Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5874/15.8T8LSB.L1-A.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
SECÇÕES DE COMÉRCIO/SECÇÕES CÍVEIS
PROCESSO DE REVITALIZAÇÃO DE EMPRESAS
INCUMPRIMENTO DO PLANO DE PER
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/01/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - PLANO ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO.
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - TRIBUNAIS JUDICIAIS / COMPETÊNCIA - TRIBUNAIS JUDICIAIS DE PRIMEIRA INSTÂNCIA / JUÍZOS DE COMÉRCIO / JUÍZOS CENTRAIS CÍVEIS.
Legislação Nacional:
LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO, LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ): - ARTIGOS 117.º, 128.º.
Sumário :
I. A criação de secções dos tribunais judiciais de 1ª instância com competência especializada visa proporcionar melhores condições para a correcta e célere apreciação das matérias em causa.

II. A apreciação da competência material dos tribunais afere-se em função do pedido e da causa de pedir expostos na petição inicial em confronto com as normas delimitadoras da competência.

III. Às Secções de Comércio é atribuída, além do mais, competência para a apreciação dos processos especiais de revitalização (PER), em cuja regulamentação não se prevê, ao menos de modo expresso, qualquer mecanismo destinado à verificação e declaração posterior do incumprimento do plano judicialmente homologado.

IV. A acção na qual o A. pede o reconhecimento de que a R., que foi submetida ao PER, não cumpriu o Plano que foi judicialmente homologado não se integra em qualquer das previsões do art. 128º da LOSJ, sendo por isso da competência residual da Secção Cível.

Decisão Texto Integral:

I - AA Bank, PLC, Suc. em Portugal, e Banco BB (Portugal), S.A., vieram, em 2-3-15, propor contra CC, S.A., acção declarativa com processo comum.

Alegaram que, sendo credores comuns da R., reclamaram os respectivos créditos no âmbito do processo especial de revitalização de que a mesma foi objecto, no qual veio a ser aprovado e judicialmente homologado, em 24-2-14, um plano de recuperação.

Em consequência dessa homologação, os AA. e demais credores converteram-se em accionistas de uma nova sociedade comercial, denominada DD, S.A., que veio a ser registada, em 3-4-14, junto da CRC, com um capital de € 9.424.643,00, correspondente aos créditos comuns que haviam sido reclamados, capital que seria realizado em espécie mediante a transferência dos activos da CC, S.A., e da EE

Após a constituição dessa nova sociedade realizou-se uma reunião, na qual esteve presente um conjunto de representantes de parte dos credores comuns da R., entretanto accionistas da nova sociedade DD, S.A., a fim de serem analisados determinados pontos, tendo sido posição maioritária não aceitarem ser accionistas de uma sociedade involuntariamente constituída. Apesar disso, concluiu-se que o valor dos activos carecia de ser avaliado, impondo-se, para o efeito, o fornecimento de determinadas informações por parte da R. e da empresa responsável pela elaboração do plano de revitalização.

Solicitadas tais informações, a R. não disponibilizou os elementos necessários e o ROC também recusou prestá-los por considerar que os mesmos só poderiam ser fornecidos pelo Conselho de Administração da R. Em consequência, os ditos activos nunca chegaram a ser transferidos para a esfera da DD, S.A., pelo que esta não tem qualquer valor, o seu capital nunca foi realizado, e os accionistas estão impossibilitados de obter o pagamento dos seus créditos, mostrando-se incumprido, desse modo, o plano de recuperação.

Dizem, ainda, que o valor dos activos aí indicado não corresponderá ao seu valor efectivo o que igualmente consubstancia um incumprimento do PER.

Concluem pedindo:

- O reconhecimento judicial do incumprimento definitivo da obrigação da entrega de informação referente aos activos a serem transmitidos para a DD, S.A., e que iriam realizar o respectivo capital social nos exactos termos definidos no PER;

- O reconhecimento judicial do incumprimento definitivo da obrigação de transmissão para a titularidade da DD, S.A., dos quatro ativos que iriam realizar o respectivo capital social, nos termos previstos no PER;

- Em consequência, o reconhecimento judicial do incumprimento definitivo do PER por parte da Ré;

- Também em consequência, a declaração judicial de dissolução e extinção da DD, S.A., e o inerente reconhecimento da qualidade das AA. como credoras da aqui Ré, no valor de € 2.387.609,51 e € 458.064,19, respectivamente.

