Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
28218/19.5T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
LAPSO MANIFESTO
DADOS INFORMÁTICOS
PRESTAÇÕES DEVIDAS
BANCO DE PORTUGAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PRESUNÇÃO JUDICIAL
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
DOCUMENTO PARTICULAR
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 05/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Resultando da matéria de facto provada que “houve um lapso no carregamento informático do contrato que foi carregado como se o prazo de amortização fosse de 20 anos”, importa aceitar como lícita a conclusão do Tribunal recorrido que, com recurso a presunção judicial, deu como provado que o valor das prestações comunicado pela R. aos AA. foi calculado como se o prazo de amortização fosse de 20 anos e que isso implicou que o valor mensal da prestação comunicado fosse inferior ao valor mensal da prestação que era devido.

II. Sendo o valor mensal da prestação comunicado inferior ao valor mensal da prestação que era devido, não restam dúvidas que o valor total devido não está integralmente pago.

III. Enquanto a R. não praticar os actos necessários ao pagamento da quantia em falta pelos AA., não há incumprimento por parte destes, pelo que constitui facto ilícito a comunicação feita pela R. ao Banco de Portugal.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. Na presente acção declarativa que AA e BB movem contra Caixa Geral de Depósitos, S.A., a R. interpôs recurso da sentença pela qual foi julgada a acção parcialmente procedente e, em consequência, foi declarado integralmente cumprido e pago no prazo de amortização contratado o mútuo nº ...85, celebrado entre AA. e R.; foi condenada a R. a emitir o documento de distrate referente à hipoteca a seu favor que onera a fração ... correspondente ao  ... ... urbano sito no Lugar ...), freguesia ..., Concelho ..., descrito na Conservatória ..., sob o nº ...00 da freguesia ...; foi condenada a R. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 100,00 por cada dia de incumprimento da obrigação de emissão do documento de distrate; foi condenada a R. a pagar € 2.000,00 a cada A., a título de danos não patrimoniais; e foi absolvida a R. do mais contra si peticionado.

2. Na apelação, a R. pediu que seja a sentença recorrida substituída por outra que, “reconhecendo a falta de cumprimento integral do contrato, o declare expressamente e considere justificada a recusa da Recorrente na emissão do documento de distrate de hipoteca até que o mútuo se encontre totalmente liquidado”.

3. O recurso foi conhecido, tendo havido impugnação da matéria de facto e correspondente alteração dos factos provados e não provados e o Tribunal veio a decidir:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando a sentença recorrida na parte em que declarou integralmente cumprido e pago no prazo de amortização contratado o mútuo nº ...85, condenou a R. a emitir o documento de distrate da hipoteca e condenou a R. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória; absolvendo a R. de tais pedidos; e mantendo no mais a sentença recorrida.

Custas da ação e do recurso pelas partes na proporção do respetivo decaimento.”

4. Não se conformando com o acórdão os AA. apresentaram recurso de revista, no qual formulam as seguintes conclusões (transcrição):

1 - No caso em apreço, configura-se uma situação em que não ocorre a dupla conformidade, na medida em que o ... de 14-10-2021, sob a referência ...74, de fls. ..., manteve a sentença recorrida de 25-11-2020, de fls. ..., com fundamentação essencialmente diferente, revogando-a, com a consequente absolvição da Ré CGD, S.A., em questões fulcrais e reduzindo-a a um resultado favorável aos AA. de pouca monta, muito insignificante, insuficiente e irrisório, face à actuação errada e ilícita da Ré CGD, S.A.

2 - Há inequívoca legitimidade dos AA, o recurso é atempado e admissível e é de Revista Normal (art.º 629.º, 631.º, 638.º, 645.º, 647.º, 671.º, 674.º, 675.º e 676.º do CPC), com subida imediata e efeito devolutivo; e, Excepcional, a título subsidiário, em virtude de estarem em causa interesses de particular relevância social (art.º 672.º, n.º 1, alínea b) do CPC).

