Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
747/16.0T8VLG.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: TIBÉRIO NUNES DA SILVA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
EXCLUSÃO DE CLÁUSULA
DEVER DE COMUNICAÇÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO
DEVER DE ESCLARECIMENTO
DEVER DE ESCLARECIMENTO PRÉVIO
ÓNUS DA PROVA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA
INVALIDEZ
Data do Acordão: 03/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Estando-se perante um contrato de adesão e provando-se que não foram adequadamente cumpridos os deveres de comunicação e informação, no âmbito de um contrato denominado “Garantia de Pagamento de Encargos”, deve considerar-se excluída uma cláusula inserta no “Regulamento de Benefícios”, na qual se prevê que “Para todos os efeitos considera-se estado de invalidez permanente o processo de incapacidade a que corresponda uma percentagem igual ou superior a 70% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, mas esta percentagem será corrigida, acrescentando-se-lhe o grau de invalidez que existia à data da inscrição».

II. Uma cláusula deste cariz, destinada a cobrir situações de incapacidade que podem afectar beneficiários com diversos níveis de instrução, diversas profissões ou com diversas aptidões, não pode ser interpretada de forma puramente literal, antes deve ser adaptada a cada concreta situação, sob a perspectiva de um declaratário normal e tendo em conta as regras da boa fé.

III. Provando-se que a autora, “operária indiferenciada”, apresenta incapacidade permanente e absoluta para o exercício da sua profissão habitual (IPATH) e Incapacidade Parcial Permanente para qualquer outra profissão, de 67,5 %, necessitando de ajudas técnicas de suporte para membro superior para promover a elevação da mão, de ajuda de terceira pessoa para a realização de algumas comuns tarefas do quotidiano, de medicação analgésica, de sessões de fisioterapia, e que, sendo dextra, as lesões e sequelas que apresenta são na mão direita, sem que, ademais, se perspective outra qualquer actividade de uma natureza diversa daquela que vinha exercendo, deverá considerar-se portadora de invalidez permanente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I

AA, com os sinais dos autos, intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Caixa Económica Montepio Geral e Montepio Geral Associação Mutualista, também com os sinais dos autos, pedindo que:

«1) Seja a 2ª Ré condenada a pagar o montante do capital em dívida pela Autora e o seu marido à 1ª Ré Caixa Económica Montepio Geral à data do acidente de trabalho – .../06/2013;

2) Sejam as Rés, na medida das respectivas responsabilidades, condenadas a reembolsar a Autora e o seu marido das quantias pelos mesmos indevidamente pagas desde 5/6/2013, ou caso assim não se entenda, pelo menos desde 6/5/2014 - data da atribuição à ora Autora da incapacidade para a profissão habitual, bem como da IPP de 67,5% para as restantes profissões, a título de prestações bancárias mensais para pagamento dos empréstimos em questão nos autos bem como, encargos e juros bancários e moratórios;

3) Sejam as Rés condenadas no pagamento dos juros à taxa legal em vigor, seja no caso do pagamento do capital em dívida por parte da 2ª Ré, desde a data da citação das Rés, seja sobre todo e qualquer montante em que as Rés venham a ser condenadas a pagar à Autora e ao seu marido, neste caso calculados desde o dia do pagamento das referida prestações e demais encargos bancários ou outros, tudo sempre até efectivo e integral pagamento;

4) No caso dos juros calculados tendo em conta a data da citação das Rés devem estas também ser condenadas no pagamento da taxa de inflação, calculada sobre o montante em que vierem as Rés a ser condenadas a pagar, desde a data da entrada desta petição até à data da respectiva citação.

5) E, ainda, nas custas judiciais e de parte.».

Alegou, em resumo, que:

No dia 22-07-1998, na Agência do Montepio Geral de ..., com o seu actual marido (mas, então, no estado de solteira), BB, adquiriu, por escritura de compra e venda, à sociedade “B..., Limitada”, a fracção autónoma descrita na petição (art. 2º).

Na sequência da dita aquisição, contraiu junto da 1.ª Ré - Caixa Económica Montepio Geral - um empréstimo para aquisição de habitação própria e permanente - Mútuo com Hipoteca e Fiança –, cujas cláusulas constam do documento complementar anexa ao doc. nº1, que juntou aos autos.

Da cláusula 10ª, alínea e), de tal documento complementar consta que a Autora (e também o seu actual marido) ficavam obrigados a “efectuar um Plano de Garantia de Pagamento de Encargos (PGPE) ou, em alternativa, um Plano Prestação ao Crédito à Habitação (PPCH), pelo montante a indicar pela CEMG, e em entidade aceite por esta, em poder de quem ficará a documentação e no qual será averbado o seu interesse como credora hipotecária”.

 O montante do empréstimo supra aludido foi, como consta da escritura de compra e venda com mútuo e hipoteca e fiança, de 14.000.000$00, hoje € 69.831,74.

A Autora e o seu actual marido subscreveram, assim, junto da 2.ª Ré, um “PGPE” em 22-07-1998, o qual foi deferido em 30-09-1998, com início no referido dia 22-07-1998, pelo prazo de 30 anos, garantindo o dito capital de 14.000.000$00 - € 69.831,74, na opção de invalidez.

A beneficiária de tal subscrição e garantia é a 1ª Ré.

Na cláusula 3.ª do referido documento complementar, consignou-se que o empréstimo em questão teria de ser, pela Autora e marido, reembolsado em 360 prestações mensais, a primeira das quais vencendo-se em 22-08-1998 e as restantes em igual dia dos meses seguintes, sendo cada uma das prestações no montante, à data, de €54.789$00, a saber € 273,29€.

Em 13/02/2007, a Autora, também no Cartório Notarial ..., já no estado de casada, no regime de comunhão de  adquiridos, com BB, celebrou um outro contrato de mútuo com hipoteca também com a 1.ª Ré, Caixa Económica Montepio Geral, tendo-lhes sido mutuada a quantia de €11.000,00, ficando estipulado que o empréstimo seria por eles reembolsado em 264 prestações mensais constantes e sucessivas de capital e juros, cada uma à data de € 73,70, sem prejuízo das cláusulas relativas às alterações do contrato em questão, vencendo-se a 1.ª das referidas prestações um mês após a data da escritura e as restantes em igual dia dos meses subsequentes ou no último dia do respetivo mês.

Ficaram a Autora e o seu marido obrigados a subscrever um GPE - Plano de Garantia de Pagamento de Encargos da Associação Mutualista do Montepio Geral –, que implicava a prévia admissão dos mutuários como associados, ou, em alternativa, um PPCH - Plano de Prestação ao Crédito à Habitação (seguro de vida).

Em 19/01/2007, a Autora e o seu marido, na qualidade de associados da 2.ª Ré, subscreveram um GPE nesta, cujo capital é de €11.000,00, pelo prazo de 22 anos e com as coberturas de invalidez e morte.

Em ambos os contratos de mútuo referidos a fracção autónoma, propriedade da Autora e do seu marido, ficou hipotecada à 1.ª Ré.

A Autora foi vítima, em 05-06-2013, de um acidente de trabalho, na sequência do qual ficou a padecer, desde 06-05-2014, de uma incapacidade permanente absoluta para a sua profissão habitual, que era de operária indiferenciada.

Quanto às demais profissões, à Autora foi atribuída uma IPP 67,5%.

Ficou, ainda, a necessitar de ajudas técnicas, isto é, de suporte para membro superior para promover a elevação da mão e mais necessita de ajuda de terceira pessoa para a realização de algumas tarefas do dia-a-dia, bem como de medicação.

Entende a Autora que cumpre todas os requisitos exigidos pela 2.ª Ré para activação das referidas protecções aos dois financiamentos atrás referidos, nomeadamente quanto à invalidez de que padece.

 Não obstante a Autora ter activado o seguro de vida em questão, a 2ª Ré até hoje declinou a respectiva responsabilidade, não tendo, seja a Autora, seja a 1.ª Ré, recebido o capital seguro,  invocando a 2.ª Ré que: “(…) a cobertura de risco invalidez total e permanente pode ser accionada desde que o Associado apresente um estado de incapacidade resultante de doença ou acidente tendencialmente irreversível, a que corresponda de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades um grau de invalidez não inferior a 70% ou não inferior à soma daquele limite com o Grau de Invalidez eventualmente existente à data da subscrição”, mais entendendo  a 2.ª Ré ser necessária a apresentação de Atestado de Incapacidade Multiusos por parte da Autora.

Acontece que não foram de todo comunicadas ou explicadas à Autora e ao seu marido as cláusulas inseridas nos contratos em questão nos autos, como o deveriam ter sido, uma vez que estes apenas se limitaram a assinar dois documentos denominados de “inscrição” que lhes foram exibidos pelo representante da 1.ª Ré, como exigência impreterível da celebração dos contratos de crédito, (cfr. docs. n.ºs 1 e 4).

Ignora a Autora, assim, quem preencheu os restantes elementos das propostas juntas como doc. n.º 3 e doc. n.º 6, sendo que apenas reconhece as ter assinado, assim como o seu marido.

Certo é que, à Autora e ao seu marido apenas foi comunicado pelas Rés que iriam contratar dois seguros de vida, um apenas com a cobertura de invalidez e o outro com as coberturas de invalidez e morte, denominadas de PGPE e /ou GPE, e que, quando se verificasse uma destas situações, a 2.ª Ré liquidaria à 1.ª o capital em dívida no momento em que tal se verificasse.

Citadas, as Rés contestaram.

A Ré Caixa Económica Montepio Geral deduziu a excepção dilatória de ilegitimidade activa por violação de litisconsórcio necessário, face à ausência na lide do marido da Autora.

