Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
083878
Nº Convencional: JSTJ00022124
Relator: SANTOS MONTEIRO
Descritores: CASAMENTO CATÓLICO
CASAMENTO NO ESTRANGEIRO
TRANSCRIÇÃO
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ECLESIÁSTICO
FRAUDE À LEI
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ199402220838781
Data do Acordão: 02/22/1994
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJSTJ 1994 ANOII TI PAG115
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 5959/91
Data: 12/10/1992
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 21 ARTIGO 342 N1 N2 ARTIGO 1598 ARTIGO 1625 - ARTIGO 1646.
DL 30615 DE 1940/07/25 ARTIGO 24.
CRC78 ARTIGO 65 C ARTIGO 68 N3 ARTIGO 108 ARTIGO 109 ARTIGO 111 ARTIGO 112 ARTIGO 164 ARTIGO 214 ARTIGO 299.
L 37/81 DE 1981/10/03 ARTIGO 11.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1978/06/29 IN BMJ N278 PAG228.
ACÓRDÃO STJ DE 1983/02/22 IN BMJ N324 PAG590.
Sumário : I - O casamento católico celebrado no estrangeiro entre uma indiana e um holandês e a sua transcrição no registo civil português são coisas diferentes, cabendo a regularidade desta última na competência dos tribunais comuns.
II - Excepto no que concerne à capacidade matrimonial dos nubentes, a decisão sobre as questões da existência e nulidade do casamento católico e da sua forma, celebrado no estrangeiro entre estrangeiros, quando eles, ou um deles, posteriormente adquiriu a nacionalidade portuguesa, é da competência dos tribunais eclesiásticos e não dos tribunais comuns portugueses.
III - É, porém, da competência dos tribunais comuns portugueses, o conhecimento da inexistência jurídica da nulidade ou da nulidade da transcrição do assento do casamento católico celebrado pela autora com o réu.
IV - A quem invoca a fraude à lei - baseando-se no facto de a naturalização como cidadão português do cônjuge que pretende obter os bens daquele - cumpre provar os fundamentos do vício invocad
o.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível:

I)- Relatório 1- No Tribunal Judicial da Comarca de Sintra, Verilta
A propôs contra B, acção de divórcio litigioso, pedindo que seja decretado o divórcio entre ela e o réu, seu marido, por este ter violado culposamente de forma reiterada os seus deveres conjugais de respeito, cooperação e assistência, violação essa que compromete definitivamente a possibilidade de vida em comum do casal.
Frustrada a conciliação, contestou o réu, excepcionando, impugnando e deduzindo reconvenção.
Com excepção, articulou o seguinte:
No dia 16 de Junho de 1989 realizou-se na Igreja de S.
Lucas, Nova Delli, Estado da India, uma cerimónia de casamento católico entre a autora e o réu, mas esse casamento não produziu quaisquer efeitos para a Ordem
Jurídica do Estado da India.
Tratou-se de um casamento entre estrangeiros, realizado no estrangeiro, dado que a autora era indiana e o réu
Holandês.
A norma de conflitos aplicável à forma de casamento celebrado entre dois estrangeiros é o artigo 50 do
Código Civil e, nos termos desta disposição a forma de casamento é regulada pela lei do Estado em que o acto é celebrado, ou seja na India.
Há porém, autores que consideram que os casamentos de estrangeiros realizados no estrangeiro serão tidos como válidos, desde que satisfaçam os requisitos de forma de uma das seguintes leis: a do Estado da celebração, a do
Estado da nacionalidade dos nubentes (India e Holanda); e a do Estado da sua última residência (India e Suiça).

Ora, sucede que o casamento celebrado entre a autora e o réu não é o considerado válido para qualquer destas leis.
Por isso, o casamento não poderia ter sido transcrito em Portugal, mesmo atendendo a que a autora obteve a nacionalidade portuguesa em 7 de Março de 1986, porque o artigo 11 da Lei da Nacionalidade (Lei n. 37/81, de 3 de Outubro); ao preceituar que a atribuição da nacionalidade portuguesa produz efeitos desde o nascimento, exclui desses efeitos a validade das relações jurídicas anteriormente estabelecidas com base em outra nacionalidade.
Para possibilitar a transcrição do registo do casamento aplicou-se o artigo 51 do Código Civil e não o seu artigo 50.
Mas, a atribuição da nacionalidade portuguesa não pode validar relações jurídicas anteriormente inexistentes.
Não sendo válido o casamento, nunca poderia ter sido transcrito com base na certidão do registo paroquial, pelo que tal registo é nulo de nenhum efeito.

De qualquer modo, o registo de transcrição devia ter obedecido às disposições dos artigos 1664 a 1667 do
Código Civil. Sendo o casamento católico, a transcrição será recusada nos mesmos termos em que o pode ser a transcrição dos casamentos católicos celebrados em
Portugal (artigo 1667 Código Civil e artigo 214 Código de Registo Civil).
Segundo os artigos 1657, n. 1, alínea b), do Código
Civil e 210, n. 1, alínea b) do Código de Registo
Civil, a transcrição do casamento católico deve ser recusado se a certidão do assento paroquial não contiver as indicações exigidas na lei; entre as quais se conta a declaração prestada pelos nubentes de que realizaram o casamento por sua livre vontade.
Como o assento paroquial não contem tal declaração, a transcrição é nula, por ofender um preceito de carácter imperativo (artigos 295 e 294, do Código Civil).
A transcrição é ainda nula pelo facto do assento paroquial não conter o nome completo, idade, estado e naturalidade dos nubentes (alínea c) do n. 1 do artigo 201 do Código Registo Civil).
Seguidamente, o réu deduziu o incidente de falsidade dos documentos juntos sob os números 3 a 6 com a petição inicial. Deduziu também o réu a excepção da caducidade quanto aos factos referidos nesses documentos.
O réu impugnou os factos articulados pela autora e com os quais esta fundamentou o pedido de divórcio.
Finalmente, o réu deduziu reconvenção, articulando factos pelos quais pediu que fosse decretado o divórcio, com culpa exclusiva da autora.
Houve, ainda, réplica da autora.
2- Foi proferido o despacho saneador, no qual:

a) - se julgou incompetente, em razão da matéria, o tribunal para conhecer da nulidade do casamento católico entre a autora e o réu
b) - se julgou improcedente a excepção da nulidade da transcrição do assento desse casamento,
c) - não foi admitido o incidente de falsidade deduzido pelo réu,
d) - foi julgada improcedente a excepção da caducidade.
Foram, organizadas a especificação e o questionário.
Entretanto o réu interpôs recurso de agravo do despacho saneador, recurso esse que foi admitido com subida diferida e efeito devolutivo.
Depois de se ter procedido a julgamento, a acção e a reconvenção foram julgados procedentes, sendo o divórcio decretado com culpas iguais de ambos os cônjuges.
3- Então o réu interpôs recurso de apelação para o
Tribunal da Relação de Lisboa.
Quanto à matéria do agravo, considera-se no acórdão recorrido que o artigo 1625 do Código Civil não é institucional e que,assim, nos termos dessa disposição legal, os tribunais cíveis portugueses são incompetentes em razão da matéria, para se pronunciarem sobre a inexistência jurídica, ou a nulidade dos casamentos católicos. Também ali se considerou que o agravante não alegou factos bastantes que permitissem detectar qualquer fundamento legal relevante para que se declarasse a inexistência ou ineficácia jurídica do casamento, quer face à lei indiana (competente para decidir sobre a sua nulidade formal, segundo a lei de conflitos portuguesa - artigo 50 do Código Civil) ou qualquer outra que possua conexões relevantes juridicamente com o casamento.
Também ali se decidia que a transcrição do assento do casamento não é inexistente ou inválida juridicamente, em face do artigo 1651, n. 1, alínea c), do Código
Civil e dos artigos 65, n. 1 alínea c), 108, n. 1 alínea d), 195, 210, n. 1, 214, n. 2, 222, n. 2, 225, n. 1, alínea b), do Código Registo Civil e ainda dos artigos 49 e 50 do Código Civil.