3 - Decorre do contrato de mútuo com hipoteca constante dos autos a fls. ..., e que constitui um meio de prova plena, a verificação de erro na apreciação das provas no ... ora impugnado e na fixação dos factos materiais da causa mais relevantes, motivo por que é objecto de recurso de revista normal, em virtude de consubstanciar situações de violação manifesta das regras de direito probatório material - art.º 674.º, n.º 3, 2.ª parte e 682.º, n.º 2 do CPC.

4 - Acresce que o ... ora recorrido também está viciado por violação da norma do art.º 640.º do CPC, por excesso cognitivo, revogação desadequada e manutenção curta da sentença de 25-11-2020 do Juízo Local Cível ... - Juiz ..., pelo que o Aresto em crise acentuada é nulo, devendo ser declarada a nulidade nos termos das alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.

5 - No pedido de condenação da Ré CGD, S.A. para emitir o documento de distrate da hipoteca está obviamente incluído o pedido de declaração judicial da extinção da hipoteca, sendo que aquele pedido é de cariz e natureza mais prática e consome este, formando uma unidade incindível. (art.º 730.º, alínea a) do código civil).

6 - Não há qualquer incumprimento por parte dos AA. porquanto a Ré CGD, S.A., não praticou os actos necessários sequentes e derivados do seu "lapso" confessado.

7 - O número de prestações, o valor das mesmas e a recontagem ou recálculo são operações matemáticas a cargo da Ré CGD, S.A., da sua exclusiva responsabilidade, pelo que, segundo o princípio "sibi inuputat", só de si pode queixar-se.

8 - O plano de pagamento acordado pelas partes foi cumprido escrupulosamente, com todo o cuidado e zelo, pelos AA/Apelados.

9 - Os Autores, ora recorrentes, sempre pagaram os valores que a Ré CGD, S.A., lhes foi apresentando mensalmente e, apesar disso, esta não se inibiu nem de recusar o distrate da hipoteca nem de fazer a comunicação ao Banco de Portugal.

10 - A Ré CGD, S.A actuou de forma precipitada, ilegítima e abusiva e cometeu as incorrecções descritas e confessadas nos autos, por não ter usado da diligência necessária e indispensável.

11 - Para além da admissão do recurso de revista normal é ainda admissível a revista excepcional a título supletivo e subsidiário, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do NCPC/13, pois os pressupostos referidos nessa alínea verificam-se no caso em apreciação.

12 - Estão causa nesta revista excepcional interesses de particular relevância social relacionadas com a actuação dos Bancos perante os clientes e a repercussão de erros, mais ou menos clamorosos, de uma instituição bancária na vida dos seus clientes.

13 - No caso dos autos foi convencionado um prazo de amortização de 192 meses (16 anos) e uma taxa calculada com base na Euribor a 6 meses acrescida de um spread de 3,625 pontos percentuais, por documento autêntico elaborado pela CGD.

14 - Os AA. cumpriram integralmente o contrato de mútuo, pagando todas as prestações que lhes foram apresentadas, incluindo todas as alterações de prestação impostas durante os 192 meses contratualizados.

15 - Mas, a CGD carregou no seu sistema informático como prazo de amortização em vez de 192 meses, o prazo de 240 meses (20 anos). Findo o prazo dos 192 meses, a questão é quem é que deve suportar as consequências de tal erro. A primeira Instância entendeu que era a CGD; a segunda Instância entendeu que deve ser o cliente. Assim,

16 - As questões em discussão, extravasam os interesses das partes, o inerente objecto do processo e despertam a atenção de relevantes camadas de população, porque está aqui um relevante “sentir social”, quanto à certeza e confiança depositada pelos clientes nas instituições bancárias.

17 - Qualquer cidadão comum, com reacções normais relativamente à sua cidadania, posto perante a pendência desta acção e respectivos temas, ficaria interessado com intenso grau de probabilidade, o que justifica a intervenção do Venerando STJ, pela via da alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do NCPC/13, pelo que, e salvo melhor opinião, a situação descrita integra o conceito de interesses de particular relevância social.

