Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | GRAÇA AMARAL | ||
Descritores: | DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA SOCIEDADE POR QUOTAS PATRIMÓNIO AUTÓNOMO SUBSIDIARIEDADE DANO NEXO DE CAUSALIDADE | ||
Data do Acordão: | 06/19/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA DO RÉU E NEGADA A DO AUTOR | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS. DIREITO DAS SOCIEDADES – ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO / RESPONSABILIDADE CIVIL PELA CONSTITUIÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO DA SOCIEDADE. | ||
Doutrina: | -Armando Manuel Triunfante / Luís de Lemos Triunfante, Desconsideração da personalidade jurídica, Sinopse Doutrinária e Jurisprudência, revista JULGAR - N.º 9 – 2009, p.144/145; -Catarina Serra, Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da Autonomia patrimonial), revista Julgar, n.º 109, p. 130; -Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, volume II, Almedina, p. 176 e 177; -Ferrer Correia, Sociedades Fictícias e Unipessoais. Coimbra, 1948, p. 321 e ss.; -Inocêncio Galvão Telles, Venda a descendentes e o problema da superação da personalidade jurídica das sociedades, ROA, 1979, vol. III, págs. 531 e ss.; -Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coimbra, 2009, p. 279; -Pedro Cordeiro, O Levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e no Direito Comercial, Almedina., p. 19. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 635.º, N.º 4 E 639.º. CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 64.º, 77.º E 79.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 09-01-2003, PROCESSO N.º 02B3034; - DE 26-06-2007, PROCESSO N.º 07A1274; - DE 24-05-2011, PROCESSO N.º 475/04.9TBLLE.E1.S1; - DE 29-01-2014, PROCESSO N.º 548/06.3TBARC.P1.S1; - DE 28-01-2016, PROCESSO N.º 1916/03; - DE 10-05-2016, PROCESSO N.º136/14.0TBNZR.C1.S; - DE 07-11-2017, PROCESSO N.º 919/15.4T8PNF.P1.S1; - DE 03-02- 2009, PROCESSO N.º 08A3991, TODOS IN WWW.DGSI.PT; | ||
Sumário : |
I - A figura da desconsideração da personalidade jurídica societária visa a responsabilização do património daquele que, instrumentalizando a sociedade, retirou proveitos próprios actuando em desconformidade com as finalidades para as quais a sociedade foi criada. II – No nosso ordenamento jurídico não existe preceito legal que regule e tutele a figura, pelo que a determinação das circunstâncias susceptíveis da sua aplicação é fundamentalmente casuística, embora a sua configuração seja apoiada em princípios gerais positivamente consagrados como sejam o abuso de direito, a má fé e o intuito de prejudicar terceiros. III – De entre os casos que a doutrina vem identificando como típicos de crise da função da personalidade jurídica colectiva passível de justificar a desconsideração da personalidade colectiva figura a confusão de patrimónios. IV - O recurso ao instituto do levantamento da personalidade colectiva é de carácter subsidiário, só assumindo cabimento caso não exista outro fundamento legal que invalide a conduta desrespeitosa. V- Para aplicação do instituto da desconsideração da personalidade colectiva não basta a existência de uma situação de confusão de esferas patrimoniais entre o sócio e a sociedade, como seja a de transferência de montantes da conta desta para a conta pessoal daquele. Mostra-se indispensável para tal efeito a demonstração do prejuízo e, concomitantemente, do nexo de causalidade entre este e a conduta desrespeitosa da autonomia patrimonial, no caso, a prova de que as transferências levadas a cabo por um dos sócios tenham causado falta de liquidez da sociedade e, como tal, a impossibilidade de entrega dos lucros distribuídos à sócia lesada. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,
I – relatório Recorrentes: AA e BB (recurso subordinado) Recorridos: BB, e CC – …, LDA.
