Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
412/20.3T8PBL.C1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
PRESSUPOSTOS
CONTRATO-PROMESSA
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OBSCURIDADE
AMBIGUIDADE
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, emerge se o devedor convencer o invocante que ele actuará, ou não actuará, no futuro, de um certo modo, e, depois, assuma uma conduta em sentido inverso ao que manifestou, de uma maneira contraditoriamente chocante, e, assim, ético-juridicamente censurável e inadmissível, violando a confiança que naquela conduta o invocante depositou sem motivos para dela desconfiar.

II - Se, nuclearmente, se prova que as partes - que anuíram num contrato promessa de venda de imóvel, nulo, por preterição de forma legal - eram amigas, falavam sobre o contrato ao longo de vários anos, não tendo o promitente comprador falado da nulidade por mais de 9 anos, mas vindo, decorrido esse tempo a demandar o R. através de uma sociedade onde tinha interesses, com a invocação da nulidade e pedido da devolução das quantias entregues, quando este promitente-comprador era um profissional do ramo da compra e venda de imóveis e o promitente-vendedor profissional de vinhos, tal basta, até porque esta invocação já não é um direito seu que possa exercer livremente, violando com esse comportamento o regime do art.º 334.º do CC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. RELATÓRIO


1. AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, CC, DD (todos na qualidade de herdeiros de EE e o primeiro Réu também por si), e marido FF, alegando, em síntese, que no dia 30 de Dezembro de 2004, o Réu BB prometeu vender-lhe e o próprio prometeu comprar, pelo montante de 43.750 €, um prédio rústico sito em ..., tendo-lhe entregado a quantia total de 28.730 € a título de antecipação do preço, através de seis cheques, tendo o Réu dado quitação por escrito quanto a quatro desses cheques, não tendo o referido acordo sido reduzido a escrito, do que decorre a sua nulidade, tendo a quantia entregue àquele Réu sido incorporada no património comum do casal então constituído por tal Réu e pela falecida EE, de quem os Réus CC e DD são filhos.

Termina pedindo a declaração de nulidade do referido contrato verbal de promessa de compra e venda de 30 de Dezembro de 2004, assim como a condenação dos Réus na restituição da quantia de 28.730 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até efectivo e integral pagamento.


2. Válida e regularmente citado, apresentou o Réu BB a sua contestação e deduziu reconvenção, tendo admitido a celebração do contrato-promessa com o Autor, mas impugnado a falta da sua redução a escrito, dada a declaração por si escrita no primeiro cheque que lhe foi entregue, reforçada por uma outra declaração escrita posteriormente aposta noutro cheque, para além de ter invocado a excepção peremptória de abuso de direito do Autor, dado o lapso de tempo decorrido desde a promessa, a circunstância de o Autor ter ficado incumbido da marcação da escritura pública de compra e venda, que ia protelando, e do facto de até à acção judicial que correu termos no Tribunal Judicial ... o Autor jamais ter feito menção à nulidade do contrato-promessa ou ter praticado qualquer acto que o levasse a concluir que era sua intenção invocar tal nulidade, tendo criado no seu espírito a convicção de que o negócio iria ser cumprido na íntegra, tendo sido o Autor a dar causa à alegada falta de redução a escrito.

Em reconvenção, reiterando a argumentação acima exposta, o Réu acrescentou, em suma, que com a instauração da presente acção, o Autor-reconvindo demonstra não ter interesse na manutenção do contrato-promessa, sendo-lhe imputável o incumprimento, motivo pelo qual tem o direito de fazer sua a quantia de 28.730 € entregue a título de sinal, para além de ter deixado de explorar o prédio, tendo perdido a oportunidade de o vender a outros interessados, o que lhe tem causado desgaste, nervosismo e desgosto.

Concluiu, deste modo, pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido, assim como pugnado pela procedência da reconvenção, pela condenação do Autor-reconvindo no reconhecimento de que o contrato-promessa é válido e, em consequência, que se decretasse a resolução do negócio por “facto imputável” ao Autor-reconvindo, com a condenação deste a reconhecer que tem o direito de fazer sua a quantia de 28.730 € ou, assim não se entendendo, a condenação do Autor-reconvindo no pagamento da quantia de 15.000 € a título de indemnização pelos prejuízos sofridos, para além da condenação do Autor-reconvindo como litigante de má fé, em multa e indemnização.


3. Válida e regularmente citado apresentou também o Réu CC a sua contestação, invocando a excepção dilatória da sua ilegitimidade para a causa, por não ter intervindo no contrato-promessa em discussão nos autos, para além de ter impugnado a totalidade da matéria de facto invocada pela contraparte na petição inicial.

Concluiu, em consequência, pela procedência da excepção dilatória invocada e pela sua absolvição da instância ou pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.


4. Válida e regularmente citados, apresentaram ainda os Réus DD e FF a sua contestação, tendo invocado igualmente a excepção dilatória da sua ilegitimidade para a causa, por não serem donos do imóvel pretendido vender e por não terem intervindo no contrato-promessa, para além do respectivo regime de bens de casamento, que tornaria sempre o Réu parte ilegítima, tendo impugnado a factualidade invocada pela contraparte na petição inicial.

Concluíram, em consequência, pela procedência da excepção dilatória de ilegitimidade e pela sua absolvição da instância ou, assim não se entendo, pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido


5. O Autor ofereceu a sua réplica, tendo invocado a excepção dilatória de ilegitimidade activa quanto à reconvenção, por preterição de litisconsórcio necessário, e contraditou os factos alegados pelo Réu BB na reconvenção quanto à validade do contrato-promessa, ao seu incumprimento e aos prejuízos, tendo pugnado pela procedência daquela excepção dilatória e pela sua absolvição da instância reconvencional, assim como pela improcedência da reconvenção e pela sua absolvição dos pedidos reconvencionais.

O Autor requereu também em tal articulado a ampliação da sua causa de pedir, em termos subsidiários, aduzindo, em suma, que a declaração dada a conhecer pelo Réu BB na contestação configuraria um contrato verbal de compra e venda, nulo por falta de forma e celebrado sem o consentimento do falecido cônjuge, tendo direito a reaver a quantia de 28.730 € entregue, e ainda, simultaneamente com tudo o que havia já discorrido nos autos, um contrato-promessa unilateral de venda do prédio, não tendo o Réu procedido à marcação da escritura pública de compra e venda, apesar de interpelado para o efeito, motivo pelo qual perdeu interesse na celebração do contrato definitivo, pretendendo resolver o contrato e a devolução do valor entregue, em último caso por enriquecimento sem causa.

Em consequência, requereu a alteração do pedido, sustentando que o fazia “subsidiariamente” ao inicialmente pedido, pretendendo então que caso se considere que foi celebrado um contrato de compra e venda, o mesmo seja declarado nulo e que os Réus sejam condenados a restituir-lhe a quantia de 28.730 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até efectivo e integral pagamento; ainda subsidiariamente, caso se considere que está em causa um contrato-promessa unilateral de venda, a condenação dos Réus na restituição da referida quantia de 28.730 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até efectivo e integral pagamento; e ainda subsidiariamente, que seja declarada válida a resolução do contrato por falta de interesse, enquanto beneficiário da promessa, com a condenação dos Réus na restituição da mesma quantia de 28.730 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até efectivo e integral pagamento; finalmente, de novo subsidiariamente, a condenação dos Réus no pagamento da quantia de 28.730 €, a título de enriquecimento sem causa, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até efectivo e integral pagamento.


6. O Réu BB exerceu o contraditório quanto à excepção dilatória de ilegitimidade invocada pela contraparte na réplica, tendo concluído pela sua não verificação e simultaneamente suscitado o incidente de intervenção principal provocada quanto aos pedidos formulados na reconvenção sob as alíneas b) e c).


7. Por decisão de 24 de Junho de 2021 (constante de fls. 133 a 135 dos autos), foi admitida a intervenção principal provocada, como associados do Réu-reconvinte, dos co-Réus CC, DD e FF.


8. Foi proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as excepções dilatórias de ilegitimidade invocadas, quer pelo Autor-reconvindo, quer pelos Réus CC, DD e FF, tendo, no mais, sido afirmada a validade e a regularidade da instância.


9. A reconvenção foi admitida.


10. Foram proferidos despachos a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, os quais não foram objecto de qualquer censura, assentando aquele na averiguação da validade do contrato-promessa de compra e venda de imóvel celebrado entre o Autor AA, o Réu BB e EE, assim como na eventual existência de litigância de má fé pelo Autor.


11.  Procedeu-se à realização da audiência final, com respeito pelo formalismo legal pertinente.


12.  veio a ser, em seguida, proferida sentença, onde se decidiu:

“Pelo exposto, julga-se a presente acção improcedente e, em conformidade, absolve-se os Réus BB, CC, DD e FF dos pedidos contra eles formulados pelo Autor AA.

Julga-se ainda improcedente a reconvenção e, em conformidade, absolve-se o Autor-reconvindo AA dos pedidos reconvencionais contra ele formulados pelo Réu-reconvinte BB e pelos Réus CC, DD e FF.

Custas da acção pelo Autor AA (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil), sem prejuízo da protecção jurídica de que beneficia.

Custas da reconvenção a cargo do Réu-reconvinte BB (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil), sem prejuízo da protecção jurídica de que beneficia.”


13. Inconformado recorreu o autor e houve contra-alegações dos RR., pugnando pela manutenção do decidido.


14. O TR conheceu do recurso e fixou como seu objecto:

1ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto;

2ª – Procedência da acção.


15. Conhecendo da primeira questão o Tribunal da Relação entendeu dever manter os factos provados e não provados inalterados, tendo, em seguida, passado a conhecer da questão jurídica suscitada – em especial, a de saber se houve abuso de direito.

E veio a decidir:

“Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar a sentença, e condenar os réus no pedido.”


16. Não se conformando com esta decisão dela apresentaram recurso de revista os RR.


17. O R. CC concluiu o seu recurso nos seguintes termos:

I – O douto Acórdão é nulo, na medida em que enferma de ambiguidade e obscuridade, o que torna a decisão ininteligível, nos termos do disposto na alínea c) do artigo 615º do CPC.

II – Não foi declarada, pelo tribunal a nulidade do contrato.

III – Só a declaração de nulidade do contrato, podia levar à consequente obrigação de restituir o recebido.