Na fluência do supra exposto, com mais o acréscimo do douto suprimento de VV. Exas, deve o presente recurso de revista merecer provimento e, consequentemente, deve o Acórdão recorrido ser revogado, mantendo-se integralmente a sentença da Primeira Instância, assim se fazendo JUSTIÇA.

5. Foram apresentadas contra-alegações, contendo as seguintes conclusões (transcrição):

“I. Os Recorrentes interpõem recurso do acórdão proferido em 14.10.2021, invocando revista, a título principal, e revista excepcional a título subsidiário por estarem em causa interesses de particular relevância social, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artº. 672º do C.P. Civil;

II. Nos termos da al. b) do nº 1 do artº. 672º do C.P. Civil, é admissível, excepcionalmente, recurso do acórdão da Relação quando estejam em causa interesses de particular relevância social;

III. Os Recorrentes não esclarecem nem de forma embrionária, quais os interesses de particular relevância social que pretendem ver acautelados;

IV. Para que seja admissível recurso de revista excepcional é necessário que tenha ocorrido dupla conforme;

V. No caso dos autos tal revista excepcional não é admitida porquanto não se verificou a dupla conforme expressamente exigida pelo artº. 672º do C.P. Civil;

VI. Alegam os Recorrentes que o acórdão recorrido é nulo por ter conhecido de matéria de que não podia conhecer tendo mesmo condenado em quantidade superior e em objecto diverso do pedido;

VII. A Recorrida impugnou no seu recurso para a Relação ... a matéria de facto julgada provada tendo pedido a sua alteração;

VIII. A Relação ... entendeu que a matéria de facto impugnada não deveria ser alterada, pese embora tenha dado por provada a existência do lapso de carregamento pelos Serviços da Recorrida;

IX. Nos termos do artº. 662º nº 2 al. c) do C.P.C., “a Relação deve…, mesmo oficiosamente: anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto.”;

X. Usando de tal poder/dever, e porque resultou da matéria de facto provada que “houve um lapso no carregamento informático do contrato que foi carregado como se o prazo de amortização fosse de 20 anos”, o Tribunal da Relação, com recurso a presunção judicial, deu como provado que o valor das prestações comunicado pela R. aos AA. foi calculado como se o prazo de amortização fosse de 20 anos e que isso implicou que o valor mensal da prestação comunicado fosse inferior ao valor mensal da prestação que era devido;

XI. A Relação ... usou o seu poder/dever que lhe é conferido pelo artº. 662º nº 2 al. c) do C.P.Civil, e alterou a matéria de facto, com base nos documentos e na prova já constante dos autos;

XII. A alteração da matéria de facto levada a cabo pela Relação foi efectuada com todos os elementos já constantes dos autos, com recurso a presunção judicial e no uso de um poder que a lei lhe atribui;

XIII. Como consequência das alterações ordenadas, o sentido da decisão sofreu alteração, mas tal alteração não foi além do que foi pedido pelas partes nem conheceu de matéria de que não pudesse conhecer;

XIV. A Relação ... procedeu nos limites dos poderes que lhe estão legalmente cometidos e usando de todos os elementos probatórios que tinha à sua disposição incluindo as presunções judiciais, por forma a poder decidir o recurso;

XV. Não ocorreu qualquer excesso de pronúncia que determine a nulidade do acórdão proferido ao abrigo do artº 615º nº 1 al. d) do C.P. Civil;

XVI. Razão pela qual deverá manter-se a decisão proferida, por ser a que melhor se adequa à situação concreta dos autos.

Nestes termos, deve ser negado provimento ao recurso dos Recorrentes, mantendo-se a decisão do acórdão recorrido.”

