Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B3932
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
NOMEAÇÃO DE BENS À PENHORA
REGISTO PREDIAL
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
RENÚNCIA
Nº do Documento: SJ2006020239322
Data do Acordão: 02/02/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 4388/05
Data: 06/21/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : I - A nomeação à penhora pelo beneficiário da reserva de propriedade do bem que é objecto dessa reserva implica a renúncia à mesma.
II - Nada obsta a que se aplique à reserva de propriedade o regime de cancelamento das garantias reais do artº 824º do C. Civil.
III - Assim, efectuado o registo definitivo da penhora, a execução deve prosseguir, sem que tenha de ficar suspensa até que o exequente obtenha o cancelamento da reserva de propriedade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
"A" instaurou execução para o pagamento de determinada quantia contra B, C e D.
Oportunamente, nomeou à penhora um veículo automóvel sobre o qual existia registo de reserva de propriedade inscrita a seu favor.
De seguida, foi proferido despacho ordenando a suspensão dos termos da penhora, até que se mostrasse efectuado o cancelamento do indicado registo.
Deste despacho foi interposto agravo, mas sem êxito.
Agravou de novo o exequente, fundando-se na divergência de julgados.
Nas suas alegações de recurso apresenta, em síntese, as seguintes conclusões:

1. Sendo admissível que o detentor da reserva de propriedade nomeie à penhora o bem objecto dessa reserva, a ela assim renunciando, o facto da mesma se encontrar registada não obsta ao prosseguimento da execução.
2. Com efeito, de harmonia com o artº 824º do C. Civil e 888º do C. P. Civil, o tribunal deve oficiosamente ordenar o cancelamento de todos os registos que incidam sobre o bem penhorado.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Apreciando

Entende o acórdão em apreço que é possível nomear à penhora bem sobre o qual se detém uma reserva de propriedade, o que integra uma renúncia tácita do mesma. Nessa parte não põe o recorrente em causa a doutrina da decisão impugnada.
Assim, temos como questão única a decidir, a de saber se pode ou não prosseguir uma penhora de veículo automóvel em execução em que é exequente a entidade a favor da qual se mostra feita uma reserva de propriedade, ou se é necessário que esta requeira o cancelamento de tal reserva.
Considerou o Tribunal da Relação que o artº 824º do C. Civil só permite o cancelamento oficioso dos encargos que incidam sobre a coisa vendida em execução, se forem direitos reais de garantia ou direitos reais de gozo, estes últimos se o seu registo for posterior ao da penhora.
Ora, a reserva de propriedade não se integra em nenhuma dessas categorias.

Não é um direito real de garantia, apesar de ter em vista uma função de garantia e, por outro lado, o seu registo é anterior ao da penhora.
Consequentemente, permitir que a execução prosseguisse, levaria a que, não podendo o juiz ordenar o cancelamento da dita reserva, o adquirente do bem tivesse de suportar na sua esfera jurídica esse ónus.
Vejamos
Coloca-se a questão da natureza jurídica da figura da reserva de propriedade prevista no artº 409º nº 1 do C Civil.
Nos termos deste preceito o alienante pode reservar para si a propriedade da coisa alienada até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte, ou à verificação de qualquer outro evento.
O direito de manter a propriedade da coisa, não pode ser confundido com a própria propriedade. Esta visa o desfrute da coisa pelo seu titular, aquele apenas a garantia das vantagens que o alienante da coisa pretende retirar da alienação.
Para além de não se poder confundir com o direito de propriedade, não constitui qualquer outro direito real de gozo.
No entanto, é manifesto que na sua estrutura jurídica constitui um poder imediato sobre uma coisa, ou seja, que para ser exercido não depende da conduta de outrem. Verificada objectivamente a condição de que depende, o seu titular mantém a propriedade.
Ora um direito real é uma "situação activa de vantagem que, tendo por seu núcleo um poder jurídico inerente a certa coisa, faculta ao respectivo titular o aproveitamento, directo e exclusivo, das suas utilidades." - Penha Gonçalves Curso de Direitos Reais 2ª ed. 71 - .
Donde se conclui pela semelhança da natureza jurídica da reserva de propriedade com a de um direito real. E esta semelhança só pode ser com a de um direito real de garantia. Pelo que, ao menos pela analogia, deve-lhe ser aplicado o regime do artº 824º do C. Civil, do cancelamento oficioso da sua inscrição registral.
Aliás, no registo predial, tendo-se procedido ao registo da penhora como definitivo, reconheceu-se que nada obstava a que esta produzisse plenamente todos os seus efeitos jurídicos. Nomeadamente a venda judicial.
Na verdade, o pedido de registo da penhora implica também ele uma renúncia tácita da reserva de propriedade, que os respectivos serviços acabaram por reconhecer, ao elaboraram o registo definitivo.
Nada impede, pois, o prosseguimento da execução.
Termos em que procede o recurso.

Pelo exposto, acordam em dar provimento ao agravo, revogam o acórdão recorrido e ordenam o prosseguimento da execução.

Sem custas neste tribunal e em 2ª instância.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2006
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos