Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
254/22.1YRCBR.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA (DE TURNO)
Descritores: EXTRADIÇÃO
CUMPRIMENTO DE PENA
INADMISSIBILIDADE
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
PRESCRIÇÃO DAS PENAS
PRINCÍPIO DA DUPLA INCRIMINAÇÃO
RECUSA DE COOPERAÇÃO
Data do Acordão: 12/29/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO / M.D.E./ RECONHECIMENTO SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário :
I -    A norma de direito internacional contida no artigo 3.º, n.º 1, al. f), da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) não confere eficácia, no Estado requerido, ao trânsito em julgado da condenação no Estado requerente, para efeitos de funcionamento do motivo de inadmissibilidade da extradição por prescrição do procedimento ou da pena; remete a matéria para o direito interno (“em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido”, diz o preceito).

II -   Suscitando-se a questão da prescrição no processo de extradição passiva para cumprimento de pena aplicada por decisão transitada em julgado no Estado requerente, nele deve ser apreciada e decidida, com a autonomia que lhe é própria, de modo a determinar-se se o procedimento criminal ou a pena estariam ou não prescritos de acordo com o direito português.

III - O art. 3.º, n.º 1, al. f), da Convenção obriga a um duplo controlo da prescrição, de acordo com a lei do Estado requerente e com a lei portuguesa. Não estando o funcionamento da prescrição no Estado requerido associado à fase do processo no Estado requerente ou à finalidade visada pela extradição - procedimento criminal ou execução da pena -, esse controlo há de efetuar-se com referência aos dois momentos geradores de imunidade pelo decurso do tempo do procedimento e para execução da pena, que constituem motivo de proibição da extradição, no caso de esta se destinar ao cumprimento de uma pena.

IV - Esta apreciação não pode conduzir a uma decisão sobre a prescrição do procedimento por aplicação da lei brasileira, matéria que é da competência dos tribunais brasileiros; os tribunais portugueses apenas podem e devem levar em conta os motivos de interrupção ou de suspensão da prescrição segundo o direito brasileiro.

V -  Não basta que o conhecimento da prescrição seja limitado à prescrição da pena; tal limitação pode conduzir a soluções inaceitáveis, por ignorarem o tempo dos processos em que foram pronunciadas - mesmo em violação do direito a uma decisão judicial em tempo razoável consagrado em instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos de dimensão universal (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, art. 14.º) ou regional (CEDH, art. 6.º, e Convenção Americana dos Direitos Humanos, art. 8.º) - por factos antigos e longínquos, de punição carecida de justificação pelo decurso do tempo à luz da natureza e das finalidades penais que presidem ao instituto da prescrição, agravada por um elemento de discriminação relativamente a processos nacionais, em resultado da aplicação da pena por um tribunal estrangeiro.

VI - A extinção do procedimento criminal por efeito da prescrição depende da pena aplicável (art. 118.º do CP), isto é, da verificação da dupla incriminação (art. 2.º, n.º 1, da Convenção), que constitui um dos pressupostos da extradição. Não releva a “denominação dada ao crime”; importa a tipificação dos factos, que devem ser concretizados e descritos, independentemente da denominação, devendo, para o efeito, solicitar-se, se necessário, informações complementares (art. 12.º da Convenção).

VII-A extradição só pode ser concedida em função e para cumprimento da pena por cumprir (arts. 2.º, n.º 2 e 10.º, n.º 2, da Convenção), não bastando a informação sobre a pena constante da sentença condenatória, o que pode requerer também que sejam solicitadas informações complementares.

VIII-A “cláusula humanitária” constante do art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31-08, não é aplicável à extradição regulada na Convenção de Extradição da CPLP, o que não obsta a que, no âmbito da execução da decisão de extradição, o estado de saúde do extraditando, se for caso disso, deva ser considerado, podendo justificar o adiamento da entrega (art. 13.º, n.º 5, da Convenção).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I.  Relatório

1. AA, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão de 23 de novembro de 2022 do Tribunal da Relação de Coimbra, que autorizou a sua extradição para o Brasil, para cumprimento da pena de 6 anos, 6 meses e 12 dias de prisão, fixada pela 2.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça ..., por decisão proferida em 25.02.2021, transitada em julgado a 17.05.2021, pela prática de um crime de roubo.

2. Discorda da decisão, por, em seu entender, existirem dúvidas quanto à prescrição do procedimento criminal no Brasil, que poderá constituir motivo de inadmissibilidade de extradição [invocando a alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º do Tratado de Extradição entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil], e quanto ao seu estado de saúde e situação familiar, que considera suscetíveis de preencher a “cláusula humanitária” de denegação da cooperação internacional (nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto).

Apresenta recurso com motivação de que extrai as seguintes conclusões:

“1 – O presente recurso interposto pelo aqui recorrente tem por objecto a autorização da sua extradição para o Brasil.

2 – Desde logo, o recorrente não se conforma com o indeferimento da prova por si requerida, nomeadamente do pedido de informação às autoridades da República Federativa do Brasil acerca da moldura penal do crime por si cometido.

3 – Quanto a este ponto, importa mencionar que o recorrente foi condenado numa pena de 6 anos, 6 meses e 12 dias de prisão, não constando dos autos qualquer informação sobre a moldura penal aplicável ao crime por si cometido.

4 - Cumpre realçar que, dos elementos carreados para os autos, surge a informação de que o procedimento criminal prescreve passados 12 anos da prática do crime, caso o máximo da pena aplicável seja superior a 4 anos e não exceda os 8 anos.

5 – Assim sendo, decorridos mais de 15 anos entre a prática do crime e a condenação definitiva, importa aferir, para efeitos de verificação de eventual prescrição do procedimento criminal aquando da prolação da decisão condenatória, qual a moldura penal prevista para o crime cometido pelo extraditando.