6. O recurso foi admitido por despacho do Exmo Senhor Desembargador relator, no qual diz:

“Por a decisão ser recorrível, o recurso estar em tempo, os recorrentes terem legitimidade, o requerimento conter a alegação e esta ter conclusões, admito o recurso interposto pelos AA. a 17 de novembro de 2021, que é de revista, sobe nos próprios autos e tem efeito meramente devolutivo (arts. 671º, 675º e 676º do C.P.C.).

Subam os autos.”

7. Tendo sido suscitadas nulidades do acórdão recorrido, o tribunal “a quo” conheceu das mesmas, após indicação do relator do processo no âmbito da revista interposta e distribuída no STJ, tendo decidido que é de indeferir a arguição da nulidade do acórdão proferido a 14 de outubro de 2021 (acórdão da conferência de 10 de março de 2022).

Colhidos os vistos, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

De Facto

8. Das instâncias foram dados como provados os seguintes factos (a negrito as alterações introduzidas pelo TR):

“1. Os AA contraíram, em 31 de Outubro de 2002, junto da R. (Agência de ...) um contrato de mútuo com hipoteca com o nº ...85 pelo valor de € 74.820,00.

2. O empréstimo em causa foi concedido para aquisição da fracção ... correspondente ao  ... ... urbano sito no ..., (lote ...), freguesia ..., Concelho ..., descrito na Conservatória ..., sob o nº ...00 da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...58 da mesma freguesia.

3. Foi convencionado um prazo de amortização de 192 meses (16 anos) e uma taxa calculada com base na Euribor a 6 meses acrescida de um spread de 3,625 pontos percentuais.

4. Os AA. pagaram todas as prestações que lhe foram apresentadas pela Ré, incluindo todas as alterações de prestação impostas pela R.

5. De acordo com o acordado pelas partes a última prestação do empréstimo seria liquidada no dia 31.10.2018, pagamento a que os AA. procederam.

6. Em 02/11/2018 e 03/12/2018 os AA. requereram o levantamento da hipoteca.

7. A R. recusou efectuar o distrate da hipoteca, não o tendo feito até à data.

8. A R. recalculou a quantia a pagar considerando o prazo de 20 anos, e informou os AA. que o montante ainda a pagar é de 19.354,11€.

9. Os AA. recusaram assinar acordo/ aditamento com vista a alteração do prazo de amortização.

10. Todas as alterações foram sempre cumpridas pelos AA., que pagaram integralmente tudo o que a R. determinou, até final do contrato, aceitando os aumentos da prestação, as reduções da prestação, as alterações de taxa, de spread.

11. Os AA. não pagaram a quantia de 19.354,11€ decorrente dos novos cálculos efectuados pela Ré e, em consequência, a R. comunicou o incumprimento ao Banco de Portugal.

12. Esta comunicação afecta o bom nome e reputação dos AA perante as instituições bancárias, as quais têm acesso ao mapa de responsabilidades do Banco de Portugal, comprometendo a sua possibilidade de recurso ao crédito fazendo-os sentir vergonha e humilhação, por mancharem a sua reputação.

13. Os AA. tinham planeado vender a fracção em causa nos autos, objecto de hipoteca, em Dezembro de 2018, promoveram a venda, tinham comprador e só não conseguiram vender por falta do documento de distrate da hipoteca.

14. Os AA. são pessoas cumpridoras das suas obrigações.

15. Houve um lapso no carregamento informático do contrato que foi carregado como se o prazo de amortização fosse de 20 anos.”

16 - Do documento complementar integrante da escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca consta que “o montante das prestações será oportunamente comunicado pela credora” (aditado pelo Tribunal da Relação)

17 - O valor das prestações comunicado pela R. aos AA. foi calculado como se o prazo de amortização fosse de 20 anos, o que implicou que o valor mensal da prestação comunicado fosse inferior ao valor mensal da prestação que era devido. (aditado pelo Tribunal da Relação)

18 - No decurso do prazo de duração do acordo, os AA. tiveram conhecimento do lapso da R. (aditado pelo Tribunal da Relação)