Caso assim não se entenda, requerem:

 - O reconhecimento judicial do incumprimento definitivo do PER por parte da Ré, em face da incorrecta avaliação dos activos a serem transferidos para a DD, S.A., prevista no Plano de Revitalização;

- E em consequência, a declaração judicial de dissolução e extinção da DD, S.A., e o inerente reconhecimento da qualidade das AA. como credoras da aqui Ré, no valor de € 2.387.609,51 e € 458.064,19, respectivamente.

Caso assim não se entenda, requerem ainda que seja a R. condenada na disponibilização de elementos inerentes aos quatro activos melhor identificados no art. 19º da p.i., a serem transmitidos para a esfera da DD, S.A.;

Subsidiariamente, pedem que, em face do vazio legal inerente à formalização da constituição da sociedade DD, S.A., bem como da não aceitação da qualidade de accionistas por parte da maioria dos credores comuns, se declare que credores comuns identificados no Plano de PER da R. têm a qualidade de accionistas, com vista à formalização da constituição da sociedade e à prossecução das obrigações que impendem sobre os accionistas.

Contestou a R., arguindo a incompetência do tribunal em razão da matéria, alegando que tal competência, considerados todos os pedidos, pertence à Secção de Comércio da Comarca de Lisboa, pois estão em causa questões relativas a um processo especial de revitalização (a transmissão de activos de uma sociedade para outra, a dissolução de uma sociedade já constituída e a avaliação de direitos sociais).

Os AA. defenderam a improcedência de tal excepção.

Na 1ª instância foi julgada procedente a excepção de incompetência material, sendo a R. absolvida da instância, decisão que, no entanto, foi revogada pela Relação que, com um voto de vencido, julgou improcedente a referida excepção e determinou o prosseguimento dos autos.

A R. interpôs recurso de revista em que insiste na verificação da excepção de incompetência material.

Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II – Decidindo:

1. Importa unicamente decidir se a competência para a apreciação do mérito da presente acção se inscreve na esfera residual da Secção Cível da Comarca de Lisboa, como decidiu a Relação e defendem as AA., ou se é de atribuir à Secção de Comércio, como decidiu a 1ª instância e pretende a R.


2. À criação de secções especializadas para a apreciação de determinados litígios em função da matéria preside a ideia de que essa especialização é vantajosa, uma vez que potencia as possibilidades de uma mais acertada e célere decisão proporcionada por um conhecimento mais aprofundado e rotinado das questões.

Efectivamente a experiência demonstra que a percepção dos problemas suscitados e a sua resolução são mais fáceis quando os magistrados judiciais têm a possibilidade de se dedicar com mais afinco a determinadas matérias, evitando os riscos da excessiva dispersão.

Além disso, a atribuição de competência jurisdicional em função da matéria é susceptível de propiciar maior celeridade na resposta judiciária, o que é especialmente pertinente quando estão em causa litígios conexos com a actividade das sociedades comerciais.

Na atribuição da competência material às Secções de Comércio, nos termos que agora constam do art. 128º da LOSJ, encontram-se bem vincadas ambas as aludidas finalidades.


3. A solução actual é o resultado de uma evolução que se tem verificado nas leis de organização judiciária com paulatina introdução da especialização, designadamente na área do direito privado, tendo o sistema evoluído para a criação de tribunais com competência na área da insolvência e da recuperação de empresas e, depois, para a criação de tribunais ou de secções de comércio com competência mais ampla relativamente a questões de direito comercial e que actualmente cobrem a generalidade das circunscrições judiciárias.

O teor do art. 128º da LOSJ permite constatar com facilidade que a competência não se estende a todas as questões que objectiva ou subjectivamente tenham natureza comercial, sendo restrita àquelas que, no prudente critério do legislador, mais justificavam a separação da esfera de competência residual atribuída às Secções Cíveis.