IV – Da alínea a) dos factos dados como não provados resulta que não se provou com relevância para a decisão da causa que as quantias recebidas tenham sido destinadas à alimentação, alojamento e vestuários do R BB e mulher – a falecida EE.

V – Não resulta assim provado que tal quantia tenha sido em proveito comum do casal, para que se possa via a imputar a em última ratio à herança.

VI – O aqui RR só poderia responder e ser condenado a final, na medida e qualidade de herdeiro - da herança indivisa aberta por óbito da falecida EE.

VII – Nos termos do disposto nos artigos 2068º e 2074º do Código Civil, a herança tem autonomia e personalidade jurídica própria, não se confundido a herança com os seus herdeiros.

VIII – O douto acórdão ora recorrido, ao decidir “condenar os RR no pedido” comete a nulidade prevista na al d) do artigo 615º do CPC, pois que, não clarifica, de forma certa liquida e exigível, em que medida os condena.

IX - Nestes termos, foram violadas as normas constantes dos artigos 615º a) e d) do CPC e 2068º e 2074º do CC.


18. Os RR. FF e DD concluíram o seu recurso nos seguintes termos:

“1 – O douto acórdão, nos termos do disposto na al. c) do artigo 615º do CPC, é nulo, pois enferma de ambiguidade e obscuridade, que torna a decisão ininteligível.

2 – “Ao condenar os RR. no pedido”, está implicitamente a remeter para a PI, onde se pede:

A - Ser declarada a nulidade do contrato verbal de compra e venda referido no artigo 6º da presente PI;

B - Serem os RR. condenados a restituir ao A. a quantia de 28 730,00€ acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral cumprimento.

3 – A condenação dos RR a restituírem qualquer importância, só seria possível, se e após ser declarada a nulidade do contrato, como, e bem, pediu o A.

4 – O acórdão ao não se pronunciar acerca desta matéria, que é essencial para a decisão da causa, violou o disposto na al. d) do artigo 615º do CPC.

5 – De qualquer forma nunca os RR poderiam ser condenados a “declararem a nulidade do contrato verbal de compra e venda referido no artigo 6º da presente PI.”, cuja competência é exclusiva do Tribunal.

6 – Os ora recorrentes apenas são parte na acção, para representação da herança indivisa de EE.

7 – Apenas podendo ser responsabilizados na medida em que esta o fosse.

8 – Sendo para isso necessário que, como alegou o A. que – a quantia entregue ao Réu BB, se tivesse incorporado no património comum do então casal, destinando-se a satisfazer as necessidades de alimentação, alojamento, vestuário e outras despesas do então casal (art. 22º e 23º da PI).

9 – Factos dados como não provados, (alínea a),) afastando a responsabilidade de EE e como consequência dos seus herdeiros, pois o proveito comum não se presume.

10 – Como se refere no douto acórdão e também na douta sentença, o A. intentou contra BB, CC, DD (na qualidade de herdeiros de EE e o primeiro réu também por si) e marido FF, a presente acção.

11 – Estamos, portanto, em presença de uma herança indivisa.

12 – Como não tem personalidade judiciaria, os seus direitos só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, ou contra todos os herdeiros, nos termos do disposto no artigo 2091º do CC.

13 - Nesse sentido foram julgadas no despacho saneador, improcedentes as excepções de ilegitimidade invocadas.

14 – A herança é um património autónomo que responde pelas dividas do falecido nos termos do disposto no artigo 2068º do CC

15 – Até à sua liquidação e partilha não pode existir confusão de direitos e deveres dos herdeiros com os da herança (2074º do CC)

16 – Embora os herdeiros sejam sempre parte legitima como representantes da herança indivisa, na acção em que se pretenda responsabilizá-los diretamente por uma divida, estes devem ser absolvidos do pedido.

17 – Os herdeiros de herança indivisa só podem ser condenados a reconhecerem a existência de divida ou a vê-las satisfeitas pelos bens da herança, nunca serem condenados a pagar qualquer divida da herança.

Sem prescindir

18 – Os RR na qualidade de herdeiros da herança indivisa de EE, apenas poderiam ser condenados na medida em que a Autora da Sucessão (EE) também o fosse.

19 – Sendo para isso necessário que, como alegou o A. – . a quantia entregue ao R. BB, se tivesse incorporado no património comum do então casal, destinando-se a satisfazer as necessidades de alimentação, alojamento, vestuário e outras despesas do então casal (art. 22º e 23º da PI).

20 – Factos dados como não provados, (al. a)) afastando a responsabilidade de EE e como consequência dos seus herdeiros, pois o proveito comum não se presume.

21 – Nos termos do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 703º do CPC, a sentença (neste caso o acórdão) é um título executivo, que por definição tem de ser certo, exigível e liquido.

22 – Características não existentes no douto acórdão de que se recorre.

23 – Ao decidir “condenar os RR no pedido” sem se pronunciar acerca da forma como estes intervêm nos autos, na qualidade de herdeiros ou outra, comete nulidade prevista al. d) do artigo 615º do CPC, e coloca-os a todos em igualdade de circunstâncias, abrindo a porta ao A. para executá-los a todos em igual medida e pela totalidade da divida.

24 – Situação que na verdade já se concretizou, através da execução com o processo 1308/22...., no valor total do pedido, por penhora de saldos bancários, inviabilizando a movimentação de todas as contas dos ora recorrentes.

25 – Relativamente ao R. FF, condenado tal como os demais, mas que está no processo, por ter sido considerado no despacho saneador, “ser parte legitima do ponto de vista processual, ao abrigo do disposto no artigo 2091º do Código Civil, estando numa situação de litisconsórcio necessário”.

26 –A sua presença nos autos visa unicamente assegurar a representação da herança atenta a sua qualidade de casado com a herdeira, em regime de comunhão de adquiridos.

27 – Mas não é responsável por qualquer divida da herança.

28 - Nem é devedor de qualquer importância, nem responsável pela restituição de qualquer quantia ao A.

29 – Não podendo ser condenado, seja a que titulo for, nos presentes autos.

30 - Foram violadas as normas constantes dos artigos: 615º a) e d) do CPC e 2068º e 2074º do CC.”


19. O R. BB concluiu o seu recurso nos seguintes termos:

“1 – O Recorrente não se conforma com o Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, que revogou, a sentença do Tribunal de primeira instância, condenado os Réus no pedido.

2 – A decisão proferida em primeira instância, além do mais, julgou a ação improcedente e, em conformidade, absolveu todos os Réus dos pedidos contra eles formulados pelo Autor.

3 – Considerando a matéria de facto dada como provada, que se encontra alegada supra, entende o recorrente que houve erro na aplicação do direito, não restando dúvidas que o Autor/Recorrido, ao alegar a nulidade do contrato promessa de Compra e Venda, por falta de forma legal, age em Abuso de Direito, na sua modalidade do venire contra factum proprium.

4 – O Recorrente, dá nesta sede por reproduzida, toda a fundamentação de facto e de direito, por ser imaculada, da sentença da primeira instância, por estar conforme o direito aplicável ao caso concreto.

5 - O instituto do abuso de direito, está previsto genericamente no art. 334.º do Código Civil, que dispõe que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

6 - O exercício de um direito só poderá qualificar-se de abusivo quando seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante (cfr. Pires de Lima e Antunes varela, “Código Civil Anotado”, volume I, 4.ª edição, 1987, págs. 298 e 299).

7 - A variante do venire contra factum proprium, é a proibição da chamada conduta contraditória, que exige a combinação de vários requisitos reclamados pelo princípio da confiança, que é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.

8 - São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.

9 – O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra refere na seu aresto que “Assim sendo, e no caso vertente, conclui-se que os factos provados não são bastantes para preencherem estes requisitos ou exigências, justificando esta sua afirmação como o facto que o “julgador relevou essencialmente o tempo decorrido entre a celebração do contrato e a invocação da nulidade através da sociedade – cerca de 09 anos – as relações de amizade entre o autor e o réu BB, e o facto de eles ao longo dos anos terem continuado a falar sobre o contrato e o autor não ter indiciado que poderia invocar a sua nulidade.”

10 – Salvo o devido respeito, que é muito, o recorrente não se pode conformar com a fundamentação supra usada pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.

11 - Dos factos dados como provados e da fundamentação da decisão da primeira instância, ressaltam muito mais factos essenciais que preenchem os almejados requisitos, do que aqueles que o Tribunal Recorrido entende realçar na sua fundamentação.

12 - Desde logo, a factualidade elencada nas alíneas c), d), e), g), i) e l), da matéria provada, que reflete que o Autor foi entregando ao Réu um conjunto de cheques para entrega do sinal, o que comprovadamente ocorreu em 06 ocasiões distintas, entre o dia da celebração do contrato promessa (30/12/2004) e o dia 06/11/2007.

13 - Assim como a evidência, de as partes terem sempre falado sobre o contrato, sempre que se encontravam, e de só se ter invocado a nulidade do contrato na ação declarativa que foi intentada pela sociedade, da qual o Autor/Recorrido foi gerente, facto ocorrido só em 2013.

14 - Estes pagamentos, aliados ao tempo decorrido (cerca de 9 anos decorridos) são suficientes para solidificarem no espírito do Recorrente que o negócio era definitivo, sendo certo que nunca antes da propositura de tal ação se falou em nulidade do contrato.

15 - Mesmo que o silêncio não tenha valor de declaração negocial, a verdade é que não se pode ficar indiferente ao comportamento que o Autor teve durante estes 9 anos, e ao facto deste saber que era necessário reduzir a escrito o contrato-promessa (facto ee) dado como provado).

16 - Durante todo o tempo decorrido o Autor/Recorrido silenciou a temática da nulidade do contrato.

17 - Ao contrário do defendido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, entende-se que o facto provado em ee), aliado e conjugado com toda a restante factualidade dada como provada, não é inócuo, mas revelador do comportamento contrário à boa fé e aos bons costumes que o Autor/Recorrido adoptou de forma a defraudar as legítimas expetativas e confiança do Réu/Recorrente.