1. BB, em 4 de Abril de 2011, propôs acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra CC – … e AA, pedindo a condenação solidária dos Réus: - no pagamento de €75.179,05, a título de lucros apurados e distribuídos à Autora e ainda não liquidados; - no pagamento dos juros de mora, contados desde a data do vencimento da deliberação social (totalizando até à data da acção, € 10.135,17) até efectivo e integral pagamento. Subsidiariamente: - condenação do Réu a pagar à Ré sociedade € 75.179,05, a título de lucros apurados e distribuídos à Autora e ainda não liquidados e, consequentemente, ser a sociedade R. condenada no pagamento desses lucros à Autora; Subsidiariamente: - condenação do Réu a pagar o referido montante a título de lucros apurados e distribuídos à Autora e ainda não liquidados que este indevidamente retirou da sociedade - Execução judicial de sentença nos termos do artigo 675.º A do Código de Processo Civil[1]. Fundamentou a acção no exercício do seu direito social a obter da sociedade Ré (constituída por ela e pelo Réu enquanto sócios sendo este também gerente da mesma) o pagamento de lucros já distribuídos e ainda em dívida, relativamente aos exercícios de 2005, 2006 e 2007, no valor de € 75.179,05.
2. Após citação o Réu contestou excepcionando erro na forma de processo, a incompetência do Tribunal de Comércio de Lisboa e a ilegitimidade das partes (da Autora e do Réu AA). Impugnou ainda grande parte da matéria constante da petição, alegando ainda que a acção tem por finalidade a obtenção de vantagens patrimoniais. Deduziu pedido reconvencional com condenação da Autora e da Ré no pagamento da quantia de €64.637,87, a título de quantias pagas indevidamente em nome da sociedade e que aproveitam directamente a A., bem como de outras a apurar em sede de execução de sentença quanto à utilização abusiva de interesses societários. Deduziu igualmente pedido de condenação da Autora como litigante de má fé.
3. Foi apresentada réplica onde a Autora pugna pela improcedência das excepções e dos pedidos reconvencional e condenação por litigância de má fé.
4. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho (fls. 560/576) que conheceu das excepções arguidas, julgando-as improcedentes. Foi admitido o pedido reconvencional deduzido contra a Autora, não tendo sido admitido o pedido reconvencional deduzido contra a Ré. Foi fixado o objecto do litígio, enunciados os factos assentes e definidos os temas da prova.
5. Após julgamento foi proferida sentença (em 20-06-2016) que julgou a acção parcialmente procedente e improcedente a reconvenção, tendo condenado a Ré a pagar à Autora o valor respeitante aos lucros apurados e distribuídos a esta ainda não liquidados num total de €75.179,05, bem como juros computados desde a data do vencimento das obrigações (decorridos 30 dias após cada uma das assembleias nas quais foi deliberada a distribuição de lucros – 23.06.2006, 14.01.2008 e 02.04.2009, às taxas legais aplicáveis, sobre as quantias, respectivamente de €25.406,17, €31.240,20 e €18.532,68 até integral pagamento. Foi o Réu absolvido dos pedidos e a Autora absolvida do pedido reconvencional e do pedido de litigância de má fé.
6. Inconformada a Autora apelou impugnando a matéria de facto fixada pela 1ª instância.
7. O Tribunal da Relação de Lisboa (por acórdão de 26 de Abril de 2017) julgou parcialmente procedente o recurso, revogando a sentença na parte em que absolveu o Réu do pedido de condenação a pagar, solidariamente, à Autora o valor de € 75.179,05, a título de pagamento de lucros apurados e distribuídos ainda não liquidados e juros. Em consequência, condenou o Réu a pagar, solidariamente, à Autora o valor de € 45.107,43, a título de lucros apurados e distribuídos ainda não liquidados, e juros computados desde a data do vencimento das obrigações, decorridos 30 dias após cada uma das assembleias nas quais foi deliberada a distribuição de lucros (23.6.2006, 14.1.2008 e 2.4.2009), às taxas legais aplicáveis, sobre as quantias respectivamente de € 15.243,70, € 18.744,12 e € 11.119,60 até integral pagamento.