Alegou, ainda, que:

A Autora, no preciso momento da subscrição dos GPE’s, foi devidamente esclarecida relativamente às condições e coberturas dessas GPE’s.

Como expressamente consta do Regulamento de Benefícios:“Para todos os efeitos, considera-se estado de invalidez permanente o processo de incapacidade a que corresponda uma percentagem igual ou superior a 70% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades”.

Em 07-10-2014, veio o marido da Autora, na qualidade de beneficiário próprio, accionar a cobertura correspondente à aquisição do estado de invalidez, não tendo apresentado qualquer Atestado Médico de Incapacidade Multiuso.

Juntou, entretanto, a Autora documentos dos quais consta a incapacidade de 45% que lhe foi atribuída em resultado do acidente de trabalho ocorrido e a Incapacidade Permanente Parcial constante do Doc. 9, a saber, 67,5% (sessenta e sete e meio por cento), à incapacidade majorada com o coeficiente de 1,5%, que corresponde ao factor de ponderação adicional para efeitos da percentagem de reforma e para eventuais indemnizações. Ora, face ao ocorrido e apresentando a associada uma incapacidade permanente global inferior ao mínimo de 70%, previsto no Regulamento de Benefícios da MGAM, não pode ser activada a cobertura do risco de invalidez.

Contestou também a Ré Montepio Geral – Associação Mutualista, alegando, em síntese, que:

Por carta datada de 30-09-1998 comunicou à Autora a admissão como associada do MGAM e, conforme decorre do teor dessa missiva, juntamente com a carta seguiram ainda um exemplar dos Estatutos do MGAM bem como um Excerto do Regulamento de Benefícios, cuja leitura atenta foi sugerida; em tal carta eram ainda facultados os contactos para esclarecimento de dúvidas que os mutuários pudessem vir a ter no decorrer da admissão e do envio da referida documentação.

Aquando da 2ª subscrição, em 2007, e conforme decorre do documento de inscrição junto pela Autora como “Doc. 6”, ambos os associados/mutuários declararam então, expressamente, terem tomado conhecimento dos termos e condições expressos no Regulamento de Benefícios da modalidade de Garantia de Pagamento de Encargos, mais tendo declarado que receberam um exemplar do Regulamento da Modalidade, bem como dos Estatutos e Excerto do Regulamento de Benefícios.

Em momento algum, desde 1998 até 2014, solicitou a Autora qualquer esclarecimento ou informação adicional, a respeito dos produtos que subscreveu, junto de nenhuma das Rés, o que revela o conhecimento que a mesma tinha acerca de tais produtos, condições e coberturas.

A Autora não contratou dois seguros do grupo do ramo vida, conforme alega e incorrectamente apelida nos artigos 24º, 44º e 52º da petição inicial; embora a modalidade Garantia de Pagamento de Encargos cubra o mesmo tipo de riscos  de um seguro de vida, não assume essa qualidade (de seguro); trata-se, sim, de uma modalidade associativa e atuarial, de previdência complementar e de protecção, renovada anualmente, estando inserida nos Regimes Complementares de Segurança Social, cujo órgão supervisor, tratando-se de uma Associação Mutualista, é o Ministério da Solidariedade e Segurança Social.

Não pode ter sido referido aos mutuários, sem mais, que a 2ª Ré liquidaria à 1ª Ré o capital em dívida em caso de morte ou invalidez; isto porque, quer numa circunstância quer noutra, existem condições ou pressupostos que necessariamente terão de se verificar para o efeito, previstos designadamente no Regulamento de Benefícios.

Em caso de invalidez, prevê o artigo 22º n.º 1 do Regulamento de Benefícios junto sob o Doc. 5, o seguinte: “Para todos os efeitos, considera-se estado de invalidez permanente o processo de incapacidade a que corresponda uma percentagem igual ou superior a 70% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, mas esta percentagem será corrigida, acrescentando-se-lhe o grau de invalidez que existia à data de inscrição”.

Decorre dos documentos juntos pela Autora, exarados em sede de processo de acidente de trabalho que, em resultado do mesmo, foi atribuída à Autora uma Incapacidade Permanente Parcial de 45%, estabelecida de acordo com a referida Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.

A Autora requereu a intervenção principal provocada do marido, BB, que foi admitida por despacho de 11.10.2016.

A fixação do valor do processo em €57.000,00 levou à declaração de incompetência do Tribunal e à remessa para a Instância Central Cível ..., onde veio a ser proferido despacho saneador e se definiu o objecto do litígio, bem como se elencaram os temas de prova.

Realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença, na qual se julgou a ação totalmente improcedente e se absolveram as RR. do pedido.

Inconformada, a A. apelou da sentença e o Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão no qual decidiu revogá-la e condenar:

«i) a ré Montepio Geral Associação Mutualista a pagar à ré Caixa Económica Montepio Geral o montante do capital em dívida pela autora e seu marido à data do acidente de trabalho – .../06/2013, descontando as prestações posteriormente pagas pela autora e interveniente;

ii) ambas as rés, a reembolsar a autora e o interveniente, seu marido das quantias pelos mesmos pagas desde 5/06/2013 a título de prestações bancárias mensais para pagamento dos empréstimos em questão, bem como encargos e juros bancários e moratórios.

ii) mais se condenam as rés no pagamento de juros de mora sobre as quantias devidas à autora e marido, à taxa legal, desde a citação.»

Irresignada, a R. Montepio Geral – Associação Mutualista recorreu para este Supremo Tribunal, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:

«I. Vem a recorrente interpor recurso de revista, do Acórdão do Tribunal da Relação que decidiu procedente a apelação deduzida, condenando:

a. a ré Montepio Geral Associação Mutualista a pagar à ré Caixa Económica Montepio Geral o montante do capital em dívida pela autora e seu marido à data do acidente de trabalho – .../06/2013, descontando as prestações posteriormente pagas pela autora e interveniente;

b. ambas as rés, a reembolsar a autora e o interveniente, seu marido das quantias pelos mesmos pagas desde 5/06/2013 a título de prestações bancárias mensais para pagamento dos empréstimos em questão, bem como encargos e juros bancários e moratórios.

c. mais se condenam as rés no pagamento de juros de mora sobre as quantias devidas à autora e marido, à taxa legal, desde a citação.”;

II. Considerando-se, no Acórdão em crise, excluído, por força do artigo 8.º, al. a) e b) do RJCCG, o artigo 22.º/1 do Regulamento de Benefícios da Modalidade de Garantia de Pagamento de Encargos, em cujos termos “1-Para todos os efeitos, considera-se estado de invalidez permanente o processo de incapacidade a que corresponda uma percentagem igual ou superior a 70% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, mas esta percentagem será corrigida, acrescentando-se-lhe o grau de invalidez que existia à data de inscrição.”;

III. Por considerar, o Tribunal a quo, que foram incumpridos os deveres de comunicação e informação vertidos nos artigos 5.º e 6.º do RJCCG, respetivamente;

IV. E considerando, consequentemente, que a situação da autora se configura como situação de invalidez permanente, necessária e suficiente para accionar a cobertura em causa.

V. A aqui recorrente não se conforma com esta decisão, ainda que douta, do Tribunal da Relação, uma vez que:

a. Os deveres de comunicação e de informação são obrigações de meios e não de resultados; competindo ao banco desenvolver uma atividade razoável no sentido do conhecimento das cláusulas pelo aderente;

b. Sendo que, nesse contexto, é ainda necessário ter em consideração o grau de diligência postulado por parte do aderente que, em caso de negligência e de desinteresse, pode ter o principal contributo para o desconhecimento das cláusulas.

VI. No caso em apreço, temos que a autora e seu marido subscreveram por duas vezes o mesmo produto, com 9 anos de intervalo;

VII. Tendo-lhes sido enviadas por carta as cláusulas do contrato em questão;

VIII. E tendo estes, ainda, assinado, uma declaração a expressar a tomada de conhecimento dos termos e condições constantes do Regulamento de Benefícios da Modalidade de Garantia de Pagamento de Encargos;

IX. Não havendo registo algum de quaisquer pedidos de esclarecimento por parte da autora e/ou seu marido, durante o decorrer dos contratos.

X. Por tudo isto, é de se considerar que a autora e seu marido se encontravam em posição de conhecer as cláusulas do GPE, o que não aconteceu devido a uma conduta negligente e desinteressada destes, que deliberadamente e de livre vontade assinaram uma declaração de tomada de conhecimento das mesmas;

XI. E tal como defendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 24 de Março de 2011, processo 1582/07.1TBAMT-B.P1.S1, não poderá o contratante “(…) invocar o desconhecimento dessas cláusulas, para efeitos de se eximir ao respectivo cumprimento, quando esse desconhecimento apenas resultou da sua falta de diligência, como acontece nas situações em que o contraente foi colocado em posição de conhecer essas cláusulas e assina sem ler o que estava a assinar e sem ter qualquer preocupação de se assegurar do respectivo teor.”;

XII. Pelo que assim se pretende que não seja de se considerar a exclusão do artigo 22.º/1 do Regulamento de Benefícios da Modalidade de Garantia de Pagamento de Encargos, por violação dos deveres de comunicação e de informação do RJCCG.