6 - Sendo que, tal informação apenas poderá ser fornecida pelas autoridades brasileiras e somente com tal informação se poderá constatar se é, ou não, admissível a extradição, uma vez que, de acordo com o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º do Tratado de Extradição entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil, aplicável por força do estatuído no artigo 3.º da Lei 144/99, a extradição é inadmissível quando se encontra extinto o procedimento criminal por prescrição, segundo a lei de qualquer um dos países.

7 – Convém ainda mencionar que, o facto de ter sido proferida decisão final após o decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal, não deve obstar à verificação solicitada e, em último caso, deverá ser fundamento suficiente para impedir a extradição do recorrente, a fim de obviar eventuais ilegalidades e/ou inconstitucionalidades, altamente lesivas da liberdade do recorrente.

8 - Razão pela qual deverá ser derrogado o douto acórdão recorrido, devendo os autos ser devolvidos ao tribunal de origem para se proceder àquela diligência probatória requerida, a fim de se averiguar a eventual prescrição do procedimento criminal.

9 - Relativamente à perícia médica requerida, convém mencionar que o n.º 2 do artigo 18.º da Lei 144/99 menciona que deve ser negada a extradição quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o deferimento do pedido possa implicar consequências graves no estado de saúde do extraditando.

10 – Tendo sido para avaliar, efectivamente, a eventual existência de consequências graves na saúde do extraditando, fruto da extradição, que se requereu a prova pericial indeferida.

11 – Sendo que, o indeferimento da realização da perícia requerida não permite ao tribunal inculcar que a não realização dessa intervenção cirúrgica possa colocar em causa a saúde, ou até a vida, do extraditando, facto que poderia, e deveria, ser aferido pelo tribunal, que acabou por considerar por não provado tal circunstancialismo.

12 – Tal como considerou, erroneamente, como não provado o facto de a esposa do recorrente residir em Portugal, facto que é contrariado pelas suas declarações prestadas em sede de audiência, bem como com as regras de experiência comum, segundo as quais os casais residem juntos.

13 – Pelo que, deveria ter sido dado como facto provado a coabitação entre o recorrente e a sua esposa, BB.

14 – Por todo o exposto, deverão V. Exas. derrogar o douto acórdão recorrido, ordenando a remessa dos autos para o tribunal a quo, a fim de se produzir a prova requerida.

15 – Caso assim não se entenda, e atenta a emergência e marcação da cirurgia do recorrente, deverá o acórdão recorrido ser revogado e ser negada a extradição de AA, em virtude de a mesma colocar em risco a sua saúde.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve ser dado inteiro provimento ao presente recurso e, por via dele, revogar-se o acórdão recorrido, ordenando-se a realização das diligências requeridas ou, em alternativa, que se revogue o acórdão recorrido, substituindo-se por outro, que negue a extradição do recorrente por razões de saúde cirurgia do recorrente, deverá o acórdão recorrido ser revogado e ser negada a extradição de AA, em virtude de a mesma colocar em risco a sua saúde.”

3. Respondeu o Ministério Público, concluindo pela improcedência do recurso, nos seguintes termos:

“(…)

3. [A] questão da prescrição do procedimento criminal já havia sido suscitada pelo extraditando na oposição que deduziu nos termos do art. 55.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31-08.

4. E, em resposta, dissemos que, sendo a presente extradição solicitada, nos termos dos arts. 31.º, n.º 1, da Lei nº 144/99, de 31-08, e 1.º do Tratado de Extradição entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil, para cumprimento de uma pena de prisão e não para o exercício de procedimento penal, “a questão da invocada prescrição do procedimento criminal mostra-se ultrapassada e não está em causa, pois o que importa apurar é se a pena que o extraditando tem a cumprir se encontra ou não extinta por prescrição”.

5. E ainda que “…no caso, a prescrição da pena não ocorreu ainda, já que se trata de uma pena de 6 anos, 6 meses e 12 dias de prisão cuja decisão condenatória transitou em julgado em 17/05/2021 e que, conforme foi alegado nos arts. 9.º e 10.º do requerimento inicial, não está extinta, por prescrição, nem em face da Lei Brasileira (art. 109.º, III, do C. Penal Brasileiro), nem perante a Lei Portuguesa (art. 122.º, n.º 1, al. b), do C. Penal Português)”.

6. Ora, os Tribunais Brasileiros proferiram já uma sentença transitada em julgado, no âmbito de um processo criminal onde a questão da eventual prescrição do procedimento criminal não deixou, obviamente, de ser apreciada, e durante o qual o ora extraditando, aliás, nunca a invocou, nomeadamente no âmbito do recurso (“apelação criminal”) que interpôs para o Tribunal de Justiça do Poder Judiciário de ....

7. Encontra-se ultrapassada, pois, a questão do procedimento criminal do crime pelo qual o arguido foi condenado e não existe qualquer fundamento para ser invocada neste processo de extradição, quando o que está em causa é o cumprimento de uma pena já transitada em julgado - a qual não prescreveu - e não um qualquer procedimento criminal ainda em curso.

8. Não assiste, assim, razão ao recorrente quando pede a derrogação do douto acórdão recorrido e a devolução dos autos ao tribunal de origem para se averiguar da eventual prescrição do procedimento criminal.

9. Relativamente à perícia médica requerida, refere o extraditando que pretendia que fosse avaliada “…a eventual existência de consequências graves na (sua) saúde” como consequência da extradição, atento o disposto no art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, citada, que prevê que, caso resultem consequências graves para a pessoa visada em razão do seu estado de saúde, a cooperação possa ser negada.

10. A realização de tal perícia havia sido requerida pelo extraditando na oposição que oportunamente deduziu e pretendia com a mesma comprovar que sofre de patologia grave de saúde, apurar o tipo de tratamento que a mesma exige e avaliar se a ausência desse tratamento e de acompanhamento especializado e a não realização da intervenção cirúrgica prevista poderia pôr em perigo a sua integridade física e/ou a sua vida.

11. Porém, o Tribunal a quo entendeu que, por um lado, “…não decorre que se tenha apurado que não há garantias da realização da referida intervenção cirúrgica em território brasileiro…”;

12. E, por outro, que “…tais circunstâncias (…) não se incluem em nenhuma das causas de recusa facultativa de extradição previstas no artigo 4.º da Convenção da CPLP, norma esta que elenca de forma taxativa as causas de recusa facultativa da extradição, dela não decorrendo a possibilidade de denegação da cooperação internacional quando do deferimento do pedido e tendo em conta uma ponderação entre a gravidade do facto e a gravidade das consequências da extradição para o visado possam resultar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal, tal qual como sucede com o n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, em que o extraditando se ancora”.

13. Diga-se que, no mesmo sentido, se havia já decidido no Ac. do STJ de 30/10/2013, processo nº 86/13.8YREVR.S1, Relator Conselheiro Oliveira Mendes, in jurisprudencia.pt, cujo sumário, nesta parte, reza assim:

“Ao contrário do que sucede com o n.º 2 do art. 18.º da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP não prevê, no seu art. 4.º, a possibilidade de recusa da extradição, quando esta possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal”.

14. Assim sendo, não se prevendo na Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa a possibilidade de recusa da extradição por o seu deferimento poder implicar consequências graves para o visado, nomeadamente em razão do estado de saúde, não se justificava a pretendida perícia médica, pelo que bem decidiu o Tribunal a quo ao indeferir a sua realização.

15. Alega ainda o recorrente que, apesar de ter mencionado que reside em território português com a sua mulher (BB), o Acórdão recorrido considerou como não provado que residam juntos, o que, segundo ele, poderia ter sido aferido pelas regras da experiência comum “pois é mais que normal que um casal resida junto”.

16. E, como prova desse facto, apresenta, agora, o recorrente um documento - doc. n.º 2.

17. Ora, do facto de alguém ser casado com outra pessoa não resulta que os membros do casal residam juntos, podendo, mesmo, viver em Países diferentes. Desse modo, não poderia o Tribunal a quo ter dado como provado que o recorrente vive em território nacional com a mulher BB sem que desse facto se tivesse feito prova alguma e apenas com recurso às “regras da experiência comum”, como alega o recorrente.

18. Por outro lado, o documento que juntou com as alegações de recurso como prova de que reside com a sua mulher foi apresentado tardiamente, não podendo servir agora, como é obvio, para impugnar a decisão sobre um facto que foi apreciado em face da prova existente à data e quando não constava dos autos.

19. De qualquer forma, sempre se dirá - como se sublinhou no Douto Acórdão recorrido - que esta circunstância, à semelhança das razões de saúde, não se inclui em nenhuma das causas de recusa facultativa da extradição, conforme já atrás analisado nos pontos 12 e 13.

20. Por isso, nenhuma censura nos merece, também neste segmento, o douto acórdão recorrido.

21. Em face de tudo o exposto, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo extraditando e mantido nos seus precisos termos o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.”

4. Colhidos os vistos, o recurso foi à conferência, para julgamento – artigos 3.º, n.º 2, e 59.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP).


II. Fundamentação

5. A decisão do Tribunal da Relação assenta na seguinte fundamentação de facto:

5.1. Factos provados

“a) Provado que:

1. Ao abrigo da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, as Autoridades competentes da República Federativa do Brasil solicitaram ao Estado Português a extradição do cidadão brasileiro AA, para efeitos de cumprimento da pena de 6 ( seis ) anos, 6 ( seis ) meses e 12 ( dozes ) dias de prisão, em regime prisional inicialmente fechado, e 15 ( quinze ) dias de multa, em que foi condenado, por acórdão da 2.ª Camara Criminal do Tribunal de Justiça de ..., proferido em 25.02.2021e transitado em julgado em 17.05.2021.

2. Por despacho proferido em 7.10.2022, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 48.º da Lei n.º 144/99, Sua Excelência a Ministra da Justiça, considerou admissível o referido pedido de extradição apresentado pela República Federativa do Brasil.

3. Os factos que estão na base da aludida condenação do ora extraditando, são os seguintes:

- No dia 29.04.2006, na fazenda ..., na zona rural de ..., ..., Brasil, o requerido AA, juntamente como outro indivíduo, subtraíram para si, mediante grave ameaça exercida com emprego de arma de fogo, 3 armas de fogo (uma carabina, um rifle e um fuzil) os quais eram propriedade de CC.

4. Tais factos, sumariamente descritos, integram, face ao disposto no art. 157.º, 2.º, I e II do Código Penal Brasileiro, a prática de um crime de roubo.

5. No formulário relativo ao pedido de extradição vêm assumidas as seguintes garantias apresentadas pelo Estado Brasileiro ao Estado Português:

“I – não submeter o extraditando a prisão ou processo por fato anterior ao pedido de extradição;

II – computar o tempo da prisão que, no Estado requerido, foi imposta por força da extradição;

III – comutar a pena corporal, perpétua ou de morte em pena privativa de liberdade, respeitado o limite máximo de cumprimento de 30 (trinta) anos;

IV – não entregar o extraditando, sem consentimento do Estado requerido, a outro Estado que o reclame;

V – não considerar qualquer motivo político para agravar a pena; e

VI – não submeter o extraditando a tortura ou a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.”