8. Ambas as partes interpuseram recurso de revista, tendo a Autora recorrido subordinadamente.
9. O Réu formulou as seguintes conclusões:
10. A Autora concluiu nas suas alegações: A)Veio o Tribunal da Relação de Lisboa condenar o Recorrido por via da aplicação da figura da desconsideração da personalidade jurídica, na modalidade de confusão de esferas jurídicas. B)Tal condenação decorreu do facto de o Tribunal ad quo ter considerado provada a mistura de patrimónios da sociedade CC e do Recorrido, tendo este considerado que as transferências de valores da conta bancária da primeira para a conta do segundo foram realizadas “em moldes tais que pelo menos três quintos das receitas da sociedade, que deram azo aos lucros referidos em 10, 14 e 19, foram transferidos pelo Réu para a sua conta pessoal (factos 23, 24 e 32)”. C)Nestes termos, o Tribunal ad quo, com recurso às normas da responsabilidade civil extracontratual, veio acordar na responsabilidade solidária do Recorrido, limitada ao valor de três quintos dos lucros distribuídos e não liquidados à Recorrente, no montante de € 45.107,43 (quarenta e cinco mil e cento e sete euros e quarenta e três cêntimos), acrescidos de juros de mora contados desde o vencimento da respetiva deliberação social, até efetivo e integral pagamento, D)Mantendo a decisão da primeira Instância na parte em que resulta condenada a sociedade Ré CC pela totalidade do valor dos lucros distribuídos e não liquidados à Recorrente, no valor de € 75.179,05 (setenta e cinco mil e cento e setenta e nove euros e cinco cêntimos), acrescidos de juros de mora contados desde o vencimento da respetiva deliberação social, até efetivo e integral pagamento. E)Ora, salvo o devido respeito, o limite suprarreferido resulta de um erro na aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica e sua conjugação com as normas relativas à responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente os artigos 334.º e 483.º do CC. F)Dos factos e da fundamentação constante do recorrido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não resultam quaisquer elementos ou fundamentos que resultem ou permitam a limitação da responsabilidade do Recorrido no pagamento dos danos sofridos pela Recorrente somente na quantia de € 45.107,43 (quarenta e cinco mil e cento e sete euros e quarenta e três cêntimos), nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) e c) do CPC. G)Com efeito, da fundamentação do douto Acórdão, à qual aderimos, resulta que sobre o Recorrido recai o dever de indemnizar a Recorrente de acordo com as normas de responsabilidade civil extracontratual. H)Porém, a responsabilidade do sócio deverá ser não apenas solidária como ilimitada para efeitos de indemnização dos danos, sentido defendido por Ana Filipa Morais Antunes, em “O Abuso da Personalidade Jurídica Colectiva no Direito das Sociedades Comerciais – Breve Contributo para a Temática da responsabilidade civil” e em Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-03-2012. I)Observando o exposto no artigo 483.º, n.º 1 do CC, verifica-se que os danos de que a Recorrente deverá ser indemnizada referem-se ao pagamento dos lucros que lhe foram distribuídos da sociedade CC nos anos 2005, 2006 e 2007 e que não lhe foram liquidados, devido às sucessivas transferências das receitas da CC da conta da sociedade para a conta pessoal do Recorrido, realizadas por este, deixando a sociedade Ré desprovida de rendimentos suficientes para a liquidação dos lucros devidos à Recorrente, que ascendem à quantia de € 75.179,05 (setenta e cinco mil e cento e setenta e nove euros e cinco cêntimos). J)Com efeito, nos anos de 2005 a 2007, o Recorrido privou infundadamente a sociedade CC de receitas em valor não inferior a € 255.958,98 (duzentos e cinquenta e cinco mil e novecentos e cinquenta e oito euros e noventa e oito cêntimos), o que representa um valor superior a 80% da soma dos resultados fiscais líquidos da sociedade CC dos anos 2005 a 2007. K)Pelo que a conduta do Recorrido mereceu a aplicação da figura da desconsideração da personalidade jurídica, por manifesto abuso de direito, por parte do Tribunal da Relação de Lisboa. L)Assim, e conforme resulta da aplicação do artigo 483.