18 - Ressalta da factualidade dada como provada, e em resumo que:

- O Autor sempre foi conhecido e é conhecido por se dedicar à compra e venda de imóveis e á construção civil (facto provado z);

- O Réu BB sempre se dedicou ao comércio de vinhos (facto provado aa)

- O Autor e o Réu BB tinham uma relação de amizade (facto provado bb);

- Confiando um no outro, ao ponto de concluírem um qualquer negócio com um simples aperto de mão (facto provado cc);

- Desde a data da entrega do cheque mencionado na alínea c) até à acção judicial identificada na alínea o) que o Autor e o Réu BB foram mantendo contactos, conversando sobre o acordo aludido em b) (facto provado dd);

- O Autor não falou com o Réu BB da nulidade do contrato-promessa antes da propositura da acção identificada na alínea o) (facto provado ee);

- O Autor sabia que era necessário reduzir a escrito a promessa de compra e venda (facto provado ff);

19 - Perante esta factualidade provada, não nos restam dúvidas que se encontra preenchido a figura do abuso de direito, na sua vertente do venire contra factum proprium, desde logo não só pelo tempo decorrido, mas pela relação de confiança que as partes tinham uma na outra, assim como pelo facto não menos importante do Autor/Recorrido ser um profissional da compra e venda de imóveis e da construção civil e saber que para o contrato cumprir com a forma exigida por lei, tinha de ser reduzido a escrito.

20 - O Autor/Recorrido sempre esteve numa situação de vantagem relativamente ao Réu/Recorrente, sabendo que com a sua atuação, e caso assim lhe fosse conveniente, a qualquer altura poderia invocar a nulidade do contrato e pedir a restituição dos valores pagos a título de sinal ou princípio de pagamento.

21 - Posto isto, não nos restam dúvidas, que este cenário colide de forma evidente e intolerável, com a boa fé e os bons costumes, contrariando e defraudando as legítimas expetativas e a confiança do ora recorrente.

22 – Pelo que, se encontram preenchidos todos os pressupostos e requisitos da figura do Abuso de Direito, na vertente do Venire, devendo ter como consequência paralisar o efeito jurídico da nulidade do contrato promessa de compra e venda, devendo por via disso, serem os réus absolvidos dos pedidos efetuados pelo Autor/Recorrido.

23 – Encontram-se, deste modo violadas, as normas dos artigos 334.º, 236.º, n.º 1, 237.º, todos do Código Civil.”


20. Foram apresentadas contra-alegações pelo A., onde se conclui:

“1. A parte decisória de decisão judicial só é ininteligível “quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação a interpretar” (José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 735)

2. Prescrutando o acórdão e conjugando a sua fundamentação com a decisão final, do ponto de vista do destinatário médio, é perfeitamente percetível o seu sentido e alcance:

(a) o contrato dos autos é nulo por falta de forma (vd. p. 13 do Acórdão: “a solução da nulidade é a que, porventura, melhor realiza a justiça deste caso. Pois que coloca as partes na situação existente antes do contrato, tudo se passando como se ele não tivesse sido anuído. O que, perante a dúvida e nebulosidade de tudo aquilo que se passou, se revelará até a solução mais equitativa, porque a que melhor protege o justo equilíbrio dos interesses em presença”;

(b) o A/recorrido não agiu em abuso de direito ao invocar tal vício (cfr. p. 11 do Acórdão: “mister se torna que a conduta assuma uma inequivocidade e/ou duração ou reiteração tais que clame a conclusão de que o invocante do abuso ficou convencido que a outra parte necessariamente se vincularia a uma atuação futura em conformidade e consonância com o comportamento antes assumido. Assim sendo, e no caso vertente, conclui-se que os factos provados não são os bastantes para preencherem estes requisitos ou exigências”;

(c) devendo, por força do regime geral da nulidade, ser restituído por todos os RR., nos termos do pedido, o que haja sido prestado (cfr. p. 11 do Acórdão: “pelo que se impõe a restituição do que foi prestado em cumprimento do referido contrato inválido”).

3. Concretizando o ensinamento supra citado de Lebre de Freitas, no caso dos autos qualquer destinatário normal consegue facilmente discernir o sentido e o alcance do Acórdão recorrido.

4. O Acórdão não padece de qualquer vício gerador de sua nulidade, devendo, por conseguinte, serem julgadas improcedentes as arguições realizadas pelos recorrentes.

5. O litisconsórcio necessário do lado passivo impondo que a ação seja proposta contra todos os herdeiros de herança aberta, aceite e indivisa existe por ter correspondência substantiva no que toca à possibilidade de disposição ou oneração de bens da herança, devendo, por tal razão todos serem condenados nos pedidos tendo em consideração a sua qualidade processual.

6. De qualquer modo, caso se entenda que os indicados recorrentes foram condenados a título pessoal, o erro de julgamento que pudesse existir nunca teria como consequência a absolvição do pedido, sob pena de nulidade por contradição entre os fundamentos de facto e de direito e a decisão: atentos os poderes não cassatórios mas substitutivos em matéria de direito do Supremo Tribunal de Justiça, forçoso seria condenar os RR. herdeiros a reconhecerem a existência do crédito reclamado pelo A. e o direito deste a ser pago à custa dos bens da herança.

7. Não está em causa no presente processo o pagamento de dívidas no contexto de obrigações de fonte contratual ou extracontratual contraídas pelo R. BB, mas a devolução de quantia recebida por aquele (cfr. pontos c), d), f), h), j) e m) da matéria de facto dada como assente) ao abrigo do disposto no artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil). A quantia em causa foi recebida pelo referido R. BB que fora casado no regime de comunhão geral de bens com EE, antes do óbito desta, como resulta da conjugação dos factos provados c), d), f), h), j) e m), pelo que integrou necessariamente o que foi o património comum do casal.

8. Há apenas que restituir quantia integrada no que era o património comum do casal e que havia sido recebida ao abrigo de um contrato que não produziu efeitos: não houve propriamente contração de dívida como a que resultaria, por exemplo, de responsabilidade contratual.

9. Não obstante não ter sido dada como assente matéria de facto atinente à satisfação de encargos alimentares do casal ou quanto ao proveito comum no presente processo, o certo é que também nada se provou em sentido contrário, ou seja, no sentido de que o R. BB utilizou as quantias recebidas apenas em proveito próprio ou que não tinha em mente o proveito comum do casal ao celebrar o contrato que veio a ser declarado nulo. Porém, no processo n.º 2196/13.... que teve a mesma causa de pedir, pedido e RR., foi dado como assente, contra estes sujeitos, o facto 4 com o seguinte teor: “[a] quantia entregue ao réu marido «destinou-se a satisfazer as necessidades de alimentação, alojamento e vestuário e outras despesas do casal que era composto por este e pela ré EE»”.

10. A factualidade provada na sentença anterior não obstante não poder ser automaticamente reproduzida no presente processo como matéria aqui assente, pode, no contexto do instituto da autoridade de caso julgado quando da aplicação do direito, ser aproveitada sob pena de contradição da decisão já transitada em julgado.

11. Seja ou não comunicável a dívida, a meação do devedor nos bens comuns do casal – na prática, os bens da herança - responderá sempre ao abrigo do preceituado no artigo 1696.º, n.º 1, o que acarreta a legitimidade processual mas também substantiva dos recorrentes no presente processo.

12. A conduta que tem a virtualidade de consubstanciar o abuso de direito não pode ser uma qualquer, injusta, desadequada ou desproporcionada até. Antes se tendo de assumir como manifestamente ou clamorosamente contrária a certas normas ou princípios jurídicos, como a boa-fé, intoleravelmente inquinadora dos bons costumes, ou inadmissivelmente desproporcionada atento o fim social ou económico do direito.

13. A factualidade dos autos não preenche a hipótese normativa do abuso de direito.

14. O Acórdão impugnado não padece de qualquer nulidade ou erro de julgamento.”


21. Perante a invocação de nulidades o tribunal recorrido, por acórdão da conferência, conheceu das mesmas, considerando que não foram cometidas as invocadas nulidades.


Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO

De facto

22. Factos provados:

a) Encontra-se inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., concelho ..., sob o artigo ...62, um prédio sito em ..., composto de pinhal e mato, com a área de 0,498 hectares, a confrontar do norte com GG, do sul com HH e outro, do nascente com II e do poente com JJ, tendo como titular o Réu BB.

b) No dia 30 de Dezembro de 2004, o Réu BB prometeu verbalmente vender ao Autor AA e este prometeu comprar o prédio identificado na alínea a), pelo montante de 43.750 €.

c) Para o pagamento do montante acordado, nesse mesmo dia 30 de Dezembro de 2004, o Autor entregou ao Réu BB o cheque n.º ...52, do Banco 1..., por si assinado, no montante de 5.000 €.

d) No dia 23 de Fevereiro de 2005, o Autor entregou ao mesmo Réu o cheque n.º ...91, igualmente do Banco 1..., por si assinado, no montante de 8.730 €.

e) No dia 16 de Junho de 2005, o Autor entregou ainda ao Réu o cheque n.º ...40, também do Banco 1..., por si assinado, no montante de 5.000 €.

f) O Réu BB escreveu nesse cheque “recebi 5.000,00 em 16/6/2005”.

g) No dia 26 de Agosto de 2005, o Autor entregou também ao Réu o cheque n.º ...21, igualmente do Banco 1..., por si assinado, no montante de 5.000 €.

h) O Réu escreveu nesse cheque “recebi em 26/8/2005 5.000,00”.

i) No dia 20 de Dezembro de 2005, o Autor entregou ainda ao Réu o cheque n.º ...23, igualmente do Banco 1..., por si assinado, no montante de 2.500 €.

j) O Réu escreveu nesse cheque “recebi o cheque ...52.3 em 20/12/2005”.

l) No dia 6 de Novembro de 2007, o Autor entregou também ao Réu o cheque n.º ...07, novamente do Banco 1..., por si assinado, no montante de 2.500 €.

m) O Réu escreveu nesse cheque “recebi em 6/11/2007 2.500,00 euros por conta do pinhal ...”.

n) O prédio identificado na alínea a) não foi entregue ao Autor.

o) A sociedade “A..., Lda” intentou uma acção declarativa contra o Réu BB, na extinta Instância Central Cível ..., onde correu termos sob o n.º 2196/13.... (em que foram habilitados como sucessores de EE, para além do Réu BB, também os Réus CC e DD), pedindo a declaração de nulidade do contrato-promessa de compra e venda celebrada com o Réu BB em 30 de Dezembro de 2004 e a condenação dos Réus na restituição da quantia de 28.730 €, acrescida de juros de mora, desde a citação, até integral pagamento.