6. O extraditando celebrou casamento com uma cidadã de nacionalidade brasileira (BB) em ... .... .2022.

7. Reside da Rua ..., em ....

8. Celebrou, em 11 de Abril de 2022, com a ... um contrato de trabalho a termo incerto para o desempenho das funções de auxiliar de acção médica, cujo início ocorreu em 12.04.2022, o qual, mediante adenda, foi convertido para contrato de trabalho sem termo, com início a partir de 31 de Maio de 2022, com estipulação do salário base de 705,00 €.

9. Encontra-se inscrito desde 24.06.2022 na lista para cirurgia, na especialidade de urologia, para intervenção cirúrgica em virtude de apresentar hidrocelo no testículo direito.

10. Tem a situação contributiva regularizada perante a Segurança Social.”

5.2. Factos não provados

“b) Não provado que:

- A mulher do requerido se encontre radicada em Portugal:

- Não exista qualquer garantia de que a intervenção cirúrgica aludida em 10. dos factos provados não seja realizada em território brasileiro e que a não realização da mesma possa colocar em causa a saúde e a vida do requerido.

- As prisões brasileiras, nomeadamente as de segurança média e máxima, sejam locais onde grassa a violência, miséria, tortura e maus tratos entre reclusos.”

5.3. Fundamentação da decisão de facto

“c) Convicção do tribunal:

O Tribunal baseou a sua convicção, relativamente aos factos provados:

- Nos documentos de fls. 4-41 vº dos autos (pedido de extradição onde constam os fundamentos da mesma e decisões condenatórias proferidas pelos Tribunais Brasileiros, de 1ª e 2ª instância, documentação que igualmente se mostra junta a fls. 52-102, com particular enfoque e na íntegra quanto às referidas decisões condenatórias) – quanto aos factos provados aludidos em 1., 3., 4. e 5.;

- No documento junto a fls. 42-43vº dos autos - quanto ao facto provado aludido em 2.;

- No documento junto a fls. 121-122 dos autos e a fls. 84-85 do apenso de Validação de Detenção - quanto ao facto provado aludido em 6.;

- No documento junto a fls. 86 do apenso de Validação de Detenção - quanto ao facto provado aludido em 7.;

- Nos documentos juntos a fls. dos autos 119-120 e a fls. 82-83 do apenso de Validação de Detenção - quanto ao facto provado aludido em 8.;

- No documento junto a fls. 123 dos autos e documentos juntos a fls. 80-81vº do apenso de Validação de Detenção – quanto ao facto provado aludido em 9.;

- No documento junto a fls. 79 do apenso de Validação de Detenção – quanto ao facto provado aludido em 10.

Relativamente aos factos não provados, não foi feita prova que permitisse concluir pela sua verificação, não se encontrando, sequer de forma mínima, sustentados pela prova documental junta aos autos e ao apenso de Validação de Detenção.

Ressaltando, quanto ao facto da esposa do requerido se encontrar radicada em Portugal, que o mesmo não se extrai do atestado de residência junto a fls. 86 do apenso de Validação de Detenção, para além de que se retira da certidão de casamento que constitui o documento junto a fls. 121-122 dos autos e a fls. 84-85 do apenso de Validação de Detenção que, aquando da celebração do casamento entre a mesma e o ora extraditando, ocorrida em ... .... .2022, aquela nela consta como “ residente e domiciliada na Rua ..., ..., Bairro ..., ... “, não tendo sido carreados para os autos quaisquer elementos que permitam inferir que a mesma actualmente se encontre a residir com o arguido na morada a que alude o atestado de residência junto pelo mesmo aos autos, no qual, aliás, o extraditando até figura identificado como “solteiro” .

Igualmente quanto aos problemas de saúde de que o arguido padece, determinantes da necessidade da intervenção cirúrgica para a realização da qual se encontra o mesmo já inscrito em Portugal, a natureza dos mesmos de que dão conta os elementos juntos pelo requerido não permite inculcar que a não realização dessa intervenção cirúrgica possa colocar em causa a saúde e até a vida do mesmo, e, menos ainda, que a respetiva realização não possa ocorrer no Brasil.”

Objeto e âmbito do recurso

6. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em 1.ª instância – artigo 12.º, n.º 3, al. c), do CPP e 73.º, al. d), da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.

Nos termos do artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

Mostram-se satisfeitos os requisitos impostos pelos artigos 374.º e 375.º do CPP, nomeadamente quanto à fundamentação em matéria de facto e em matéria de direito, e não vêm invocados vícios ou nulidades que se referem os n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP.

7. São duas, como se viu (supra, 2), as questões colocadas pelo recorrente à apreciação e decisão deste tribunal:

(1) a da prescrição do procedimento criminal no Estado requerente (Brasil), como motivo de inadmissibilidade da extradição; e

(2) a da verificação da “cláusula humanitária”, suscetível de constituir motivo de denegação da extradição por razões pessoais ou de saúde.

Quanto à questão da prescrição do procedimento criminal

8. Apreciando esta questão, que foi suscitada na oposição que o recorrente deduziu, nos termos do artigo 55.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, diz o acórdão recorrido:

“(…)

A admissibilidade de extradição passiva é regulada pelos Tratados e Convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pela Lei de Cooperação Internacional, ou seja pela Lei nº 144/99 de 31 de Agosto e, ainda, se necessário, pelo Código de Processo Penal.

Uma vez que no pedido de extradição em apreciação nos presentes autos a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa, assumem-se, respectivamente, como Estado requerente e Estado requerido, deverá ser aplicada a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (adiante designada apenas por Convenção CPLP) - assinada em 23 de Novembro de 2005 e aprovada pela Resolução da AR n.º 49/2008, publicada no DR, I, de 15 de Setembro de 2008. (…)

Nos termos do artigo 3.º da Lei n.º 144/99, as formas de cooperação judiciária internacional em matéria penal regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições desse diploma.