Decidiu-se ali ainda que o registo do casamento não está ferido de nulidade, em face dos artigos 110, n. 1 e 112, do Código Registo Civil e dos artigos 50 e 51, n. 3, do Código Civil.
Por tudo isso, foi negado provimento ao agravo.
Depois de apreciar o objecto da apelação, a Relação de
Lisboa negou-lhe também provimento, confirmando a sentença da primeira instância.
4- Inconformado, o réu interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, recurso esse recebido com efeito suspensivo.
Na sua alegação de recurso o recorrente formulou as seguintes conclusões:
1 a) - Em violação do artigo 50 do Código Civil, a cerimónia na India entre indiana e holandês foi registada em Portugal, ignorando o registo civil competente; assim o objecto do registo pode apenas ser o que foi constituído pela lei portuguesa nessa cerimónia.
2 a) - Na cerimónia externa a essa lei, não foi declarada a vontade sob lei portuguesa, antes há casamento inexistente, cominado pelo vício de falta de declaração de vontade (artigo 1628 do Código Civil).
3 a) - Porque a assim não ser reconhecido, qualquer estrangeiro corre o risco de ver atribuído por Portugal um estatuto e consequências jurídicas que são "ex novo" e com fraude à lei foram assegurados.
4- a) - Os tribunais, reconfirmando a fraude à lei da recorrida, contradizem-se, confirmam de dois modos que o objecto do registo é um casamento inexistente; no entanto, admitem "um casamento" apenas com respeito à recorrida, não com respeito ao recorrente.
5 a) - A recorrida era, de facto, indiana no momento da cerimónia e não portuguesa, e a lei indiana e holandesa competente para o acto, o que os tribunais confirmam;

assim a "competência" da lei portuguesa para admitir o
"casamento" apenas com respeito à recorrida, não existia na altura, mas só conseguiu três anos mais tarde, quando a recorrida se tornou portuguesa.
6 a) - É impossível que a recorrida actuou retroactivamente como sendo portuguesa invisível e sob lei portuguesa invisível, violando os artigos 110 da Lei da Nacionalidade de 21 do Código Civil, ou que ela obteve no momento da naturalização o direito que, como indiana, não tivera, violando os artigos 49, 1617, 1691 e 1628 (3) do Código Civil.
7 a) - A "competência" assumida pela lei portuguesa para admitir um "casamento" apenas com respeito à recorrida, é o resultado de interpretações equivocas, dos termos "casamento católico" da lei portuguesa, tornando o Código Civil, Código Registo Civil, anotados, e a Constituição da República Portuguesa válidos para uma lei antes e mera indiana, e declarando que qualquer esquema de cerimónia estrangeira é um «casamento católico: e todos os padres autoridade civil competente, independentemente dos direitos dos estrangeiros.
8 a) - É arbitrário admitir um "casamento" assimétrico apenas com respeito à recorrida, mantendo o casamento inexistente verdadeiro apenas com respeito ao recorrente; é arbitrário basear a "competência" para criar esse "casamento" assimétrico com violação flagrante da lei portuguesa, na ausência de prova impossível de obter, de que o "casamento" não existe no estrangeiro.
9 a) - O registo é juridicamente inexistente e deve ser anulado por razões constantes do artigo 108 do Código
Registo Civil - o casamento inexistente é objecto único do registo.
10 a) - O casamento assimétrico é resultado de fraude à lei sob o artigo 21 do Código Civil, obtido secretamente e só com o fim e de obter os bens e património do recorrente.
11 a) - Lesando e prejudicando devido ao arrolamento que acompanhou o pedido de "divórcio" - vida e saúde do recorrente. 12 a) - O processo foi marcado pela violação do direito à defesa do recorrente sob convenções internacionais; tornando todos os factos acima mencionados admissíveis nesse recurso, e marcado pela violação sistemática das normas de conflitos que deveriam proteger os direitos dos estrangeiros, tendo o recorrente vindo para Portugal residir na expectativa da segurança jurídica e judiciária - além de criar jurisprudência perigosa para casos futuros e para os Direitos do Homem dos Estrangeiros em Portugal.

13 a) - Nos outros países comunitários era impossível que essa fraude persistisse e que, violando os Direitos do Homem, destrói a vida e a pessoa dum estrangeiro desde há cinco anos, desculpado pela lentidão e estrutura formal do sistema de justiça.
14 a) - É impossível que um estrangeiro que nunca declarou a sua vontade sob alguma lei seja unilateralmente e secretamente "casado" contra a sua vontade, sem testemunhas, assinaturas ou autoridades reconhecidas a presidir ao acto, em violação da lei portuguesa e das Convenções de Direitos do Homem, para favorecer uma portuguesa fraudulenta, cujo único feito
é o locupletamento à custa dum estrangeiro, e que defendeu o Estado Português, contudo actuando de forma culposa e dolosa.
15 a) - Nesses termos, deve ser declarado nulo o registo do "casamento" e anuladas as sentenças anteriores de Sintra e da Relação de Lisboa.
Não houve contra-alegação.

II) - Fundamentos da decisão.

A) - Factos provados:
A autora e o réu casaram um com o outro, na igreja católica de São Lucas, em Nova Delli, União Indiana, no dia 16 de Junho de 1983.
O casal tem um filho, de nome C, nascido em 2 de Janeiro de 1986.
Em fins de 1986 o réu propôs à irmã da autora, D, viverem os três juntos, com contactos sexuais pretendendo superar os problemas sexuais do casal.
No mês de Janeiro de 1987, o réu viajou para o estrangeiro e não deixou dinheiro à autora, motivo pelo que ela pediu dinheiro emprestado a parentes e amigos.
Em 4 de Fevereiro de 1987, a autora saiu de casa, levando o filho e depois procurou trabalho.
Cerca de três anos após o casamento, a autora recusou-se a manter relações sexuais como o réu dizendo que tinha nojo dele.
A autora deixou de dormir na cama do casal.
Em 27 de Março de 1988 foi publicado, em nome de P.F.R. no jornal "The Anglo Portuguese News" um anúncio em que se procurava mulher para companheira, a quem se prometia, eventualmente, o casamento.
O réu tem nacionalidade holandesa e nasceu em 4 de
Janeiro de 1927 (folhas 240 e 241).
A autora nasceu no dia 23 de Agosto de 1955 (folhas 20 e 194 a 198).
A autora tinha nacionalidade indiana e obteve a nacionalidade portuguesa (folhas 20, 47, 14 e 243).

B) - Aspecto jurídico.
1- Há que apreciar, agora, o recurso, começando pela matéria de agravo.
No acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa decidiu-se que os tribunais cíveis portugueses são incompetentes em razão da matéria para se pronunciarem sobre a inexistência jurídica ou a nulidade dos casamentos católicos; que a transcrição do assento do casamento no registo civil português não é inexistente ou inválido juridicamente; e que o registo do casamento não está ferido de nulidade.
Portanto, são estas as questões a decidir neste recurso, no que concerne à matéria de agravo.
2- a) - Como vimos, ficou provado que a autora e o réu casaram um com o outro na Igreja Católica de São Lucas, em Nova Delli, União Indiana, no dia 16 de Julho de
1983. Esse casamento está transcrito na Conservatória dos Registos Centrais, assento n. 4997, de 6 de
Dezembro de 1987.
O recorrente pretende que não houve qualquer casamento entre ele e a autora, tendo-se limitado a mera cerimónia naquela igreja católica, não tendo ele prestado o seu consentimento para a celebração de qualquer casamento, pelo que tal casamento é inexistente.
Dispõe o artigo 1625 do Código Civil que o conhecimento das causas respeitantes à nulidade do casamento católico é reservado aos tribunais e repartições eclesiásticas competentes.
Este artigo 1625 corresponde ao primeiro parágrafo do artigo XXV da Concordata com a Santa Sé, de 7 de Maio de 1940 e ao artigo 24 do Decreto-Lei n. 30615, de 25 de Julho de 1940.
O capítulo V do Titulo I do Livro IV do Código Civil, que se estende até ao artigo 1646, trata da invalidade do casamento, para abranger as hipóteses da ineficácia, da nulidade e da anulabilidade do casamento católico, que tem um regime totalmente distinto da invalidade do casamento civil. É o que se proclama no cânone 1671 do
"Codex Juris Canocini". Este diploma não admite a figura da inexistência jurídica do casamento, tendo-se confinado ao regime da nulidade.
São aplicáveis ao casamento concordatário as normas de direito canónico sobre a capacidade matrimonial dos nubentes, a falta e os vícios da vontade e ainda sobre a forma do contrato, embora só possa ser celebrado o casamento católico por quem tiver a capacidade matrimonial exigida na lei civil.
Mas, são ciosas diferentes, a celebração do casamento católico pelos ministros respectivos e a sua transcrição no registo civil português, cuja regularidade já está sujeita à competência dos tribunais comuns. b)- Com a publicação da Constituição Política de 1976, discutiu-se na doutrina e na jurisprudência se o seu artigo 36, n. 2, tinha revogado ou não aquele artigo
1625 do Código Civil, porque naquele se dispõe que "a lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução por morte ou divórcio, independentemente da forma da celebração".
O artigo 2 do Protocolo adicional de 15 de Fevereiro de
1975 expressamente manteve em vigor o primeiro parágrafo do artigo XXV da Concordata, ao qual corresponde o citado artigo 1625 do Código Civil, e segundo Antunes Varela não é credível "que os constituintes, um ano volvido sobre a assinatura do
Protocolo que solucionou uma questão particularmente delicada entre o governo português e a Santa Sé, pretendessem alterar unilateralmente posição tão nevrálgica como a da jurisdição dos tribunais eclesiásticos em matéria de casamento (católico)
(Direito de Família", edição de 1987, páginas 151 e
152).
Por outro lado, a reforma do Código Civil, operada pelo
Decreto-Lei n. 496/77, de 25 de Novembro, teve em vista harmonizar esse diploma legal com os princípios da Constituição da República Portuguesa, e essa reforma deixou intacto aquele artigo 1625, indício de que o legislador continuou a considerá-lo em vigor. Apenas
Gomes Canotilho e Vital Moreira consideraram que o texto constitucional tinha revogado aquele artigo 1625 ("Constituição da República Portuguesa anotada", 1980, página 106).
A jurisprudência conhecida deste Supremo Tribunal de
Justiça tem decidido pela manutenção em vigor de tal preceito (Acórdãos de 29 de Junho de 1978, Boletim do
Ministério da Justiça n. 278 - 228; e de 22 de
Fevereiro de 19833, Boletim do Ministério da justiça n.
324-540) - Também é essa a nossa opinião.
No caso concreto, o casamento católico foi celebrado no estrangeiro, na India, entre uma indiana e um holandês, não tendo, como é obvio, sido passado o certificado da capacidade matrimonial 1598 do Código Civil, mas o artigo 209 do Código de Registo Civil prevê a hipótese de o casamento não haver sido precedido do processo de publicações, caso, porém em que a transcrição só se efectuará depois de organizado o processo, nos termos dos artigos 164 e seguintes do mesmo Código Registo Civil, substituindo-se a declaração dos nubentes pelo duplicado ou certidão do assento canónico (n. 1 daquele artigo 209). c) - Poder-se-ia dizer que o artigo 1625 apenas se refere aos casamentos católicos celebrados nos termos da Concordata entre Portugal e a Santa Sé e que o casamento católico da autora e do réu é-lhe alheio, porque celebrado no estrangeiro entre estrangeiros.
Contudo, a letra do artigo 1625 não distingue entre as duas situações matrimoniais; e alei portuguesa reconhece a existência dos casamentos católicos celebrados entre estrangeiros no estrangeiro, quando eles, ou um deles, vem posteriormente a adquirir a nacionalidade portuguesa na alínea c) do artigo 65 do
Código do Registo Civil se dispõe que são lavrados por transcrição os assentos de casamentos católicos celebrados no estrangeiro perante as autoridades locais competentes por estrangeiros que adquiram a nacionalidade portuguesa.
O artigo 11 da Lei n. 37/81, de 3 de Outubro (Lei da Nacionalidade) em nada contende com o reconhecimento do casamento católico celebrado no estrangeiro por estrangeiros, quando eles, ou um deles, adquire a nacionalidade portuguesa. Antes pelo contrario, porque nos termos dessa disposição legal, se atribui validade
à relação jurídica matrimonial anteriormente estabelecida. d)- Tudo isto serve para dizer que, excepto o que concerne à capacidade matrimonial dos nubentes, a decisão sobre as questões da existência e nulidade do casamento católico e da sua forma, mesmo celebrado no estrangeiro por estrangeiros, quando eles, ou um deles, posteriormente adquirir a nacionalidade portuguesa, é da competência dos tribunais eclesiásticos e não dos tribunais comuns portugueses.
Portanto, ao recorrente não resta outra alternativa senão, se assim o entender, propor no tribunal eclesiástico a acção relativa à inexistência ou à nulidade do casamento católico celebrado com a autora.
3-a) - É, porém, da competência dos tribunais civis portugueses o conhecimento da inexistência jurídica ou da nulidade da transcrição do assento do casamento católico celebrado pela autora e pelo réu (artigo 299 e seguintes do Código do Registo Civil).
Os vícios do registo, segundo o Código do Registo Civil são a inexistência jurídica e a nulidade (seus artigos
108 e seguintes), o n. 1 desse artigo 108 indica os quatro casos em que ocorre a inexistência jurídica dos registos.
Nos termos da alínea d), do n. 1 desse artigo 108, o registo é juridicamente inexistente, quando, tratando-se de assento de casamento, não contiver a expressa menção de os nubentes haverem manifestado a vontade de contrair matrimónio.
Segundo o recorrente, o assento paroquial que serviu de base à transcrição do casamento na Conservatória dos
Registos Centrais não continha tal declaração, pelo que a transcrição deveria ter sido recusada. Ora, consta do assento de casamento n. 499-F lavrado na Conservatória dos Registos Centrais que os nubentes declararam celebrar de livre vontade o seu casamento perante o Padre George Koreethra, Pároco.
Desconhecemos quais os documentos que a requerente da transcrição apresentou na Conservatória dos Registos
Centrais e só em face desses documentos é que poderia concluir-se se no assento do casamento católico celebrado pela autora e pelo réu houve ou não a omissão dos nubentes terem manifestado a sua vontade de contrair matrimónio.
Como já vimos antes, são lavrados por transcrição os assentos de casamentos católicos celebrados no estrangeiro perante as autoridades locais competentes por estrangeiros que adquiram a nacionalidade portuguesa (artigo 65, alínea c), do Código do Registo
Civil). Porem este Código não regula de forma expressa os requisitos a que deve obedecer a transcrição desse casamento católico celebrado por cidadãos estrangeiros no estrangeiro, como sucede, v. g. , com os requisitos exigidos para o assento do casamento católico celebrado por cidadãos portugueses no estrangeiro (artigo 214 do
Código do Registo Civil).
Sabemos apenas que, previamente à transcrição do assento do casamento católico celebrado pela autora e pelo réu; foi organizado na Conservatória dos Registos
Centrais num processo nos termos do artigo 209 do
Código do Registo Civil, que remete para o seu artigo
164 (folha 481, do acórdão recorrido da Relação de
Lisboa). Aí se deu como provado o seguinte: A Conservatória dos Registos Centrais organizou, no
âmbito do processo de transcrição do casamento, a afixação dos editais referidos nos artigos 111 e seguintes, considerando a indicação da existência de quaisquer impedimentos matrimoniais, relativamente ao casamento da autora e do réu. Não foi indicada a existência de qualquer impedimento ao casamento. A Excelentissíma Conservadora adjunta daquela Conservatória lavrou despacho naquele processo do seguinte teor: "... concluo pela inexistência de qualquer impedimento matrimonial, pelo que autorizo a transcrição do casamento católico dos Autora e Réu". b) - Teria sido útil que o recorrente, em vez de se opor na contestação desta acção a inexistência jurídica da transcrição do seu casamento católico, sem que fornecesse os elementos necessários para nova pronúncia sobre tal matéria, se tivesse socorrido da acção prevista nos artigos 299 e seguintes do Código do
Registo Civil, onde com a intervenção da Conservatória que lavrou o assento, se teriam obtido os elementos necessários à decisão sobre a inexistência jurídica da transcrição do assento paroquial do casamento; embora a inexistência do registo possa ser invocada a todo o tempo pelo interessado, independentemente de declaração judicial (artigo 109 do Código do Registo Civil), ao contrário do que sucede com a declaração da nulidade do registo (artigo 113 desse Código).