p) A sociedade “A..., Lda” (actualmente com a firma “H..., Lda”) esteve registada na Conservatória do Registo Comercial ... sob a matrícula 663/...28, tendo como objecto o exercício da construção civil, obras públicas e compra e venda de imóveis.

q) Encontra-se registado, mediante a respectiva apresentação n.º ...28, o respectivo contrato de sociedade da “A..., Lda” e a designação dos seus membros para os órgãos sociais, com a designação do Autor AA como seu gerente, em 22 de Junho de 2005.

r) Encontra-se registada, mediante a respectiva apresentação n.º ...13, a cessação de funções de gerência por parte do Autor em tal sociedade, por “renúncia”.

s) Encontra-se registada, mediante a respectiva apresentação n.º ...11, a alteração do seu contrato de sociedade e a designação de membros para os seus órgãos sociais, com a designação do Autor para o cargo de gerente.

t) Encontra-se registada, mediante a respectiva apresentação n.º ...22, a cessação de funções de gerência por parte do Autor em tal sociedade, por “destituição”.

u) EE faleceu no dia ... de Março de 2011, no estado de casada com o Réu BB.

v) No dia 1 de Fevereiro de 2012, na Conservatória do Registo Civil ..., foi realizado procedimento a que se reporta o documento junto aos autos a fls. 9 a 10, com o título “Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos”, do qual consta, além do mais, que “a autora da herança…” faleceu “…no estado de casada com BB no regime da comunhão geral de bens, em primeiras núpcias de ambos. A autora da herança não deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade. Declarados herdeiros da falecida: o cônjuge sobrevivo: BB; e, os filhos: CC e DD”.

x) Aquando da entrega do cheque identificado em c), o Autor, antes de o entregar ao Réu, fez uma fotocópia do mesmo e na mesma folha o Réu fez a seguinte declaração escrita, que assinou: “Eu BB recebi de AA cheque n.º ...52 do BNC de 5.000 euros cinco mil euros por conta de um pinhal em ... freguesia ... que vendi por 43.750 euro, ao que passo a escritura e receber o restante”.

z) O Autor sempre foi conhecido e é conhecido por se dedicar à compra e venda de imóveis e à construção civil.

aa) O Réu BB sempre se dedicou ao comércio de vinhos.

bb) O Autor e o Réu BB tinham uma relação de amizade.

cc) Confiando um no outro, ao ponto de concluírem um qualquer negócio com um simples aperto de mão.

dd) Desde a data da entrega do cheque mencionado na alínea c) até à acção judicial identificada na alínea o) que o Autor e o Réu BB foram mantendo contactos, conversando sobre o acordo aludido em b).

ee) O Autor não falou com o Réu BB da nulidade do contrato-promessa antes da propositura da acção identificada na alínea o).

ff) O Autor sabia que era necessário reduzir a escrito a promessa de compra e venda.

gg) Os Réus FF e DD contraíram casamento católico no dia 5 de Setembro de 1987, sem convenção antenupcial.


23. Factos não provados:

a) As quantias de 5.000 €, 8.730 €, 5.000 €, 5.000 €, 2.500 € e 2.500 € identificadas nas alíneas c), d), e), g), i) e l) dos factos provados destinaram-se à alimentação, ao alojamento e ao vestuário do Réu BB e EE.

b) O Autor AA e o Réu BB combinaram que o Autor ficava com a incumbência de marcar a escritura pública.

c) Desde a entrega do último cheque que o Réu BB interpelou verbalmente o Autor, por diversas vezes, sobre o porquê da demora na marcação da escritura.

d) O Autor respondia sempre para este não se preocupar porque o negócio estava feito, mas estava à espera de constituir uma sociedade para a qual queria transmitir o prédio e só depois de constituir tal sociedade é que poderia pagar o remanescente do preço e marcar a escritura.

e) O Réu BB estava convencido de que tinha o prédio vendido e nunca mais voltou ao mesmo, não o tendo explorado.

f) Durante todo este período de tempo, o Réu perdeu várias possibilidades de poder vender o prédio a outros interessados.

g) O Autor não viu aprovado o loteamento que tinha projectado para o local, em virtude de num dos terrenos por ele adquiridos passar uma linha de água que inviabilizou a operação de loteamento.

h) O Réu BB tem andado desgastado, desgostoso, nervoso e revoltado com a actuação do Autor.

i) Desde 2004 até 2013, o Autor instou por diversas vezes e verbalmente o Réu BB para que este marcasse a escritura de compra e venda.


De Direito

24. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

Em síntese, as questões suscitadas nos recursos são as seguintes:


- Recursos de CC e de FF e DD:

1. Nulidade do acórdão por ambiguidade e obscuridade, nos termos da al. c) do artigo 615º do CPC, e por excesso de pronuncia, nos termos da al. d) do artigo 615º do CPC;

2. Violação de lei – art.s 2068º e 2074º do CC.


- Recurso de BB:

1. Erro de direito – abuso de direito.

25. Entrando na análise das invocadas nulidades, importa aqui deixar indicação da posição sobre elas assumida no acórdão da conferência do tribunal recorrido que sobre as mesmas se pronunciou.

Desde logo e liminarmente.

Há que dizer que a invocação das nulidades é contraditória nos seus próprios termos, pois que os seus fundamentos são inconciliáveis.

Se o acórdão é ambíguo ou obscuro quanto a uma questão, é porque sobre ela existiu pronúncia.

E a ambiguidade só existe, ou só é relevante, quando, nos termos da lei: «torne a decisão ininteligível».

É obvio que não é o caso, pois que os réus inteligiram e intuíram, clara e cabalmente, o que foi, ou não foi, decidido.

Tanto assim que contra o que, no seu entender, não foi decidido, se insurgiram, com alegação de facto e de direito.

Destarte, o cerne da irresignação é a nulidade por falta/omissão de pronúncia. Dilucidemos, pois, quanto a esta nulidade.

Como os próprios reclamantes aventam, a nulidade só emerge quando existe falta de pronuncia quanto a questões essenciais decidendas.

Ora bem vistas as coisas, a pronúncia quanto ao pedido, ao menos na sua vertente prático jurídica, existiu.

Foi «a condenação dos Réus na restituição da quantia de 28.730 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até efetivo e integral pagamento.», tal como impetrado pelo autor.

Esta é a vertente que, verdadeiramente, releva para as partes, porque é o quid que as vai afetar patrimonialmente.

Assim sendo, até custa a perceber que os réus manifestem      pruridos de jaez estritamente jurídico formal, quando, a existirem, até podem ser supridos e, assim, a irresignação suscitada a este título, quedar, esta sim, totalmente nula e irrelevante.

Mas no caso vertente inexiste omissão.

Primus, porque como se disse, desde logo quanto ao relevante  pedido na sua vertente prática, existiu condenação adrede.

Secundus porque tal como existe declaração tácita, a qual, nos termos do artº 217º do CC: «se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.», e tal como existe pedido tácito ou implícito, também pode existir decisão tácita ou implícita.

Numa outra nuance significante, tácito ou implícito é algo que está subentendido, sendo dispensável explicações ou menções a seu respeito.

É o que se verifica in casu.

No acórdão condenou-se no pedido.

O pedido abrangia a declaração de nulidade e a consequente restituição do dinheiro. Logo, tem de entender-se que a condenação abrange estas duas vertentes.

Até porque, como adrede e cristalinamente ressuma da fundamentação do aresto, este tribunal ad quem entendeu que o contrato promessa era nulo.

Pelo que nunca poderia condenar no pedido, com o consequente decretamento da restituição do valor pecuniário em causa, sem entender verificada a nulidade, como entendeu, e, expressa ou implicitamente, declarar a mesma.


A orientação seguida e a decisão adoptada pelo Tribunal recorrido no sentido de não reconhecer existirem nulidades do acórdão recorrido – e que é também defendida pelo A. nas suas contra-alegações – afigura-se correcta, em face das disposições legais aplicáveis.

A decisão recorrida é suficientemente clara no sentido de o contrato ser nulo por falta de forma e de, em consequência, ter de ser reposta a situação anterior à sua celebração, com a devolução das quantias percebidas. Também é clara no sentido de afirmar que o A. não actuou em abuso de direito, tal como o tribunal o entendeu, mesmo que essa decisão possa conter eventual erro de julgamento.

Não se identifica igualmente qualquer omissão de pronúncia, que se reporta às questões suscitadas no recurso de apelação, por seu turno associadas às questões colocadas pela acção e pelo pedido formulado pelo AA e pelos RR.

As nulidades e o erro de julgamento são coisas diversas e no que se reporta às primeiras não se confirma que tenham sido cometidas, pelo que as mesmas improcedem.


26. Quanto ao abuso de direito

26.1. Na análise da 1ª instância (cuja decisão é no sentido da invalidade do contrato promessa mas sem direito a obter a restituição do sinal por abuso de direito do A.)  a situação dos presentes autos foi assim entendida (transcrição):

“Atenta a matéria de facto dada por este Tribunal como provada, as questões nucleares que importa dirimir são as da qualificação do negócio celebrado entre o Autor AA e o Réu BB, se o mesmo obedeceu às exigências de forma legalmente previstas e, não tendo tal ocorrido, se é legítimo ao Autor invocar a sua nulidade ou se age em abuso de direito.

O contrato-promessa consiste na convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam a celebrar determinado contrato, ou seja, o contrato prometido.

Face aos factos apurados sob as alíneas a) e b), resulta pacífico terem o Autor AA e o Réu BB celebrado um contrato-promessa de compra e venda de um prédio rústico sito em ..., na freguesia ..., concelho ..., composto de pinhal e mato: o Réu vinculou-se a vendê-lo e o Autor obrigou-se, por sua vez, a comprá-lo.

Ficaram as partes, consequentemente, vinculadas à prestação de um facto, mediante a emissão das necessárias declarações de vontade correspondentes ao contrato prometido.

Dispõe o art.º 410.º, n.º 1 do Código Civil, prevendo o regime que é aplicável ao contrato-promessa, que “à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa”.

Duas excepções são abertas, por conseguinte, ao denominado princípio da equiparação contemplado na primeira parte do citado normativo: a primeira, relativa à forma do contrato; a segunda, referente às disposições que, pela sua razão de ser, se não podem considerar extensivas ao contrato-promessa.

