Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
225/20.2T9MNC.G1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ACÓRDÃO ABSOLUTÓRIO
ASSISTENTE
IRRECORRIBILIDADE
OFENSA DO CASO JULGADO
INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O acórdão absolutório proferido em recurso pelo tribunal da Relação é uma decisão inequivocamente irrecorrível, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. d) do CPP.

II. O art. 629.º, n.º 2, a. a), do CPC não é aplicável em processo penal, pois em matéria de recursos o Código de Processo Penal prevê e regulamenta autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso, inexistindo lacuna nesta matéria.

III. Também não pode haver agora lugar a devolução dos autos ao Tribunal da Relação, para eventual conhecimento, ali, das nulidades do acórdão arguidas no recurso para o Supremo, pois não foi opção dos recorrentes, no momento e no modo próprio, a arguição de nulidades do acórdão perante o Tribunal que o proferiu (o Tribunal da Relação). O que podiam e deviam ter feito, se pretendiam ver conhecidas e apreciadas tais nulidades, uma vez que o acórdão da Relação é (era) claramente uma decisão irrecorrível.

Ao prescindirem dessa oportuna e adequada arguição perante o tribunal da Relação, antes tendo optado, indevidamente, pela interposição de um recurso de um acórdão irrecorrível (recurso este inadmissível, portanto), obstaram ao conhecimento de todas as matérias que visavam ver apreciada no recurso impropriamente interposto, incluindo as referidas nulidades, cujo conhecimento comprometeram irremediavelmente.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 225/20.2T9MNC, do Tribunal Judicial da Comarca de ... - Juízo Competência Genérica, foi proferida sentença a condenar o arguido AA como autor de três crimes de difamação agravada dos arts. 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1, al. a), e 184.º, este último por referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. l), todos do CP, em três penas parcelares de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €8,00 (oito euros), e em cúmulo na pena única de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de €8,00 (oito euros).

Inconformado com o decidido, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 26 de junho de 2023, decidiu declarar a “nulidade de todo o processado por falta de legitimidade da queixa por parte dos assistentes e do exercício da acção penal pelo Ministério Público, consequentemente dele absolvem o arguido AA.”

Inconformados com o acórdão da Relação, interpuseram os três assistentes (BB, CC e DD) recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“1 – O Acórdão recorrido manteve na íntegra a matéria de facto dada como provada, por isso, está a matéria de facto duplamente conformada, designadamente, mantém-se inalterado o tramo da matéria de facto que queda extractada: “(…)

«6. Utilizando tais expressões, o arguido visou os elementos do órgão executivo da Junta de Freguesia de ... e não o órgão em si, uma vez que os factos que imputou, ainda que sob a forma de suspeita, apenas por aqueles indivíduos poderiam ser praticados.

8. O arguido escreveu as sobreditas expressões representando, como resultado possível da sua conduta a imputação aos assistentes, perante terceiros, da suspeita de que estes, aproveitando-se das funções que exerciam na freguesia de ..., designadamente como presidente da Junta, secretário e tesoureiro, se apoderaram ou pretendiam continuar a apoderar-se de quantias em dinheiro da Fábrica da Igreja de ..., mormente do dinheiro das esmolas, dando-lhe o destino que entendessem, nomeadamente utilizando tais quantias para construírem as suas moradias e, ainda assim, atuou do modo descrito, conformando-se com essa representada possibilidade.

9. O arguido, ao escrever no seu perfil da rede social Facebook o que supra se transcreveu, fê-lo, representando como possível a possibilidade das suas imputações, suspeitas e insinuações, perante terceiros, atingirem o bom nome e reputação pessoal e profissional dos assistentes BB, CC e DD, enquanto elementos do órgão executivo da freguesia de ..., respetivamente, como presidente da Junta de Freguesia, secretário e tesoureiro, e de os denegrir publicamente, o que sucedeu, tendo o arguido se conformado com tal resultado.

11. O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, não se coibindo, ainda assim, de a praticar.

12. O demandado sabia que as afirmações publicadas, melhor descritas supra, não correspondiam à verdade e que tinham a virtualidade de ofender a honra, consideração e dignidade dos demandantes, possibilidade, concretizada, com a qual se conformou.»