A enunciação das acções que dele constam permite traçar um critério que atina no essencial com questões que, de forma mais directa, estão ligadas à vida das sociedades comerciais: em torno das deliberações sociais, do exercício de direitos sociais, de eventos ligados à extinção e liquidação de algumas sociedades e, ainda, com especial interesse para o caso, da insolvência e da revitalização de empresas.

Outro poderia ter sido o critério adoptado atribuindo, designadamente, às Secções de Comércio competência para a apreciação de quaisquer litígios em torno das sociedades comerciais ou que indirectamente tivessem conexão com as matérias especificamente previstas. Mas não foi essa a opção do legislador que, para além de enunciar as concretas acções que devem ser interpostas nessas secções especializadas, se limitou a expandir essa competência para os incidentes e apensos de cada um dos processos e bem assim para os processos de execução das decisões neles proferidas.


4. A razão de ser desta opção é facilmente perceptível. Sendo a criação de Secções de Comércio uma solução que visa permitir uma resolução mais correcta e mais célere de litígios ligados a empresas e sociedades comerciais, revelar-se-ia seria contraproducente, ao menos na perspectiva da celeridade, a atribuição de uma competência que abarcasse todo e qualquer litígio que tivesse alguma relação com essas entidades comerciais.

Como a experiência, aliás, bem o revela, já é com muita dificuldade que nas actuais Secções de Comércio se tramita e decide o elevado número de processos que inequivocamente são identificados no art. 128º da LOSJ, com especial destaque, pela quantidade e pela dificuldades, para os processos de insolvência e de revitalização ou para os procedimentos de suspensão de deliberações sociais e respectivas acções.

Por isso, a não ser que se assegurasse a criação de novas Secções de Comércio sempre que o número de processos excedesse um determinado patamar, o alargamento da competência a outras questões não expressamente previstas na norma atributiva da competência projectar-se-ia negativamente na duração dos processos.


5. As normas adjectivas e as que respeitam à organização judiciária devem pautar-se pela clareza, de modo a evitar discussões em torno da simples identificação da secção do tribunal com competência especializada para a apreciação dos litígios.

Para que esse objectivo não seja postergado, é necessário também que na interpretação das normas sobre a distribuição de competências não se extraiam delas soluções que não foram inequivocamente assumidas pelo legislador. É o legislador e não propriamente o intérprete ou o julgador que deve velar pela correcta distribuição das competências, devendo evitar-se interpretações de que resultem soluções que não foram inequivocamente assumidas.

Por outro lado, a delimitação da competência material afere-se pelo pedido e pela causa de pedir que são apresentados, não bastando que exista alguma proximidade entre o concreto litígio e alguma das acções cuja apreciação foi atribuída a alguma secção especializada.

Naturalmente que o legislador não ignorava que a enunciação que consta do art. 128º não esgotava os litígios ligados a sociedades comerciais, mas, apesar disso, limitou a competência especializada através de uma exaustiva enunciação que não torna aconselhável a introdução de outras acções.

Daí que não nos pareça ajustado que se amplie por via jurisprudencial ou doutrinal a competência que o legislador avisadamente pretendeu circunscrever à que decorre do art. 128º da LOSJ.


6. Na presente acção as AA. pediram em via principal, no essencial, o reconhecimento judicial do incumprimento definitivo do PER por parte da R. e, para além a declaração judicial de dissolução e extinção da DD, S.A., o reconhecimento da qualidade de credoras da R., no valor de € 2.387.609,51 e € 458.064,19, respectivamente.

Ainda que tenham inscrito no final da petição o pedido de reconhecimento do incumprimento definitivo por parte da R. da obrigação da entrega de informação referente aos activos a serem transmitidos para a DD, S.A., e que iriam realizar o respectivo capital social nos exactos termos definidos no PER, assim como o reconhecimento do incumprimento definitivo da obrigação de transmissão para a titularidade da DD, S.A., dos quatro activos que iriam realizar o respectivo capital social, nos termos previstos no PER, são aqueles os pedidos que se mostram verdadeiramente relevantes no contexto da presente acção.