Quanto à primeira, exceptua desde logo o n.º 2 do art.º 410.º do Código Civil que se para o contrato prometido a lei exigir documento (seja ele autêntico ou particular), o respectivo contrato-promessa apenas é válido se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral.

Era o que sucedia e ainda hoje sucede para a venda de coisas imóveis, consoante decorre do art.º 875.º do Código Civil, de acordo com o qual, na redacção originária do Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro (em vigor à data em que o contrato-promessa de compra e venda foi celebrado, em 30 de Dezembro de 2004), “o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública”.

O escrito exigido para o contrato-promessa de compra e venda de imóveis é, pois, um requisito de validade, mesmo de existência, um documento ou formalidade ad substantiam e não, tão-só, ad probationem, motivo pelo qual não pode ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior, em conformidade com o disposto nos artigos 364.º, 392.º e 393.º, todos do Código Civil, nem por confissão ou acordo, atento o prescrito pelo art.º 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

Ora, logrou demonstrar-se a este respeito a promessa meramente verbal de alienar o dito imóvel e a aceitação de tal promessa [facto apurado sob a alínea b)].

Consequentemente, não tendo as partes celebrado o contrato-promessa pela forma legalmente imposta, sobrevém a sua invalidade, ferindo o art.º 220.º do Código Civil de nulidade os negócios que careçam da forma legalmente prescrita, quando não seja outra a sanção especialmente prevista na lei.

A nulidade, uma das formas de invalidade dos negócios jurídicos, é invocável a todo o tempo, por qualquer dos interessados e é de conhecimento oficioso pelo tribunal (art.º 286.º do Código Civil), assim se distinguindo, entre outros elementos distintivos, da anulabilidade (art.º 287.º do Código Civil). Enquanto a anulabilidade carece de ser declarada judicialmente, depois de invocada pelas pessoas com legitimidade para o efeito, a nulidade opera ipso iure, por mero efeito da falta ou vício do elemento que a provoca, podendo inclusivamente ser conhecida e declarada ex officio.

Aduziu ainda assim o Réu BB, na sua contestação, que as declarações por si apostas nos cheques datados de 30 de Dezembro de 2004 e 6 de Novembro de 2007, recebidos do Autor e sendo cheques deste e por este assinados, consubstanciariam a redução a escrito exigida pelos mencionados artigos 410.º, n.º 2 e 875.º do Código Civil.

É certo que logrou demonstrar-se que para pagamento do preço acordado de 43.750 €, o Autor entregou ao Réu BB, em 30 de Dezembro de 2004 e em 6 de Novembro de 2007, respectivamente, os cheques n.ºs ...52 e ...07, ambos do Banco 1..., por si assinados, o primeiro no montante de 5.000 e o segundo no montante de 2.500 € [factos provados nas alíneas c) e l)].

Por outro lado, provou-se, outrossim, que o Réu, para além de assinar o primeiro cheque, escreveu nele “Eu BB recebi de AA cheque n.º ...52 do BNC de 5.000 euros cinco mil euros por conta de um pinhal em ... freguesia ... que vendi por 43.750 euro, ao que passo a escritura e receber o restante”, tendo também, no cheque datado de 6 de Novembro de 2007, aposto por escrito a declaração “recebi em 6/11/2007 2.500,00 euros por conta do pinhal ...” [alíneas x) e m) da matéria de facto provada].

Tem-se entendido que a exigência legal de documento não significa a imposição da unicidade material desse documento, não sendo, assim, indispensável a concentração das declarações negociais e das assinaturas dos seus autores e promitentes num único e mesmo escrito, podendo resultar da conjugação de vários documentos, sendo que nas promessas bilaterais as assinaturas dos contraentes podem incluir-se em documentos recíprocos ou paralelos (neste sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, Ano 119, pág. 320, Vaz Serra, “Revista de Legislação e Jurisprudência”, Ano 109, pág. 71, Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português – Direito das Obrigações”, Vol. II, Tomo II, 2010, pág. 337, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/2003, C.J., Tomo I, pág. 10, de 12/03/1996, C.J., Tomo I, pág. 141, e de 11/04/1985, B.M.J., n.º 346, pág. 221, o Acórdão da Relação de Coimbra de 21/05/2013, processo n.º 37/09.4TBCVL.C1, e o Acórdão da Relação do Porto de 10/12/2019, processo n.º 519/16.1T8PVZ.P1, ambos in www.dgsi.pt).

Todavia, no que respeita às assinaturas do Autor nos referidos cheques, as mesmas encontram-se unicamente apostas em tais títulos de crédito sem incorporação de qualquer pretensão, intenção ou declaração da sua parte, consubstanciando assinaturas de meros meios de pagamento das quantias em dinheiro neles inscritas, a transferir para o Réu a título de sinal [parte inicial da alínea c) dos factos provados].

Por outro lado, a interpretação das declarações apostas pelo Réu nos referidos cheques deve ser feita “com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele” (art.º 236.º, n.º 1 do Código Civil), a menos que a vontade real do declarante seja conhecida do declaratário (n.º 2 do mesmo artigo), sem esquecer que estaria em causa um negócio formal (o citado art.º 410.º do Código Civil), não podendo valer o sentido da declaração que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art.º 238.º, n.º 1 do Código Civil).

À luz de tais regras de interpretação do negócio jurídico, afigura-se-nos claro que as declarações apostas pelo Réu BB nos sobreditos cheques de 30 de Dezembro de 2004 e de 6 de Novembro de 2007 configuram meras declarações de quitação das quantias de 5.000 € e de 2.500 €, não tendo a virtualidade de o obrigar a qualquer promessa, nem sequer unilateralmente (aqui nos termos do art.º 411.º do Código Civil).

Seria sempre necessário para este fim, obviamente, um escrito em que o contraente manifestasse a sua vontade e indicasse as condições do futuro contrato, o que manifestamente não ocorreu com os cheques n.ºs ...52 e ...07.

Diga-se, inclusivamente, que as referidas menções escritas do Réu são em tudo semelhantes às apostas nos cheques datados de 16 de Junho, 26 de Agosto e 20 de Dezembro de 2005, [alíneas f), h) e j) dos factos provados], também elas evidentes declarações de quitação.

Em suma, não podem os referidos cheques considerar-se como documento para efeitos do art.º 410.º, n.º 2 do Código Civil, também não corporizando qualquer venda ou mera promessa unilateral, conforme aventou o Autor a título subsidiário (no articulado de fls. 91 a 97).

Aliás, resulta inequivocamente da matéria de facto provada na alínea b) que está em causa um contrato-promessa bilateral, visto que o Autor e o Réu BB são ambos promitentes. Como se disse, aquele vinculou-se a comprar o prédio rústico e este, por seu turno, a vendê-lo, tendo-se comprometido ambos com a celebração do contrato prometido.

Estando em causa nos presentes autos, consequentemente, um contrato-promessa bilateral de compra e venda, nulo por falta de redução a escrito (artigos 220.º, 410.º, n.ºs 1 e 2 e 875.º, todos do Código Civil), o conhecimento e declaração dessa nulidade imporia a restituição do montante de 28.730 € recebido pelo Réu BB [alíneas c), d), e), g), i) e l) da matéria provada], em conformidade com o estipulado nos artigos 286.º e 289.º, n.º 1 Código Civil.

Contudo, com vista a paralisar tal efeito jurídico pretendido pelo Autor, invocou o Réu BB o abuso de direito daquele.

Tal instituto do abuso de direito, genericamente previsto no art.º 334.º do Código Civil, visa evitar as consequências legais da aplicação de normas de direito objectivo quando o seu titular “exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Constitui a figura do abuso de direito, afinal, um reflexo do princípio da boa fé que deve nortear todos quantos intervenham em relações jurídicas. Daqui decorre que o exercício de um direito só poderá qualificar-se de abusivo quando seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, volume I, 4.ª edição, 1987, págs. 298 e 299).

É indiscutível que tem vindo a ser admitida, em determinadas circunstâncias e por aplicação do instituto do abuso de direito, a paralisação dos efeitos da nulidade do negócio por vício formal, desde que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa ao princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso do direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo, lesivo da boa fé (a título meramente exemplificativo, Carlos Alberto da Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4.ª edição, 2005, págs. 435 a 439, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2015, processo     n.º 796/08.1TVPRT.P1.S1, de 04/06/2013, processo n.º 994/05.0TBCNT.C1.S1, de 28/02/2012, processo n.º 349/06.8TBOAZ.P1.S1, de 29/11/2011, processo n.º 2632/08.0TVLSB.L1, e de 27/05/2010, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 19/12/2018, processo n.º 752/17.9T8LRA.C1, de 03/05/2016, processo n.º 1159/14.5TBCLD.C1, e de 23/11/1999, processo n.º 1452-99, e o Acórdão da Relação do Porto de 31/05/2001, processo n.º 0130619, todos in www.dgsi.pt).

A referência à boa fé tem, no citado art.º 334.º do Código Civil, um sentido objectivo ou normativo e, por isso, não é necessária a consciência de se estarem a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, bastando que sejam excedidos esses direitos. Assenta, essencialmente, no princípio da confiança, no sentido de que “as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” (Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, reimpressão da edição de 1999, 2006, pág. 55).

Apela o Réu BB neste domínio à variante do venire contra factum proprium, alegando que o Autor, de quem era amigo, era sabedor da circunstância da não redução a escrito do contrato-promessa poder implicar a sua nulidade, jamais lhe tendo dado a entender que iria invocá-la, quer pelas respostas que lhe ia dando quanto à celebração da escritura pública de compra e venda do prédio, quer pelo lapso de tempo decorrido, tendo ficado com a convicção de que o negócio iria ser cumprido e de que tinha o prédio vendido.

“A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprovabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé. A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/01/2003, processo n.º 02A2970, in www.dgsi.pt).

Logrou o Réu demonstrar, como lhe competia (art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil), que o Autor, com quem teve uma relação de amizade e em quem confiava, ao ponto de concluir com ele um qualquer negócio com um aperto de mão, sempre foi conhecido por se dedicar à compra e venda de imóveis e à construção civil e ainda que o Autor sabia que era necessária a redução a escrito do contrato-promessa entre ambos celebrado [factos provados em z), bb), cc) e ff)].

