Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1097/16.7T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: INVESTIGAÇÃO OFICIOSA DE PATERNIDADE
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
LIMITES DO CASO JULGADO
CASO JULGADO MATERIAL
DESCENDENTE
TERCEIRO
MINISTÉRIO PÚBLICO
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
EXCEÇÃO DILATÓRIA
PRESSUPOSTOS
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 07/05/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO À REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / EXCEÇÕES / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA.
DIREITO CIVIL – DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO / ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO / AVERIGUAÇÃO OFICIOSA / ESTABELECIMENTO DA PATERNIDADE / RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE / AVERIGUAÇÃO OFICIOSA DA PATERNIDADE.
Doutrina:
-ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, 1985, p. 705;
-PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume V, 1995, p. 71/72.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 576.º, N.ºS 1 E 2, 577.º, ALÍNEA I, 578.º, 580.º, N.ºS 1 E 2, 608.º, 615.º, N.º 1, ALÍNEAS B) E D) E 622.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1813.º E 1868.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 09-07-1998, PROCESSO N.º 97B647;
-DE 03-05-2000, PROCESSO N.º 00A326, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.

Sumário :
I. Independentemente do pedido coincidir nas duas ações, mas sendo distintos os sujeitos e a causa de pedir, não se verificam os pressupostos da exceção do caso julgado.

II. Apesar da improcedência da ação oficiosa de investigação da paternidade instaurada pelo Ministério Público, o efeito do caso julgado não se estende à pretensa filha, terceira na ação, podendo esta propor nova ação de investigação, ainda que baseada nos mesmos factos.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – RELATÓRIO


    AA instaurou, em 27 de abril de 2016, no Juízo de Família e Menores de Faro, Comarca de Faro, contra BB, ação declarativa de investigação da paternidade, sob a forma de processo comum, pedindo que fosse declarado que CC (já falecido e filho do Réu) é seu pai biológico.

Para tanto, alegou, em síntese, que DD, sua mãe, manteve namoro com CC, entre agosto de 1983 até finais de janeiro de 1984, período durante o qual aquela engravidou, e de cuja gravidez a A. nasceu em ... de 1984; apenas está estabelecida a sua maternidade, mas o pai é CC, com quem manteve contactos nos primeiros anos, que vieram a ser restabelecidos após a A. perfazer 18 anos, altura em aquele passou a considerá-la e tratá-la como filha; CC faleceu em 3 de janeiro de 2016, sem descendentes.

Contestou o R., arguindo, designadamente, a exceção de caso julgado, por ter já corrido ação declarativa com o mesmo objeto (processo n.º 46/86), e em que foi proferida sentença absolutória do pedido.

Replicou a A., alegando que não haver identidade entre os sujeitos e as causas de pedir das ações.

Foi proferido, em 17 de fevereiro de 2017, despacho saneador, no qual foi julgada procedente a exceção de caso julgado, absolvendo-se da instância o Réu.

Inconformada com essa decisão, a A. apelou para o Tribunal da Relação de Évora, que, por acórdão de 23 de novembro de 2017, revogou a decisão.

Inconformado, o Réu recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:

a) O Tribunal a quo não especificou devidamente os fundamentos de facto e de direito, bem como não se pronunciou sobre questões que devia apreciar, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), e 608.º do CPC.

b) Há identidade de sujeitos nas duas ações, pois que, na ação n.º 46/86, o Ministério Público interveio em representação da então menor AA, interessando a qualidade jurídica das partes.

c) Nas duas causas, a causa de pedir prende-se com a existência da filiação biológica, como o pedido é o mesmo.

d) Há erro notório na apreciação da prova e violação do disposto nos arts. 577.º, alínea i), e 278.º, n.º 1, alínea e), do CPC.

e) O direito da A. já se encontrava prescrito desde 10 de setembro de 2012, nos termos do art. 1817.º, n.º 1, do CC.

f) A A. age desde o início da ação com abuso de direito.

g) Deve ser indeferido o exame pericial de exumação do corpo para recolha de vestígios de ADN.

 

Com o provimento do recurso, o Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido, declarando-se, designadamente, a sua absolvição da instância e a sua absolvição do pedido.


Contra-alegou a A., no sentido de ser negado provimento ao recurso.


Por acórdão da Relação de 22 de março de 2018, foi declarado não existirem as nulidades suscitadas.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Nesta revista, para além das nulidades do acórdão recorrido, está em discussão a existência do caso julgado.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:


1. A A. nasceu em ... de 1984, encontrando-se registada como filha de DD.

2. Com o n.º 46/86, correu termos no Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António, uma ação de investigação da paternidade intentada pelo Ministério Público contra CC.

3. Essa ação, julgada improcedente, tinha, como pedido, a declaração
que a menor AA era filha de CC
, com fundamento na manutenção de relações sexuais da mãe da A., em exclusividade, com o R., nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da A., no âmbito duma relação de namoro, que estabeleceram entre o início de dezembro de 1983 e até fevereiro de 1984.



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, com a retificação do n.º do processo, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente da nulidade do acórdão recorrido e da exceção do caso julgado.

O objeto do recurso é delimitado pelas respetivas conclusões, sem prejuízo, no entanto, das questões de conhecimento oficioso. É, desse modo, que se definem os poderes cognitivos do tribunal de recurso, permitindo, por outro lado, averiguar designadamente da omissão, causa de nulidade do acórdão, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC).

Numa das conclusões do recurso (fls. 134), o Recorrente arguiu a nulidade do acórdão recorrido, nos termos dos arts. 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), e 608.º do CPC, nomeadamente por falta de fundamentação de facto e de direito e omissão de pronúncia.

 Esta conclusão, porém, surge completamente desgarrada da alegação, pois semelhante matéria está completamente omissa do corpo da alegação, correspondendo, nesse âmbito, a falta de impugnação do acórdão recorrido.

Tal é suficiente para se ter a arguição da nulidade do acórdão recorrido sem fundamento e, assim, manifestamente, improcedente.

De qualquer modo, sempre se dirá que o acórdão recorrido especificou, devidamente, tanto os fundamentos de facto como de direito, cumprindo adequadamente o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais.

Por outro lado, cingindo-se o objeto da apelação, tão só, à exceção do caso julgado, sobre a qual incidiu a pronúncia do acórdão recorrido, não pode este padecer do vício de omissão de pronúncia.

Nestes termos, improcede, manifestamente, a arguição da nulidade do acórdão recorrido.


2.3. No acórdão recorrido, entendeu-se não se verificar a exceção do caso julgado decorrente de anterior ação de investigação da paternidade instaurada pelo Ministério Público contra o pretenso pai (processo n.º 46/86), nomeadamente por os sujeitos ativos nas duas ações serem distintos, dissentindo-se do entendimento perfilhado pela 1.ª instância.

O caso julgado constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que imposta a absolvição da instância – arts. 576.º, n.º s 1 e 2, 577.º, alínea i), e 578.º, do CPC.

A exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois da primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário – art. 580.º, n.º 1, do CPC.

Tanto a exceção do caso julgado, assim como a da litispendência, tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – art. 580.º, n.º 2, do CPC.

O caso julgado, tornando a decisão em princípio definitiva, destina-se a garantir a certeza do direito ou a segurança jurídica, assim como a assegurar o prestígio dos próprios tribunais (ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág. 705).

O caso julgado depende da tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir entre as duas ações repetidas.


Na verdade, a anterior ação de investigação da paternidade, n.º 46/86, foi instaurada pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no art. 1865.º, n.º 5, do Código Civil (CC), na sequência da viabilidade declarada na averiguação oficiosa da paternidade, enquanto a presente ação foi proposta por AA, pelo que os sujeitos ativos são distintos nas duas ações.