Sem curar por ora dos restantes pedidos de natureza subsidiária, de todas as referidas pretensões e da respectiva fundamentação o que apresenta maior proximidade relativamente à esfera de competência especializada das secções de comércio respeita à declaração de incumprimento do Plano de PER e reconhecimento das AA. como credoras da R.

Tal não basta, porém, para que proceda a excepção de incompetência material.


7. Já se disse que as normas sobre distribuição de competência material devem ser analisadas com objectividade, na medida em que é através delas que se mede a amplitude das atribuições das secções especializadas como são as Secções de Comércio.

São diversificados os critérios que foram utilizados para efeitos de delimitar a competência das Secções de Comércio nos termos que constam do art. 128º da LOSJ. Ora se aponta para certas formas de processo especial (v.g. processo especial de insolvência, processo especial de revitalização, acções de liquidação judicial de sociedades, impugnação de despachos dos conservadores do registo comercial), ora para a natureza das questões que são objecto de cada acção (v.g. acções para o exercício de direitos sociais, acções de anulação de deliberações sociais, acções a que se refere o Cód. de Registo Comercial) ora, ainda, para um critério misto (v.g. acções de dissolução de sociedade anónima europeia ou acções de liquidação de instituições de crédito e sociedades financeiras).

Nenhuma dessas específicas previsões abarca a presente acção que, como se disse, visa essencialmente o reconhecimento de que a R. incumpriu o plano aprovado no âmbito do PER e o reconhecimento de que as AA. são credoras da R.

É verdade que o nº 3 prevê a extensão da competência relativamente aos incidentes e apensos e bem assim aos processos de execução de cada uma das decisões que seja proferida nos processos referidos nos nºs 1 e 2.

A amplitude desta norma em aberto não é clara, como bem o revela a dissidência que ficou patente no acórdão recorrido, com emissão de um voto de vencido. Tudo passa por apurar se o PER admite a introdução de incidentes processuais e, mais concretamente, se a presente acção, com os contornos essenciais já enunciados, se inscreve nos limites da tramitação global do PER.

Seguro é que as normas do CIRE que se referem ao referido processo de revitalização não contêm qualquer preceito que directa ou indirectamente tenha relação com as pretensões formuladas e não decorre, por outro lado, do art. 128º da LOSJ que os referidos pedidos essenciais se integrem em alguma das suas alíneas.


8. Há que reconhecer que estamos na presença de uma acção cujo objecto parece apresentar autonomia relativamente ao que foi decidido no processo especial de revitalização.

Nesta medida, não existindo correspondência entre qualquer dos pedidos que foram formulados e qualquer incidente que como tal seja qualificado pelo CIRE, não se antolha de que modo se pode invocar para a declaração da incompetência da Secção Cível o nº 3 do art. 128º da LOSJ que se reporta a questões de natureza incidental ou a apensos que como tal sejam legalmente qualificados.

O processo especial de revitalização foi encerrado com a homologação judicial do plano que foi aprovado pelos credores e, sem embargo da promoção de um processo autónomo de insolvência em face da verificação de algum dos factos-índices previstos no CIRE, não está prevista a possibilidade da sua reabertura seja para verificar o modo como foi cumprido o referido plano, seja para qualquer outro objectivo.

Aliás, o art. 17º-F, nº 5, do CIRE, limita-se a remeter para as “regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos arts. 215º e 216º”, sem qualquer referência ao disposto no art. 218º que, aliás, sempre se mostraria imprestável para a resolução do caso presente. Dele decorre simplesmente a extinção da moratória ou do perdão em face da mora do devedor relativamente a algum crédito ou da declaração de insolvência posterior, eventos que nenhuma relação apresentam com o que se discute nesta acção.

Por conseguinte, na falta de integração em alguma das previsões do art. 128º da LOSJ, a competência para a apreciação de tais pretensões inscreve-se na esfera de competência residual atribuída às secções cíveis, nos termos do art. 117º da LOSJ.

Improcede, por isso, a revista.


IV – Face ao exposto, acorda-se em negar provimento à revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo da R.

Notifique.

Lisboa, 1-6-17


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo