Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2663/10.0GBABF.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ARMÉNIO SOTTOMAYOR
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
EXEMPLOS-PADRÃO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
UNIÃO DE FACTO
RELAÇÃO ANÁLOGA À DOS CONJUGES
MOTIVO FÚTIL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 07/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
Doutrina:
- Anabela Miranda Rodrigues, …, p. 547.
- Fernando Silva, Direito Penal Especial – Crimes contra as Pessoas 3, p. 72 seg..
- Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pp. 3, 25, 29, 32-33;
Direito Penal Português - Parte II - As consequências jurídicas do crime, pp. 241- 244.
- J. Curado Neves, Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, p. 693.
- Maia Gonçalves, Código Penal Português – Anotado e Comentado, p. 515.
- Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II – Os Homicídios, p. 102.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 401.
- Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, p. 57.
- Teresa Quintela de Brito, «O homicídio qualificado (art. 132º)», Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, pp. 215-217, 179-180.
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pp. 63, 69-70, 75.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, 71.º, N.ºS 1 E 2, 131.º, 132.º, N.º2, ALS. A), B), E).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 1.º, 26.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 07-07-2005, PROC. N.º 1670/05 – 5ª SECÇÃO;
-DE 29-4-2009, PROC.º 434/07.0PAMALS1, IN WWW.DGSI.PT
-DE 18-03-2010 - PROC. Nº 1374/07.8PBBCR;
-DE 7-12-2011 - PROC. N.º 830/09.8PBCTB. C1.S1 - 5ª SECÇÃO.
Sumário :

I - O crime de homicídio do art. 131.º do CP constitui o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida. Mas, perante casos especiais de homicídios dolosos resultantes da verificação de circunstâncias ligadas à ilicitude e à culpa, o legislador previu a existência de tipos com moldura penal diversa, qualificado ou privilegiado em função da existência de circunstâncias especiais agravativas ou atenuativas.
II - Sensível à problemática dos maus tratos conjugais, o legislador, na reforma de 2007, aditou aos exemplos-padrão constantes do nº 2 do art. 132º, susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, a alínea b) que, num evidente paralelismo com a situação da al. a), respeita ao homicídio do cônjuge ou ex-cônjuge da vítima ou àquele que, ainda que do mesmo sexo e sem coabitação, com ela mantém ou manteve relação análoga à dos cônjuges.
III - Mesmo sem vínculo formal do casamento, sempre que a mera relação de namoro evolui para uma relação análoga à dos cônjuges, numa comunhão afectiva potenciadora de uma maior desinibição, criam-se, entre os companheiros, deveres de cooperação, de respeito e de protecção, que se prolongam para além do fim da relação.
IV - É neste quadro que se compreende o relacionamento existente entre o arguido e a vítima, o qual se prolongou para além da relação amorosa e justifica que, por algumas vezes e de livre vontade, a vítima se tenha encontrado com o arguido e que se repetissem os contactos telefónicos entre ambos e na véspera do crime tivessem jantado juntos e juntos tivessem ido a alguns bares, bem como tivesse ocorrido a troca de mensagens por telemóvel e que, depois das 3 h da manhã, a vítima tenha acedido a que o arguido entrasse em sua casa para conversarem. Só quando, a determinado momento da conversa, se gera uma discussão e a vítima pede insistentemente ao arguido que abandone a casa, ocorre a agressão que provoca a morte.
V - Perante o modo como o arguido e a vítima se continuaram a relacionar apesar de ter terminado a relação, pese embora o ciúme daquele e a vigilância que exercia sobre ela por suspeitar que a mesma se relacionasse sexualmente com outrem, não deve ter-se por ilidida a relação de confiança existente entre ambos, como motivadora de uma especial censurabilidade no comportamento do arguido causador da vítima. E, assim, ao agredir a vítima de forma brutal, atingindo-a repetidamente na cabeça, no pescoço e no tórax, o arguido ultrapassou as contra-motivações éticas decorrentes do relacionamento paraconjugal, num circunstancialismo revelador de especial censurabilidade, tendo-se, assim, por preenchido o exemplo-padrão da al. b) do n.º 2 do art. 132.º do CP.
VI - Todo o circunstancialismo descrito remete para o «homicídio passional» e não para um plano criminoso. Se a recusa do reatamento da relação com o arguido era um direito que assistia à vítima, que entretanto iniciara um novo relacionamento, o conjunto de circunstâncias apuradas, mormente a vontade do arguido no reatamento da relação pelo qual insistia, não permite qualificar de fútil, isto é, irrelevante, insignificante, sem sentido, o motivo de que o homicídio resultou, julgando-se portanto não verificado o exemplo-padrão da al. e), contrariamente ao que decidira a primeira instância.
VII - O art. 71.º do CP estabelece que a medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, acrescentando no n.º 2 que o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente.
VIII - Passando a aplicar o referido critério, importa considerar o seguinte:
- a ilicitude é muito elevada, dada a circunstância de a agressão ter ocorrido de noite e em casa da vítima, e face ao modo como se desenvolveu, com a vítima procurando fugir ao arguido, alcançando a rua, ali acabando por ser morta, sendo inúmeros, na ordem das dezenas, e extensos os ferimentos causados pelo arguido no corpo da vítima, utilizando para tanto 3 facas, das quais 2 se partiram;
- os factos foram praticados com dolo directo, devendo atender-se aos reflexos na culpa resultante de, nos crimes passionais, a actividade delituosa, motivada por ciúme e despeito, se desenvolver, frequentemente, em estado de obnubilação, com transformação do amor em ódio;
- o arguido assumiu a prática do crime, mas não confessou integralmente os factos, não se tendo apurado a existência de arrependimento sincero;
- a vivência em união de facto do arguido com a vítima, gerou tensão naquele, havendo registo de conflitualidade, tendo o arguido, na sequência de uma discussão, agredido fisicamente S, o que levou à presença da GNR que lhe pediu para sair da residência;
- o arguido tem antecedentes criminais, tendo sido condenado uma vez por crime contra a integridade física;
- o arguido está inserido socialmente, conta com apoio familiar directo e no estabelecimento prisional não se envolve em conflitos,
pelo que se mostra proporcional às necessidades de prevenção, quer geral quer especial, do caso, a pena de 18 anos de prisão [em substituição da pena de 21 anos de prisão fixada pelo tribunal de 1.ª instância].



Decisão Texto Integral:

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            1. No 2º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira, no âmbito do proc. 2663/10.0 GAABF, foi julgado AA, nascido em 14 de Outubro de 1986 e com os demais sinais dos autos, tendo sido condenado, por acórdão de 5 de Março de 2012 do tribunal do júri, na pena de 21 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132 nºs 1 e 2 als. b) e e) do Código Penal, de que foi vítima BB. Pela mesma decisão foi julgado extinto, por falta de queixa, o procedimento criminal relativo ao crime de violação de domicílio, p. e p., pelo art. 190º nº 1 do Código Penal de que o arguido se encontrava também pronunciado. Foi ainda condenado a pagar aos demandantes civis CC e DD, solidariamente, as quantias de € 18.490,80, a título de danos patrimoniais e de € 90.000,00, a título de danos não patrimoniais e ainda a CC a quantia de € 35.000,00 a título de danos não patrimoniais, e a DD, igualmente a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 35.000,00, vencendo juros, até integral pagamento, a importância fixada a título de danos patrimoniais desde a data da notificação ao demandado do pedido de indemnização civil e relativamente às quantias arbitradas a títulos de danos não patrimoniais desde a data do acórdão condenatório.