2 – Do tramo desta facticidade resulta escancarado quem é que o arguido quis ofender e ofendeu, na honra e consideração, perante terceiros, ou seja, quem é que tem legitimidade para apresentar queixa-crime, contra o autor da publicação;

3 – Apesar de, esta clareza e evidência de quem é que foi ofendido com a publicação, o Acórdão sindicado fez tábua rasa desta facticidade consolidada e, surpreendentemente, decidiu que da publicação dada como provada nos factos 3. e 4., “apenas, podemos aferir que o arguido se refere explicitamente à junta”;

4 - O Tribunal a quo, ao tirar esta conclusão, está a apreciar o julgamento da matéria de facto, o que não lhe foi pedido pelo recurso interposto, nem tal conclusão resulta do texto da decisão, para que se subsumisse esta apreciação no erro notório da apreciação da prova, e, para além disso, contende com a matéria de facto fixada;

5 - A decisão definitiva sobre a materialidade de facto que consta da sentença manteve-se inalterada no Acórdão recorrido constituindo caso julgado formal impedindo qualquer nova apreciação. Está precludida qualquer apreciação da mesma matéria que se impõe como definitiva;

6 - Nos termos do art. 113º, nº1, do C. Penal, para se averiguar quem pode ser considerado titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, e portanto, quem deverá apresentar queixa no respetivo processo, há que proceder a uma interpretação do respetivo tipo incriminador, por forma a comprovar se existe uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos através dessa incriminação;

7 - Nesta medida, no crime de difamação, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação será aquele que é atingido na honra ou consideração;

8 -No caso dos autos, o que nos dizem os factos supra extractados é que quem foi atingido na honra ou consideração, com as imputações publicadas pelo arguido, foram aqueles que apresentaram a participação por serem eles os ofendidos, constituindo-se assistentes;

9 - Os assistentes é que são os titulares do interesse - honra ou consideração - que a lei – art. 180.º do C. Penal – especialmente quis proteger com a incriminação;

10 - O quadro fáctico desenhado pela sentença da 1ª instância dá-nos conta dos elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de difamação, esse quadro não foi afastado pelo Acórdão recorrido, logo, o crime de difamação praticado pelo arguido contra os assistentes mantém-se;

11 - A divertida apreciação da factualidade comprovada dos factos 3. e 4., além de, não ser sustentada, é desmentida, pela restante facticidade adquirida, aliás, não consente outra subsunção senão a que foi operada na 1ª instância;

12 – Ora, sendo inamovível a matéria de facto e dizendo-nos a mesma que o arguido quis ofender a honra e consideração dos recorrentes, estava o Tribunal recorrido vinculado a essa matéria de facto, apenas, podendo julgar de Direito de acordo com essa matéria de facto, assim não o fez, profanando de forma grosseira e ostensiva o caso julgado relativamente à matéria de facto;

13 - Ressuma dos factos dados como comprovados que o arguido, na publicação da sua página do Facebook, no dia 20.10.2020, pelas 21:20 horas – factos 3., 4., 5. e 10.-, imputou, aos assistentes, factos, enquanto elementos da junta de freguesia – factos 6., 7., 8. e 9. -, sob a forma de suspeita, ofensivos da sua honra e consideração – factos – 9. e 12. -, com dolo, bem sabendo que a sua conduta estava tipificada – factos 11.;

14 - Perante esta facticidade não é possível afastar a qualificação jurídica operada pela 1ª instância, no entanto, o Tribunal “a quo”, sem qualquer justificação ou fundamentação, efectuou uma operação desviante desta facticidade, sem lhe subsumir a qualificação jurídica possível, que, em termos de Direito se impõe, sem proferir um juízo decisório de integração desses factos, o que configura uma omissão de decisão, sem objecto definido, certo e determinado, em termos de pronúncia, um non liquet, mera nuda cogitatio sobre o thema decidendum;

15 - O Acórdão recorrido não decidiu de forma completa o objecto do recurso, podendo e devendo fazê-lo, frustrando o caso julgado, o que impede qualquer novo julgamento da mesma questão, no caso “sub judice”, a matéria de facto foi duplamente conformada, precludindo qualquer apreciação da mesma matéria que se impõe como definitiva;

16 - O Tribunal da Relação ao modificar a decisão da 1ª instância, tinha de decidir conforme a matéria de facto assente, sem violar o caso julgado, sobre o julgamento da mesma, sobre o mérito do objecto do processo;