9. Das instâncias foram dados como não provados os seguintes factos (a negrito as alterações introduzidas pelo TR):

“a) (eliminado pelo Tribunal da Relação);

b) Ainda estão em falta 4 anos de prestações correspondentes a 19.354,11 €.

c) A Ré aprovou a celebração de contrato de mútuo com os Autores deveria ser amortizado em 20 anos, ou seja, em 240 prestações mensais de capital e juros progressivos.

d) Aquando da elaboração do documento complementar ao Contrato de Mútuo em causa, por lapso dos serviços da Ré, ao invés de ter sido inscrito neste documento a menção ao aprovado prazo de 20 anos, ou seja, 240 meses, foi inscrito 16 anos, isto é, 192 meses.”

De Direito

10. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

As questões suscitadas no recurso são as seguintes:

1. Nulidade do acórdão recorrido - alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC;

2. Saber se o Tribunal recorrido violou as disposições legais de direito probatório material ao exercer o controlo sobre os factos provados e não provados, no âmbito dos poderes que lhe são conferidos pelo art.º 662.º do CPC;

3. Erro de julgamento na aplicação do Direito.

11. Iniciando a análise do recurso pelas invocadas nulidades.

Tal como decidiu o tribunal recorrido, em sede de conhecimento das nulidades invocadas, é de entender que as mesmas não se verificam.

Por um lado, não há falta absoluta de fundamentação, porquanto a decisão do Tribunal foi assim fundamentada:

“Sendo o valor mensal da prestação comunicado inferior ao valor mensal da prestação que era devido, não restam dúvidas que o valor total devido não está integralmente pago. (…)

Não estar o valor total devido integralmente pago não significa que haja incumprimento por parte dos AA. (…)

Enquanto a R. não praticar os atos necessários ao pagamento da quantia em falta pelos AA., não há incumprimento por parte destes”.

A falta de fundamentação implica a ausência da mesma, o que claramente não é a situação que se verifica no acórdão recorrido.

E também não ocorre oposição entre os fundamentos e a decisão, porque não é contraditório afirmar “Não estar o valor total devido integralmente pago não significa que haja incumprimento por parte dos AA.”  e decidir que é necessário praticar certos actos para que o incumprimento ocorra, afirmando-se que sem a prática destes não se firma o incumprimento.  Não existe aqui qualquer desarmonia lógica entre a motivação fáctico- jurídica e a decisão, que se harmonizam logicamente e são de compreensão relativamente fácil.

No que toca ao excesso de pronúncia, também se acompanha o acórdão da conferência, quando aí se afirma:

No acórdão recorrido, foi alterada a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto ao abrigo do disposto no art. 662º nº 2 al. c) do C.P.C., segundo o qual “a Relação deve…, mesmo oficiosamente: anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto.”

Por considerar que constavam do processo todos os elementos que permitiam alterar a decisão sobre a matéria de facto, a Relação procedeu não à anulação, mas sim à alteração.”

Finalmente, não se compreende a invocação pelos recorrentes da alínea e) do nº 1 do art. 615º do C.P.C., uma vez que, no acórdão recorrido, não houve condenação, mas sim absolvição.

12. Apreciando a questão relativa ao uso dos poderes do tribunal recorrido na alteração da matéria de facto, importa fazer uma análise breve do que ocorreu no acórdão recorrido.

12.1. Na apelação o Banco impugnou a matéria de facto provada e não provada e o Tribunal recorrido entendeu que se justificava proceder à alteração; nessa alteração começou por indicar que haviam sido indicados temas de prova sobre os quais não houve indicação de factos provados e não provados – tratava-se do tema de prova ““Quando e de que forma tiveram os AA. conhecimento do… lapso”, no qual se integrariam os factos alegados pela R. nos artigos 18º, 20º, 21º, 41º e 42º da contestação. Ora o Tribunal recorrido entendeu que “a decisão sobre a matéria de facto não contempla tais factos e estes são relevantes para a decisão da causa, atentas as várias soluções plausíveis do direito”; o tribunal também analisou o percurso justificativo relativo a outro tema de prova - “Se o que foi acordado entre AA. e R. já se mostra, ou não, integralmente cumprido pelos AA.” e quanto a este, figurando uma resposta nos factos não provados, disse que cabia aos AA. provar o pagamento e não aos RR. provar a falta de pagamento, reafirmando o princípio que se aplica nestas situações segundo o qual “a falta de prova de um facto não significa que se prova o facto contrário.