Era ao réu que incumbia o ónus da alegação e prova dos factos necessários para se poder concluir acerca da inexistência jurídica do assento do casamento transcrito na Conservatória dos Registos Centrais; como facto extintivo do direito da autora a requerer o divórcio relativamente a um casamento que não existiu ( artigo 24, n. 2, do Código Civil).
Como o réu não fez essa alegação e prova, tudo se passa como a autora e o réu tendo declarado celebrar de livre vontade o seu casamento perante o Padre George
Korrethra, Pároco, como consta do assento do casamento lavrado na Conservatória dos Registos Centrais. c) - Quanto às outras menções que o recorrente diz em falta no assento paroquial do casamento, há que ter em conta o disposto no n. do artigo 68 do Código do
Registo Civil, do seguinte teor: "Se do titulo passado por autoridade estrangeira não constarem todas as menções previstas neste Código, a transcrição pode ser completada, por meio do averbamento, em face das declarações prestadas pelos interessados e dos documentos comprovativos, se as menções omissas não interessarem à substância do acto".
Das menções omissas referidas pelo recorrente só interessa à substância do acto a declaração dos nubentes de celebrarem de livre vontade o seu casamento.
Desconhecemos como foram supridas as outras omissões, se é que houve suprimento.
Essas outras omissões não integram nenhum caso de nulidade do registo (artigo 110 do Código do Registo
Civil) e, por isso, trata-se de irregularidades, cuja rectificação deveria ser feita nos termos do artigo 115 desse Código.
Daqui já se vê que o agravo não merece provimento quanto à inexistência jurídica e à nulidade da transcrição do assento paroquial do casamento na Conservatória dos Registos Centrais.
4- Quanto à matéria do recurso de apelação, o recorrente, invocando o artigo 21 do Código Civil, alegou que a recorrida naturalizou-se portuguesa, para depois fazer transcrever o casamento católico com a recorrida, como único fim de obter os bens do recorrente.
Esse artigo 21 diz o seguinte: " Na aplicação das normas de conflitos são irrelevantes as situações de facto ou de direito criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicabilidade da lei que, noutras circunstâncias, seria competente".
Segundo J. Baptista Machado, a noção de fraude à lei no
DIP (Direito Internacional Privado) mais não é do que a extensão, a esse domínio jurídico, da noção geral de fraude à lei (Lições de Direito Internacional Privado, segunda edição, página 281). Esta fraude não se configura como uma fraude a uma norma de DIP, pois a norma de conflitos apenas desempenha a função de norma instrumental, e o objecto da fraude será sempre uma norma de direito interno.
A reacção da lei contra a fraude impede a consecução dos fins prosseguidos pelo agente e tudo se passa como se os actos fraudulentos não existissem (Pires de Lima e Antunes Varela, " Código Civil Anotado", volume I terceira edição, página 68).
No caso concreto, se estivesse provado o que o recorrente alega, tudo se passaria como se a recorrida não estivesse naturalizada como portuguesa e, assim sendo, o casamento católico celebrado pela autora e pelo réu na India não poderia ser transcrito em
Portugal e não poderia ter quaisquer efeitos quanto a qualquer comunhão da autora nos bens do réu.
Mas, não se provou o alegado pelo recorrente quanto à invocada fraude à lei e a ele cabia o ónus dessa prova (artigo 342, n. 1, do Código Civil)

III) - Decisão:
Pelo exposto, negam a revista.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 1994
Santos Monteiro (Relator)

Pereira Cardigos
Machado Soares