17 - Não pode o Tribunal da Relação, perante as questões postas, e fixada a matéria de facto, deixar de proferir a decisão de direito correspondente, de forma a que fixando a questão de facto, se escusa a extrair as consequências jurídicas, na determinação e aplicação da lei, aos factos, omitindo a subsunção jurídica;

18 – O Acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379º, nº 1, a), primeira parte, e c) do CPP, ao omitir a subsunção jurídica aos factos considerados provados;

19 - Ao decidir que os recorrentes não tinham legitimidade para apresentar a queixa-crime, o Acórdão recorrido contrariou de forma ostensiva a matéria de facto dada como provada em 6., 8., 9. e 12.;

20 - O Acórdão recorrido julgou os factos constantes em 3. e 4., como essas expressões, se referissem “explicitamente à junta”, apesar de estar dado como provado que, com essas expressões, o arguido “visou os elementos do órgão executivo da Junta de Freguesia de ... e não o órgão em si”, atingindo “o bom nome e a reputação pessoal e profissional dos assistentes”, sabendo o arguido que “tinham a virtualidade de ofender a honra, consideração e dignidade dos demandantes, possibilidade, concretizada, com a qual se conformou” – vidé factos 6., 8., 9. e 12.;

21 – O Acórdão recorrido sofre do vício de contradição entre fundamentação e a decisão, nos termos do art. 410º, nº2, al. b), do CPP, fulminando o Acórdão com a nulidade, que pode e deve ser resolvida através da requalificação jurídica dos factos dados como provados;

22 - Para o ramalhete ficar completo, o Acórdão recorrido termina com o erro notório na apreciação, mas não nos diz onde, qual a consequência, porquê que existe o erro notório na apreciação da prova, apenas, nos diz que “Mas, mesmo que assim não se considerasse, sempre teríamos de constatar a existência do vício previsto no artigo 410.º número 2 do CPP, concretamente a sua alínea c), traduzido em erro notório na apreciação da prova, pela forma como foi apreciada a prova produzida, e que de igual modo acarreta a nulidade”;

23 - O Acórdão sindicado confunde erro notório na apreciação da prova com o erro de julgamento, avaliar se o juízo de análise probatória do Tribunal da 1ª instância está correcto, no sentido de ter feito uma análise da prova correcta ou incorrecta, constitui uma apreciação do julgamento dos factos atendendo àquela ou àquelas provas, o vício do art. 410.º, nº 2, al. c), do CPP, é outra coisa bem diferente, tem de ser notório, tem de resultar do texto da decisão ou do confronto desta com as regras da experiência, é um vício da própria decisão e não se refere ao erro de julgamento dos factos segundo a prova apreciada;

24 - Se a convicção do Tribunal não tem correspondência com os elementos de prova é o mesmo que dizer que as provas foram mal apreciadas, redundando num julgamento erróneo dos factos, mas não se trata do vício da decisão, designadamente, do erro notório na apreciação da prova;

25 – O Acórdão recorrido é nulo, por falta de fundamentação, não nos diz onde se verifica o erro notório na apreciação da prova, bem como, as consequências da sua verificação, não contém os motivos de facto e de Direito que fundamentam essa decisão, nos termos do art. 379º, nº 1, al. a), primeira parte, do CPP;

26 - Dispõe o art. 213.º do CPC, aplicável ex vi art. 4.º do CPP, com a redação dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 55/2021, de 13 de Agosto, que introduziu mecanismos de controlo da distribuição eletrónica dos processos judiciais, que: “1 - Nas Relações e no Supremo Tribunal de Justiça, a distribuição é efetuada uma vez por dia, de forma eletrónica. […] 3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 4 a 6 do artigo 204.º à distribuição nas Relações e no Supremo Tribunal de Justiça, com as seguintes especificidades: a) A distribuição é feita para apurar aleatoriamente o juiz relator e os juízes-adjuntos de entre todos os juízes da secção competente, sem aplicação do critério da antiguidade ou qualquer outro b) Deve ser assegurada a não repetição sistemática do mesmo coletivo”;

27 - Adicionalmente, dispõe o artigo 204.º, n.º 4, alínea c), do CPC, que: “As operações de distribuição são obrigatoriamente documentadas em ata, elaborada imediatamente após a conclusão daquelas e assinada pelas pessoas referidas no n.º 3, a qual contém necessariamente a descrição de todos os atos praticados”;