XIII. Caso assim não se entenda, e mesmo que seja mantida a exclusão da cláusula em questão, o que apenas por mero dever de patrocínio se admite;

XIV. Sempre se considerará que a interpretação do conceito de invalidez permanente, nos termos das regras gerais de interpretação das declarações negociais (artigos 236.º a 238.º do CC) e atendendo ao circunstancialismo específico do contrato em que as cláusulas se inserem – artigo 10.º do RJCCG;

XV. Deve ser feita no sentido de considerar que a invalidez em questão alude à impossibilidade de obter quaisquer rendimentos;

XVI. O que não se verifica neste caso, uma vez que a Autora apresenta um grau de incapacidade de 67,5%, não estando impedida de trabalhar num âmbito diferente do seu trabalho habitual;

XVII. Efectivamente, a Incapacidade Permanente goza de uma maior amplitude em relação à Incapacidade Permanente para o Trabalho Habitual, e é desta distinção que podemos retirar a conclusão de que a Incapacidade Permanente, parcial ou absoluta, se aplica a qualquer profissão - se não for esta a interpretação, a Incapacidade Parcial Permanente de 67,5% tornar-se-ia inútil, por não ter objeto de aplicação;

XVIII. Ou seja, a incapacidade permanente traduz a perda de capacidade de ganho, i.e., de obter remuneração - esta perda de capacidade só fará sentido se se aplicar de uma perspetiva geral, em relação a qualquer profissão, caso contrário não haveria necessidade de se estipular uma Incapacidade Permanente para o Trabalho Habitual;

XIX. Interpretação esta que vai de encontro à acolhida na sentença da 1.ª instância, nos seguintes termos: “Ora, esta invalidez de que se vem cuidando (…) não poderia deixar de ser entendida por um declaratário normal, colocado na posição da autora, senão como uma situação em que a pessoa afectada se encontrasse num estado que a deixasse total e irremediavelmente incapaz de exercer uma atividade laboral, em termos de lhe ser inviável obter meios de subsistência.”.

XX. Uma interpretação mais ampla deste conceito não poderá ser elaborada tendo em conta as características específicas desta modalidade mutualista que foi subscrita pela autora e seu marido;

XXI. Que embora se assemelhe a um contrato de seguro de vida, não replica na totalidade as condições de tal produto, o que se espelha no reduzido valor de prestação mensal pago – sendo de fazer notar que, caso a autora e marido assim pretendessem, poderiam ter contratado outro produto;

XXII. E é precisamente por esta razão que não poderá ser de considerar a Jurisprudência aludida pelo Tribunal a quo, no douto Acórdão de que aqui se recorre, uma vez que, embora diga respeito a percentagens de invalidez semelhantes ao da autora;

XXIII. Os contratos em questão têm especificidades suficientes para que a interpretação das suas cláusulas, à luz do artigo 10.º do RJCCG, não possa ser igual.

Termos em que, concedendo V. Excelências, provimento ao recurso interposto, revogando-se a douta decisão recorrida, substituindo o douto Acórdão proferido por outro que julgue totalmente improcedente a acção interposta, como se julgou em 1.ª instância (…)»

Contra-alegaram a A. e o Interveniente, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.


*

Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, assumem-se como questões centrais a apreciar as de saber se, diversamente do decidido, foram cumpridos os deveres de comunicação e informação, de acordo com o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, e se, de qualquer modo, não podia concluir-se pela existência, relativamente à A., de invalidez permanente.


II

Nas instâncias, deram-se por provados os seguintes factos:

«1. No dia 22 de Julho de 1998, na Agência do Montepio Geral de ..., a Autora, ainda no estado de solteira, maior, usando o nome de AA e o seu atual marido, BB, à data também no estado de solteiro, maior e na presença da Notária do Cartório Notarial ... adquiriram, por escritura de compra e venda, à sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, denominada “ B... LIMITADA”, com sede na Rua ..., Edifício ..., ..., ..., ..., NIPC/Matrícula n.º ..., a fração autónoma que infra se descreverá, pelo preço, à data, de oito milhões de escudos aproximadamente € 39.903,83 (fls. 22 a 29).

2. Foi a seguinte a fração adquirida pela Autora e o seu namorado à data, hoje seu marido, BB: “Fração autónoma designada pelas letras “AB”, correspondente a uma habitação tipo T- dois, no terceiro andar, do lado sul, com acesso pelas caixas de escadas situada a nascente; tem um lugar de garagem na terceira cave, designado com o número sessenta e um, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Avenida ..., freguesia ..., do concelho ..., descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o número zero, zero, novecentos e oitenta e sete, barra treze, zero dois, noventa e seis (fls. 22 a 29).

3.º A Autora na sequência da dita aquisição da fração autónoma atrás descrita, contraiu junto da 1.ª Ré – Caixa Económica Montepio Geral - um empréstimo para aquisição de habitação própria e permanente - Mútuo com Hipoteca e Fiança, cujas cláusulas que o regem, constam do documento complementar anexo ao doc. n.º 1 acima junto (fls. 30 a 37).

4.º Da cláusula 10ª, alínea e) de tal documento complementar consta que a Autora (e também o seu atual marido) ficavam obrigados a “efectuar um Plano de Garantia de Pagamento de Encargos (PGPE) ou, em alternativa, um Plano Prestação ao Crédito à Habitação (PPCH), pelo montante a indicar pela CEMG, e em entidade aceite por esta, em poder de quem ficará a documentação e no qual será averbado o seu interesse como credora hipotecária;” (fls. 30 a 37).

5.º O montante do empréstimo supra aludido foi, como consta da escritura de compra e venda com mútuo e hipoteca e fiança, nomeadamente, na sua cláusula primeira da sobredita escritura - (doc. n.º 1) - à data de 14.000.000$00 (catorze milhões de escudos), hoje € 69.831,74 (sessenta e nove mil, oitocentos e trinta e um euros e setenta e quatro cêntimos) (fls. 30 a 37).

6. A Autora e o seu atual marido subscreveram, assim, junto da 2.ª Ré, segundo esta, um “PGPE” em 22/07/1998, o qual foi deferido em 30/09/1998, com início no referido dia 22/07/1998, pelo prazo de 30 anos, garantindo o capital de 14.000.000$00, € 69.831,74, na opção de invalidez (fls. 41 e 42).

7.º A beneficiária de tal subscrição e garantia é a primeira Ré, conforme consta da proposta do PGPE que se juntou como doc. n.º 3 (fls. 2) e da alínea f) da cláusula 10.ª, do documento complementar que faz parte integrante do doc. n.º 1.

8.º Na cláusula 3.ª do referido documento complementar se consignou que o empréstimo em questão teria que ser pela Autora e marido reembolsado em 360 prestações mensais, a primeira das quais vencendo-se em 22/08/1998 e as restantes em igual dia dos meses seguintes, sendo cada uma das prestações no montante, à data, de € 54.789$00, a saber € 273,29€ (doc. n.º 1), sem prejuízo do disposto nas cláusulas relativas às alterações do contrato em questão.

9. Em 13/02/2007, a Autora, também no Cartório Notarial ..., já no estado de casada no regime de comunhão de adquiridos com BB, celebrou um outro contrato de mútuo com hipoteca também com a 1.ª Ré, Caixa Económica Montepio Geral, (fls. 43 a 57),

10.º Tendo-lhes sido mutuada a quantia de € 11.000,00, (onze mil euros) (fls. 43 a 57),

11.º Ficando igualmente acordado no documento complementar anexo a tal escritura – cláusula terceira - que o empréstimo seria por eles reembolsado em 264 prestações mensais constantes e sucessivas de capital e juros, cada uma à data de € 73,70, sem prejuízo das cláusulas relativas às alterações do contrato em questão, vencendo-se a 1.ª das referidas prestações, um mês após a data da escritura e as restantes em igual dia dos meses subsequentes ou no último dia do respetivo mês, se neste não houver dia correspondente.

12.º Da cláusula nona, n.º 1, alínea e) de tal documento complementar ficaram a Autora e o seu marido obrigados a subscrever um GPE - Plano de Garantia de Pagamento de Encargos da Associação Mutualista do Montepio Geral, que implicava a prévia admissão dos mutuários como associados, ou, em alternativa um PPCH - Plano de Prestação ao Crédito à Habitação (seguro de vida).

13.º Em 19/01/2007, a Autora e o seu marido, na qualidade de associados da 2.ª Ré, subscreveram um GPE na 2ª Ré, cujo capital é de € 11.000,00, pelo prazo de 22 anos e com as coberturas de invalidez e morte (fls. 61 e 62).

15. Em ambos os contratos de mútuo supra referidos a fração autónoma, propriedade da Autora e do seu marido, ficou hipotecada à 1.ª Ré.

16. A Autora foi vítima em .../06/2013 de um acidente de trabalho que ocorreu em ... na sede da sua entidade empregadora, “P..., Lda.” na sequência do qual a mesma ficou a padecer desde .../05/2014 de uma incapacidade permanente absoluta para a sua profissão habitual, que era no recibo de operária indiferenciada, não deixando, todavia, a mesma de trabalhar, na prática, antes do acidente, a maior parte do tempo como marceneira, tanto assim que o acidente se deu quando a Autora, ao trocar os rolos de uma máquina, ficou com a sua mão direita presa na mesma (docs. n.ºs 7 e 8).

17.º A A. apresenta incapacidade permanente e absoluta para o exercício da sua profissão habitual.

18.º Ficou, ainda, a necessitar de ajudas técnicas, isto é, de suporte para membro superior para promover a elevação da mão, tendo em conta os problemas circulatórios de que ficou a padecer, suporte esse denominado de suspensão braquial, a substituir sempre que necessário, via de regra e em geral, aproximadamente de 6 em 6 meses.

19. Mais necessita de ajuda de terceira pessoa para a realização de algumas tarefas do dia-a-dia, como efetuar as limpezas de casa, ajudar na confeção da comida, passar a ferro, entre outras.

20.º Necessita, ainda, de medicação, analgésicos, designadamente paracetamol e pregabalina (Benuron e Lyrica).

21º Mais necessita de realização de sessões de fisioterapia, as quais efetuou e tem efetuado no Centro Hospitalar ..., em ..., (docs. n.ºs 8 a 11).

22.º A Autora e o seu marido, enquanto aderentes dos mesmos não tiveram qualquer participação no clausulado estabelecido entre as aqui Rés.

23º À Autora e ao seu marido foi comunicado pelas Rés que iriam contratar dois seguros de vida como atrás já se disse, um apenas com cobertura de invalidez e o outro com as coberturas de invalidez e morte, denominadas de PGPE e /ou GPE.

24º. Não foram de todo comunicadas ou explicadas à Autora e ao seu marido, as cláusulas inseridas nos contratos em questão nos autos.

25º. A Autora tem uma IPATH, incapacidade total para a sua profissão habitual e, ainda, para qualquer outra tem 67,5 % IPP.

26º. A lesão e as sequelas da Autora são na mão direita e a mesma é dextra.

26º-A. Por carta datada de 30.09.1998 a Ré Montepio Geral comunicou à autora a admissão como associada da MGAM.

27º Juntamente com a carta referida em 26º-A foi enviado um exemplar dos estatutos do MGAM bem como um excerto do Regulamento de Benefícios.

28º Aquando da 2.ª subscrição em 2007, ambos os associados declararam expressamente terem tomado conhecimento dos termos e condições expressas no Regulamento de Benefícios da Modalidade de Garantia de Pagamento de Encargos.

29º Mais tendo declarado que receberam um exemplar do Regulamento da Modalidade, bem como dos Estatutos e Excerto do Regulamento de Benefícios.

30º Desde 1998 até 2014 a autora e interveniente não solicitaram qualquer esclarecimento ou informação adicional a respeito dos produtos que subscreveu, junto de nenhuma das rés.

31º Em caso de invalidez prevê o artigo 22º nº 1 do Regulamento de Benefícios “para todos os efeitos considera-se estado de invalidez permanente o processo de incapacidade a que corresponda uma percentagem igual ou superior a 70% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades”.

Deu-se por não provado:

«- que a autora no momento da subscrição dos GPE’s foi devidamente esclarecida relativamente às condições e coberturas das GPE’s.

- que a autora tem apenas o 4.º ano de escolaridade.»


III

III.1.

No acórdão recorrido, citou-se uma passagem da sentença proferida em 1ª Instância sobre a caracterização do contrato dos autos, na qual, entre o mais, se refere que:

 «Não se trata de um contrato de seguro, como normalmente acontece com empréstimos deste tipo, pois a R. “Montepio Geral – Associação Mutualista” não é uma entidade seguradora, tratando-se, antes, de um contrato denominado de “Garantia de Pagamento de Encargos” que, no essencial, assegura a mesma função que um seguro de vida, ou seja, em caso de invalidez ou morte da pessoa segura, procedia ao pagamento do montante que se encontrava em dívida à R. mutuante “Caixa Económica Montepio Geral”.

Sobre este tipo de contratos pronunciou-se já, por exemplo, o Acórdão do S.T.J. de 10/1/2017 in www.dgsi.pt nos seguintes termos “Tratou-se de uma subscrição junto de uma associação mutualista, ao abrigo do regime mutualista. Nos termos do DL nº 72/90, as associações mutualistas são instituições particulares de solidariedade social que se suportam essencialmente na quotização dos seus associados, e que praticam, no interesse destes e de suas famílias, fins de auxílio recíproco (artº 1º). Constituem fins fundamentais das associações mutualistas a concessão de benefícios de segurança social e de saúde destinados a reparar as consequências da verificação de factos contingentes relativos à vida e à saúde dos associados e seus familiares e a prevenir, na medida do possível, a verificação desses factos (artº 2º). Para a concretização dos seus fins de segurança social, as associações mutualistas podem prosseguir, designadamente, a modalidade de “Capitais pagáveis por morte ou no termo de prazos determinados” (artº 3º). A regulamentação dos benefícios prosseguidos pelas associações mutualistas deve constar de instrumento próprio, denominado regulamento de benefícios, que conterá, nomeadamente, as condições de atribuição dos benefícios (artº 19º).

Os associados podem subscrever quaisquer modalidades de benefícios nos termos regulamentares, sendo que por cada inscrição numa modalidade de benefícios é devida uma quota cujo montante é definido nos termos regulamentares (artºs. 31º e 32º). As prestações pecuniárias devidas pelas associações mutualistas aos associados e a outros beneficiários não podem ser cedidas a terceiros nem penhoradas e prescrevem a favor das mesmas associações (artº 36º)”.».

Considerou-se, no acórdão, estar-se perante um regime semelhante ao do contrato de seguro, apesar das suas especificidades. E acrescentou-se:

«Do que não restam dúvidas, como bem se refere na sentença recorrida, é de que o aludido “Regulamento” é composto por cláusulas gerais, tal como as define o Decreto - Lei nº 446/85, de 25/10 (LCCG), estando as partes de acordo que no caso em apreço se está perante um contrato de adesão, porquanto um dos contraentes não teve qualquer participação na preparação e elaboração do contrato e respetivas cláusulas, limitando-se a aceitar o teor do contrato (standartizado) que o outro contraente lhe ofereceu.

Ao falar de cláusulas contratuais gerais têm-se em vista, em princípio, as cláusulas elaboradas, sem prévia negociação individual, como elemento de um projeto de contrato de adesão, destinadas a tornar-se vinculativas quando proponentes ou destinatários indeterminados se limitem a subscrever ou aceitar esse projeto.»

O Regulamento em causa é o Regulamento de Benefícios da Modalidade de Garantia de Pagamento de Encargos.

O Tribunal a quo procedeu à apreciação da alegada violação do regime das cláusulas contratuais gerais, centrando a sua análise nos deveres de comunicação e de informação, a que se referem os arts. 5º, 6º e 8º do DL 446/85, de 25-10, que são do seguinte teor:


Artigo 5.º

(Comunicação)


1 - As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.

2 - A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.

3 - O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.


Art. 6º

(Dever de informação)


1 - O contratante determinado que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.

2 - Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados.


Artigo 8.º

(Cláusulas excluídas dos contratos singulares)


Consideram-se excluídas dos contratos singulares:

a) As cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5.º;

b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo;

c) As cláusulas que, pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real;

d) As cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes.

Foi dado como provado, em relação ao primeiro contrato, que:

«26º-A. Por carta datada de 30.09.1998 a Ré Montepio Geral comunicou à autora a admissão como associada da MGAM.

27º Juntamente com a carta referida em 26º-A foi enviado um exemplar dos estatutos do MGAM bem como um excerto do Regulamento de Benefícios.»

No que toca ao segundo contrato, provou-se que:

«28º Aquando da 2.ª subscrição em 2007, ambos os associados declararam expressamente terem tomado conhecimento dos termos e condições expressas no Regulamento de Benefícios da Modalidade de Garantia de Pagamento de Encargos.

29º Mais tendo declarado que receberam um exemplar do Regulamento da Modalidade, bem como dos Estatutos e Excerto do Regulamento de Benefícios.»

No que se refere a ambos os contratos, provou-se que:

«24º. Não foram de todo comunicadas ou explicadas à Autora e ao seu marido, as cláusulas inseridas nos contratos em questão nos autos»

Chama-se a atenção, no acórdão para o facto de a A. ser “operária indiferenciada” (ponto 16), justificando-se uma cabal explicação do clausulado standard a que aderiu.

Como se ponderou no Ac. do STJ de 03-10-2017, Rel. Henrique Araújo, Proc, nº 569/13, em www.dgsi.pt, 569/13.0TBCSC.L1.S:

«Os deveres de comunicação e de informação, que decorrem, respectivamente, dos arts. 5.º e 6.º da LCCG, concretizadores dos deveres pré-contratuais previstos no art. 227.º do CC, são distintos: (i) o dever de comunicar corresponde à obrigação de o predisponente facultar ao aderente, em tempo oportuno, o teor integral das cláusulas contratuais de modo a que este tome conhecimento, completo e efectivo, do seu conteúdo; (ii) o dever de informar dirige-se essencialmente à percepção do conteúdo e corresponde à explicação desse conteúdo quando não seja de esperar o seu conhecimento real pelo aderente».

Exarou-se no Ac. do STJ de 29-04-2010, Rel. Azevedo Ramos, Proc. nº 5477/06.8TVLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt:

«I – Ao proponente cabe propiciar à contraparte a possibilidade de conhecimento das cláusulas contratuais gerais de um contrato de seguro, em termos tais que este não tenha, para o efeito, que desenvolver mais que a comum diligência.

II – Se o autor assinou a proposta de seguro de acordo com factualidade que não lhe foi devidamente explicada, devem ter-se por excluídas do contrato as cláusulas que não tenham sido comunicadas, nos termos do art. 5º do dec-lei 446/85.»

Na fundamentação deste aresto, observou-se, entre o mais, que:

«(…) é imperioso que os contraentes conheçam com rigor as cláusulas a que se vão vincular, tanto mais que estamos no domínio específico dos apelidados contratos de adesão, ou de modelos negociais a que pessoas indeterminadas se limitam a aderir sem possibilidade de discussão ou de introdução de modificações.

Por isso, devem as mesmas, antes da subscrição e outorga do contrato, ser dadas a conhecer aos aderentes.»

No Ac. do STJ de 19-12-2018, Rel. Maria do Rosário Morgado, Proc. 857/08.7TVLSB.L1.S2, em www.dgsi.pt, considerou-se que:

«II - Os contratos de adesão são um modelo de contratação que se explica, em parte, pela contratação em massa, mas que corresponde, também, a exigências de racionalização, de segurança e de confiança dos particulares aderentes.

III - A lei impõe ao proponente das cláusulas contratuais gerais um conjunto de deveres destinados a tutelar a parte presumivelmente mais débil da relação contratual, i.e., o mero aderente.

IV - Entre eles, destaca-se o dever de comunicar (art. 5.º da LCCG) integral, prévia e adequadamente o conteúdo dessas cláusulas aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las e o dever de informação relativamente a aspetos carecidos de clarificação (art. 6.º da LCCG).

V - Ambos constituem uma emanação da exigência duma formação de vontade negocial isenta de vícios e do princípio da boa-fé, radicando, ultimamente, no direito dos consumidores à informação assegurado pelo art. 60.º, n.º 1, da CRP.

VI - O dever de comunicação caracteriza-se como uma obrigação de meios e impõe que o predisponente desenvolva uma atividade que, em função da importância, extensão e complexidade das cláusulas contratuais gerais por si empregues, se revele razoavelmente adequada a que o aderente tome efetivo conhecimento das mesmas, sem que, para tanto, empenhe mais do que uma comum diligência (art. 5.º, n.º 2, da LCCG).

VII - O dever de informação importa, para o predisponente, a obrigação de prestar aos aderentes as indicações e explicações que se devam ter como razoáveis sobre o conteúdo das cláusulas predispostas que careçam de aclaramento. Trata-se de uma concretização legislativa que resultaria já da boa-fé na fase pré-contratual.

VIII - A intensidade e modo de cumprir esse dever dependem das particulares circunstâncias do caso, podendo ter-se como referência as necessidades que seriam sentidas por um aderente normal que use de comum diligência.»

Ana Prata, na obra Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, Almedina, Coimbra, 2010, p. 252-253, escreve, em anotação ao art. 6º do DL 446/85 (com destaque nosso):

«A separação entre a obrigação de comunicação e a de informação é relativamente forçada ou artificial. No modo como o artigo anterior con­cebe a primeira vão contidas as informações necessárias à compreensão do conteúdo do contrato. A utilidade autónoma deste preceito reside sobretudo no seu n.º 2. Admite-se, todavia, que a lei tenha querido enfatizar a necessidade de cabal esclarecimento das cláusulas contratuais com o n.º 1 deste artigo.

A repetição normativa torna quase inevitável alguma repetição explicativa no texto que se segue – o que se procurará evitar na medida do possível –, sendo certo que, neste, se partirá do princípio de que esta obrigação tem autonomia relativamente à anteriormente prevista.

A obrigação de comunicação é muitas vezes insuficiente para asse­gurar que o acordo do aderente foi livre e esclarecido. Não raro o mero teor literal das cláusulas não permite apreender o seu sentido por uma pessoa de diligência média. Há cláusulas que, pela sua complexidade e pelo seu significado jurídicos, a generalidade das pessoas – mesmo com alguma preparação jurídica – não compreende, ou não compreende completamente. Há outras que, por terem que ver com a complexidade tecnológica do bem que é objecto do contrato, uma pessoa de preparação e diligência médias não percebe, mesmo conhecendo o seu teor literal. E há ainda cláusulas cujo significado é diverso do aparente, já que care­cem de uma interpretação combinada com outras – que podem estar a sistematicamente distantes no texto do clausulado –, não se apercebendo o aderente do seu sentido, salvo se lhe for explicada a articulação que tem de ser feita entre elas (…). Muitas vezes, estas cláusulas constituirão cláusulas-surpresa (…), pelo que estarão no âmbito da alínea c) do artigo 8.°, mas, em qualquer caso, se o aderente não tiver sido informado da existência de várias disposições sobre a mesma matéria, cujo sentido conjugado resulte ser diverso daquele que uma das cláusulas indiciava, terá de se entender que o dever de informação imposto pelo n.º 1 deste artigo foi incumprido. Há, finalmente, cláusulas que, por respeitarem a questões de especial importância, justificam uma informação, também ela, especialmente cuidada e completa.»

No Ac. do STJ de 08-04-2010, Rel. Lopes do Rego, Proc. 3501/06.3TVLSB.C1.S1, www.dgsi.pt, consignou-se o seguinte:

«1. Os deveres de comunicação e de informação, estabelecidos nos arts. 5º e 6º, nº1, do DL 446/85, - cujo âmbito se determina em concreto, perante o nível cultural revelado pelo aderente e a complexidade do negócio e extensão do clausulado - implicam que a entidade que pretenda inserir cláusulas contratuais gerais nos contratos singulares que celebra deva comunicá-las antes da conclusão do negócio, de modo a proporcionar à contraparte a indispensável reflexão e um conhecimento completo e efectivo do clausulado, cumprindo-lhe ainda informar e esclarecer espontaneamente o aderente da estrutura prático-jurídica do negócio e da sua possível vinculação a gravosos efeitos ou consequências, sem prejuízo da diligência comum àquele exigível.

2. O incumprimento de tais deveres implica que as cláusulas não devidamente comunicadas e informadas se devam considerar excluídas dos contratos singulares celebrados com os aderentes.»

Na fundamentação deste aresto, depois e se salientar que a entidade recorrente partia de uma injustificada visão benevolente acerca do âmbito e extensão de tais deveres que inquestionavelmente a vinculam, bastando-se com a exigência de que tais cláusulas se encontrassem integralmente impressas, constando do contrato singular realizado, não lhe cumprindo ter de ler e explicar aos seus clientes o respectivo teor e alcance, salvo em resposta directa a dúvidas por eles expressamente formuladas, referiu-se sobre os deveres de comunicação e informação:

«Este dever de comunicação, situado na fase de negociação ou pré-contratual, destina-se a que o aderente possa conhecer, com a necessária antecipação relativamente ao momento da consumação do negócio, o respectivo conteúdo contratual, de modo a poder apreendê-lo, nas suas efectivas e reais consequências prático-jurídicas, outorgando-lhe, deste modo, um espaço de reflexão e ponderação sobre o âmbito e dimensão das vinculações que lhe irão resultar da celebração do negócio Como decorre, aliás, expressamente do nº2 do referido art. 5º, o âmbito de tal dever de comunicação terá de se determinar em concreto, tendo em conta a capacidade e o nível cultural do interessado – em função do qual se determinará a comum diligência a que identicamente estará vinculado – e a extensão e complexidade das cláusulas contratuais em causa.

A tal dever de comunicação da entidade que se socorre de cláusulas contratuais gerais acresce o dever de informação prescrito no art. 6º: desde logo, o dever de prestar todos os esclarecimentos razoáveis que o outro contraente - o aderente - tome a iniciativa de solicitar, nos termos do nº 2; mas também o dever de espontaneamente o informar, nos termos do nº1, de aspectos carecidos de aclaração ou da prestação de esclarecimentos complementares, em função das concretas circunstâncias do caso.»

No acórdão recorrido, ponderou-se o seguinte:

«Na situação sub judice, não foi cumprido o dever de comunicação, particularmente com referência ao primeiro contrato, considerando que:

- O “PGPE” foi subscrito pela autora em 22/07/1998, tendo sido deferido em 30/09/1998, com início no referido dia 22/07/1998 (facto provado 6.º);

- A admissão da autora como associada da MGAM foi comunicada em 30.09.1998, e só nessa data foi enviado um exemplar dos estatutos do MGAM bem como um excerto do Regulamento de Benefícios (factos provados 26º-A e 27º).

Nos termos da alínea b) do artigo 5.º do DL n.º 446/85, de 25.10 [Cláusulas Contratuais Gerais]: A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.

Na situação em apreço, a “comunicação” foi efetuada mais de dois meses após a subscrição por parte da autora, do contrato de adesão que lhe foi proposto pela 1.ª ré.

Não tendo sido também cumprido o dever de informação, conforme ficou provado (facto provado 24º), haverá que averiguar as consequências de tal violação contratual.»

A Recorrente refere que os deveres de comunicação e de informação são obrigações de meios e não de resultados; competindo ao banco desenvolver uma actividade razoável no sentido do conhecimento das cláusulas pelo aderente, sendo que, nesse contexto, é ainda necessário ter em consideração o grau de diligência postulado por parte do aderente que, em caso de negligência e de desinteresse, pode ter o principal contributo para o desconhecimento das cláusulas. Vinca que, no caso em apreço, a Autora e seu marido subscreveram por duas vezes o mesmo produto, com 9 anos de intervalo, tendo-lhes sido enviadas, por carta, as cláusulas do contrato em questão e tendo estes, ainda, assinado, uma declaração a expressar a tomada de conhecimento dos termos e condições constantes do Regulamento de Benefícios da Modalidade de Garantia de Pagamento de Encargos, não havendo registo algum de quaisquer pedidos de esclarecimento por parte da Autora e/ou seu marido, durante o decorrer dos contratos. Assim, será de considerar que a Autora e seu marido se encontravam em posição de conhecer as cláusulas do GPE, o que não aconteceu devido a uma conduta negligente e desinteressada destes, que deliberadamente e de livre vontade assinaram uma declaração de tomada de conhecimento das mesmas.

Salvo o devido respeito, remeter o clausulado do contrato por carta, para mais sucedendo, no primeiro caso, a apontada dilação (substancial) entre a subscrição e o envio do exemplar dos estatutos do MGAM e de um excerto do regulamento de Benefícios, não é, salvo o devido respeito, garantia de uma comunicação eficaz e muito menos de uma adequada informação, quando está em causa a densificação de conceitos como o de invalidez permanente (o cotejo entre a sentença proferida em 1ª instância e o acórdão recorrido é, só por si, revelador da problematicidade desse conceito), e o alcance de  percentagens de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades e estando, ademais, expressamente provado que não foram de todo comunicadas ou explicadas à Autora e ao seu marido, as cláusulas inseridas nos contratos em questão nos autos (e foi dado como não provado que a autora no momento da subscrição dos GPE’s foi devidamente esclarecida relativamente às condições e coberturas das GPE’s), não se olvidando que o o ónus da prova da comunicação adequada e efectiva  impende sobre o predisponente.