Ademais, apurou-se que tendo o contrato-promessa sido celebrado no dia 30 de Dezembro de 2004, o Autor não falou com o Réu sobre a nulidade do negócio antes de contra este ter sido movida pela sociedade “A..., Lda” (de quem o Autor foi gerente) uma acção declarativa na extinta Instância Central Cível ..., para os mesmos fins visados com a presente acção, ou seja, não foi aflorada entre as partes a temática da nulidade do contrato-promessa antes do ano de 2013, não obstante terem conversado sobre ele [alíneas o), p) a t), dd) e ee)].

Ora, o não exercício prolongado do direito de invocar a nulidade pode estar na base, precisamente, de uma situação de confiança criada na contraparte, em termos de esta, tal como uma pessoa normal colocada na posição de beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que o titular do direito não o exercerá.

Efectivamente, as pessoas, no exercício dos seus direitos e no cumprimento dos seus deveres, devem assumir um comportamento correcto e leal, não defraudando a confiança e as legítimas expectativas dos outros. “Pressuposto do abuso de direito, na invocada modalidade do venire contra factum proprium é, sempre, uma situação objectiva de confiança – uma conduta de alguém que possa ser entendida como posição vinculante em relação à situação futura – e o investimento na confiança pela contraparte e boa fé desta. Assim, o enquadramento objectivo da situação de confiança, em termos de relevância, afere-se pelo necessário para convencer uma pessoa normal e razoável, colocada na posição do confiante – arts. 236º-1 e 237º C. Civ. –, enquanto, como elemento subjectivo, releva a real adesão do confiante ao facto gerador da confiança” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/02/2012, processo n.º 349/06.8TBOAZ.P1.S1, in www.dgsi.pt, já acima mencionado).

Tendo em conta a longínqua data de celebração do contrato-promessa (em 30 de Dezembro de 2004), afigura-se-nos que o Réu, dada a relação de amizade e de confiança que mantinha com o Autor, terá precisamente interiorizado, de forma legítima, a convicção de que jamais o Autor colocaria em crise a validade do contrato-promessa celebrado, tanto mais que foram mantendo contactos e conversando sobre tal contrato-promessa [factos provados, como se disse, nas alíneas bb), cc) e dd)].

E o Autor foi entregando ao Réu um conjunto de cheques para entrega do sinal, o que comprovadamente ocorreu em 6 ocasiões distintas, entre o dia da celebração do contrato-promessa (em 30 de Dezembro de 2004) e o dia 6 de Novembro de 2007 [factualidade elencada nas alíneas c), d), e), g), i) e l) da matéria provada].

E só aquando da instauração contra os Réus de uma acção declarativa por parte da sociedade de que o Autor foi gerente (a já identificada “A..., Lda”) é que o Autor falou com o Réu sobre tal temática, o que, pelo número 2196/13.... de tal processo, terá ocorrido somente em 2013 [apreciação conjugada dos factos demonstrados em o) e ee)], ou seja, cerca de 9 anos depois da celebração do contrato-promessa.

Por outro lado, de 2013 até à instauração da presente acção decorreram entretanto cerca de 7 anos, o que, pela longínqua data da celebração do contrato-promessa (16 anos antes), terá reforçado ou feito renascer no Réu as suas expectativas de que o Autor não viria a invocar a invalidade do negócio, até porque, reitera-se, o Autor havia efectuado no passado um conjunto de pagamentos a título de sinal ou de antecipação do preço.

Tendo o Autor procedido a tais pagamentos e silenciado a temática da nulidade do contrato-promessa durante tanto tempo, a que acresce a circunstância de desde a anterior acção ter entretanto decorrido mais 7 anos, tendo existido uma relação de amizade e confiança entre as partes, afigura-se-nos que a invocação da nulidade formal do contrato-promessa só pode ter o propósito de o Autor se libertar de um vínculo que, na sua perspectiva, se tornou indesejável ou inconveniente, eximindo-se, até, à discussão sobre a responsabilidade pelo seu incumprimento.

No descrito circunstancialismo, essa pretensão colide manifesta e intoleravelmente com a boa fé e os bons costumes, contrariando e defraudando as legítimas expectativas e a confiança do Réu fundada nas referidas situações de facto.

Note-se que não estão já verdadeiramente em causa as razões que subjazem às exigências legais de forma: a liberdade e a ponderação na contratação, a comprovação do conteúdo do contrato e a eventual publicidade do acto. Como parece evidente, com a referida execução do contrato, através das sucessivas entregas de quantias a título de sinal ou antecipação do preço, ficou plenamente assegurada a ponderação das partes e a determinação do conteúdo do contrato, sendo certo que, no caso, não se discutem nem foram postos em causa interesses de terceiros.

O descrito circunstancialismo é, em suma, susceptível de objectivamente ter criado no Réu a convicção fundada de que se tratava de uma situação consolidada, assente numa relação estável e reciprocamente vinculante.

Nestas circunstâncias, a invocação da nulidade formal, ditada apenas pelo interesse do Autor em se desvincular do contrato, inclusivamente sem discutir a responsabilidade pelo seu eventual incumprimento, constitui autêntico venire contra factum proprium.

Consequentemente, colhe a argumentação a este respeito efectuada pelo Réu BB na contestação, com a sua consequente absolvição dos pedidos, obviamente extensível aos restantes Réus, tendo ficado prejudicada a apreciação da responsabilidade destes, enquanto meros sucessores de cônjuge do Réu BB que não interveio na celebração do contrato-promessa.

E fica prejudicada a apreciação dos pedidos subsidiários formulados pelo Autor, os quais assentavam, tal como foi já deixado em relevo, na hipótese de a declaração do Réu elencada na alínea x) dos factos provados consubstanciar um contrato de compra e venda ou um contrato-promessa unilateral.

E dúvidas também não restam de que nunca estaria em causa um enriquecimento sem causa (instituto previsto no art.º 473.º do Código Civil), conforme igualmente vazado pelo Autor nos autos a título subsidiário, pois as transferências de dinheiro tiveram como causa a indiscutível celebração entre as partes do contrato-promessa e o propósito do Autor de pagar o sinal ou antecipar o preço acordado.

Deduziu o Réu BB a sua reconvenção, como vimos, à qual aderiram os co-Réus CC, DD e FF, propugnando pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte do Autor-reconvindo AA, pedindo que fosse decretada a resolução daquele contrato-promessa e a condenação do Autor-reconvindo a reconhecer que o Réu-reconvinte BB tem o direito de fazer sua a quantia de 28.730 € que lhe foi entregue a título de sinal.

Ora, a apreciação e a resposta a este pedido reconvencional já decorre da avaliação do mérito da acção, anteriormente efectuada.

Efectivamente, tendo em conta as considerações acima tecidas, assente que está em causa um contrato-promessa bilateral de compra e venda, nulo por falta de redução a escrito (artigos 220.º, 410.º, n.ºs 1 e 2 e 875.º, todos do Código Civil), deixa de fazer sentido a apreciação de uma eventual resolução, por incumprimento definitivo do Autor-reconvindo.

Tal questão pressupunha, evidentemente, a validade do contrato-promessa, o que não sucede, pelos motivos acima enunciados.

Caso se viesse a concluir pela nulidade do contrato-promessa, peticionou ainda o Réu-reconvinte a condenação do Autor-reconvindo no pagamento da quantia de 15.000 €, a título de indemnização pelos prejuízos causados pela respectiva actuação culposa [cfr. artigos 48.º a 53.º da reconvenção e segunda parte da alínea c) do pedido reconvencional].

Tais prejuízos serão, ao que parece, de natureza exclusivamente não patrimonial, pelo alegado desgaste, desgosto, nervosismo e revolta a que a actuação do Autor-reconvindo terá dado origem. Pelo menos, não alegou o Réu-reconvinte qualquer dano patrimonial decorrente da falta de exploração do prédio prometido vender ou da circunstância de ter perdido a possibilidade de o vender a outros interessados.

Tem sido debatido o problema de saber se a indemnização dos danos não patrimoniais se estende ao campo da responsabilidade contratual ou se, pelo contrário, está confinada na nossa lei ao domínio da responsabilidade extracontratual, dita delitual ou aquiliana.

Rege o art.º 496.º do Código Civil em matéria atinente aos danos de tal natureza, tendo o legislador civil aí acolhido o respectivo ressarcimento, limitando-o, porém, àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Ademais, nos artigos 798.º e 804.º, n.º 1, do Código Civil impõe-se ao devedor, por incumprimento do contrato ou por mora, a obrigação de reparar o “prejuízo” ou “os danos causados” ao credor, sem qualquer distinção ou limitação.

Assim, subscrevendo-se o entendimento segundo o qual no âmbito contratual devem ter-se por incluídos danos de qualquer natureza, inclusive não patrimoniais (no mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/1995, B.M.J., n.º 445, pág. 487, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 27/01/2004, processo n.º 199/2004-7, in www.dgsi.pt, de 17/10/1995, C.J., Tomo IV, pág. 116, e de 17/06/1993, C.J., Tomo III, pág. 129, os Acórdãos da Relação do Porto de 05/02/2001, C.J., Tomo I, pág. 205, e de 04/02/1992, C.J., Tomo I, pág. 232, Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 108.º, pág. 221, Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 5.ª edição, págs. 485 e 486, Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, 6.ª edição, pág. 383, e Pessoa Jorge, “Direito das Obrigações”, volume I, pág. 576), sempre cumpriria ao Réu-reconvinte, em todo o caso, o ónus da prova dos danos (art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil).

Porém, soçobrou a demonstração da matéria de facto alegada a tal respeito na reconvenção [factos não provados sob as alíneas e), f) e h)], decaindo, por via disso, a possibilidade de condenação do Autor-reconvindo no pagamento de quantia indemnizatória.”


26.2. Por sua vez o Tribunal da Relação entendeu dever manter os factos provados e não provados inalterados, tendo, em seguida, passado a conhecer da questão jurídica suscitada – em especial, a de saber se houve abuso de direito – tendo concluído que não.

E disse:

“Mostram-se, em tese, acertadas e curiais as observações plasmadas no atinente à figura do abuso de direito, rectius na sua modalidade do venire.