            Não se conformando com a duração da pena de prisão aplicada, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual concluiu pela forma seguinte:

I - O Tribunal "a quo" ao aplicar 21 anos de prisão efectiva ao arguido violou o princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade, descurando o fim das penas.

II - O Tribunal "a quo" não atendeu à previsão dos artigos 40º e 71º todos do CP

III - A determinação da medida concreta da pena há-de efectuar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral positiva (protecção dos bens jurídicos), quer a prevenção especial (reintegração do agente na sociedade).

IV - As circunstâncias a que se há-de atender para tal são não só as enumeradas no n° 2 do artigo 71° do CP, mas também todas as que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.

V- A pena mostra-se desadequada por não espelhar a culpa do arguido e não ter em conta as necessidades e exigências de prevenção.

VI - As condições pessoais do arguido referidas no relatório social e o seu meio familiar não foram devidamente ponderadas na decisão recorrida daí que se entenda que a pena deva ser atenuada.

VII - As finalidades da aplicação de uma pena residem principalmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade.

VIII - Não só a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, mas também podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial e de socialização.

IX - Assim, a medida da pena deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente, só desta maneira se alcançará uma eficácia óptima dos bens jurídicos.

X - As circunstâncias agravantes e atenuantes conduzem-nos, seguramente, a uma pena muito inferior aos 21 anos e não podemos esquecer que este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, em casos similares de homicídio qualificado, na pessoa do cônjuge ou companheiro, tem fixado a pena aplicada com uma oscilação média entre os 16 e os 20 anos de prisão, reservando as penas superiores a 20 anos de prisão para aquelas situações em que o arguido é julgado e condenado por vários crimes, quer sejam múltiplos homicídios, quer sejam vários crimes graves sobre a mesma vítima.

XI - Para que haja um tratamento igualitário para casos idênticos, salvaguardando a especificidade dos diversos casos, compete ao Supremo Tribunal de Justiça as funções de uniformização de critérios da medida pena.

XII - Tendo em conta tudo o que atrás foi explanado, não tendo o Tribunal "a quo" considerado, na determinação da medida da pena, as circunstâncias previstas nos artigos 40°, 71° todos do Código Penal, foram violadas as disposições legais vertidas nestes artigos.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, com as legais consequências, devendo o douto Acórdão recorrido ser revogado, no que concerne à medida da pena, sendo fixada em 16 anos de prisão, por ser a adequada e justa ao caso concreto, tendo por base casos semelhantes decididos por este Venerando Supremo Tribunal de Justiça.

                        Em resposta, o Ministério Público no tribunal recorrido considerou que, face  à grande intensidade do dolo evidenciada pela violência e brutalidade das agressões reiteradas sobre a vítima, e atendendo às elevadas necessidades de prevenção geral positiva e às exigências a nível da prevenção especial, a pena se apresenta genericamente ajustada, sem prejuízo de poder ser admitida ligeira redução.

            Já o assistente, em extensas conclusões, propende para a confirmação da decisão recorrida.

            Admitido o recurso e remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público emitiu parecer em que, considerando os poderes de cognição do tribunal, suscitou a questão da ocorrência da agravante qualificativa “motivo fútil”, vindo a concluir pela verificação de censurabilidade acrescida face à ponderação das circunstâncias concretas do homicídio. Relativamente à questão da medida da pena, pronuncia-se proficientemente no sentido de a pena ser fixada entre os 18 e os 19 anos de prisão.

            Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal, apenas o assistente usou do direito de resposta, tendo, nomeadamente, considerado que as motivações torpes, fúteis, desproporcionadas e insignificantes que impeliram ao cometimento do crime, a falta de arrependimento sincero do arguido, o seu calculismo e frieza revelados em julgamento, levam a considerar a pena aplicada como necessária, proporcional e adequada à especial censurabilidade e perversidade do crime.

            Não tendo sido requerida a realização de audiência, os autos foram a vistos e vêm à conferência para decisão. 

            2. Os factos que o tribunal do júri considerou provados são os seguintes:
1º- O arguido AA e BB viveram maritalmente durante cerca de 1 ano, habitando a mesma casa, como marido e mulher, e assim sendo considerados pelas respectivas famílias e por todos os que com eles se relacionavam, tendo-se separado e terminado essa relação análoga à dos cônjuges em Junho de 2010.
2º- No dia 29 de Setembro de 2010, BB e o arguido AA jantaram juntos, após o que foram a alguns bares na zona da Oura, Albufeira e posteriormente na zona da baixa de Albufeira, onde permaneceram juntos até cerca da 01.00 hora do dia 30 de Setembro de 2010, altura em que BB regressou a casa sozinha, onde chega cerca da 01.45 horas.
3º- O arguido AA deslocou-se ao bar “... Bar” onde permaneceu até ao fecho do bar, à espera do seu amigo EE, barman no referido bar, com quem foi ao “...”.
4º- No “...” o arguido AA teve uma conversa com FF, onde insinuou que este mantinha uma relação amorosa com a BB, e que ele tinha mantido relações sexuais com ela, e pediu-lhe para se afastar de BB.
5º- À saída do “...”, o arguido enviou um SMS à BB a perguntar se a mesma estava em casa, e encontrou-se com o seu amigo EE, que lhe deu boleia, deixando-o na praça de táxis de Albufeira.
6º- Durante este período de tempo BB e AA trocam telefonemas e SMS’s, sendo que a última SMS enviada pela vítima foi às 02.34 horas e do arguido para a vítima às 03.05 horas, à qual não obteve resposta.
7º- O arguido deslocou-se a casa de BB, sita em Vila Branca, Torre da Mosqueira, Albufeira, onde chegou a hora concretamente não apurada, mas situada entre as 3.05 horas e as 4 horas do dia 30 de Setembro de 2010, tendo BB acedido a que o arguido entrasse em sua casa para conversarem.
8º- A determinado momento da conversa gerou-se uma discussão entre ambos, tendo a vítima pedido insistentemente ao arguido que abandonasse a sua casa, dizendo-lhe que se o não fizesse chamaria a GNR.
9º- O arguido recusou-se a sair da casa da vítima, permanecendo na mesma contra a vontade de BB.
10º- Então, de modo não concretamente apurado, o arguido apoderou-se de uma faca de cozinha e com a mesma desferiu golpes no corpo de BB, quando se encontravam no quarto da mesma, no 1º andar da residência.
11º- Entretanto BB conseguiu fugir para o andar de baixo e em direcção à porta da rua, sendo perseguida pelo arguido, que com uma faca de cozinha, continuou a golpear BB em diversas partes do seu corpo.

12º- Enquanto era perseguida pelo arguido e já na via pública, BB gritava e pedia ao arguido para que este parasse.
13º- BB, num último esforço, ainda conseguiu atravessar a rua, vindo a cair no passeio do outro lado da rua, onde o arguido continuou a esfaqueá-la em diversas partes do seu corpo e com uma faca de cozinha.
14º- De seguida, o arguido sentou-se em cima de BB, que se encontrava deitada de ventre para cima, segurando uma faca de cozinha com as duas mãos, novamente golpeando-a no corpo.
15º- Nas circunstâncias atrás referidas e ao observar o aí descrito, GG, vizinho de BB, ainda gritou para o arguido pedindo-lhe que parasse.
16º- Os golpes acima referidos, desferidos pelo arguido no corpo de BB, com recurso sucessivo a, pelo menos, três facas, atingiram-na em várias partes do corpo, nomeadamente, no pescoço e nas costas.
17º- Para desferir os golpes no corpo de BB, o arguido utilizou sucessivamente, pelo menos, três facas de cozinha, das quais se partiram duas, facas essas que antes se encontravam num faqueiro existente na cozinha do apartamento de BB, e de que o arguido se apoderou.
18º- Como consequência directa e necessária das agressões de que foi vítima por parte do arguido, BB sofreu as lesões melhor descritas no relatório de autópsia, que aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, nomeadamente:
Cabeça: Equimose frontal; dezassete feridas pérfuro-incisas, de várias profundidades, algumas atingindo o plano ósseo, medindo a menor 2,0cm e a maior 11cm, localizadas nas regiões parietais, occipital, temporal direita e facial; ferida incisa lacerante do pavilhão auricular direito; ferida contusa na região labial superior, com fracturas alveolares e avulsão traumática dos incisivos superiores do lado esquerdo. Infiltrações sanguíneas nas regiões temporo-parietais bilateralmente. Infiltração sanguínea dos músculos temporais.
Pescoço: extensa e profunda ferida incisa, antero-lateral, estendendo-se de uma região lateral à outra, com secção completa das estruturas anatómicas do pescoço, nomeadamente dos vasos cervicais, da traqueia e do esófago, expondo o plano ósseo (vértebras cervicais).
Tórax: diversas feridas pérfuro-incisas, medindo a menor 2,5cm e a maior 14cm, na região torácica anterior e posterior.
Abdómen: equimose no hipocôndrio direito.
Membros superiores: escoriações no cotovelo direito, diversas feridas incisas nas mãos, nos antebraços e braços bilateralmente e na região deltóidea direita.
Membros inferiores: escoriações e equimose nos joelhos.
19º- Estas lesões, provocadas pela actuação do arguido, determinaram uma hemorragia externa aguda, na sequência de esgorjamento e foram causa directa e necessária da morte de BB.
20º- O arguido AA estava convencido que a sua ex-companheira BB mantinha relacionamentos amorosos com outros homens.
21º- Por motivo de ciúmes de BB e por não se conformar com a decisão daquela em recusar o reatamento da relação entre ambos, o arguido quis agir conforme o descrito, querendo atingir as regiões corporais de BB, sua ex-companheira, que efectivamente atingiu, sabendo que nessa zona do corpo existem órgãos vitais, com a intenção de lhe tirar a vida, o que conseguiu.
22º- O arguido sabia que os instrumentos que utilizava e as zonas sensíveis do corpo que atingia conduziam, inevitavelmente, à morte da BB.
23º- O arguido sabia que não podia permanecer na casa de BB depois desta lhe ter dito para sair.

24º- Agiu, sempre livre deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
25º- No certificado do registo criminal do arguido consta a seguinte menção:
-No processo sumaríssimo n.º 344/08.3GCSLV do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Silves, por sentença datada de 30/9/2009, relativa a factos de 20/12/2008, o arguido foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º do Código Penal, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 5,50 euros, perfazendo a quantia de 385 euros.

26º- O arguido cresceu junto da família natural. Foi o quarto de cinco irmãos rapazes, havendo uma diferença de 10 anos entre os 3 primeiros e os dois mais novos.

27º- O arguido nasceu na zona de Viseu, onde se referencia a família paterna, mas desde os 2 anos que se fixou no Algarve - Salir, uma vez que o pai ficou aqui efectivo como professor de música. A mãe, além de participar nalguns grupos musicais com o pai, foi basicamente, doméstica. O agregado familiar inseria-se num contexto social de classe média, ainda que dentro de padrões de significativa contenção económica, dada a dimensão do agregado.

28º- Embora sociável, em sentido de exercer uma certa sedução e popularidade entre os pares, o arguido foi sempre um jovem que procurou algum isolamento, apreciando ficar em casa, escrever e desenhar, alturas em que também interagia pouco com a família. Com início na fase da adolescência, houve registo de ataques de pânico recorrentes, dando conta de uma efervescência emocional de difícil controlo e elaboração, ainda que não assumidos como um problema desta natureza.

29º- O arguido frequentou regularmente a escola, com bons resultados, até à conclusão do 9º ano. A mudança para a fase do ensino secundário surge marcada por piores resultados. Embora tivesse optado pela área que mais correspondia aos seus interesses – artes – desinteressou-se da escola, acabando por sair do sistema de ensino convencional no 11º ano.

30º- Após, ingressou na Escola Profissional ..., no curso de Técnico de Turismo, com vista a concluir o 12º ano, o que não chegou a acontecer. Veio a abandonar os estudos aos 18 anos, com uma certa ânsia de independência e de ganhar o próprio dinheiro, aliciado pela possibilidade de trabalhar como barman em espaços de diversão nocturna, em Albufeira.

31º- O arguido manteve a actividade barman em espaços de diversão nocturna, em Albufeira, entre os 18 e os 24 anos, com um carácter mais duradouro apenas nos meses de verão, sempre sem vínculo e com constantes mudanças nos estabelecimentos, embora trabalhasse preferencialmente num bar gerido pelo irmão mais velho. Complementarmente, nas alturas de menos trabalho executava trabalhos gráficos/ publicitários, a título particular.

32º- No verão de 2008, com 22 anos de idade, em contexto de trabalho e diversão, o arguido conheceu BB, cidadã francesa, de férias na zona. Seguiram-se contactos por mensagens on line.

33º- BB veio viver para Portugal e juntou-se em união de facto com o arguido no verão de 2009.

34º- A vivência em união de facto com BB gerou alguma tensão no arguido, havendo registo de alguma conflitualidade.

35º- Para além de se divertir e sair com amigos, o arguido mostrou-se apreciador de algum isolamento e hábitos mais individuais, como leitura, escrita e desenho.

36º- Os pais do arguido proporcionaram-lhe um estilo educativo do tipo permissivo.

37º- O arguido apresenta dificuldades relevantes em fazer face às exigências normativas, nomeadamente em contexto escolar ou laboral e em particular quando implicavam alguma contrariedade dos seus interesses, como tolerar a crítica ou sujeitar-se a tarefas que gostasse menos, tendendo então a sair da situação.

38º- Algumas competências positivas como a capacidade de iniciativa e de desempenho, bem como uma auto-imagem positiva vieram a favorecer que a vida corresse bem ao arguido, neste registo de sucessivas mudanças e superficialidade das ligações, indissociando-se a vida laboral da vida lúdica, num registo de diversão nocturna.

39º- No estabelecimento prisional, o arguido revela uma razoável capacidade adaptativa ao meio prisional, nomeadamente com estratégias positivas para lidar com esta situação adversa.

40º- Em meio prisional, o arguido concluiu o 12º ano, através do sistema de “Novas Oportunidades”. Propôs-se aos exames nacionais para ingresso na universidade – curso de belas artes – tendo sido aprovado na prova de português e reprovado na prova de desenho, que tenciona repetir.

41º- No estabelecimento prisional, o arguido não se envolve em conflitos, é sociável e educado. Chegou a ter a seu cargo a responsabilidade e organização de espaço da biblioteca, no entanto revelando-se mais interessado em tirar partido deste espaço para si, fazendo só o que gostava e não atendendo a situações que não correspondessem tanto aos seus gostos e interesses, pelo que foi retirado destas funções.

42º- O arguido conta com o apoio familiar directo, nomeadamente através de visitas regulares.

43º- O arguido apresenta-se como um indivíduo jovem-adulto, com indicadores de maturidade intelectual. Integrado numa família coesa, com padrões educativos de relativa tolerância, mostrou-se facilitado um percurso de vida isento de conflitos de maior, sendo o arguido habitualmente agradável no trato, embora superficial. Assinalou-se uma precoce autonomização, não contrariada pela família, apesar dos indicadores de alguma impreparação para o efeito e, sobretudo, para fazer face ao impacto negativo de uma escolha profissional ligada à diversão nocturna.

44º- Na sequência de queixas do arguido quanto a sensações de cansaço, foram-lhe prescritos medicamentos ansiolíticos.
Com relevância para a decisão da causa resultaram provados ainda os seguintes factos:
45º- BB e o arguido conheceram-se cerca do Verão de 2009, altura em que aquela, que residia em França, veio passar férias a Albufeira.
46º- Então, conheceu o arguido que trabalhava num bar, e iniciaram um namoro, que se manteve após o regresso de BB a França.
47º- Posteriormente, BB regressou a Portugal e manteve o namoro com o arguido, o qual, ainda veio a conhecer os pais daquela.
48º- Entretanto, BB e o arguido iniciaram uma vida em comum, habitando a mesma casa e vivendo como se fossem marido e mulher.
49º- Em 22 de Janeiro de 2010, BB, pelo preço de 157.000 euros, adquiriu uma fracção autónoma do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, sito no ..., onde passou a viver com o arguido.
50º- Em parte do ano de 2010, BB trabalhou na Loja ..., na Guia.
51º- Executando também trabalhos de promoção em eventos de automobilismo, e como animadora num hotel.
52º- Enquando viveram juntos, BB e o arguido discutiam entre si.
53º- Acabando por se separar.
54º- Na sequência de uma discussão, no inicio de Julho de 2010, o arguido agrediu fisicamente BB, levando à comparência da GNR, que pediu ao arguido para sair da residência.
55º- Após estes factos, HH, tia de BB, veio a Portugal e apoiou-a.
56º- Enquanto se mantiveram separados, o arguido vigiava BB e procurava-a.
57º- Nesse período, por algumas vezes e de livre vontade, BB encontrou-se com o arguido, para além de se repetirem contactos telefónicos entre ambos.
58º- No verão de 2010, BB iniciou um relacionamento com outra pessoa, e não queria reatar a relação com o arguido.
59º- No entanto, o arguido insistia em reatar a relação com BB e continuou, por vezes, a vigiá-la.
60º- Nas circunstâncias referidas no facto provado 6º, o arguido e BB trocaram mensagens de telemóvel, designadamente:
- às 01h27m BB enviou-lhe uma mensagem com o seguinte teor: «É sempr igual ctg»;
- às 01h28m o arguido respondeu por escrito “Igual ?“;
- às 02h08m o arguido voltou a enviar a BB outra mensagem escrita em que diz «BB o kefases kmg é mt mal... »
- às 02h09m BB responde “Não AA!!!!”
- às 02h 13m o arguido volta a escrever mensagem “BB tas diferente
apenas isu.. . eu amv te!”

- às 02h19m BB responde “diverte”
- às 02h26m o arguido escreve «Pkfoste embora?”
- às 02h27m BB responde “eu tava kansada”
- às 02h28m o arguido responde “Epasar umpouko temp kmg? Não?”
- às 02h34m BB responde “diverte”
- Às 03h05 o arguido escreve... “A?ainda tas akordada?”,
61º- Foi após esta troca de mensagens que o arguido se deslocou à residência de BB.
62º- BB nasceu no dia ..., era solteira, natural de ..., de nacionalidade francesa,
63º- Era filha do ofendido CC e de DD, e irmã de ... e ....
64º- O corpo de BB foi trasladado para França, no dia 05 de Outubro de 2010, tendo sido sepultado no cemitério de ..., França no dia 12 de Outubro de 2010, em sepultura adquirida para o efeito pelo Demandante CC.
65º- Com as despesas da trasladação de Portugal para França, aquisição da sepultura e funeral, o Demandante CC despendeu a quantia total de 17.916 euros.
66º- Com a deslocação e alojamento dos Demandantes a Portugal, entre os dias
30 de Setembro e 05 de Outubro, pelo menos, em alojamento para quatro pessoas, o Demandante CC despendeu a quantia de 200 euros.

67º- Por forma a limpar o apartamento de BB, que apresentava vestígios de sangue, o Demandante CC despendeu a quantia de 133,10 euros.
68º- Para proceder á habilitação dos Demandantes como legais herdeiros de BB, foi promovida a celebração de uma escritura de habilitação de herdeiros, para a qual ainda foi necessária a obtenção e tradução de documentos, tudo importando-se em 341,70 euros, e cujo custo foi suportado pelo Demandante CC.
69º- Antes de se estabelecer em Portugal, BB viveu em França com os seus pais.
70º- BB estudou em França, onde frequentou um curso de técnica de farmácia, tendo efectuado um estágio no âmbito desse curso, onde auferia uma remuneração mensal variável, situada entre cerca de 900 euros e cerca de 1.000 euros.
71º- Na data em faleceu BB estava desempregada.
72º- Em Portugal, BB requereu a nacionalidade portuguesa, o que lhe foi concedido.
73º- BB era vistosa e bonita.
74º- Era alegre e bem disposta.
75º- Gostava de conviver com os amigos e familiares,
76º- Era uma pessoa saudável, gozava de boa forma física e saúde.
77º- BB começou a praticar actividades desportivas desde tenra idade, incluindo a patinagem artística.
78º- BB era uma pessoa dinâmica e empreendedora.
79º- Era bondosa e generosa, e amiga do seu amigo,
80º- Era amiga da família, a quem votava grande respeito e carinho, mantendo relações de grande proximidade com os pais, irmãos e outros familiares.
81º- Ao ser golpeada pelo arguido BB estava lúcida e sofreu dores.
82º- Tendo consciência do perigo mortal em que se encontrava.
83º- Não foi assistida por quem quer que fosse, nem ninguém interrompeu o acto do arguido,
84º- Tendo plena consciência de que o arguido não iria parar e de que iria morrer.
85º- BB tentou defender-se das sucessivas agressões do arguido.
86º- Tentou fugir, em vão, sempre perseguida pelo arguido.
87º- BB sempre foi uma filha muito querida e protegida pelos seus pais, que lhe votavam grande carinho e amor.
88º- Os pais de BB tudo fizeram para que ela fosse feliz e se sentisse realizada.
89º- Após a morte de BB, os Demandantes CC e DD regressaram a França com o corpo de sua filha.
90º- Desde o dia 30 de Setembro de 2010, os Demandantes CC e DD deixaram de trabalhar, por estarem muito perturbados psicologicamente, e necessitarem de cuidados psiquiátricos.
91º- A Demandante DD continua a não trabalhar, evita sair de casa, e toma medicamentos para tratamento da depressão
92º- O Demandante CC, após meses de baixa médica, regressou ao trabalho, mas continuando a ser medicado.
93º- Os Demandantes CC e DD perderam a alegria de viver, e as suas vidas perderam grande parte do sentido,
94º- Vivendo atormentados com o sofrimento que a filha enfrentou até ao momento da sua morte, às mãos do arguido, pessoa que eles conheciam e com quem conviveram.
95º- E sentindo profunda revolta pelo sucedido.
96º- O arguido manifestou total desprezo pela vida de BB.
97º- Com a morte de BB, os seus irmãos - Demandantes ... e ... - ficaram destroçados,
98º- Sofreram e sofrem enorme desgosto e tristeza pela perda da irmã e a forma como a mesma foi, brutalmente, arrancada á vida.
99º- Vivendo com grande angústia e sofrimento.
100º- O Demandante ... teve mesmo necessidade de recorrer a acompanhamento psiquiátrico.