Mas o tribunal também disse:

A R. não logrou provar que o “contrato de mútuo… deveria ser amortizado em 20 anos, ou seja, em 240 prestações mensais de capital e juros progressivos” e que, aquando da elaboração do documento complementar ao Contrato de Mútuo em causa, por lapso dos serviços da Ré, ao invés de ter sido inscrito neste documento a menção ao aprovado prazo de 20 anos, ou seja, 240 meses, foi inscrito 16 anos, isto é, 192 meses”, mas resulta da matéria de facto provada que “houve um lapso no carregamento informático do contrato que foi carregado como se o prazo de amortização fosse de 20 anos”.

E a partir desse lapso provado, disse o tribunal:

Provado tal lapso, não basta, para julgar integralmente cumprido o contrato de mútuo, provar que “os AA. pagaram todas as prestações que lhe foram apresentadas pela Ré, incluindo todas as alterações de prestação impostas pela R.”; que “de acordo com o acordado pelas partes a última prestação do empréstimo seria liquidada no dia 31.10.2018, pagamento a que os AA. procederam”; e que “todas as alterações foram sempre cumpridas pelos AA., que pagaram integralmente tudo o que a R. determinou, até final do contrato, aceitando os aumentos da prestação, as reduções da prestação, as alterações de taxa, de spread”.

No entender do tribunal, o lapso de carregamento informático, à luz da contestação da Ré, tinha de assumir uma consequência diversa da indicada na sentença: tinha de reflectir-se no apuramento da matéria de facto incluindo-se aí indicações sobre o que fora pago e o que seria devido não fosse o lapso. Porque a sentença não contemplaria assim todos os factos alegados pelas partes que integram os temas da prova enunciados, seria deficiente e o Tribunal da Relação deveria corrigir a deficiência, por via do conhecimento da matéria de facto, o que vez invocando a permissão normativa do art.º 662.º, n.º 2, alínea c) do CPC.

Realizando assim um julgamento sobre a matéria de facto – provada e não provada, à luz dos temas de prova selecionados, das alegações das partes e da sentença – tomou em consideração:

1º - O documento complementar integrante da escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca, onde consta que “o montante das prestações será oportunamente comunicado pela credora”;

2º - O facto provado relativo ao “lapso” de carregamento informático;

3.º - Socorreu-se das presunções judiciais para concluir que se devia dar como provada um novo facto: o valor das prestações comunicado pela R. aos AA. foi calculado como se o prazo de amortização fosse de 20 anos e isso implicou que o valor mensal da prestação comunicado fosse inferior ao valor mensal da prestação que era devido.

4.º - considerou que havia contradição entre o facto provado onde se afirma que o valor mensal da prestação comunicado era inferior ao valor mensal da prestação que era devido”, face ao  facto não provado que afirma “o valor do capital mutuado não está integralmente liquidado;

5.º- Socorreu-se dos extractos bancários juntos pela Ré, e muito em especial do extracto relativo à prestação 190, do qual constava como valor em dívida – depois de paga a prestação 190 - € 20.126,98;

6.º- Analisou a PI e verificou que no artigo 9º os AA. alegaram que, “a partir de determinada altura da vigência do contrato de mútuo celebrado, a R. começou a dizer ao A. que tinha havido um engano da sua parte, nomeadamente um erro informático, que teve como consequência a redução das prestações”, do que concluiu que  os AA. que, no decurso do prazo de duração do acordo, tiveram conhecimento do lapso da R.