O que significa que o regime definido na referida Convenção CPLP substitui ou afasta a aplicação das normas da Lei n.º 144/99 de 31 de Agosto que regulem a mesma matéria.

Ainda em conformidade com o previsto no artigo 25.º n.º 1 da Convenção CPLP, as disposições da mesma sobrepõem-se às disposições do anterior Tratado de Extradição entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, assinado em Brasília em 7 de Maio de 1991, aprovado para ratificação pela Assembleia da República na Resolução n.º 5/94, publicada no D.R. de 3 de Fevereiro de 1994.

Com relevo para a apreciação dos fundamentos da oposição apresentada pelo extraditando, as disposições contidas Convenção CPLP são as seguintes: (…)

«Artigo 3.º

1 – Não haverá lugar a extradição nos seguintes casos: (…)

f) Quando se encontrarem prescritos o procedimento criminal ou a pena em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido»; (…)

– Da não verificação dos pressupostos da extradição em virtude da prescrição do procedimento criminal e/ou da pena

Alega o extraditando na oposição escrita por si deduzida que poderá estar extinto, por prescrição, o procedimento criminal pela prática do crime de roubo pelo qual foi condenado – na pena de 6 anos, 6 meses e 12 dias de prisão e 15 dias de multa – uma vez que decorreram mais de 15 anos sobre a consumação do referido crime.

E, com base nisso, pretende que é inadmissível a sua extradição, invocando o disposto na alínea d) do n.º 1 do art. 3.º do Tratado de Extradição Entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil, aplicável por força do disposto no art. 3.º da Lei 144/99.

Na resposta que apresentou à oposição deduzida pelo extraditando, o Exmo. Sr. Procurador Geral-Adjunto aduziu, quanto a tal alegação, que, no caso em apreço a extradição é solicitada para cumprimento de uma pena de prisão em que o arguido, ora extraditando, foi condenado e apenas em relação a esta importa saber se a mesma se mostra ou não extinta por prescrição, o que, em seu entender, não ocorreu, nem em face da Lei Brasileira ( art. 109.º, III, do C. Penal Brasileiro ) nem perante a Lei Portuguesa ( art. 122.º, n.º 1 al. b) do C. Penal Português ), e, ainda, que, a prescrição do procedimento criminal deveria ter sido invocada pelo ora extraditando no âmbito do processo crime que correu termos nos Tribunais Brasileiros e onde foi condenado na pena agora em causa, nomeadamente em sede do recurso (“apelação criminal“) que interpôs da decisão da primeira instância, questão essa que, consultado o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de ... no âmbito de tal recurso, o arguido ora extraditando não suscitou.

E, na verdade, assim é.

Com efeito, vindo o presente pedido de extradição com vista ao cumprimento da pena de 6 anos, 6 meses e 12 dias de prisão em que o arguido, ora extraditando, foi condenado pelos Tribunais brasileiros, apenas em relação a essa pena prisão importa saber se decorreu ou não o prazo de prescrição - e não já em relação ao procedimento criminal pela prática do crime de roubo por que foi condenado e que está subjacente à aplicação da referida pena de prisão.

Os factos que subjazeram à aplicação ao extraditando da referida pena de prisão, tipificam, quer à luz do Código Penal Brasileiro (art. 157.º) quer à luz do Código Penal Português (art. 210.º), a prática de um crime de roubo.

Defluindo da factualidade a considerar para o efeito, que a decisão dos Tribunais brasileiros que condenou o extraditando na referida pena 6 anos, 6 meses e 12 dias, pela prática do crime de roubo, foi proferida em 25.02.2021 e transitou em julgado em 17.05.2021, tendo em conta o disposto nos arts. 109.º e 110.º do Código Penal Brasileiro (Dec. Lei 2.848/1940), é manifesto não se mostrar decorrido o prazo de prescrição neles previsto (de pelo menos 12 anos), uma vez que tal prazo, de acordo com o disposto no art. 112.º do mesmo diploma legal, começa a correr a partir do dia em que transita em julgado a decisão condenatória.

E, de igual forma, também à luz do Código Penal Português, tal pena não se mostra prescrita, porquanto, de acordo com o disposto no art. 122.º, n.º 1 b) e n.º 2 do mesmo, o prazo de prescrição previsto para a mesma é de 15 anos e começa a correr no dia em que transitar em julgado a decisão que a tiver aplicado.

E, como já deixámos dito, devendo ser à luz do regime definido na referida Convenção CPLP que tal fundamento da inadmissibilidade da extradição deve ser ponderado, atento o disposto no art. 3.º, n.º 1 alínea f) da Convenção CPLP, é manifesto que o mesmo não se verifica.

Sempre se dirá, porém, que a questão da prescrição do procedimento criminal -que parece ser o fundamento em que o extraditando alicerça a inadmissibilidade da extradição que vem pedida nos autos –, por se tratar de uma questão que, podendo e devendo, ser apreciada no âmbito do processo crime que correu termos nos Tribunais brasileiros, era nele que podia e devia ter sido suscitada pelo arguido e ora extraditando, e, não o tendo feito, não faz sentido que o venha agora fazer no âmbito do presente processo de extradição com vista ao cumprimento da pena de prisão que, na sequência de tal procedimento criminal contra si instaurado, culminou com a sua condenação, transitada em julgado, na aludida pena de prisão.”

9. Nas relações entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil a extradição rege-se pela Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na Cidade da Praia, em 23 de novembro de 2005, ratificada pelos dois Estados [aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República (RAR) n.º 49/2008 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República (DPR) n.º 67/2008, DR, 1.ª Série, 15.9.2008, e Aviso n.º 183/2011, do MNE, de 11.8.2011, DR 1.ª Série, 11.8.2011; doravante “Convenção”] e, subsidiariamente, na falta ou insuficiência de normas, pela Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

Esta convenção substituiu o Tratado de Extradição entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil, concluído em Brasília em 7.5.1991, aprovado para ratificação pela RAR n.º 5/94, de 03/02 e ratificado pelo DPR n.º 3/94, de 3.2.2008 (artigo 25.º, n.º 1).

Com base na Convenção, os Estados Contratantes obrigam-se a entregar, reciprocamente, segundo as regras e as condições nela estabelecidas, as pessoas que se encontrem nos seus respetivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Contratante, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena privativa da liberdade por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente (artigo 1.º).

Dão causa à extradição os factos tipificados como crime segundo as leis do Estado requerente e do Estado requerido, independentemente da denominação dada ao crime, os quais sejam puníveis em ambos os Estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a um ano; se a extradição for requerida para o cumprimento de uma pena privativa da liberdade exige -se, ainda, que a parte da pena por cumprir não seja inferior a seis meses (artigo 2.º), devendo, neste caso, o pedido de extradição ser acompanhado de original ou cópia certificada da sentença condenatória e de certidão ou mandado de prisão dos quais conste qual a pena que resta cumprir (artigo 10.º, n.º 2).

10. Nos termos do n.º 1, al. f), do artigo 3.º, que enumera os casos de “inadmissibilidade de extradição”, não há lugar a extradição “quando se encontrarem prescritos o procedimento criminal ou a pena em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido”.

Esta disposição inspira-se, como é comummente reconhecido, no artigo 10.º da Convenção Europeia de Extradição (Paris, 1957), do Conselho da Europa, que constitui o primeiro instrumento multilateral nesta matéria, o qual, na sua redação originária, sob a epígrafe “Prescrição” (“lapse of time”, no original em língua inglesa), dispunha que “A extradição não será concedida se o procedimento criminal ou a pena estiverem extintos por prescrição, nos termos da legislação da Parte requerente ou da Parte requerida”. De notar que, diversamente, no sistema do Conselho da Europa, tratando-se de um pedido de execução de uma condenação estrangeira, este apenas poderá ser recusado com fundamento na prescrição da pena, mas já não do procedimento criminal, na assunção de que o processo foi validamente concluído e que a questão da prescrição do procedimento criminal é matéria que diz exclusivamente respeito ao Estado da condenação (cfr. relatório explicativo da Convenção Europeia sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais, A Haia, 1970, em https://rm.coe.int/16800c930f).

Este artigo 10.º veio a ser alterado pelo Quarto Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Extradição (Viena, 2012), passando a dispor que a extradição não pode ser concedida se o procedimento criminal ou a pena da pessoa reclamada estiverem extintos por prescrição, nos termos da lei da Parte requerente (n.º 1) e que não pode ser recusada pelo facto de o procedimento criminal ou a pena da pessoa reclamada terem sido declarados extintos por prescrição, nos termos da lei da Parte requerida (n.º 2); permite, porém, que qualquer Estado possa declarar que se reserva o direito de não aplicar o n.º 2 se a sua legislação interna proibir explicitamente a extradição nos casos em que, nos termos da sua lei, o procedimento criminal ou a pena da pessoa reclamada estariam extintos por prescrição [n.º 3, al. b)]. Acrescentando o n.º 4 que, ao determinar se o procedimento criminal ou a pena da pessoa reclamada deveriam ser considerados extintos por prescrição nos termos da sua lei, a Parte que tenha formulado uma reserva ao abrigo do n.º 3 deste artigo deverá ter em consideração, de acordo com a sua lei, quaisquer atos ou factos que tenham ocorrido na Parte requerente, sempre que atos ou factos da mesma natureza interrompam ou suspendam o prazo de prescrição na Parte requerida.

Significativamente, ao ratificar este Protocolo (artigos 2.º da RAR 17/2019 e do DPR 10/2019, DR 1.ª Série, de 6.2.2019), a República Portuguesa formulou uma reserva nos termos do n.º 3 do artigo 10.º da Convenção, na redação dada pelo artigo 1.º do Protocolo, dizendo que “declara que se reserva o direito de não aplicar a disposição prevista no n.º 2 do artigo 10.º da Convenção, se: (…) ii) Nos termos da legislação portuguesa, a extradição for proibida devido à extinção, por prescrição, do procedimento criminal ou da pena”. Ao fazer esta reserva, Portugal assume que a verificação de que o procedimento criminal ou a pena estariam extintos, por prescrição, nos termos da lei portuguesa, é causa de proibição da extradição. E se o é no quadro da Convenção Europeia de Extradição, não poderá, por razões de coerência e unidade do sistema, deixar de o ser fora dele, salvo disposição expressa em contrário, que, no caso presente, não existe.

11. A norma de direito internacional contida no artigo 3.º, n.º 1, al. f), da Convenção não confere eficácia, no Estado requerido, ao trânsito em julgado da condenação no Estado requerente, para efeitos de funcionamento do motivo de inadmissibilidade da extradição por prescrição do procedimento ou da pena; remete a matéria para o direito interno (“em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido”, diz o preceito).

Daí que, suscitando-se tal questão no processo de extradição passiva, nele deve ser apreciada e decidida, com a autonomia que lhe é própria, de modo a determinar-se se o procedimento criminal ou a pena estariam ou não prescritos de acordo com o direito nacional.

