegada existência de oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento para efeitos de admissibilidade da revista nos termos do art.14º do CIRE. Efetivamente, como se explicitou na decisão reclamada, as factualidades subjacentes aos dois acórdãos não são equiparáveis (contrariamente à insistente afirmação do recorrente). A parcial diversidade do sentido decisório de cada uma dessas decisões assentou, claramente, nas particularidades factuais de cada um dos casos; e não em qualquer divergência quanto ao modo como interpretaram o alcance normativo do disposto no artigo 239º, n.2, alínea b) do CIRE. Concluiu-se, portanto, que a decisão reclamada fez a correta aplicação do direito ao caso concreto, ao não admitir o recurso de revista.
DECISÃO: Pelo exposto, indefere-se a reclamação do recorrente, e confirma-se a decisão reclamada.
Custas pelo recorrente-reclamante (sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar).
Lisboa, 28.06.2023
Maria Olinda Garcia (Relatora) Ricardo Costa António Barateiro Martins
Sumário, art.o 663, n.o 7, do CPC.
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[1] http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/da5cb16d6ebda23680257d0700538467?OpenDocument |