º do CC, deve a Recorrente ser ressarcida de todos danos que sofreu em resultado do abuso de direito perpetuado pelo Recorrido. M)Os danos provocados pelo Recorrido referem-se às quantias não auferidas pela Recorrente a título de lucros distribuídos e não liquidados de 2005 a 2007, que perfazem o valor total de € 75.179,05 (setenta e cinco mil e cento e setenta e nove euros e cinco cêntimos). N)Devendo a responsabilidade do Recorrido ser julgada não somente solidária, como foi decidido no Acórdão recorrido, mas ilimitada relativamente ao valor total dos danos causados à Recorrente. O)Mais se verifica que, ainda que a responsabilidade do Recorrido houvesse que ser limitada, sê-lo-ia ao valor total das receitas de que este privou a sociedade Ré, no montante até € 255.958,98 (duzentos e cinquenta e cinco mil e novecentos e cinquenta e oito euros e noventa e oito cêntimos). P)O valor dos danos da Recorrente corresponde à quantia de € 75.179,05 (setenta e cinco mil e cento e setenta e nove euros e cinco cêntimos), acrescida de juros, montante este inferior ao valor supra referido e abaixo do possível limite à responsabilidade do Recorrido. Q)Termos em que deve o Recorrido ser condenado a pagar solidariamente com a sociedade Ré o valor total de lucros distribuídos e não liquidados dos anos 2005, 2006 e 2007, no valor de € 75.179,05 (setenta e cinco mil e cento e setenta e nove euros e cinco cêntimos), acrescidos de juros de mora contados desde o vencimento da respetiva deliberação social, até efetivo e integral pagamento. R)Termos em que somente assim se poderá verificar a correta aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, em conjugação com o artigo 483.º e 487.º do CC, aos factos provados. S)Em consequência, deve ser revogado o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa na parte em que vem “Condenar o Réu a pagar, solidariamente, à autora o valor de € 45.107,43, a título de lucros apurados e distribuídos ainda não liquidados, e juros computados desde a data de vencimento das obrigações, decorridos 30 dias após cada uma das assembleias nas quais foi deliberada a distribuição de lucros (23.6.2006, 14.1.2008 e 2.4.2009), às taxas legais aplicáveis, sobre as quantias respetivamente de € 15.243,70, € 18.744,12 e € 11.119,60 até integral pagamento”, T)Devendo a parte revogada ser substituída por “Condenar o Réu AA ao pagamento solidário de € 75.179,05 (setenta e cinco mil e cento e setenta e nove euros e cinco cêntimos), a título de pagamento de lucros apurados e distribuídos à Recorrente e ainda não liquidados, e juros computados desde a data de vencimento das obrigações, decorridos 30 dias após cada uma das assembleias nas quais foi deliberada a distribuição de lucros (23.6.2006, 14.1.2008 e 2.4.2009), às taxas legais aplicáveis, sobre as quantias respetivamente de € 25.406,17 (vinte e cinco mil e quatrocentos e seis euros e vinte e dezassete cêntimos), € 31.240,20 (trinta e um mil e duzentos e quarenta euros e vinte cêntimos) e € 18.532,68 (dezoito mil e quinhentos e trinta e dois euros e sessenta e oito cêntimos) até integral pagamento”. Sem conceder, e subsidiariamente, U)Ainda que a posição supra referida não seja subscrita por este Tribunal, o que apenas se admite por mero dever de patrocínio, da aplicação das normas legais e da argumentação do Tribunal ad quo não resulta que o Recorrido deva ser condenado na quantia de € 45.107,43 (quarenta e cinco mil e cento e sete euros e quarenta e três cêntimos). V)Com efeito, da fundamentação do Tribunal ad quo resulta que os montantes transferidos pelo Recorrido para a sua conta pessoal e de que este é devedor perfazem 93,12% do total dos resultados líquidos contabilísticos da sociedade CC dos anos 2005, 2006 e 2007, devendo ser esta a proporção a ser observada no cálculo do valor da indemnização nos termos do artigo 483.º, n.º 1 do CC. W)Havendo um erro de cálculo por parte do Tribunal da Relação de Lisboa, dado que a proporção a observar sobre os lucros distribuídos e não liquidados à Recorrente não é de três quintos, mas de antes de 93,12%. X)Pelo que deve ser revogado o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa na parte em que vem “Condenar o Réu a pagar, solidariamente, à autora o valor de € 45.107,43, a título de lucros apurados e distribuídos ainda não liquidados, e juros computados desde a data de vencimento das obrigações, decorridos 30 dias após cada uma das assembleias nas quais foi deliberada a distribuição de lucros (23.6.2006, 14.1.2008 e 2.4.2009), às taxas legais aplicáveis, sobre as quantias respetivamente de € 15.243,70, € 18.744,12 e € 11.119,60 até integral pagamento”, Y)Devendo a parte revogada ser substituída por “Condenar o Réu AA ao pagamento solidário de € 70.006,73 (setenta mil e seis euros e setenta e três cêntimos), a título de pagamento de lucros apurados e distribuídos à Recorrente e ainda não liquidados, e juros computados desde a data de vencimento das obrigações, decorridos 30 dias após cada uma das assembleias nas quais foi deliberada a distribuição de lucros (23.6.2006, 14.1.2008 e 2.4.2009), às taxas legais aplicáveis, sobre as quantias respetivamente de € 23.658,23 (vinte e três mil e seiscentos e cinquenta e oito euros e vinte e três cêntimos), € 29.090,87 (vinte e nove mil e noventa euros e oitenta e sete cêntimos) e € 17.257,63 (dezassete mil e duzentas e cinquenta e sete euros e sessenta e três cêntimos) até integral pagamento”.