Na verdade, é necessário que o aderente saiba bem que obrigações está a assumir e qual o âmbito dos direitos que pode, mais tarde, vir a exercer sem ser confrontado com surpresas, em seu desfavor, quando tal suceder. E não terem a A. e o marido pedido outras explicações, apesar do tempo transcorrido, não permite concluir por uma conduta negligente ou desinteressada que sane a provada falta de explicação do conteúdo das cláusulas ineridas nos contratos em causa, numa matéria com a delicadeza daquela que aqui se discute.

Concorda-se, pois, com o exarado no acórdão recorrido, relativamente ao juízo feito sobre a violação dos deveres de comunicação e informação e sobre as consequências daí resultantes, com exclusão da cláusula 22º, nº1, do Regulamento de Benefícios, nos termos do art. 8º, als. a) e b), do DL 446/85.

III.2.

No que tange à densificação do conceito de invalidez permanente, começou o Tribunal a quo por elencar os seguintes pontos da matéria de facto:

«16. A autora [nascida a .../.../1977 – cfr pág. 745 do PE] foi vítima em .../06/2013 de um acidente de trabalho […] na sequência do qual ficou a padecer desde .../05/2014 de uma incapacidade permanente absoluta para a sua profissão habitual, que era de operária indiferenciada.

17.º A autora apresenta incapacidade permanente e absoluta para o exercício da sua profissão habitual.

18.º Ficou, ainda, a necessitar de ajudas técnicas, isto é, de suporte para membro superior para promover a elevação da mão, tendo em conta os problemas circulatórios de que ficou a padecer, suporte esse denominado de suspensão braquial, a substituir sempre que necessário, via de regra e em geral, aproximadamente de 6 em 6 meses.

 19. Mais necessita de ajuda de terceira pessoa para a realização de algumas tarefas do dia-a-dia, como efetuar as limpezas de casa, ajudar na confeção da comida, passar a ferro, entre outras.

20.º Necessita, ainda, de medicação, analgésicos, designadamente paracetamol e pregabalina (Benuron e Lyrica).

21º Mais necessita de realização de sessões de fisioterapia, as quais efetuou e tem efetuado no Centro Hospitalar ..., em ..., (docs. n.ºs 8 a 11).

25º. A autora tem uma IPATH, incapacidade total para a sua profissão habitual e, ainda, para qualquer outra tem 67,5 % IPP.

26.º A lesão e as sequelas da autora são na mão direita e a mesma é dextra.»

Recordou-se, no acórdão, o entendimento constante da sentença da 1ª Instância, destacando-se a seguinte passagem:

«Ora, esta invalidez de que se vem cuidando, convencionada num contrato celebrado juntamente com um mútuo hipotecário (com o peso que este tem na vida económica dos seus contraentes) com o fito de garantir que, perante a invalidez das pessoas seguras, a associação mutualista liquidasse ao Banco o valor que estivesse em dívida, não poderia deixar de ser entendida por um declaratário normal, colocado na posição da autora, senão como uma situação em que a pessoa afectada se encontrasse num estado que a deixasse total e irremediavelmente incapaz de exercer uma actividade laboral, em termos de lhe ser inviável obter meios de subsistência».

Lançou mão o Tribunal recorrido de alguma jurisprudência.

Assim, citou o Ac. do STJ de 29-04-2010, Rel. Azevedo Ramos, Proc. nº 5477/06.8TVLSB.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt e já aqui mencionado, no qual se entendeu que:

«É de considerar preenchido o conceito de invalidez absoluta e definitiva de que depende o accionamento do questionado contrato de seguro, se o autor ficou a padecer de uma incapacidade permanente global de 66%, de natureza motora, que o inabilita para o exercício da sua profissão e que o limita significativamente nas actividades da vida diária, dependendo inclusivamente de terceiros para algumas tarefas…»

Neste aresto, considerou-se que «Ao autor apenas foi garantido que a ré pagaria o crédito caso o mesmo autor ficasse com invalidez absoluta e definitiva e que para ser considerado inválido teria de sofrer uma desvalorização igual ou superior a 60%, o que não está conforme o com teor da questionada cláusula, onde se diz que a invalidez absoluta e definitiva implica uma incapacidade para o exercício de qualquer actividade profissional e a indispensabilidade de assistência constante de terceira pessoa» (destaque nosso).

Entendeu-se que, por falta de comunicação e de informação, a consequência era ter-se por excluída a cláusula em crise, valendo o contrato de seguro de acordo com a informação que fora prestada ao segurado.

E ponderou-se o seguinte:

«Nos termos do Certificado Individual de fls 13 e 14, entregue ao autor, estavam cobertos pelo contrato de seguro os riscos de morte de qualquer dos segurados e ainda a cobertura complementar de invalidez absoluta e definitiva, até ao montante de 102.252 euros.

Um declaratário normal, colocado na posição do autor, interpretaria tal conceito de “invalidez absoluta e definitiva”, no sentido de abranger a situação de incapacidade de que o autor padece, assim se preenchendo o conceito de invalidez absoluta e definitiva de que depende o accionamento do referido contrato de seguro de vida.

E tal interpretação tem um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso – art. 238, nº1, do C.C.

Na verdade, provou-se, por um lado, que o autor ficou a padecer de uma incapacidade permanente global de 66%, de natureza motora, que o inabilita para o exercício da sua profissão e que o limita significativamente nas actividades da vida diária, dependendo inclusivamente de terceiros para algumas tarefas e, por outro, que aquando da celebração do contrato, lhe foi assegurado que, em caso de morte ou invalidez absoluta e definitiva do mesmo autor, a ré assumiria junto do banco o pagamento da dívida relativa ao crédito à habitação, e que para ser considerado inválido tinha que lhe ser diagnosticada uma percentagem de desvalorização igual ou superior a 60%.»

Citou-se também, no acórdão recorrido o Ac. da Rel. de Lisboa de 13-09-2012, Rel. Pedro Martins, Proc. nº 6398/09.8TVLSB.L1-2, www.dgsi.pt, em cujo sumário se exarou o seguinte:

«Se o risco coberto for pura e simplesmente a invalidez - por exclusão de cláusulas contratuais gerais decorrente do art. 8 da LCCG -, basta para o preenchimento dele o estado de uma pessoa que a incapacite, completa e definitivamente, de exercer a sua profissão [como actividade remunerada].»

Igualmente se fez menção a um acórdão da Relação de Guimarães e a um acórdão da Relação de Évora, Verifica-se, contudo, aqui, um lapso, já que se repetem a data, o número e o sumário. Ora, tais referências dizem respeito, tão-só, ao Ac.  da Rel. de Évora datado de 12-07-2018, Rel. Mário Coelho, Proc. 2978/15.0T8FAR.E1, www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:

«Preenche o conceito de invalidez absoluta e definitiva uma incapacidade permanente de 66,6422% que torna a lesada incapaz para o exercício da sua profissão habitual de funcionária administrativa e determina a correspectiva perda de remunerações.»

Importa anotar que este acórdão, condenatório, foi revogado pelo Supremo Tribunal de Justiça, através do Ac. de 17-10-2019, Rel. Rosa Ribeiro Coelho, Proc. 2978/15.0T8FAR.E1.S1, www.dgsi.pt, cujo sumário é do seguinte teor:

«I – A nulidade de uma cláusula contratual geral por violação do princípio da boa fé pode ser objeto de redução do negócio jurídico, nos termos do art. 292º do CC, se disser respeito apenas a parte do que nela é estipulado.

II – A previsão de invalidez absoluta e definitiva, constante de uma apólice de seguro, é suscetível de ser entendida por um declaratário normal como uma situação em que a pessoa afetada se encontra num estado que a deixa totalmente (completamente, sem restrição) incapaz, para o resto da vida, de exercer a sua atividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência.

III – A situação em que o segurado não pode continuar a desempenhar a atividade profissional anterior, mas pode desempenhar funções de natureza idêntica dentro da sua área de formação técnico profissional, desde que com menor intensidade e exigindo menor esforço físico, é conciliável com uma situação de incapacidade parcial.

IV – Sendo a situação de invalidez absoluta e definitiva o facto constitutivo do direito exercido, cabe ao segurado o ónus de demonstrar que a sua atual e subsistente capacidade de trabalho não lhe permite a angariação de remuneração.»

Provou-se, nesses autos, que a A. apresentava sequelas incompatíveis com o exercício da actividade habitual de funcionária administrativa, com carácter irreversível, mas compatíveis com outras actividades dentro da sua área de formação técnico-profissional, desde que com carácter parcial e que não exigissem esforços físicos significativos.

Daí ter-se concluído que não poder ter-se como verificada a situação de invalidez absoluta e definitiva.

Depois de se referir, no acórdão recorrido, que «[p]acificamente, vem entendendo a jurisprudência dos Tribunais Superiores, que a exigência de recurso à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar os atos ordinários da vida corrente para considerar o segurado em estado de invalidez absoluta e definitiva quando, em consequência de doença ou acidente, fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada, constitui cláusula abusiva, violadora dos princípios da boa fé e da proporcionalidade, como se verifica na lista de arestos enunciada nas conclusões de recurso» (sendo certo que, in casu, até está provado carecer a A. da ajuda de terceira pessoa para o exercício de actividades elementares do seu quotidiano), considerou-se o seguinte:

«Revertendo ao caso concreto, verificamos que a autora: apresenta incapacidade permanente e absoluta para o exercício da sua profissão habitual (IPATH); apresenta Incapacidade Parcial Permanente para qualquer outra profissão, de 67,5 %; necessita de ajudas técnicas, isto é, de suporte para membro superior para promover a elevação da mão; necessita de ajuda de terceira pessoa para a realização de algumas tarefas do dia-a-dia, como efetuar as limpezas de casa, ajudar na confeção da comida, passar a ferro, entre outras; necessita de medicação, analgésicos, designadamente paracetamol e pregabalina (Benuron e Lyrica); necessita de realização de sessões de fisioterapia; as lesões e sequelas que apresenta são na mão direita, sendo a autora dextra; a profissão que a autora exercia era de “operária indiferenciada”.