28 - Ora, apuraram os recorrentes junto da Secretaria do Tribunal “a quo” que, não só inexiste qualquer acta que documente as operações de distribuição, em cumprimento do disposto no art. 204.º, n.º 4, al. c), como a própria distribuição não terá sido efectuada eletronicamente e nos termos plenos do disposto no artigo 213.º, n.º 3, alínea a), do CPC, com vista a apurar aleatoriamente os juízes-adjuntos de entre todos os juízes da secção competente, sem aplicação do critério da antiguidade ou qualquer outro;

29 - Deste modo, na vigência dos arts. 204.º e 213.º do CPC, com a redação dada pela Lei n.º 55/2021, de 13 de Agosto, é manifesto que ocorreu uma violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal, porquanto, e de acordo com a informação recolhida junto da Secretaria do Tribunal, não só não foi exarada a ata que permita aos recorrentes confirmar as operações de distribuição alegadamente realizadas, como o coletivo de Juízes, no que se reporta aos Juízes Adjuntos, não terá sido objeto de distribuição eletrónica, pública e verificável pelos sujeitos processuais, em violação do disposto nos artigos 204.º, n.º 4, al. c), e 213.º, n.º 3, alínea a), do CPC;

30 - A referida violação de normas legais referentes ao modo de determinação da composição do Tribunal importa a verificação de uma nulidade insanável, prevista no art. 119º, al. a), do CPP, aquando do ato de distribuição irregular, o que determina a sua invalidade, bem como os demais atos que dele dependerem e que puderem afetar: aqui, o Acórdão proferido em conferência, a 26.06.2023;

31 - É inconstitucional a interpretação do art. 113º, nº 1, do C.Penal, no sentido de que não tem legitimidade, para apresentar queixa-crime, pelo crime de difamação agravada, com publicidade e calúnia, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 180º, n.º 1, 182º, 183º, nº 1, al. a), e 184º, este último por referência ao art. 132º, nº 2, al. l), todos do C.Penal, aquele que, segundo a matéria de facto dada como provada, é ofendido na sua honra e consideração, sendo elemento do órgão Junta de Freguesia, mas este órgão, por violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais, estatuído no n.º 1 do art. 20.º da CRP; e

32 -É inconstitucional a interpretação do art. 119º, al. b), do CPP, segundo a qual constitui uma nulidade insanável, por falta de legitimidade do MP, para prosseguir o procedimento criminal, quando, nos termos da matéria de facto assente, a queixa foi apresentada por quem é ofendido, por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva e do art. 20º, n.º 5.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“A- Deve considerar-se inadmissível o recurso interposto.

B- E, consequentemente, ser rejeitado, por inadmissibilidade, nos termos dos artigos 420º, n.º 1, al. b), e 414º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.”

O arguido respondeu ao recurso, concluindo:

“1. Os presentes autos têm por objeto um crime de difamação agravada, com publicidade e calúnia, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 180º, nº1, 182º, 183º, nº1 a), e 184º do Código Penal, este último com referência ao artigo 132º, nº2 l), 14º, nº3, 26º 1ª parte e 30º, nº1 todos do Código Penal.

2. Ora, face à natureza dos crimes imputados, bem como, à pena aplicada, no regime ordinário recursivo, a possibilidade de direito de recurso dos assistentes, esgota-se na 2ª Instância nos termos do artigo 400º, nº1 d) do CPP (“Não é admissível recurso, de acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas Relações, exceto no caso da decisão condenatória em 1ª instância em pena de prisão superior a 5 anos” - o que não é o caso).

3. Perante este impedimento legal objetivo e imperativo, os Assistentes, doravante designados de recorrentes, quando apresentam o requerimento de interposição de recurso, fundamentam o mesmo na violação de caso julgado, invocando preceitos da lei adjetiva civil. Contudo,

4. Olvidaram tudo quanto a doutrina e a jurisprudência vem preceituando relativamente à aplicação do Código do Processo Civil para a admissibilidade de recurso em processo penal. Desde logo,

5. Não acatam o referido no acórdão deste STJ de 06-05-2020 (Rel. Raul Borges), que refere que: «no domínio do processo penal, a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça da parte da sentença relativa à matéria criminal está essencialmente dependente da medida concreta da pena aplicada ao arguido». Não tem aplicação em processo penal a recorribilidade com base em incompetência material ou violação de caso julgado – artigo 629º, nº2 a) do CPC.