II – APRECIAÇÃO DO RECURSO De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do CPC), impõe-se conhecer as seguintes questões:
1. 1 Os factos provados
2. O direito[3] 1. Da (in)aplicabilidade do instituto da desconsideração da personalidade colectiva Com a presente acção a Autora, enquanto sócia da Ré, visa obter o pagamento de lucros relativos aos exercícios de 2005 a 2007, num total de 75.179,05€, que, por deliberação da sociedade, foram distribuídos. Para tal efeito, não só demandou a sociedade em causa, como o sócio e gerente da mesma, o Réu, a quem imputa a descapitalização da Ré, apelando às figuras do abuso do direito, da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade Ré e do disposto no artigo 79.º, do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC). As instâncias afastaram a aplicação do artigo 79.º, do CSC[4], por entenderem que a situação fáctica desenhada nos autos não permitia tal enquadramento, desde logo por não se verificar um dos respectivos pressupostos da responsabilidade: danos directamente causados ao sócio/terceiro pelo administrador[5] Todavia, o acórdão recorrido, em dissonância da sentença, considerou que o Réu deveria responder pessoalmente perante a Autora pelo pagamento de 3/5 dos lucros apurados e distribuídos a esta com fundamento na desconsideração da personalidade jurídica com base no seguinte raciocínio: - o Réu movimentou a conta da sociedade fazendo transferências da conta desta para a sua conta pessoal em, pelo menos, 3/5 das receitas daquela, que constituíam os lucros distribuídos à Autora; - tais transferências revelam, de forma inequívoca, o propósito de se apropriar das quantias em causa, evidenciando a ocorrência de mistura de patrimónios; - impunha-se ao Réu a demonstração de que os valores transferidos para a sua conta pessoal foram apenas e efectivamente aplicados na satisfação dos encargos da sociedade[6]. Insurge-se o Réu defendendo que a factualidade provada não integra os requisitos do abuso do direito (figura em que assenta a desconsideração da personalidade jurídica) por a personalidade colectiva não ter sido usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros. Alicerça-se na seguinte ordem de argumentos: - resultar dos autos que o Réu não era o único gerente da sociedade e que a Autora retirou dinheiro da mesma para fazer face às suas despesas pessoais; - não ter sido provado que as movimentações da conta bancária por si levadas a cabo tenham deixado a sociedade sem rendimentos; - decorrer do processo que os valores em causa respeitavam a serviços prestados à sociedade, destinando-se ao pagamento da despesa desta, nomeadamente os impostos; - não impender sobre si o ónus de demonstrar que as transferência realizadas para a sua conta pessoal foram exclusivamente aplicadas na satisfação das necessidades da sociedade, por consubstanciar facto constitutivo do direito da Autora a prova do destino das transferências para proveito pessoal.