                Não tendo sido impugnada no recurso a matéria de facto, integralmente aceita pelo arguido e não se verificando a existência de qualquer um dos vícios previsto no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal de que cumpra oficiosamente conhecer, tem-se a matéria de facto por fixada.
 
            3.  Como resulta das conclusões do recurso apresentadas pelo arguido, este apenas contesta a medida concreta da pena, aceitando por consequência a qualificação dos factos a que o tribunal procedeu.

            Contudo, o Ministério Público neste Supremo Tribunal, embora tenha concluído pela verificação da existência da circunstância “motivo fútil” prevista na al. d) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, não deixou de suscitar a questão da qualificação jurídica dos factos, opinando no sentido da ocorrência de uma situação de especial censurabilidade ou perversidade resultante de ser fútil o motivo de actuação do arguido.

            Podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer oficiosamente da questão da qualificação jurídico-criminal dos factos, começaremos pela análise dessa matéria.

            4.  O arguido vem condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131º e 132º nºs 1 e 2 als. b) e e).

            O crime de homicídio do art. 131º do Código Penal constitui o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida (cfr. Jorge Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 3, e autores ali citados). Perante casos especiais de homicídio doloso resultantes da verificação de circunstâncias ligadas à ilicitude e à culpa, o legislador previu a existência de tipos com moldura penal diversa, qualificado ou privilegiado em função da existência de circunstâncias especiais agravativas ou atenuativas.

            É neles que se integra o tipo legal do art. 132º do Código Penal, uma forma agravada de homicídio em resultado da existência de circunstâncias que revelem, por parte do agente, especial censurabilidade ou perversidade na respectiva actuação. Haverá, pois, conforme refere Figueiredo Dias, que “recusar logo à partida quer que o homicídio qualificado constitua o tipo legal básico dos crimes dolosos contra a vida, de que o homicídio simples constituiria apenas uma forma atenuada, quer que o homicídio e homicídio qualificado constituam tipos legais autónomos, com autónomos «conteúdos de ilícito», se bem que protectores do mesmo bem jurídico”. (op. cit., pág. 25). É também neste sentido que o Supremo Tribunal de Justiça se tem pronunciado, como fez no ac. de 23-10-2008 – Proc nº 2856/08 – 5ª Sec.: “É preciso recordar que o crime base neste domínio é o de homicídio simples, no qual o agente manifesta, quase sempre, o tal “profundo desprezo pela vida humana”, já que, por definição, age com dolo (na maioria das vezes directo, isto é, pretende e tem o desejo de matar) e fá-lo por um motivo qualquer, que quase nunca se pode avaliar positivamente, por exemplo, por vingança, por vaidade ou por afirmação de grupo. O homicídio qualificado há-de ter, por isso, algo que se deva acrescentar a essa culpa já intensa, que a torne especialmente censurável.”
A qualificação resulta, assim, ainda segundo a lição de Figueiredo Dias, “da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.” Sendo certo que, “dominantemente, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto” (Teresa Serra, Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 63). Para esta autora, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete. No homicídio qualificado o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do art. 132º ao caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou de outra circunstância susceptível de preencher o chamado Leitbild dos exemplo-padrão.” Ou, conforme se afirmou em acórdão deste Supremo Tribunal, de 07-07-2005, proc. 1670/05 – 5ª sec: “é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da acção do agente ou um aspecto especialmente desvalioso da sua personalidade documentado no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude se concretize em qualquer dos exemplos-padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga. É que estes são elementos típicos, embora atinentes ao tipo de culpa e não ao tipo de ilícito e daí que, mesmo no caso de ocorrência de outra circunstância que não a exactamente prevista, esta tenha de assentar numa estrutura valorativa correspondente à do respectivo exemplo-padrão.”

            4.1  O acórdão recorrido justificou do seguinte modo a qualificação dos factos a que procedeu:

            “No caso da al. b) trata-se de praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau. Esta qualificação, introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, abrange as relações conjugais e as análogas, incluindo tanto as uniões de facto entre pessoas de sexo diferente, como entre as pessoas do mesmo sexo.

No caso da al. e) trata-se de ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil. Aqui faz-se notar que por motivo torpe ou fútil se entenderá o motivo, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana (Autor e obra supra citada, pág. 32 e 33).

Em qualquer dos casos, a punição pelo tipo do homicídio qualificado não se basta com a mera verificação de uma das circunstâncias elencadas no n.º 2 do art.º 132, que não são taxativas, exigindo-se sempre a verificação de uma especial censurabilidade ou perversidade, portanto de um juízo de censura superior ao que se encontra contido na previsão do tipo de homicídio simples- crime este já de acentuada gravidade (vide ainda, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/2/2009 e 26/11/2008, in www.dgsi.pt/jstj).”

            E, depois de ter sido feita referência circunstanciada aos factos susceptíveis de integrar cada um dos referidos exemplos-padrão, concluiu:

“Do mesmo modo estão preenchidas as qualificativas previstas nas alíneas b) e e), do art.º 132º do Código Penal.

Com efeito, sabendo-se que o arguido e BB viveram maritalmente durante cerca de 1 ano, habitando a mesma casa, como marido e mulher, e assim sendo considerados pelas respectivas famílias e por todos os que com eles se relacionavam, mantendo uma relação análoga à dos cônjuges, e que tal sucedeu até Junho de 2010, ou seja, cerca de 3 meses antes da data dos factos aqui em causa, então, teremos de considerar que entre eles havia uma união de facto e, consequentemente, que o arguido praticou o facto contra pessoa com quem manteve uma relação análoga à dos cônjuges, nos termos previstos na al. a) do n.º 2 do art.º 132º do Código Penal.

Por outro lado, as circunstâncias relativas à prática do homicídio, sempre deveriam ser considerados como reveladoras de uma especial censurabilidade. Assim é porque a vitima é atacada no interior da sua própria casa (onde o arguido se dirigiu a meio da noite), perseguida em casa e pela via pública, e repetidamente golpeada até ficar inanimada, Acresce que o arguido demonstrou uma profunda insensibilidade pela dor e sofrimento de BB, e desprezo pela sua vida, pois não só manteve a sua intenção de matar durante a perseguição e repetição dos golpes, recorrendo a uma nova faca quando a que usava se partia, como também não foi capaz de se influenciar pelos apelos da vitima e mesmo os avisos de um vizinho.

Assim, para além de estar preenchida uma circunstância susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, no caso, ficou efectivamente demonstrado o preenchimento dessa especial censurabilidade.

Por isso, o arguido deverá ser condenado pela prática do crime de homicídio qualificado.

Acresce que se provou que o arguido estava convencido que a sua ex-companheira BB mantinha relacionamentos amorosos com outros homens, e que o arguido agiu por motivo de ciúmes de BB e por não se conformar com a decisão daquela em recusar o reatamento da relação entre ambos.

Em primeiro lugar assinala-se que a actuação determinada por ciúmes, nos termos em que se provou, é sempre reveladora de uma intolerância e desprezo pela vitima, claramente inaceitáveis. Note-se que aqui trata-se apenas de uma decisão do arguido em não aceitar o fim da relação com BB e a possibilidade desta encetar uma relação com outra pessoa, tudo levando a que se dispusesse a procurá-la na sua própria casa, onde estava sozinha, para a matar. Esta actuação do arguido, portanto, é perfeitamente reveladora de um desprezo pelo direito á autodeterminação de BB, pelo direito desta a agir como pessoa livre.