Perante o cenário factual descrito, tendo em atenção, não só as lesões sofridas e consequentes sequelas, mas também a profissão da autora [“operária indiferenciada”], a IPP (67,5 %) e a IPATH, não vislumbramos como possa a mesma deixar de se considerar portadora de invalidez permanente.

Concluímos, face ao exposto, pela procedência do recurso, devendo, em consequência, a ré Montepio Geral Associação Mutualista ser condenada nos termos contratuais, no pagamento à ré Caixa Económica Montepio Geral, do capital em dívida referente aos empréstimos concedidos à autora e marido, mais se impondo a condenação de ambas as rés, na restituição à autora e marido das prestações por eles pagas após o acidente.»

A Recorrente defende que a interpretação do conceito de invalidez permanente, nos termos das regras gerais de interpretação das declarações negociais (artigos 236.º a 238.º do CC) e atendendo ao circunstancialismo específico do contrato em que as cláusulas se inserem – artigo 10.º do RJCCG –, deve  ser feita no sentido de considerar que a invalidez em questão alude à impossibilidade de obter quaisquer rendimentos, o que não se verifica neste caso, uma vez que a Autora apresenta um grau de incapacidade de 67,5%, não estando impedida de trabalhar num âmbito diferente do seu trabalho habitual.

Sustenta que a Incapacidade Permanente goza de uma maior amplitude em relação à Incapacidade Permanente para o Trabalho Habitual e é desta distinção que se pode retirar a conclusão de que a Incapacidade Permanente, parcial ou absoluta, se aplica a qualquer profissão. De outro modo, a Incapacidade Parcial Permanente de 67,5% tornar-se-ia inútil, por não ter objeto de aplicação, senda essa interpretação que foi acolhida na sentença da 1ª Instância, quando aí se refere: “Ora, esta invalidez de que se vem cuidando (…) não poderia deixar de ser entendida por um declaratário normal, colocado na posição da autora, senão como uma situação em que a pessoa afectada se encontrasse num estado que a deixasse total e irremediavelmente incapaz de exercer uma atividade laboral, em termos de lhe ser inviável obter meios de subsistência.”.

Entende que, embora se assemelhe a um contrato de seguro de vida, não replica na totalidade as condições de tal produto, o que se espelha no reduzido valor de prestação mensal pago, sendo de fazer notar que, caso a Autora e marido assim pretendessem, poderiam ter contratado outro produto. Por isso, não poderá ser considerada a jurisprudência invocada pelo Tribunal a quo.

Cumpre apreciar.

Conforme foi referido nas duas instâncias, estamos perante um contrato que, no essencial, preenche a mesma função de um seguro de vida, ou seja, em caso de invalidez ou morte da pessoa “segura”, é garantido o pagamento do montante que se encontrava em dívida à mutuante.

No art. 10º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais  dispõe-se que as cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam.

Ora, estando em jogo a densificação do conceito de invalidez permanente, tendo em conta as regras de interpretação decorrentes, quer deste artigo quer dos arts. 236º e 238º do C. Civil, não se vê por que razão tal conceito, considerando, naturalmente, o que foi concretamente acordado, mas com o concurso dos mesmos critérios médico-legais e sob o ponto de vista de um declaratário normal colocado na posição de quem interveio no contrato, deva adquirir uma tonalidade diversa consoante se esteja perante um contrato de seguro ou um produto com a natureza dos autos, com similar finalidade prática. Não há, por isso, a nosso ver, motivo para não se ter em conta a jurisprudência em apreço, ainda que reportada a contratos de seguro.

Entende a Recorrente que a IPP de 67,5%, aplicável a actividades diferentes da  habitual – para a qual se fixou uma incapacidade permanente e absoluta – impede que se conclua pela invalidez permanente.

Certo é ter-se previsto no artigo 22º, nº 1, do Regulamento de Benefícios que, para todos os efeitos, se considera estado de invalidez permanente o processo de incapacidade a que corresponda uma percentagem igual ou superior a 70% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades. Ou seja, mesmo para o trabalho habitual, chegaria uma incapacidade de 70% e, no caso, a incapacidade de que passou a sofrer a A., para esse trabalho, é absoluta.

No Ac. do STJ de 27-02-2020, Rel. Ricardo Costa, Proc. nº 125/13.2TVPRT.P1.S2, considerou-se que:

«I - O conceito relevante de invalidez permanente (ou absoluta e definitiva) enquanto integrante de cláusula de contrato de seguro do ramo Vida, associado a contratos de mútuo bancário em que o segurado é mutuário, assenta:

(i) na sua base, numa deficiência física e/ou intelectual que, não obstante os cuidados, os tratamentos e os acompanhamentos, clínicos e reabilitadores, realizados depois do sinistro, subsiste a título definitivo em sede anatómica-funcional e/ou psicossensorial e

(ii) concretiza-se, independentemente do seu nível ou grau ou percentagem de incapacidade (desde que não seja residual ou insignificante), em consequência (enquanto impacto decisivo) na alteração ou modificação do estado de vida, pessoal e profissional, anterior ao sinistro.

II - Para esse juízo sobre o reflexo do sinistro, há que ter em conta, numa ponderação múltipla e não individualmente exclusiva, nomeadamente, a actividade anteriormente desenvolvida como fonte de rendimentos, a idade e o tempo restante de vida activa profissional, a perda de independência psico-motora, o tipo de doença ou restrição de saúde, as habilitações e capacidades literárias e profissionais da pessoa segura e a possibilidade de reconversão para actividade compatível com essas habilitações e capacidades com igual ou aproximada medida de rendimentos, sempre com enquadramento na situação remuneratória concreta (e projecção na capacidade de ganho) do segurado após a estabilização das sequelas do sinistro.»

No Ac. do STJ de 10-02-2022, Rel. Abrantes Geraldes, Proc. 1681/18.4T8VFR.P1.S1, em www.dgsi.pt, concluiu-se o seguinte (com destaque nosso, a negrito):

«I. Uma cláusula de um contrato de seguro que se destina a cobrir situações de incapacidade que podem afetar segurados com diversos níveis de instrução, com diversas profissões ou com diversas aptidões não pode ser interpretada de forma puramente literal, antes deve ser adaptada a cada concreta situação, sempre sob a perspetiva de um declaratário normal, nos termos dos arts. 236º e 238º do CC e em função das regras da boa fé.

II. A cláusula de um contrato de seguro do Ramo Vida segundo a qual se verifica a “Invalidez Total e Permanente” quando o segurado, “em consequência de doença ou de acidente abrangido pela Apólice, ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões”, abarca a situação em que a A. segurada apresenta uma Incapacidade Permanente Parcial para o Trabalho de 89,74% determinada por uma doença do foro oncológico de que resultou o desfiguramento do rosto (dismorfia facial) e uma efetiva incapacidade para realizar as tarefas de que estava incumbida, com uma forte vertente interpessoal.

III. Perante as graves repercussões de ordem física, estética e psicológica provocadas pela doença, o acionamento do seguro do Ramo Vida contratado não pode ser afastado pelo simples facto de se provar, a partir de um relatório do IML, que a segurada está apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual, com exceção das que determinem contacto com o público, na medida em que não está demonstrado como e com que resultados poderia ser reajustada a sua vida profissional

O caso tratado neste aresto dizia respeito a alguém (a autora) que ficou, em consequência de uma doença oncológica, com uma incapacidade permanente parcial de 89,74%.

O clausulado do contrato de seguro exigia várias condições cumulativas para o accionamento, Uma delas era a de a incapacidade corresponder a um grau de desvalorização igual ou superior a 60%, mas definindo-se, à cabeça,  a invalidez total e permanente deste modo: “uma pessoa será considerada afetada de Invalidez Total e Permanente quando, em consequência de doença ou de acidente abrangido pela Apólice, ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões”.

Porque se provou que a A. estava “apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual com exceção das que determinem contacto com o público” (para além de se provar que  não necessitava de auxílio de terceira pessoa para quaisquer actos), considerou a Relação que, por não estar totalmente incapaz de exercer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões, não se achava a A. numa situação de invalidez total e permanente e julgou a acção improcedente.

O Supremo Tribunal de Justiça revogou o acórdão da Relação, considerando, designadamente, o seguinte:

«Uma cláusula de um contrato de seguro que, como a que estamos observando, se destina a cobrir situações de incapacidade que podem afetar segurados com diversos níveis de instrução, com diversas profissões ou com diversas aptidões não pode ser interpretada de forma puramente literal, antes deve ser adaptada a cada concreta situação, sempre sob a perspetiva de um declaratário normal, nos termos dos arts. 236º e 238º do CC e em função das regras da boa fé.

De outro modo, levando ao extremo uma interpretação literal do conceito de invalidez total e permanente previsto na al. A) do ponto 7. do art. 3º do contrato (“uma pessoa será considerada afetada de Invalidez Total e Permanente quando, em consequência de doença ou de acidente abrangido pela Apólice, ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões”), neste e na generalidade dos casos semelhantes, sempre se poderia concluir que qualquer sinistrado estaria apto a exercer alguma atividade, a não ser em casos muito limitados que se caracterizassem pela incapacidade absoluta decorrente de uma situação de paraplegia ou de outra sequela altamente incapacitante da mobilidade ou da utilização dos sentidos.»