1.1 As sociedades são sujeitos (autónomos) de direito. A atribuição de personalidade jurídica às sociedades, constituindo uma ficção jurídica, assenta num princípio de grande relevância prática, o da separação (nomeadamente de patrimónios) entre a sociedade e os respectivos sócios. O princípio da separação, porque passível de ser usado em práticas censuráveis de instrumentalização da sociedade para satisfação de interesses pessoais dos sócios, alheios aos interesses sociais com prejuízo para terceiros e para a própria sociedade em si, não pode ser absolutizado, obriga à sua derrogação nas situações em que se imponha reequilibrar situações injustas desencadeadas por conduta(s) de sócio(s) contrárias aos imperativos legais e ao fim societário, justificando, assim, a responsabilização do sócio e do respectivo património pelos prejuízos e dívidas decorrentes desse(s) comportamento(s) abusivo(s) e ilícito(s). É nesta premissa que assenta a figura da desconsideração da personalidade jurídica societária,[7] que tem como objecto a responsabilização do património daquele que, instrumentalizando a sociedade, retirou proveitos próprios actuando em desconformidade com as finalidades para as quais a sociedade foi criada. Trata-se de uma figura com génese nos Estados Unidos da América desencadeada por questões processuais[8], sendo que na Europa a sua conceptualização é cometida a Serick[9] que com base no estudo da prática jurisprudencial alemã e norte-americana sobre a temática encarou a limitação da responsabilidade das pessoas colectivas por elas propiciada como um direito subjectivo que poderia ser usado em termos abusivos, passando a sociedade a ser um mero instrumento na mão dos seus sócios. Nesta perspectiva, a personalidade jurídica colectiva deveria ser afastada sempre que se verificasse um abuso dessa forma jurídica com o objectivo de prosseguir fins ilícitos, ilicitude a aferir casuisticamente em função da intenção consciente do agente. A par desta teoria subjectivista foram sendo desenvolvidas outras legitimando o instituto do levantamento da personalidade jurídica colectiva[10], assumindo posição prevalente na doutrina a que assente numa perspectiva objectiva do abuso do direito centralizada na ideia da utilização desvirtuada (na sua função social e ético-jurídica) da personalidade colectiva. Nesta linha, a desconsideração surge como um remédio para a absolutização da pessoa colectiva, mas apenas indicado para os casos que não sejam normativamente solucionáveis. Em Portugal a figura da desconsideração/levantamento da personalidade colectiva tem já uma vasta aplicação jurisprudencial. Foi pela primeira vez mencionada na doutrina portuguesa num parecer de Inocêncio Galvão Telles[11], embora em 1948 Ferrer Correia tivesse já, a propósito das sociedades comerciais unipessoais, apresentado soluções nesse sentido[12]. Independentemente da natureza dogmática da sua construção doutrinal[13] e para o que neste âmbito assume cabimento, importa encarar a figura como “derrogação ou não observância da autonomia jurídico-subjectiva e/ou patrimonial das sociedades em face dos respectivos sócios”[14], pretendendo atingir as situações de violação das regras da boa-fé no interagir com terceiros e (...) implica a existência de uma conduta censurável que só foi possível alcançar mediante a separação jurídica do ente societário – através da personalidade jurídica que a lei lhe atribui – e a pessoa dos sócios para assim almejar um resultado contrário a uma recta actuação[15] , visando a necessidade de corrigir comportamentos ilícitos, fraudulentos, de sócios que abusaram da personalidade colectiva da sociedade, seja actuando em abuso de direito, em fraude à lei ou, de forma mais geral, com violação das regras de boa fé e em prejuízo de terceiros.[16]. Não existindo preceito que regule e tutele a figura da desconsideração da personalidade jurídica[17], a determinação das circunstâncias susceptíveis da sua aplicação é fundamentalmente casuística[18], embora a sua configuração não possa deixar de ser apoiada em princípios gerais positivamente consagrados como sejam o abuso de direito, a má fé e o intuito de prejudicar terceiros. Não obstante não se mostrar consensual, têm sido identificadas, doutrinalmente, várias situações tidas enquanto casos típicos de crise da função da personalidade jurídica colectiva e em que, consequentemente, se poderá justificar o levantamento do véu para imputar a autoria e a responsabilidade ao real titular dos interesses humanos que a instrumentalizaram para fins contrários à ordem jurídica e/ou a princípios gerais[19]. Entre esses grupos de casos figura a confusão de patrimónios, modalidade que para a situação dos autos assume relevo[20]. A mistura material de patrimónios verifica-se quando existe uma suficiente indiferenciação das esferas patrimoniais da sociedade e do sócio, o que pode ocorrer por inobservância de regras societárias (e/ou contabilísticas) ou assentar em factos puramente objectivos como seja o uso do património social para fins exclusivamente pessoais. Neste grupo de casos, o sócio (ou o grupo de sócios) age como se não houvesse separação entre o seu património e o património societário, em clara contravenção da imposição de distinção entre os respectivos acervos. Só ocorre uma verdadeira mistura de patrimónios quando, na prática, seja inviável (ou quase) distinguir os bens que integram cada um desses acervos patrimoniais e individualizar os actos concretos que atentam contra a autonomia patrimonial. Excluem-se assim meros episódios pontuais ou de actos perfeitamente identificáveis, cuja resolução deve ser alcançada por outra via, mormente através dos meios de conservação da garantia patrimonial. A aparência de identidade entre os sócios e a sociedade poderá levar a que o património pessoal daqueles responda directa e ilimitadamente perante os credores societários, sempre que, como é natural, estejam preenchidos os pressupostos gerais e especiais da responsabilidade civil. Na verdade, o recurso ao instituto do levantamento da personalidade colectiva visando corrigir comportamentos ilícitos de sócios que abusaram da personalidade colectiva da sociedade actuando quer em abuso de direito, quer em fraude à lei ou com violação das regras de boa fé e em prejuízo de terceiros, apenas é possível quando a conduta contrária às normas e/ou aos princípios gerais envolva um juízo de reprovação/censura e não exista outro fundamento legal que invalide tal conduta[21].