O comportamento do arguido, que assim age determinado pelo ciúme e recusa em aceitar o fim da relação, nas circunstâncias que se apuraram, nunca poderá conduzir a qualquer atenuação da pena, mas antes, ao preenchimento de uma outra circunstância qualificadora – a da al. e) – dado que a motivação do arguido deverá ser qualificada como motivo fútil. Aliás, como se escreve no acórdão do S.T.J. de 29/4/2009, proc.º 434/07.0PAMALS1, in www.dgsi.pt/jstj, a valorização do ciúme como motivação, em termos atenuativos, é incompatível com um dos valores básicos em que assenta a nossa comunidade política: o respeito pela autonomia individual, pela liberdade de escolha de um projecto de vida por parte de cada pessoa (arts. 1º e 26º da Constituição).

Assim sendo, neste caso, entende-se que o arguido agiu por motivo fútil, porquanto os sentimentos que o levaram à prática do crime são claramente desproporcionados, e manifestamente insignificantes para explicar a prática do crime, sendo ainda reveladores de uma profunda intolerância do arguido e grave desprezo pelos direitos da vítima.

Por conseguinte, e tendo presente tudo o que já se disse quanto ao modo como foi perpetrado o crime, revelador em si de uma especial censurabilidade, entende-se que também está preenchida a qualificativa prevista na al. e) do art.º 132º do Código Penal.”

            4.2  Em causa está, pois, como aliás já resultava da pronúncia, a qualificação do homicídio baseada no disposto nas alíneas b) e e) do nº 2 do art. 132º do Código Penal.

            4.2.1 A alínea b) constituiu um aditamento aos exemplos-padrão introduzido pela reforma do Código Penal de 2007.

            Até então “só quem tem com a vítima uma relação de parentesco na linha recta pode revelar uma superior energia criminosa por ter ultrapassado particulares contra-motivações éticas à decisão do homicídio”.  (Teresa Quintela de Brito, «O homicídio qualificado (art. 132º)», Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, pág. 215-6).  Não estando o conjugicídio contemplado na hipótese da al. a), o legislador mostrou-se “sensível ao problema criminal dos maus-tratos conjugais evidenciados socialmente em grau crescente e coerente com a sua incriminação duma forma agravada” (Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II – Os Homicídios, pág. 102), deste modo satisfazendo “as pressões de alguns sectores da opinião pública e de certos grupos sociais, no sentido da especial censura do homicídio doloso perpetrado no quadro da chamada «violência doméstica»”, como salienta  Teresa Quintela de Brito, (op. cit.,  pág.179-180). Todavia, o legislador não se limitou a prever a agravação do homicídio cometido na pessoa do cônjuge, tendo-o alargado a relações familiares pretéritas e a relações familiares não parentais, ao incluir neste exemplo-padrão o ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação,  

            O exemplo-padrão em causa tem um evidente paralelismo com o da al. a), acerca do qual escreveu Figueiredo Dias: “Não parece exacto, como defende Fernanda Palma, cit. 53, que nestes casos «não é necessária nenhuma motivação especial do agente para que o homicídio seja qualificado. Basta que o agente tenha consciência da sua relação de parentesco com a vítima…». Exacto é, pelo contrário, que ainda nestas hipóteses se exige que a prática do homicídio revele uma especial censurabilidade  ou perversidade do agente, indiciada (mas não «automaticamente» verificada) por aquele ter vencido «as contra-motivações éticas relacionadas com os laços de parentesco»”.  (Comentário, I, pág, 29).

            Alargada ao cônjuge ou ex-cônjuge da vítima ou àquele que, ainda que do mesmo sexo e sem coabitação, com ela mantém ou manteve relação análoga à do cônjuges, a especial censurabilidade ou perversidade  resulta da “particular energia criminosa revelada na ultrapassagem de especiais deveres ético-sociais de respeito inerentes a tais tipos de relacionamento” (Teresa Quintela de Brito, op.cit., pág. 215-7). Conforme acentua Fernando Silva (Direito Penal Especial – Crimes contra as Pessoas 3, pág. 72 seg.): “A relação matrimonial assenta a sua vinculação na comunhão de vida, que pressupõe, principalmente, uma união pessoal. Os cônjuges, pelo enlace matrimonial, assumem um conjunto de poderes-deveres que os coloca numa especial relação, pressupondo um respeito e cooperação mútuos. A comunhão de vida que caracteriza a relação conjugal faz emergir uma nova realidade, a de um casal que vive em comunhão afectiva. … Aos cônjuges exige-se uma especial e recíproca protecção, pelo que a atitude de actuar, lesando a vida do outro, é reveladora de uma energia criminal susceptível de um elevado grau de censura. A decisão de matar o cônjuge traduz, desde logo, a manifestação de um comportamento especialmente grave, próprio de quem vence contramotivações acrescidas, manifestando um elevado grau de culpa, na medida em que o agente, ao cometer tal facto, contraria, em absoluto, aquela que deveria ser a sua atitude perante o seu cônjuge.”

            Mesmo sem o vínculo formal do casamento, sempre que a mera relação de namoro evolui para uma relação análoga à dos cônjuges, numa vivência de comunhão afectiva potenciadora de uma maior desinibição, criam-se, entre os companheiros, deveres de cooperação, de respeito e de protecção, que se prolongam para além do fim da relação. Mas, como acentua Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, pág. 401) “essa desinibição não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado”.

            É neste quadro que se compreende o relacionamento existente entre o arguido e a vítima, o qual se prolongou para além da relação amorosa. O que justifica que, por algumas vezes e de livre vontade, a vítima se tenha encontrado com o arguido e que se repetissem os contactos telefónicos ente ambos (facto nº 57) e que na véspera do crime tivessem jantados juntos e juntos tivessem ido a alguns bares (facto nº 1), bem como tivesse ocorrido a troca de mensagens por telemóvel (facto nº 60) e que, depois das 3 horas da manhã, a vítima tenha acedido a que o arguido entrasse em sua casa para conversarem (facto nº 7). Só quando, a determinado momento da conversa, se gera uma discussão e a vítima pede insistentemente ao arguido que abandone a casa, (facto nº 8) ocorre a agressão que provoca a morte.

            A circunstância de os factos provados preencherem um exemplo-padrão constitui um indício da verificação da condição agravante, embora seja, no dizer de Teresa Serra, uma espécie de presunção ilidível. Mas, para anular o efeito de indício, é necessário, na opinião desta criminalista, que se verifique a ocorrência de “circunstâncias extraordinárias ou, então, [de] um conjunto raro de circunstâncias especiais”, sendo “as atenuantes gerais e especiais … insusceptíveis de contraprovarem o indício dos exemplos-padrão” (op. cit.,  pág. 69-70). Ou seja, como se referiu no ac. STJ de 18-03-2010 - Proc. Nº 1374/07.8PBBCR, “importa verificar a ausência, no caso, de circunstâncias que neutralizem, ou compensem em sentido inverso, o peso agravativo dos exemplos-padrão (ou circunstâncias equivalentes) e que, no limite, poderiam apontar, até, para o homicídio privilegiado.”

            No caso dos autos, apesar de ter terminado a relação, perante o modo como arguido e vítima se continuaram a relacionar, pese embora o ciúme daquele e a vigilância que exercia sobre esta por suspeitar que a mesma se relacionasse sexualmente com outrem, não deve ter-se por ilidida a relação de confiança existente entre ambos, como motivadora de uma especial censurabilidade no comportamento do arguido causador da morte da vítima. E, assim, ao agredir a vítima de forma brutal, atingindo-a repetidamente na cabeça, no pescoço e no tórax, o arguido ultrapassou as contra-motivações ética decorrentes do relacionamento paraconjugal, num circunstancialismo revelador de especial censurabilidade, tendo-se, assim, por preenchido o exemplo-padrão da alínea b) do nº 2 do art. 132º do Código Penal.