Nesse conhecimento, deve o tribunal levar em conta todas as informações e documentos recebidos do Estado requerente, que devem instruir o pedido, bem como solicitar a esse Estado os esclarecimentos que forem necessários à decisão (artigos 10.º e 12.º da Convenção CPLP e, subsidiariamente, artigos 23.º, n.º 3, e 45.º da Lei n.º 144/99), incluindo informações sobre “os motivos de interrupção ou de suspensão da prescrição segundo o direito do Estado que formula o pedido”, que, de acordo com o disposto no artigo 12.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 144/99, aplicável nos termos do artigo 3.º, n.º 1, da lei n.º 144/99, produzem efeitos em Portugal [como se decidiu no acórdão de 21.11.2013 (Souto de Moura), Proc. 87/13.6YREVR.S1, em www.dgsi.pt].

12. O artigo 3.º, n.º 1, al. f), da Convenção obriga, assim, a um duplo controlo da prescrição, a efetuar de acordo com a lei do Estado requerente e com a lei portuguesa. Não estando o funcionamento da prescrição no Estado requerido associado à fase do processo no Estado requerente ou à finalidade visada pela extradição – procedimento criminal ou execução da pena –, esse controlo há de efetuar-se com referência aos dois momentos geradores de imunidade pelo decurso do tempo do procedimento e para execução da pena, que constituem motivo de proibição da extradição, no caso de esta se destinar ao cumprimento de uma pena. Foi este o entendimento subjacente e seguido nos recentes acórdãos de 14.7.2022 (Carmo Silva Dias), Proc. 16/22.6YRPRT-A.S1, e de 6.9.2022 (Ana Barata Brito), Proc. 181/22.2YRPRT.S1, em www.dgsi.pt, em que, em situações idênticas à destes autos, se suscitou, apreciou e decidiu a questão da prescrição do procedimento criminal em pedidos de extradição para o Brasil, para efeitos de cumprimento de penas de prisão aplicadas por decisões transitadas em julgado.

Ou seja, tendo sido suscitada a questão da prescrição do procedimento, tal questão não poderá deixar de ser apreciada no âmbito deste processo, à luz do direito brasileiro e das informações obtidas (como indicado supra) e do direito português, levando em conta o disposto no artigo 12.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 144/99.

Esta apreciação não pode, todavia, como pretende o recorrente, conduzir a uma decisão sobre a prescrição do procedimento por aplicação da lei brasileira, matéria que é da competência dos tribunais brasileiros. Os tribunais portugueses apenas podem e devem levar em conta os motivos de interrupção ou de suspensão da prescrição segundo o direito brasileiro.

Assim sendo, diversamente do que vem sustentado no acórdão recorrido, não poderá deixar de apreciar-se, com base nos elementos referidos, se, face à lei portuguesa, o procedimento criminal se encontraria ou não prescrito à data do trânsito em julgado, no Brasil, da sentença que impôs a pena cuja execução se visa com a apresentação do pedido de extradição. Não bastando que o conhecimento da prescrição seja limitado à prescrição da pena, como sustenta o acórdão recorrido.

E isto sob pena de, limitando-se à apreciação de prescrição das penas (mais recentes), solução contrária poder conduzir a soluções inaceitáveis, por ignorarem o tempo dos processos em que foram pronunciadas – mesmo em violação do direito a uma decisão judicial em tempo razoável consagrado em instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos de dimensão universal (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, artigo 14.º) ou regional (Convenção Europeia dos Direitos Humanos, artigo 6.º,  e Convenção Americana dos Direitos Humanos, artigo 8.º) – por factos antigos e longínquos, de punição carecida de justificação pelo decurso do tempo à luz da natureza e das finalidades penais que presidem ao instituto da prescrição, agravada por um elemento de discriminação relativamente a processos nacionais, em resultado da aplicação da pena por um tribunal estrangeiro.

13. A extinção do procedimento criminal por efeito da prescrição depende, todavia, da pena aplicável, nos termos do artigo 118.º do Código Penal, isto é, da verificação da dupla incriminação, que constitui um dos pressupostos da extradição.

Dispõe o artigo 2.º, n.º 1, da Convenção que dão causa à extradição os factos tipificados como crime segundo as leis do Estado requerente e do Estado requerido, independentemente da denominação dada ao crime, os quais sejam puníveis em ambos os Estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a um ano. Acrescentando o n.º 2 que se a extradição for requerida para o cumprimento de uma pena privativa da liberdade exige -se, ainda, que a parte da pena por cumprir não seja inferior a seis meses.

Requer, por isso, o artigo 10.º que, quando se tratar de pedido para cumprimento de pena, o pedido de extradição seja acompanhado de original ou cópia certificada da sentença condenatória e de certidão ou mandado de prisão dos quais conste qual a pena que resta cumprir (n.º 2), e ainda da descrição dos factos pelos quais se pede a extradição, indicando -se o lugar e a data de sua ocorrência, sua qualificação legal e fazendo -se referência às disposições legais aplicáveis [n.º 3, al. a)].

14. Dos factos provados consta apenas que:

3. Os factos que estão na base da aludida condenação do ora extraditando, são os seguintes:

No dia 29.04.2006, na fazenda ..., na zona rural de ..., ..., ..., o requerido AA, juntamente como outro indivíduo, subtraíram para si, mediante grave ameaça exercida com emprego de arma de fogo, 3 armas de fogo (uma carabina, um rifle e um fuzil) os quais eram propriedade de CC.

4. Tais factos, sumariamente descritos, integram, face ao disposto no art. 157.º, 2.º, I e II do Código Penal Brasileiro, a prática de um crime de roubo.”

A descrição do facto utiliza a expressão normativa “mediante grave ameaça”, constante da definição típica do crime (Código Penal brasileiro acessível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm), adicionando o segmento “exercida com arma de fogo”.

Apreciando a dupla incriminação, o acórdão recorrido diz que “Os factos que subjazeram à aplicação ao extraditando da referida pena de prisão, tipificam, quer à luz do Código Penal Brasileiro (art. 157.º) quer à luz do Código Penal Português (art. 210.º), a prática de um crime de roubo”.