1.2 Conforme já salientado, as instâncias entenderam de maneira oposta a apreciação da situação sob a égide do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Com efeito, a sentença de 1.ª instância afastou a condenação do Réu porquanto entendeu que “Os elementos provados revelaram-se assim insuficientes para concluir pela verificação dos pressupostos que permitam considerar a aplicação do instituto em apreço, resultando dos mesmos, que ambos os sócios geriam dinheiros da sociedade, a A. o dinheiro “líquido” recebido dos clientes e o R. os valores da conta bancária da sociedade, relativamente aos quais repetimos não sabemos a sua origem e o seu destino. No que respeita aos saldos devedores, dados como provados, que o R. tinha para com a sociedade, estes factos por si só, não permitem concluir pela existência de uma conduta ilícita por parte do R. e pela tal necessária existência de confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos seus sócios, sendo que, desde logo, esses valores surgem claramente assinalados na contabilidade da sociedade, como dívidas do sócio (como resulta das atas)”. Ao invés, o acórdão recorrido, perante a factualidade provada sob o n.º 31 (Pelo menos três quintos das receitas da sociedade, que deram azo aos lucros referidos em 10, 14 e 19, foram transferidas pelo Réu para a sua conta pessoal) considerou que a Autora tinha demonstrado os factos constitutivos do instituto da desconsideração da personalidade jurídica na modalidade de confusão de esferas por entender que a transferência de tais valores da conta da sociedade para uma conta pessoal revelava “de forma inequívoca, um propósito do Réu de se apropriar de tais quantias e, do mesmo passo, evidencia a ocorrência da mistura de patrimónios ou confusão de esferas”. Assim, segundo o acórdão recorrido, “Cabia ao Réu alegar e provar que, apesar de ter efetuado tais transferências para a sua conta pessoal, os valores em causa foram efetivamente aplicados apenas na satisfação de encargos próprios da sociedade, o que o Réu não logrou fazer.”. Não podemos acompanhar tal entendimento, desde logo por o mesmo assentar num vício de raciocínio quanto à caracterização da conduta reprovável do Réu circunscrevendo a aplicação do instituto a uma questão de ónus de prova relativamente ao destino do dinheiro transferido da conta da sociedade para a conta pessoal do Réu[22], descurando a essencialidade de um dos pressupostos a ter em conta neste domínio: a demonstração do prejuízo de terceiro (no caso, da Autora) decorrente da confusão de esferas uma vez que para fundamentar a desconsideração não basta a interposição de pessoas[23]. Vejamos. Resulta da factualidade provada que a Ré é uma sociedade constituída pela Autora e Réu, seus únicos sócios (com quotas iguais de 8.728,96€) e gerentes, que à data da constituição daquela eram casados entre si sob o regime de comunhão geral de bens (n.ºs 1 a 6 dos factos provados). Igualmente decorre dos autos que ambos retiravam quantias da sociedade. A Autora justificou tais movimentações com a necessidade de fazer face a despesas a abater nos seus vencimentos; o Réu enquanto adiantamentos feitos pela sociedade por conta dos serviços prestados (n.ºs 25 e 28 dos factos provados). Resulta ainda do factualismo apurado que, após o divórcio, foi celebrado contrato promessa de partilha tendo os ex-cônjuges assumido que as dívidas que oneravam as quotas da sociedade comercial integravam o passivo do casal (n.