             4.2.2   O tribunal de júri considerou também verificado o exemplo-padrão da al. e) do nº 2 do referido artigo 132º, em virtude de ter considerado o motivo do crime como fútil.

            Assim o entendeu também o Ministério Público, nomeadamente neste Supremo Tribunal, escrevendo a tal respeito no seu parecer:  “… se nenhum motivo justifica causar a morte de outrem … a grande desproporção entre o que se elege como motivo da acção e aquilo em que esta se analisa transforma a conduta, não só em algo de todo intolerável, como também absurdo, sem explicação à luz das concepções éticas correntes da sociedade. A razão do cometimento do crime tem um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que com este se provoca. A esta luz, e quanto à apontada circunstância, há então que enfatizar que nos revemos inteiramente no enunciado das circunstâncias da prática do homicídio a este propósito feito pelo Tribunal …”

            Com efeito, fez-se constar do fundamento da decisão que “Em primeiro lugar assinala-se que a actuação determinada por ciúmes, nos termos em que se provou, é sempre reveladora de uma intolerância e desprezo pela vítima, claramente inaceitáveis. Note-se que aqui trata-se apenas de uma decisão do arguido em não aceitar o fim da relação com BB e a possibilidade desta encetar uma relação com outra pessoa, tudo levando a que se dispusesse a procurá-la na sua própria casa, onde estava sozinha, para a matar. Esta actuação do arguido, portanto, é perfeitamente reveladora de um desprezo pelo direito á autodeterminação de BB, pelo direito desta a agir como pessoa livre. O comportamento do arguido, que assim age determinado pelo ciúme e recusa em aceitar o fim da relação, nas circunstâncias que se apuraram, nunca poderá conduzir a qualquer atenuação da pena, mas antes, ao preenchimento de uma outra circunstância qualificadora – a da al. e) – dado que a motivação do arguido deverá ser qualificada como  motivo fútil.”

                 
Foi dado por provado que “o arguido AA, estava convencido que a sua ex-companheira BB mantinha relacionamentos amorosos com outros homens” (facto nº 20º) e que “por motivo de ciúmes de BB e por não se conformar com a decisão daquela em recusar o reatamento da relação entre ambos, o arguido quis agir conforme o descrito, querendo atingir as regiões corporais de BB, sua ex-companheira, que efectivamente atingiu, sabendo que nessa zona do corpo existem órgãos vitais, com a intenção de lhe tirar a vida, o que conseguiu” (facto nº 21).

Como se afirmou no acórdão do S.T.J. de 29-04-2009, proc.º 434/07.0 PAMALS1, (www.dgsi.pt/jstj), “a valorização do ciúme como motivação, em termos atenuativos, é incompatível com um dos valores básicos em que assenta a nossa comunidade política: o respeito pela autonomia individual, pela liberdade de escolha de um projecto de vida por parte de cada pessoa (arts. 1º e 26º da Constituição).” Logo ali se acrescentando que “o recorrente, ao vingar-se na pessoa do novo companheiro da sua ex-companheira pelo facto de ela ter posto termo à relação que mantinha com ele, para iniciar uma relação marital com outro homem, sobrepôs o seu ressentimento pessoal ao dever de respeito pela liberdade de escolha que ela detinha sobre a sua própria vida, e também pela liberdade e autonomia do novo companheiro desta. Essa atitude não pode merecer por parte do direito uma valoração positiva, antes agrava a culpa, pelo desprezo que evidencia pelos valores fundamentais ligados à pessoa humana.”

            Será, porém, um motivo fútil, conforme veio a concluir o acórdão recorrido?

O motivo fútil é segundo as concepções éticas da sociedade, aquele que é gratuito, em que o facto surge como um profundo desprezo pelo valor da vida humana (Figueiredo Dias, Comentário, I, pág. 32-33), ou, no dizer de Maia Gonçalves (Código Penal Português – Anotado e Comentado, pág. 515), “aquele que não tem qualquer relevo, que não chega a ser motivo, que não pode sequer razoavelmente explicar (e muito menos portanto de algum modo justificar) a conduta; trata-se de um motivo notoriamente desproporcionado para ser sequer um começo de explicação da conduta.”

Segundo a opinião de Teresa Serra (op. cit., pág. 75), o ciúme poderá ser motivo fútil dentro de certas condições. Para Figueiredo Dias (Comentário, I, pág. 33), porém, “a situação pode ser uma tal que a motivação, se bem que expressa, não possa em definitivo valer como especial censurabilidade ou perversidade, maxime, por se ligar a um estado de afecto particularmente intenso (v.g., o ciúme ligado à paixão)

Só uma análise minuciosa das circunstâncias do caso permitirá concluir se o ciúme constitui motivo fútil. Como se referiu no acórdão do STJ de 7-12-2011 - Proc. 830/09.8PBCTB. C1.S1 - 5ª Sec. “a paixão ou ciúme que leva a matar a pessoa que se diz amar é um sentimento muito reprovável, pois que não demonstra amor, que é uma dádiva, mas uma enorme frustração pelo sentimento de perda, como se o outro que se diz amar fosse uma coisa apropriável ou já apropriada. E conduz a uma contradição, pois que leva a não querer bem a quem se diz que mais se quer. Mas, também sabemos que matar por ciúme é um tema clássico da arte (o do Otelo que mata Desdémona e as suas múltiplas réplicas na literatura, no cinema, no teatro), o que demonstra que tem sido universal e intemporal. Esperar-se-ia, porém, que hoje em dia, quando vivemos numa sociedade mais aberta, mais informada e mais democrática do que qualquer das anteriores, o ciúme – não podendo desaparecer, pois que é um sentimento natural e espontâneo – não fosse tão patológico e aberrante, ao ponto de alguém querer tirar a vida a outrem só porque essa outra pessoa não corresponde aos afectos que se desejam dar.”

No caso, a agressão surge depois de uma  tentativa de reatamento por parte do arguido, que o jantar entre ele e a vítima e a ida conjunta a diversos bares fazem intuir e que as sms que naquela noite o arguido envia à vítima [«BB o kefases kmg é mt mal... »; «BB tas diferente apenas isu.. . eu amv te!”, «Pkfoste embora?» «Epasar umpouko temp kmg? Não?»] tornam mais evidente. O arguido acaba, então, por ir a casa da vítima, que acedeu a que ele entrasse para conversarem. Todavia, a conversa descamba em discussão, cujo motivo ou teor não foi possível averiguar. Apenas se provou que, em certo momento, a vítima pediu insistentemente ao arguido que saísse da sua casa, ameaçando chamar a GNR. Provado ficou também, como se referiu, que o arguido, convencido que a ex-companheira tinha relacionamentos amorosos com outros homens, age por ciúme e por não se conformar com a decisão dela em recusar o reatamento. Todo este circunstancialismo remete para o “homicídio passional”, entendido como cometido, em regra, “repentinamente, na sequência de um impulso emocional súbito” (J. Curado Neves, Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, pág. 693) e não para um plano criminoso levado a cabo por alguém despeitado, como presumiu o tribunal, ao afirmar que o arguido se dispôs a procurar a vítima na sua própria casa, onde estava sozinha, para a matar.   