Observou-se, a dado passo, que «para além de recusar a atribuição do capital garantido, a R. Seguradora não fez qualquer esforço no sentido de identificar alguma atividade alternativa que fosse exigível à A.  (…) para dar seguimento ao que emerge de um dos pontos da matéria de facto, ou seja, que a A. continua  ‘apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual com exceção das que determinem contacto com o público’».

Considerou-se que caberia à Seguradora “contrapor aos factos que a A. alegou outros que revelassem uma efetiva possibilidade de se efetuar a (…) reconversão, sem afetar seriamente o seu equilíbrio físico e psicológico”.

Concluiu-se ter a A. direito a beneficiar do seguro, por se configurar uma situação de invalidez permanente, apesar de se ter provado que poderia continuar a exercer a atividade profissional habitual, com excepção das actividades que determinassem contacto com o público, dizendo-se, a finalizar, o seguinte:

«Ora, desempenhando a A. uma atividade que implicava quer o contacto com clientes, quer com outras pessoas, aspetos que subjetiva e objetivamente se mostram gravemente condicionados (note-se, por uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 89,74%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais), uma interpretação do clausulado em referência em função da impressão do destinatário e das regras da boa fé não pode levar a que se sujeite a A. a exercer uma atividade – por agora indefinida – que a mantenha afastada do contacto com os clientes, com os formandos ou com outras pessoas, ou a realizar trabalhos de mera retaguarda, com o risco de se agravar ainda mais, pela frustração que daí decorre, a carga psicológica que emerge da doença de que padece e dos efeitos que projetou na sua realização profissional e pessoal.»

Este acórdão apoiou-se, como nele se refere, na metodologia adoptada em acórdão anterior,  o Ac.do STJ de 24-01-2017, Rel. Júlio Gomes, Proc. 1237/14.0TBSTR.E1.S1, https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2017:1237.14.0TBSTR.E1.S1.7D/, no qual se decidiu que:

«I - A cláusula do contrato de seguro que prevê, como objecto da cobertura, a invalidez total e permanente de 66,66% de uma das pessoas seguras e a define como a incapacidade total da pessoa segura, com carácter permanente e irreversível, que corresponda a um grau de desvalorização mínimo de 66,68% de acordo com a TNI e que a pessoa segura fique total e permanentemente impossibilitada de exercer a profissão indicada na proposta de seguro, pode colher no leigo destinatário o sentido de que a impossibilidade total é compatível com um grau de desvalorização de 66,68% e que releva a impossibilidade do exercício da profissão do segurado.

II - Reforça esse sentido, o facto de na interpretação do contrato de seguro dever ter-se em conta o fim prosseguido com a celebração do contrato e o seu efeito útil: em concreto, o tomador de seguro, empresa de venda de materiais de construção, celebrou um contrato de seguro de vida com uma protecção complementar para a pessoa segura, o seu gerente, pretendendo a cobertura do risco da sua morte ou da impossibilidade de exercer a gerência dessa mesma sociedade.

III - Tendo ficado provado que o segurado, gerente da tomadora, ficou com uma incapacidade permanente global definitiva de 68,7% e que enquanto gerente recebia diariamente clientes na sua empresa, tratava da documentação inerente à actividade comercial que aí desenvolvia e que procedia a cargas e descargas de matérias de construção e fazia transportes dos mesmos em veículos ao serviço da empresa, estão verificados os requisitos cumulativos da cobertura do seguro e o autor tem direito ao pagamento do capital contratado.»

Tratava-se, neste caso, de uma situação em que o sinistrado era gerente de uma sociedade e ficou afectado na sua capacidade para o exercício dessa função.

Nas condições, cumulativas, do contrato de seguro, para além da percentagem de incapacidade aludida, exigia-se que a pessoa segura ficasse total e permanentemente impossibilitada de exercer a profissão indicada na proposta de seguro ou a que, posteriormente, venha a ser comunicada por escrito à SEGURO BB.

Havia-se provado que “após a operação, o autor não mais pôde desenvolver os esforços físicos que fazia enquanto gerente, embora seja capaz de praticar atos como passar cheques, receber telefonemas e tratar da demais documentação da empresa”. O Tribunal da Relação entendeu “que o Autor embora tivesse provado que ficou parcialmente impossibilitado de exercer as funções de gerente tal como até então [até à intervenção cirúrgica na coluna vertebral com a sequela da incapacidade permanente, global e definitiva de 68,7%], não provou que ficasse total e permanentemente impossibilitado de exercer a profissão de gerente. O Tribunal da Relação entendeu, igualmente, que para um destinatário normal esse seria o sentido da cláusula” (destaque nosso). Mas o Supremo Tribunal teve uma leitura diferente da situação, considerando que:

“Acresce que, como também refere Moitinho de Almeida, importa na interpretação do contrato de seguro ter em conta o fim prosseguido com a celebração dos contratos e o seu efeito útil: o tomador do seguro, a empresa de venda de materiais de construção, celebra um seguro de vida com uma proteção complementar para o seu gerente, a pessoa segura, tendo em consideração a eventual possibilidade de o seu gerente morrer ou ficar impossibilitado de exercer a gerência dessa mesma sociedade. O que é decisivo aqui não é o conceito jurídico de gerência que o segurador pretendeu configurar como válido universalmente, para todas as empresas, independentemente do seu objeto ou da atividade a que se dediquem, mas a realidade económica e social da gerência habitual de uma empresa, aliás de uma microempresa, de venda de materiais de construção civil”.

Concluiu-se que o sinistrado, tendo em conta aquela concreta realidade e apesar de se ter provado que poderia continuar a praticar alguns actos como gerente (ou seja, não e tendo provado que ficasse total e permanentemente impossibilitado de exercer a profissão de gerente), estava em condições de beneficiar do seguro que havia contratado, razão por que foi revogado o acórdão da Relação.

Estamos, pois, perante dois casos recentes em que não se deixou de concluir pela invalidez permanente, apesar de ser ter provado que os sinistrados poderiam continuam a exercer determinadas tarefas, até na sua área de actividade.

Voltando ao caso presente, importa recordar que a Autora apresenta incapacidade permanente e absoluta para o exercício da sua profissão habitual (IPATH), ou seja, uma incapacidade que está para além de qualquer percentagem, e apresenta Incapacidade Parcial Permanente para qualquer outra profissão, de 67,5 %; necessita de ajudas técnicas, isto é, de suporte para membro superior para promover a elevação da mão; necessita de ajuda de terceira pessoa para a realização de algumas tarefas do dia-a-dia, como efectuar as limpezas de casa, ajudar na confeção da comida, passar a ferro, entre outras; necessita de medicação, analgésicos, designadamente paracetamol e pregabalina (Benuron e Lyrica); necessita de realização de sessões de fisioterapia; as lesões e sequelas que apresenta são na mão direita, sendo a autora dextra; a profissão que a autora exercia era de “operária indiferenciada”.

A A., teve o acidente quando exercia actividade como marceneira, ao trocar os rolos de uma máquina, ficando com a sua mão direita presa na mesma.

Não se vê que outras actividades tenha exercido que não as que envolvessem trabalho físico, manual, ou que possa vir a desempenhar fora dessa área. As referências que há nos autos são todas de trabalhos dessa natureza: na agricultura; como costureira e como marceneira (cf. relatório pericial junto em 06-04-2018). Não há também elementos que permitam vislumbrar que esteja apta para outras funções que não sejam dessa natureza. 

Neste quadro, considera-se que há que concluir, como concluiu Relação, pela invalidez permanente da A,. operária indiferenciada, face à provada incapacidade total e absoluta para o exercício da sua actividade habitual, em associação com uma genérica IPP (67,5 %), sem qualquer perspectivação de trabalhos que, fora da sua área, possa vir a exercer e vistas as sequelas de que ficou portadora, tendo, inclusive, necessidade de um suporte para a elevação da sua mão direita (sendo ela dextra) e não podendo passar sem a ajuda de terceiros para as tarefas mais elementares da vida doméstica.

Improcede a revista, sendo de manter o que se decidiu no acórdão recorrido.


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Sumário (da responsabilidade do relator)


1. Estando-se perante um contrato de adesão e provando-se que não foram adequadamente cumpridos os deveres de comunicação e informação, no âmbito de um contrato denominado “Garantia de Pagamento de Encargos”, deve considerar-se excluída uma cláusula inserta no “Regulamento de Benefícios”, na qual se prevê que “Para todos os efeitos considera-se estado de invalidez permanente o processo de incapacidade a que corresponda uma percentagem igual ou superior a 70% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, mas esta percentagem será corrigida, acrescentando-se-lhe o grau de invalidez que existia à data da inscrição».

2. Uma cláusula deste cariz, destinada a cobrir situações de incapacidade que podem afectar beneficiários com diversos níveis de instrução, diversas profissões ou com diversas aptidões, não pode ser interpretada de forma puramente literal, antes deve ser adaptada a cada concreta situação, sob a perspectiva de um declaratário normal e tendo em conta as regras da boa fé.

3. Provando-se que a autora, “operária indiferenciada”, apresenta incapacidade permanente e absoluta para o exercício da sua profissão habitual (IPATH) e Incapacidade Parcial Permanente para qualquer outra profissão, de 67,5 %, necessitando de ajudas técnicas de suporte para membro superior para promover a elevação da mão, de ajuda de terceira pessoa para a realização de algumas comuns tarefas do quotidiano, de medicação analgésica, de sessões de fisioterapia, e que, sendo dextra, as lesões e sequelas que apresenta são na mão direita, sem que, ademais, se perspective outra qualquer actividade de uma natureza diversa daquela que vinha exercendo, deverá considerar-se portadora de invalidez permanente.


IV

Pelo que se deixou exposto, nega-se provimento à revista.

- Custas pela Recorrente.


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Lisboa, 07-03-2023

Tibério Nunes da Silva (Relator)

Nuno Ataíde das Neves

Sousa Pinto