Mas, precisamente perante estas asserções, entendemos, numa exegese que consideramos mais adequada e sagaz do acervo factual apurado, que esta figura, na aludida modalidade, não pode, no caso sub judice, ser tida como presente.

Efetivamente, a figura do abuso de direito é uma válvula de escape do sistema jurídico que tem por fito obstar a soluções, que, se apenas oriundas da seca, rígida e estrita perspetivação das normas legais, se assumiriam de tal modo injustas que atingiriam o patamar da iniquidade e imoralidade.

Destarte, não é qualquer solução legal, se admissivelmente alicerçada e escorada numa possível interpretação e aplicação de uma norma jurídica, mesmo que seja discutível, e, até, possa ser suscetível de não consecutir com o rigor ou amplitude exigíveis a justiça do caso, que permite ou clama o chamamento da figura/instituto do abuso de direito.

Assim, a conduta que tem virtualidade de consubstanciar este abuso não pode ser uma qualquer, injusta, desadequada ou desproporcionada até.

Antes se tendo de assumir como manifestamente ou clamorosamente contrária a certas normas ou princípios jurídicos, como a boa fé, intoleravelmente inquinadora dos bons costumes, ou inadmissivelmente desproporcionada atento o fim social ou económico do direito em dilucidação.

Ademais, na modalidade do venire contra factum proprium, exige-se, como bem se explana na sentença, que a conduta «atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito…»

E mais se exigindo uma conduta que demonstre à outra parte, e como outrossim se alude na sentença, uma «posição vinculante em relação à situação futura»

Ora para que se conclua por tal exigência de linearidade e congruência, mister se torna que a conduta assuma uma inequivocidade e/ou duração ou reiteração tais que clame a conclusão de que o invocante do abuso ficou convencido que a outra parte necessariamente se vincularia a uma atuação futura em conformidade e consonância com o comportamento antes assumido.

Assim sendo, e no caso vertente, conclui-se que os factos provados não são os bastantes para preencherem estes requisitos ou exigências.

O julgador relevou essencialmente o tempo decorrido entre a celebração do contrato e a invocação da nulidade através da sociedade – cerca de 09 anos -, as relações de amizade entre o autor e o réu BB, e o facto de eles ao longo dos anos terem continuado a falar sobre o contrato e o autor não ter indiciado que poderia invocar a sua nulidade.

Mas este acervo factual, em função das aludidas necessárias exigências, não basta. A invocação da nulidade, por preterição de requisitos formais ad substantiam de um contrato é, liminarmente e em princípio, um direito que pode ser exercido livre e incondicionadamente.

Logo, para que tal direito possa ser tolhido, vg. ao abrigo do abuso de direito na modalidade do venire, urge a verificação, clara, bastante, e com o grau de gravidade exigível, dos mencionados requisitos, os quais, como se viu, apenas emergem se a conduta atingir um elevado patamar de contradição ou incongruência.

Este patamar não está demonstrado pelos factos apurados, rectius os invocados pelo Julgador.

O decurso do tempo, sem mais e só por si, sem que se provasse ter havido uma clara indicação de que o autor atuou de tal modo que, direta ou indiretamente, convenceu o réu de que não invocaria a nulidade, não é suficiente, já que reitera-se, o autor está a exercer um direito.

E tal prova não foi consecutida.

Antes os restantes factos nucleares invocados pelo Sr. Juiz indiciam em sentido contrário ao por ele concluído, ou, no mínimo, lançam muitas e insanáveis dúvidas sobre o que realmente se passou.

Assim, o facto de as partes serem amigas e confiarem um no outro, permite a conclusão que muitas hipóteses e possibilidades eles aventaram quanto ao tempo e modo de celebração do contrato.

Tanto assim que se provou que sobre esta temática iam falando – facto dd).

Mas de tal factualismo, não é lícito e adequado retirar a ilação de que o autor demonstrou ao réu que prescindia do seu direito de invocar a nulidade e que o réu ficou convencido de que assim seria no futuro.

Seria necessário ainda a prova de concretos factos que convencessem, para lá da dúvida razoável, nesse sentido. E não foram.

Note-se, vg., que o facto provado em ee) é inócuo.

O não ter falado sobre a nulidade, não significa que o autor tenha renunciado ao seu direito a invocá-la.

O silêncio apenas vale como declaração negocial, quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção – artº 218º do CC.

À declaração tácita apenas pode ser atribuído um concreto sentido ou significado quando estes possam, com toda a probabilidade retirar-se de factos praticados pelo declarante – artº 217º nº1 do CPC.

E no caso vertente não se antolha ou vislumbra qualquer um destes requisitos que permita atribuir ao silêncio ou a qualquer atuação ou ato do autor o sentido da renúncia à invocação da nulidade e/ou que o réu BB de tal ficasse convencido.

Decorrentemente, não se tem por sustentável o entendimento vertido na sentença de que do tempo decorrido e de tal amizade: «o Autor, terá precisamente interiorizado, …a convicção de que jamais o Autor colocaria em crise a validade do contrato-promessa celebrado, tanto mais que foram mantendo contactos e conversando sobre tal contrato-promessa».

Sendo, aliás, de notar que nem o próprio julgador ficou convencido de que, real e efetivamente, o réu interiorizou que o autor não mais invocaria a nulidade; mas antes e apenas que, porventura ou eventualmente, «terá interiorizado».

Ora esta possibilidade não basta, em direito, para alicerçar uma decisão. Urge a prova, objetiva e assertiva, de um facto concreto.

Enfim, a solução da nulidade é a que, porventura, melhor realiza a justiça deste caso. Pois que coloca as partes na situação existente antes do contrato, tudo se passando como se ele não tivesse sido anuído.

O que, perante a dúvida e nebulosidade de tudo aquilo que se passou, se revelará até a solução mais equitativa, porque a que melhor protege o justo equilíbrio dos interesses em presença.

Sendo de notar que o réu invocou, mas não provou, o incumprimento contratual do autor, desde logo por violação do dever deste em marcar a escritura.

Dever este que é o mais inverosímil, por decorrência das regras da experiência comum, pois que a marcação da escritura exige documentos e uma possível atuação, os quais, aqueles, normalmente estão em poder do promitente vendedor, e, esta, et pour cause – passe o galicismo -, melhor por este pode ser efetivada.

Por conseguinte, não se sabendo qual das partes incumpriu, se é que alguém, culposa e exclusivamente, incumpriu, o mais justo é colocá-las no statu quo ante ao contrato.

Pois que se assim não fosse o réu ficaria locupletado com o valor já entregue pelo autor, e do qual, aliás, ele já usufruiu ao longo destes anos.

E, assim, ao menos com maior probabilidade, sairia frustrada a consecução da aludida solução equitativa e equilibrante do caso.”


26.3. A leitura das decisões judiciais transcritas permite identificar a divergência das instâncias quanto à questão do abuso de direito do A., considerando o Tribunal da Relação que os factos provados não permitem identificar aqui um abuso mas apenas o exercício de um direito do A.

Perante os mesmos factos dois tribunais têm uma posição oposta: um considerando que o comportamento do A. é abusivo, outro que o dito comportamento se encontra dentro dos padrões de normalidade do exercício do seu direito.


26.4. O recorrente BB defende que o Tribunal a quo errou na aplicação do direito aos factos, devendo considerar-se que o A. actuou em abuso de direito, como se decidira na sentença, por estarem presentes elementos suficientes e claros do referido abuso.


Que dizer?

A nosso ver a razão está do lado do tribunal de 1ª instância e do recorrente BB.

Os factos provados relevantes para o referido efeito são os seguintes:

b) No dia 30 de Dezembro de 2004, o Réu BB prometeu verbalmente vender ao Autor AA e este prometeu comprar o prédio identificado na alínea a), pelo montante de 43.750 €.

c) Para o pagamento do montante acordado, nesse mesmo dia 30 de Dezembro de 2004, o Autor entregou ao Réu BB o cheque n.º ...52, do Banco 1..., por si assinado, no montante de 5.000 €.

d) No dia 23 de Fevereiro de 2005, o Autor entregou ao mesmo Réu o cheque n.º ...91, igualmente do Banco 1..., por si assinado, no montante de 8.730 €.

e) No dia 16 de Junho de 2005, o Autor entregou ainda ao Réu o cheque n.º ...40, também do Banco 1..., por si assinado, no montante de 5.000 €.

f) O Réu BB escreveu nesse cheque “recebi 5.000,00 em 16/6/2005”.

g) No dia 26 de Agosto de 2005, o Autor entregou também ao Réu o cheque n.º ...21, igualmente do Banco 1..., por si assinado, no montante de 5.000 €.

h) O Réu escreveu nesse cheque “recebi em 26/8/2005 5.000,00”.

i) No dia 20 de Dezembro de 2005, o Autor entregou ainda ao Réu o cheque n.º ...23, igualmente do Banco 1..., por si assinado, no montante de 2.500 €.

j) O Réu escreveu nesse cheque “recebi o cheque ...52.3 em 20/12/2005”.

l) No dia 6 de Novembro de 2007, o Autor entregou também ao Réu o cheque n.º ...07, novamente do Banco 1..., por si assinado, no montante de 2.500 €.

m) O Réu escreveu nesse cheque “recebi em 6/11/2007 2.500,00 euros por conta do pinhal ...”.

o) A sociedade “A..., Lda” intentou uma acção declarativa contra o Réu BB, na extinta Instância Central Cível ..., onde correu termos sob o n.º 2196/13.... (em que foram habilitados como sucessores de EE, para além do Réu BB, também os Réus CC e DD), pedindo a declaração de nulidade do contrato-promessa de compra e venda celebrada com o Réu BB em 30 de Dezembro de 2004 e a condenação dos Réus na restituição da quantia de 28.730 €, acrescida de juros de mora, desde a citação, até integral pagamento.

z) O Autor sempre foi conhecido e é conhecido por se dedicar à compra e venda de imóveis e à construção civil.

bb) O Autor e o Réu BB tinham uma relação de amizade.

cc) Confiando um no outro, ao ponto de concluírem um qualquer negócio com um simples aperto de mão.

dd) Desde a data da entrega do cheque mencionado na alínea c) até à acção judicial identificada na alínea o) que o Autor e o Réu BB foram mantendo contactos, conversando sobre o acordo aludido em b).

ee) O Autor não falou com o Réu BB da nulidade do contrato-promessa antes da propositura da acção identificada na alínea o).

ff) O Autor sabia que era necessário reduzir a escrito a promessa de compra e venda.