7.º - finalmente entendeu que, constando do processo todos os elementos relevantes para a decisão da causa, podia alterar a matéria de facto, o que fez, nos seguintes termos:

Assim, passa a matéria de facto provada a ter a seguinte redação:

16 - Do documento complementar integrante da escritura de compra e venda e

mútuo com hipoteca consta que “o montante das prestações será oportunamente

comunicado pela credora”.

17 - O valor das prestações comunicado pela R. aos AA. foi calculado como se o prazo de amortização fosse de 20 anos, o que implicou que o valor mensal da prestação comunicado fosse inferior ao valor mensal da prestação que era devido.

18 - No decurso do prazo de duração do acordo, os AA. tiveram conhecimento do lapso da R.

A matéria de facto não provada passa a ter a seguinte redação:

a) (eliminado)

…”

12.2. Para fundamentar o recurso de revista quanto à questão da impugnação da matéria de facto, diz o recorrente que o tribunal violou disposições legais relativas ao valor dos meios de prova utilizados, nomeadamente afirmando em sede conclusiva que “Decorre do contrato de mútuo com hipoteca constante dos autos a fls. ..., e que constitui um meio de prova plena, a verificação de erro na apreciação das provas no ... ora impugnado e na fixação dos factos materiais da causa mais relevantes, motivo por que é objecto de recurso de revista normal, em virtude de consubstanciar situações de violação manifesta das regras de direito probatório material - art.º 674.º, n.º 3, 2.ª parte e 682.º, n.º 2 do CPC.”


12.3. Por força do art.º 682.º do CPC,

1 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

2 - A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º.

3 - O processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.”

 E dispõe o art.º 674.º, n.º 3:

3 - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Na situação analisada no presente recurso não se identifica que a apreciação realizada pelo tribunal recorrido tenha colidido com as citadas disposições legais, nem que estejamos perante um dos casos em que é lícito ao STJ imiscuir-se na avaliação dos meios de prova.

A circunstância de o tribunal recorrido ter analisado e usado o doc. de fls.. (contrato de mútuo com hipoteca) não altera os dados da situação ainda que se trate de documento dotado de força probatória especial, porque não está em causa nenhum dos aspectos a que essa força probatória se reporta – 369.º e ss do CC, máxime 371.º, 373.º e ss e 376.º - a força probatória especial não abrange o conteúdo da declaração negocial das partes intervenientes no contrato nem o sentido da declaração utilizada pelo tribunal relativa à clausula onde se diz o montante das prestações será oportunamente comunicado pela credora”, o que significa que não está preenchido o pressuposto normativo “que fixe a força de determinado meio de prova”, nem se consegue identificar como poderia estar preenchida a alternativa “havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto” - art.º 674.º, n.º 3 CPC.

A utilização da presunção judicial não apresenta, à luz da coerência lógica apresentada para o seu uso e perante os elementos conhecidos, desconhecidos e presumidos, e face à permissão da sua utilização, qualquer ilogicidade manifesta, o que também significa ter a mesma sido utilizada em conformidade com as disposições legais aplicáveis – art.º 349.º e 351.º do CC – limitando-se o controlo admitido por parte do STJ  a estes aspectos legais.

Os extractos bancários são, por sua vez, documentos particulares sujeitos à livre apreciação do tribunal e o alegado no artigo 9º é facto aceite/confessado pelo próprio autor, que deve assim ser dado por assente.

Não se considera ainda que a alteração realizada pelo Tribunal esteja fora do âmbito dos poderes do tribunal recorrido, por força do art.º 662.º do CPC, cuja identificação como tendo sido violado não encontra respaldo no acórdão em revista.

Isso significa que o STJ não pode alterar a matéria de facto provada e não provada, e sobre a mesma terá de aplicar o direito.

Improcede a questão relativa à impugnação da matéria de facto.