O artigo 210.º do Código Penal é uma disposição complexa: o n.º 1 pune com prisão de 1 a 8 anos quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel ou animal alheios, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir e o n.º 2 estabelece que a pena é de 3 a 15 anos se qualquer dos agentes produzir perigo para a vida da vítima ou lhe infligir, pelo menos por negligência, ofensa à integridade física grave; ou se verificarem, singular ou cumulativamente, quaisquer requisitos referidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 204.º.

Os factos provados, tal como se encontram descritos, não permitem identificar qual destas normas incriminadoras se mostra preenchida. Não releva a “denominação dada ao crime”; importa a tipificação dos factos, que devem ser concretizados e descritos, independentemente da denominação (artigo 2.º, n.º 1 da Convenção).

Pelo que se impõe o preenchimento desta lacuna do decidido, o que, na falta de elementos já disponíveis, poderá requerer a solicitação de informações complementares nos termos do artigo 12.º da Convenção (supracitado).

Para além disso, o acórdão autoriza a extradição para o cumprimento da pena aplicada, na sua totalidade, mas é omisso quanto à pena por cumprir, sendo que a extradição só pode ser concedida em função desta e para esta finalidade, como expressamente resulta do artigo 2.º, n.º 2, da Convenção, o que deve ser indicado no pedido (artigo 10.º).

Quanto à verificação da “cláusula humanitária”, suscetível de constituir motivo de denegação da extradição por razões pessoais ou de saúde

15. Apreciando esta questão, também suscitada na oposição, diz o acórdão recorrido:

“Com fundamento em que se encontra radicado com a sua mulher em Portugal e que tem problemas de saúde, por força dos quais carece de ser submetido a intervenção cirúrgica para a qual figura já inscrito na respectiva lista de inscrição do SNS português, em relação à qual não há garantias da respectiva realização em território brasileiro, pretende o extraditando que o Estado português deve negar a sua extradição nos termos do artigo 18º nº 2 da Lei nº 144/99.

Ora, da factualidade que logrou apurar-se, não resulta provado que a mulher do arguido se encontre, como ele, radicada em Portugal.

E, da mesma forma, também dessa mesma factualidade provada, não decorre que se tenha apurado que não há garantias da realização da referida intervenção cirúrgica em território brasileiro, caso venha a ser deferido o pedido de extradição.

Ainda assim, sempre se dirá que tais circunstâncias alegadas pelo extraditando não se incluem em nenhuma das causas de recusa facultativa de extradição previstas no artigo 4º da Convenção da CPLP, norma esta que elenca de forma taxativa as causas de recusa facultativa da extradição, dela não decorrendo a possibilidade de denegação da cooperação internacional quando do deferimento do pedido e tendo em conta uma ponderação entre a gravidade do facto e a gravidade das consequências da extradição para o visado possam resultar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal, tal qual como sucede com o n.º 2 do artigo 18º da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, em que o extraditando se ancora.

Assim sendo, não se prevendo na Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa a possibilidade de recusa da extradição por o seu deferimento poder implicar consequências graves para o visado, improcede a pretensão de recusa facultativa de extradição com tal fundamento.”

16. A discordância quanto ao decidido expressa-se na não realização da perícia médica que o extraditando requereu, para se determinar o seu estado de saúde, e na não aceitação do facto não provado de coabitação com a sua mulher, para prova da sua situação pessoal. Tudo tendo em vista a aplicação do artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, segundo o qual pode ainda ser negada a cooperação quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o deferimento do pedido possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal.

A aplicação desta disposição depende, desde logo, da conclusão que se possa obter sobre a falta ou insuficiência das disposições da Convenção, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, o qual dispõe que as formas de cooperação a que se refere o artigo 1.º, em que se inclui a extradição, se regem pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma.

17. Este Tribunal tem decidido que o artigo 4.º da Convenção estabelece motivos de recusa facultativa de extradição que são taxativos, não se podendo invocar, supletivamente, o motivo de denegação facultativa da cooperação previsto no artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99. Consignou-se, nomeadamente no acórdão de 30.10.2013 (Oliveira Mendes), Proc. n.º 86/13.8YREVR.S1 1, que a “(…) Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa não prevê no seu artigo 4º (…), norma que, sob a epígrafe de recusa facultativa de extradição, elenca as circunstâncias em que a extradição pode ser recusada, a possibilidade de recusa da extradição, tal qual sucede com o n.º 2 do artigo 18º da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, quando possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal. (…).”. No mesmo sentido se decidiu também nos acórdãos de 14.7.2022, Proc. 16/22.6YRPRT-A.S1, e de 6.9.2022, Proc. 181/22.2YRPRT.S1, anteriormente citados.

Esta conclusão não obsta, porém, a que, no âmbito da execução da decisão de extradição, o estado de saúde do extraditando, se for caso disso, deva ser considerado, podendo justificar o adiamento da entrega (artiga 13.º, n.º 5, da Convenção).

Assim sendo, o acórdão recorrido, que reflete a jurisprudência seguida neste Tribunal, não merece, nesta parte, qualquer censura.


III. Decisão

18. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido e determinando que este seja substituído por outro que, para além do mais, com base nas informações de que o tribunal recorrido dispõe e dos esclarecimentos complementares que se mostrem necessários, aprecie e decida sobre a verificação da prescrição do procedimento criminal face ao direito nacional como motivo de inadmissibilidade da extradição, e supra as omissões mencionadas, em conformidade com o exposto nos pontos 11 a 14 da fundamentação.

Sem custas (artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto).


Supremo Tribunal de Justiça, 29 de dezembro de 2022.


José Luís Lopes da Mota (relator)

Pedro Branquinho Dias

Teresa de Almeida