Ao contrário do alegado pelo Recorrente, o Ministério Público não interveio, na ação n.º 46/86, em representação da então menor AA, mas em representação do Estado que, oficiosamente, procura obter o reconhecimento da paternidade. De facto, resulta do teor da petição inicial da ação que o Ministério Público não invocou a representação da então menor AA (fls. 69), sendo irrelevante, por não corresponder à realidade, o que, em contrário, seja declarado. O Ministério Público até podia representar a menor, decorrente da sua intervenção principal em representação de incapaz, mas não foi essa representação que, na realidade, assumiu em tal ação.

Em sentido idêntico, num caso com alguma afinidade, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de maio de 2000 (processo n.º 00A326), acessível em www.dgsi.pt.

Por outro lado, a causa de pedir na ação n.º 46/86 é constituída apenas pela relação biológica, ao passo que na presente ação, para além desse fundamento, invoca-se também a posse de estado, nos termos do disposto no art. 1871.º do CC (artigos 19.º e 20.º da petição inicial). Deste modo, não existe identidade absoluta de causa de pedir nas duas ações.

Assim, independentemente do pedido, o reconhecimento da paternidade, coincidir nas duas ações, mas sendo distintos os sujeitos e a causa de pedir, não se verificam os pressupostos da exceção do caso julgado, tal como se concluiu no acórdão recorrido.


A solução a que se chegou, para além de estar em conformidade com as exigências legais da exceção do caso julgado, também não é estranha à perspetiva, diferenciada da exceção do caso julgado, conferida pela autoridade do caso julgado nas questões de estado, e cujos efeitos estão previstos no art. 622.º do CPC.

Na verdade, o art. 1813.º do CC, aplicável à ação de investigação da paternidade por força do disposto no art. 1868.º do CC, consagra um desvio à eficácia do caso julgado nas questões de estado, ao estabelecer que “a improcedência da ação oficiosa não obsta a que seja intentada nova ação de investigação de maternidade (paternidade), ainda que fundada nos mesmos factos”.

Com esta derrogação da força do caso julgado material pretendeu-se acautelar o prejuízo do “direito tradicional de o próprio registando ou registado promover a investigação da paternidade ou maternidade nas melhores condições de prova e tempo” (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume V, 1995, págs. 71/72).

Assim, apesar da improcedência da ação oficiosa de investigação da paternidade instaurada pelo Ministério Público, o efeito do caso julgado não se estende, no caso presente, à pretensa filha, terceira na ação, podendo esta propor nova ação de investigação, ainda que baseada nos mesmos factos.

Neste sentido, decidiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 1998 (processo n.º 97B647), cujo sumário está acessível em www.dgsi.pt.

Deste modo, para além de não se verificar a exceção do caso julgado, também não ocorre, quanto à Recorrida, a força do caso julgado material resultante da decisão proferida no âmbito da ação n.º 46/86.


Consequentemente, confirmando-se o acórdão recorrido, nega-se a revista interposta pelo Recorrente.


2.4. Como se referiu, o objeto da revista está circunscrito à exceção do caso julgado.

Por isso, não carecem de pronúncia outras questões também alegadas pelo Recorrente, como a caducidade, o abuso do direito e a prova pericial, pois trata-se de questões novas, que não foram decididas no acórdão recorrido, escapando com evidência ao fim do reexame previsto para o recurso.

 

2.5. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. Independentemente do pedido coincidir nas duas ações, mas sendo distintos os sujeitos e a causa de pedir, não se verificam os pressupostos da exceção do caso julgado.

II. Apesar da improcedência da ação oficiosa de investigação da paternidade instaurada pelo Ministério Público, o efeito do caso julgado não se estende à pretensa filha, terceira na ação, podendo esta propor nova ação de investigação, ainda que baseada nos mesmos factos.


2.6. O Recorrente, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC, sendo o pagamento inexigível por efeito do benefício do apoio judiciário.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista.


2) Condenar o Recorrente (Réu) no pagamento das custas, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.


Lisboa, 5 de julho de 2018


Olindo Geraldes (Relator)


Maria do Rosário Morgado


José Sousa Lameira