º 22 dos factos provados), fazendo assim seus os débitos societários, tendo o Réu ficado adstrito à liquidação do passivo. Neste enquadramento fáctico em que se evidencia uma situação de indistinção, no plano prático, entre os sócios e a sociedade[24], não há dúvida de que a autonomia patrimonial e a personalidade jurídica societária mostram-se, à partida e no plano que aqui releva (as relações entre os sócios e a sociedade), afastadas, tudo levando a crer que a gestão das finanças da sociedade era feita sob a perspectiva das conveniências de cada um dos elementos do casal. Perante a conjugalidade que caracterizava o modo como Autor e Réu encaravam e conduziam a gestão da sociedade não pode deixar de se questionar da adequação da figura da superação da personalidade jurídica na solução do caso, não obstante o instituto em causa poder ser convocado nas relações entre sócios e a sociedade. Como consta do elenco factual fixado pela Relação, o Réu ao retirar valores da conta da sociedade transferindo-os para a sua conta pessoal, apropriou-se de uma importância correspondente a três quintos das receitas da sociedade, sendo que tais receitas estiveram na origem dos lucros distribuídos, mas não pagos à Autora. Mostra-se ainda apurado que em 31 de Dezembro de 2007 a sociedade Ré era credora do Réu no montante de 220.641,34€. E se é certo que o quadro fáctico em análise evidencia a existência de uma confusão de esferas patrimoniais entre o Réu sócio e a Ré sociedade, o contexto em que a mesma se foi desenrolando dificilmente poderia permitir a tutela da aparência por forma a justificar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade permitindo a responsabilização do património do Réu pelo pagamento dos lucros por aquela devidos à Autora pois que a confusão de esferas patrimoniais constituía um dado adquirido entre as partes e, nessa medida, não se descortina a necessidade de protecção da confiança. Cumpre igualmente realçar que a lei faculta ao sócio da sociedade a possibilidade de demandar os gerentes/administradores pelos prejuízos causados em virtude do incumprimento dos deveres de lealdade e de diligência a que se encontram adstritos (cfr. artigos 64.º e 77.º do Código das Sociedades Comerciais). Nesta ordem de ideias, mostrando-se possível individualizar os levantamentos levados a cabo pelo Réu (pois que se mostra apurado o montante global do saldo devedor deste para com a sociedade) e estando demonstrada a falta de regularização da situação (o que se reflecte imediatamente no património da sociedade), evidencia-se muito frágil a viabilidade de lançar mão do mecanismo da desconsideração da personalidade jurídica atenta a sua índole subsidiária. Ainda assim, perante a factualidade provada e tendo presente os pressupostos em que o instituto assenta[25], sempre se imporia à Autora a alegação e demonstração dos respectivos pressupostos, entre os quais, o prejuízo e, concomitantemente, o nexo de causalidade entre este e a conduta desrespeitosa da autonomia patrimonial. Da factualidade provada, porém, não consta a razão pela qual a Ré deixou de proceder ao pagamento dos lucros devidos à Autora, sendo que, igualmente, ficou por demonstrar que As movimentações bancárias feitas pelo Réu deixaram a sociedade sem rendimentos e que A sociedade deixou de poder pagar (...) os lucros da Autora. Por conseguinte, a (in)aplicação do levantamento da personalidade colectiva à situação não podia ser reconduzia à questão da falta de determinação do destino dado pelo Réu aos montantes transferidos da sociedade para a sua conta pessoal (e, bem assim, a quem cabia a demonstração desse destino), uma vez que, no contexto do caso e para os efeitos visados pela Autora, impunha-se-lhe provar que as transferências levadas a cabo pelo Réu tinham causado falta de liquidez da sociedade para entrega dos lucros distribuídos. Procedem, por isso, as conclusões da revista do Réu.
2. Da limitação da responsabilidade do Réu ao montante de 45.107,43€ A apreciação desta questão pressupunha a subsistência do acórdão recorrido pois que a determinação da medida da responsabilidade do Réu relativamente à Autora implicaria que se tivesse concluído pela responsabilização daquele. Assim, na sequência do decidido supra, tem-se por prejudicada a apreciação do objecto do recurso de revista subordinado (artigo 608.º, n.º2, do CPC).
III - Decisão
Lisboa, 19 de Junho de 2018 Graça Amaral (Relatora) Henrique Araújo Maria Olinda Garcia
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