Se a recusa do reatamento da relação com o arguido era um direito que assistia à vítima, que até entretanto iniciara um novo relacionamento, o que leva a considerar a conduta do arguido como muito reprovável, o conjunto de circunstâncias, mormente a vontade do arguido no reatamento da relação pelo qual insistia (facto nº 59) não permite qualificar de fútil, isto é, irrelevante, insignificante, sem sentido, o motivo de que o homicídio resultou.
Foi assim, aliás, que se pronunciou este Supremo Tribunal, no referido acórdão de 7-12-2011, em que a situação de facto que motivou a agressão tem contornos muito semelhantes, embora o sentimento de ciúme fosse bem mais doentio.

Ao contrário do decidido, julga-se, pois, como não verificada a agravante qualificativa prevista na al. e) do nº 2 do art. 132º.

5. O arguido, nas conclusões do seu recurso, considera a pena de 21 anos de prisão como violadora dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade,  mostrando-se desadequada por não espelhar a culpa do arguido. E, depois de referir que a medida da pena deve ser dada pela medida de necessidade de tutela dos bens jurídicos, mas que deve evitar a quebra da inserção social do arguido, defende que a pena seja fixada em 16 anos de prisão, o que estaria mais de acordo com as concretas penas que o Supremo Tribunal de Justiça tem aplicado, no âmbito das suas funções de uniformização de critérios de medida da pena.

O Ministério Público na instância recorrida e bem assim neste Supremo Tribunal admitem uma ligeira redução da pena, sugerindo-se, no parecer, que a pena se situe entre 18 e 19 anos de prisão.

            5.1  A determinação da pena concreta, que se reconduz à temática do fim das penas, têm como elementos nucleares de referência a prevenção e a culpa.

            Segundo o art. 40º do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo, porém, em caso algum, a pena ultrapassar a medida da culpa. A pena assume, assim, como finalidade última, para a qual todas as outras convergem, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, ou seja, finalidades de prevenção; quer a prevenção geral, não no sentido negativo de intimidação do delinquente, o que pressupunha a aplicação de penas severas, mas entendida como o reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma que protege os bens jurídicos (prevenção positiva ou de integração); quer a prevenção especial de socialização do delinquente, ou seja de reintegração do agente na sociedade.

            Conforme refere Anabela Miranda Rodrigues (op. cit., pág. 547), “se bem que uma pena socializadora preencha já, no essencial, a função de prevenção geral, a defesa dos bens jurídicos não pode, todavia, alcançar-se desse modo”, mas pela via do afastamento da prática do crime de outros potenciais autores. Com efeito, “onde o meio de prevenção (a ameaça penal) falhou, exige-se a aplicação da pena para que aquela ameaça não seja vazia e a medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face à norma concretamente violada deve determinar a medida da pena”. Verifica-se, portanto, segundo esta autora, uma prevalência da ideia de prevenção geral sobre a prevenção especial, com reflexos na medida concreta da pena. Tudo, porém, dentro do limite consentido pela culpa, pois, por mais fortes que sejam as razões da prevenção, aquele limite nunca por nunca pode ser ultrapassado, em homenagem ao princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, estruturante dum Estado de Direito.

Ao fixar a medida concreta da pena importa, por conseguinte, “determinar as exigências que ressaltam do caso sub iudice, no complexo da sua forma concreta de execução, da sua específica motivação, das consequências que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - Parte II - As consequências jurídicas do crime, pág. 241). Encontrar-se-á, desse modo, uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias consentida pela culpa, a qual admite a existência gradativa de pontos inferiores, em que aquela tutela é ainda efectiva, até se atingir o limiar mínimo abaixo do qual a fixação da pena perde, face à comunidade, a sua função tutelar. Entre aquele ponto óptimo e este limiar mínimo da moldura de prevenção, que a doutrina alemã define como “defesa do ordenamento jurídico” há-de ser fixada a pena concreta, com recurso às razões de prevenção especial de socialização, sempre na mira de evitar a quebra da inserção social do agente, na busca da sua reintegração na sociedade. Todavia, ainda segundo Figueiredo Dias, “decisivo só pode ser o quantum de pena indispensável para que se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.” (op. cit, pág. 243).

A circunstância de ser sentida pela comunidade, cada vez mais fortemente, a reprovação da violência doméstica, aspecto a que a política criminal tem procurado dar resposta, leva a que, nas situações em que o crime for praticado com o recurso a grande violência conforme sucedeu no presente caso, o ponto mínimo para responder às exigências de prevenção geral se situa afastado do limite mínimo da pena.

É certo que o critério da carência de socialização constitui um critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito da medida da pena, de modo que, se tal carência se não verifica, deverá ser conferida à pena a função de “suficiente advertência”, o que permite descer a pena até perto do limite mínimo de defesa do ordenamento jurídico. (Figueiredo Dias, op.cit., pág. 244). Mas, como adverte Roxin, nos crimes capitais, especialmente nos crimes contra a vida, as necessidades de prevenção geral são prevalecentes (Problemas Fundamentais de Direito Penal, pág. 57).

5.2   O art. 71º do Código Penal estabelece que a medida da pena é feita em, função da culpa do agente das exigências de prevenção, acrescentando, no nº 2, que o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente.

Passando à aplicação do critério constante desta norma verifica-se que:

- a ilicitude é muito elevada, dada a circunstância de ter ocorrido de noite e em casa da vítima, e face ao modo como a agressão se desenvolveu, com a vítima procurando fugir ao arguido, acabando por alcançar a rua, ali acabando por ser morta, sendo inúmeros, na ordem das dezenas, e extensos os ferimentos causados pelo arguido no corpo da vítima, utilizando para tanto três facas, das quais duas se partiram, e apresentando o pescoço da vítima “extensa e profunda ferida incisa, antero-lateral, estendendo-se de uma região lateral à outra, com secção completa das estruturas anatómicas do pescoço, nomeadamente dos vasos cervicais, da traqueia e do esófago, expondo o plano ósseo (vértebras cervicais)”;

- os factos foram praticados com dolo directo, que constitui o grau mais elevado da culpa, devendo atender-se aos reflexos na culpa resultante de, nos crimes passionais, a actividade delituosa, motivado pelo ciúme e pelo despeito, se desenvolver, frequentemente, em estado de obnubilação, com transformação do  amor em ódio;

- o arguido assumiu a prática do crime, mas não confessou integralmente os factos, não se tendo apurado a existência de arrependimento sincero;  

            - a vivência em união de facto do arguido com a vítima, gerou tensão naquele, havendo registo de conflitualidade, discutindo entre si, e tendo o arguido, na sequência de uma discussão, agredido fisicamente BB, o que levou à presença da GNR que pediu ao arguido para sair da residência;  

            - o arguido tem antecedentes criminais, tendo sido condenado uma vez por crime contra a integridade física;

             - o arguido está inserido socialmente, conta com apoio familiar directo e no estabelecimento prisional não se envolve em conflitos.

            Tomando em consideração todo este circunstancialismo e atendendo a que competem ao Supremo Tribunal de Justiça funções de uniformização de critérios da medida da pena com vista a um tratamento dos diversos casos tão igualitário quanto possível, uma pena de 18 anos de prisão revela-se mais proporcional do que a fixada pelo tribunal do júri no que respeita às necessidades de prevenção, quer geral quer especial, e está contida na culpa do agente.

DECISÃO

Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça em, oficiosamente,  julgar verificada a circunstância prevista na al. b) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, mas não a da alínea e) da mesma norma e, no parcial provimento do recurso do arguido AA, em ajustar a pena a aplicar pelo crime de homicídio qualificado, fixando-a em 18 (dezoito) anos de prisão, no mais se mantendo a decisão.

Sem custas (art. 513º nº 1 CPP).

Lisboa, 5 de Julho de 2012

Arménio Sottomayor (relator) **
Souto de Moura