13. Analisando agora a solução jurídica encontrada pelo Tribunal da Relação face aos factos provados e não provados.

13.1. Entende a recorrente que o banco deve assumir as consequências de ter efectuado um carregamento em sistema com lapsos, em face do que foi o efectivamente acordado e com esses lapsos deve considerar-se que o mútuo está integralmente pago e deve ser emitido o documento de distrate da hipoteca.

13.2. Para decidir em sentido diverso o Tribunal apoiou-se nos factos provados, com destaque para os que introduziu, dizendo:

“Resulta da matéria de facto provada que “foi convencionado um prazo de amortização de 192 meses (16 anos) e uma taxa calculada com base na Euribor a 6 meses acrescida de um spread de 3,625 pontos percentuais”.

O valor das prestações não se encontra fixado no contrato, mas resulta do contrato o modo da sua determinação.

Se é certo que do documento complementar integrante da escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca consta que “o montante das prestações será oportunamente comunicado pela credora”, certo é também que o valor comunicado deveria ser determinado em conformidade com o estipulado.

O tribunal recorrido deu como provado que “houve um lapso no carregamento informático do contrato que foi carregado como se o prazo de amortização fosse de 20 anos”.

Com a alteração da decisão sobre a matéria de facto supra determinada, passou a constar da matéria de facto provada que “o valor das prestações comunicado pela R. aos AA. foi calculado como se o prazo de amortização fosse de 20 anos, o que implicou que o valor mensal da prestação comunicado fosse inferior ao valor mensal da prestação que era devido”.

Sendo o valor mensal da prestação comunicado inferior ao valor mensal da

prestação que era devido, não restam dúvidas que o valor total devido não está integralmente pago.”

Anteriormente o Tribunal explicou o sentido da sentença e como a mesma não se podia manter com a alteração dos factos provados e não provados, pois a 1ª instância havia-se centrado apenas na análise do número de prestações pagas, sem atender ao valor das mesmas e assumido que paga a última prestação não haveria mais dívida.

Mas o Tribunal não disse que a Ré tinha inteira razão.

Na verdade, o que o tribunal diz é que ainda há dívida a pagar, mas não há incumprimento da mesma, pelo que não se podia efectuar a comunicação do Banco de Portugal, mas também não podia ser emitido o documento de distrate da hipoteca, porque a mesma continua a justificar-se enquanto houver dívida.

Que dizer?

13.3.    O tribunal recorrido fez uma análise correcta do direito aplicável aos factos, quer do ponto de vista da extinção da hipoteca e emissão de documento de distrate, quer relativamente à indicação de que há dívida, mas não ocorreu incumprimento da dívida.

Não fora a alteração dos factos provados, com especial destaque para o ponto 18. e, porventura, a solução poderia ser outra.

É assim de acompanhar a justificação apresentada pelo tribunal recorrido quando afirma:

Não estar o valor total devido integralmente pago não significa que haja incumprimento por parte dos AA.

Os AA. pagaram durante 192 meses o valor comunicado pela R.

Os AA. não pagaram a quantia de € 19.354,11 decorrente dos novos cálculos efetuados pela R.

Tendo a R. recalculado a quantia a pagar considerando o prazo de 20 anos, é legítima a recusa dos AA. em pagar tal quantia.

Na verdade, a R. não pode sujeitar os AA. a prazo superior ao acordado nem ao pagamento de juros em valor superior ao que resulta do contrato celebrado.

A R. tem, isso sim, de calcular o valor que os AA. deveriam ter pago se o valor das prestações tivesse sido determinado com base no prazo de 16 anos em vez de 20 e deduzir ao valor encontrado o montante pago pelos AA., assim apurando a quantia ainda em dívida.

Enquanto a R. não praticar os atos necessários ao pagamento da quantia em falta pelos AA., não há incumprimento por parte destes, pelo que constitui facto ilícito a comunicação feita pela R. ao Banco de Portugal.”

Improcedem assim as questões suscitadas no recurso.

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, é negada a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 5 de Maio de 2022

Fátima Gomes (relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto Oliveira