Destes factos resulta, a nosso ver, uma situação de confiança prolongada no tempo – quer na vertente da existência do contrato, com vários pagamentos a serem realizados em momentos temporalmente distintos –, quer na vertente de o mesmo não se apresentar inválido formalmente ou dessa invalidade vir a ser apresentada como fundamento de inviabilização do negócio pretendido – pois só em 2013 a invalidade é chamada à colação – , quando o A. é um profissional no ramo da compra e venda de imóveis e não podia deixar de saber que o contrato promessa era inválido, invalidade que não invoca em tempo útil (i.e, logo que dela se apercebe), efectuando pagamentos em momentos sucessivos; uma confiança que é também fruto de uma relação de amizade, ao ponto de vir provado que a A. e o R. seriam capazes de “concluírem um qualquer negócio com um simples aperto de mão”.

Com estes factos, não se compreende a decisão do tribunal a quo ao considerar tratar-se do exercício de um direito o A. (invocar a nulidade do contrato, que a si também é imputável e que só a si aproveita), pois do exercício desse direito a todo o momento e sem prazo decorre a possibilidade de desrespeitar a confiança do réu BB, com quem contratou numa base de negócio (profissional) mas também de amizade, sem que se saiba porque não invocou mais cedo essa invalidade ou até porque começou por o fazer através de uma acção intentada contra o Réu através de uma sociedade na qual tinha intervenção e, porventura, interesses (era gerente).

A tutela imposta pelo art.º 334.º do CC permite o entendimento veiculado, que se encontra em conformidade com o entendimento jurisprudencial do STJ, conforme se passará a exemplificar.


26.5. No mesmo sentido de haver abuso de direito e de o mesmo se poder caracterizar por haver violação da confiança, cf. a jurisprudência deste STJ, referida no acórdão de 21/06/2022, relativo ao processo 3762/18.5T8AVR.P1.S1[1] onde se lê:

“Conforme Ac. do STJ de 12-11-2013, no Proc. nº 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, “O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte”.

O comportamento contraditório fundamento do abuso de direito, na modalidade - venire contra factum proprium – tem como pressupostos:

- A existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança;

- A imputabilidade das duas condutas (anterior e atual) ao agente;

- A boa fé do lesado (confiante);

- A existência de relação de confiança, resultante duma atividade com base no factum proprium;

- Que da contradição resulte dano para o confiante.

A proibição do "venire contra factum proprium" reconduz-se à doutrina da confiança, pressupondo, como elemento subjetivo, que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança.”


Ou ainda no proc. 11/13.6TCFUN.L2.S1, onde foi proferido acórdão do STJ de
24-02-2022
[2], onde se explicita o sentido do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium:

“Conforme se extrai da jurisprudência deste Supremo Tribunal, tem sido admitido que, em situações excepcionais, se afirme a inalegabilidade de vício formal de um acto jurídico decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respectiva celebração, com base em razões de interesse público ou outras, regiam a forma/formalidade do acto, sublinhando-se, porém, que tal solução tem de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se de modo a desconsiderar, de modo sistemático, o conteúdo da norma imperativa que prescreve tal exigência. Acompanhamos aqui, de perto, a fundamentação do acórdão do STJ de 17-03-2016[5] (proc. n.º 2234/11.3TBFAF.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt. Cfr., no mesmo sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 11-09-2012 (proc. n.º 3843/07.0TCLRS.L1.S1), de 04-06-2013 (proc. n.º 2246/08.4TBVCT.G1.S1), de 04-07-2013 (proc. n.º 2050/11.2TBVFR.P1.S1), de 29-01-2014 (proc. n.º 415/10.6TBGMR.G1.S1), de 09-07-2015 (proc. n.º 796/08.1TVPRT.P1.S1), de 07-03-2019 (proc. n.º 499/14.8T8EVR.E1.S1) e de 19-09-2019 (proc. n.º 3493/16.0T8LRA.C1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt e www.stj.pt.

A inalegabilidade de vícios formais por via do abuso do direito, consagrado no artigo 334.º do Código Civil, tem sido afirmada nas seguintes situações:

(i) Quando seja claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito das regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada ou a adopção de determinada formalidade, obstando a que possa vir invocar um vício que ela própria causou com o seu comportamento no momento da celebração do negócio, agindo de modo preterintencional ou, pelo menos, com culpa grave;

(ii) Quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduz num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer pontos ou focos de litigiosidade relevante, assumindo as mesmas, por inteiro, os direitos e obrigações dele emergentes, criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que não se invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto (cfr. a fundamentação do referido acórdão do STJ de 17-03-2016, que aqui se vem seguindo de perto).

Este tema foi também abordado, de forma aprofundada, no acórdão de 30-10-2003[6] (proc. n.º 3125/03), disponível em www.dgsi.pt, no qual se deixou dito que, da expressão “manifestamente”, ínsita no artigo 334.º do CC, se infere que:

«[O] exercício de um direito só poderá taxar-se de abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou, o mesmo é dizer, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.

Prevê aquele artº. 334º, sobremaneira, a boa fé objectiva: não versa sobre factores atinentes, directamente, ao sujeito, mas antes elementos que, enquadrando o seu comportamento, se lhe contrapõem. (…)

E assenta, essencialmente, no princípio (cláusula geral) de que "as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” .

Princípio esse - vulgarmente denominado de princípio da confiança - que reside no pressuposto ético-jurídico fundamental de que "a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem. Assim tem de ser, pois poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens. (…)

Tal acontece, designadamente, com aquelas condutas que denunciam a posição do agente perante certo assunto e que, com base na coerência esperada de quem se auto-apresenta com certa identidade pessoal, igualmente geram expectativas nos outros.

É aqui que entronca a proibição do venire contra factum proprium, isto é, do exercício do direito por alguém "em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado".

"A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprobabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé. A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito".

Haverá, por isso, para a concretização do abuso e determinação dos limites da boa fé, "que atender de modo especial às condenações ético-jurídicas dominantes na colectividade. (…).

Constata-se, por exemplo, uma situação de venire contra factum proprium quando uma pessoa, em termos que, especificamente, a não vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e depois o pratique, ou quando uma pessoa, de modo a não ficar especificamente adstrita, declare avançar com certa actuação e depois se negue. O venire contra factum proprium é, assim, o assumir de comportamentos contraditórios que violam a regra da boa fé e é dotado de carga ética, psicológica e sociológica negativa».”


26.7. Assim, e em síntese, a adoptar-se o critério indicado no acórdão por último citado, no caso dos autos, teríamos:

i) Como correspondente ao requisito “(i)Quando seja claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito das regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada ou a adopção de determinada formalidade, obstando a que possa vir invocar um vício que ela própria causou com o seu comportamento no momento da celebração do negócio, agindo de modo preterintencional ou, pelo menos, com culpa grave” os factos z) (O Autor sempre foi conhecido e é conhecido por se dedicar à compra e venda de imóveis e à construção civil.) e ff) (O Autor sabia que era necessário reduzir a escrito a promessa de compra e venda.)

ii) Como correspondente ao requisito “(ii) Quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduz num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer pontos ou focos de litigiosidade relevante, assumindo as mesmas, por inteiro, os direitos e obrigações dele emergentes, criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que não se invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto (cfr. a fundamentação do referido acórdão do STJ de 17-03-2016, que aqui se vem seguindo de perto)” os factos b)(relativo à celebração do contrato verbal), c) a m (relativos a pagamentos realizados entre 30 dezembro de 2004 e  finais de 2007, com indicação da respetiva quitação e objecto, em parte deles), os relativos à relação de especial confiança entre A. e Réu abília (facto bb e cc), o tempo que mediou entre a a celebração do contrato e a invocação da nulidade por falta de forma (de 2004 a 2013 – facto dd), sem o A. tivesse aludido à invalidade no ínterim, apesar de falar com o R. sobre o negócio – dd) e ee), seguindo-se a este longo período a propositura de uma acção contra o R, pelo A. através de uma sociedade na qual exercia funções  - conforme facto o) (A sociedade “A..., Lda” intentou uma acção declarativa contra o Réu BB, na extinta Instância Central Cível ..., onde correu termos sob o n.º 2196/13.... (em que foram habilitados como sucessores de EE, para além do Réu BB, também os Réus CC e DD), pedindo a declaração de nulidade do contrato-promessa de compra e venda celebrada com o Réu BB em 30 de Dezembro de 2004 e a condenação dos Réus na restituição da quantia de 28.730 €, acrescida de juros de mora, desde a citação, até integral pagamento.)

Envolvendo o comportamento do A. “proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito”, justificando-se que se considere actuar em abuso de direito, não podendo invocar a nulidade por falta de forma, nem os direitos que peticiona.


26.8. Finalmente, ainda que a situação fáctica seja diversa, não podemos de deixar de chamar à atenção para o raciocínio jurídico que fundamenta a decisão adoptada pelo STJ no processo 5261/20.6T8BRG.G1.S1, de 26/10/2022[3], onde o STJ reconheceu o abuso de direito, mais uma vez, a partir da interpretação do art.º 334.º do CC, quando o comportamento de um dos intervenientes é manifestamente oposto à convicção criada na contraparte, estando em causa um vício formal do acordo, que o invalidaria, e cuja invalidade é invocada dentro dos prazos legais e respectivas condições mas em contravenção à confiança criada na contraparte, ocorrendo uma inalegabilidade do vício formal do negócio.


27. No que respeita à invocada violação dos art.ºs 2068º e 2074º do CC, atenta a posição expressa no sentido de ocorrer abuso de direito do A., não se podendo assim confirmar a condenação proferida pelo tribunal recorrido, fica prejudicada a sua análise.


III. Decisão

Pelos fundamentos indicados é concedida a revista, repristinando-se a sentença.

Custas pelo recorrido, por ter ficado vencido nos recursos.


Lisboa, 10 de Janeiro de 2023


Fátima Gomes (Relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto Oliveira

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[1] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c1cb662d1d1cfd068025886800590633?OpenDocument
[2]http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/857c00f2fe1e90b4802587f3006d2126?OpenDocument.
[3] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/960d138417b4ee33802588e70049c8c0?OpenDocument