6. Fizeram tábua rasa do decidido já por este STJ que se pronunciou no sentido de inexistência de lacuna e de não ser aplicável em processo penal o disposto no artigo 629º, nº2 a) do CPC, como consta do sumário do acórdão de 07-01-2016, proferido no processo nº204/13.6YUSTR.L1-A.S1, da 5ª secção e, ainda nos Ac. De 06-04-2016, proferido no processo nº535/13.5JACBR.C1.S1 – 5ª secção e de 04-12-2019, proferido no processo nº354/13.9IDAVR.P2.S1, da 3ª secção, in CJSTJ 2019, tomo 3, páginas 230 a 235.

7. Quanto à doutrina, encontra-se, também, publicado um estudo na: “A REVISTA”, Supremo Tribunal de Justiça – Criminal, sob consulta em https://arevista.stj.pt/?page_id=1078, com o seguinte título: “A Autonomia dos recursos em processo penal (a revista excecional e outros institutos do processo civil), onde consta o seguinte:

a) “do que se conclui que apenas em uma situação se mostra necessário recorrer ao disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. a), in fine, do CPC ex vi artigo 4.º, do CPP para permitir o recurso com fundamento em ofensa de caso julgado por violação do princípio ne bis in idem: quando o Tribunal da Relação conclui pela não violação do princípio ne bis in idem condenando o arguido em pena de prisão igual ou inferior a 8 anos mediante acórdão da Relação que confirma a condenação em 1.ª instância [caso que o recurso não seria admissível com base o artigo 400.º, n.º 1, al. f), do CPP], ou em pena de prisão igual ou inferior a 5 anos ou pena não privativa da liberdade [caso em que o recurso não seria admissível por força do artigo 400.º, n.º 1, al. e), do CPP].”;

b) “O legislador, quando referiu no artigo 399.º, do CPP, que eram recorríveis as decisões cuja irrecorribilidade não estivesse prevista na lei, não pretendeu dizer que, apesar de segundo as regras processuais penais o recurso não ser admissível, ainda o poderia ser se se pudesse subsumir a pretensão do recorrente a alguma das situações previstas no Código de Processo Civil.

c) Na verdade, há boas razões para se entender que não existe uma lacuna. Não existe qualquer lacuna quando se trata de um caso de contradição entre o acórdão recorrido e um outro acórdão do Tribunal da Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça, pois em caso de contradição quanto à mesma questão de direito está previsto no Código de Processo Penal o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência com eficácia não só para processos futuros (sem que, todavia, constitua jurisprudência obrigatória – cf. artigo 445.º, n.º 3, do CPP) como no próprio processo, podendo o Supremo Tribunal de Justiça rever a decisão recorrida ou reenviar o processo (artigo 445.º, n.º 2, do CPP). Além disto, o recurso para fixação de jurisprudência previsto no Código de Processo Penal abrange não só oposição entre acórdãos da Relação, e entre acórdãos da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça, mas também, e neste ponto mais abrangente do que a previsão processual civil referente à revista excecional, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça em oposição.

d) Mas também não ocorre qualquer lacuna no que respeita aos outros dois fundamentos de revista excecional – “relevância jurídica” ou “relevância social”.”

8. Esta posição sai, ainda, reforçada, pelo STJ no Ac. STJ de 02-12-2010, no processo nº263/06.8JFLSB.L1.S1 de (Rel. Santos Carvalho) acrescenta: “VIII - Contudo, o que já não é tolerável do ponto de vista dos direitos de defesa é que no caso simetricamente oposto a esse, em que ao arguido continua vedado o direito a novo recurso, agora por falta de interesse em agir (pois foi absolvido na segunda instância da acusação, após condenação na 1ª instância em pena não privativa da liberdade), a acusação, isto é, o Ministério Público ou Assistente, possa recorrer. IX - Nas “duas imagens invertidas”, o arguido não teria direito a interpor recurso em qualquer delas, mas permitir-se-ia ao M.º P.º e ao Assistente, numa delas, um direito que àquele não assiste (o terceiro grau de jurisdição). X - Criar-se-ia uma desigualdade de armas, desfavorecendo o arguido e beneficiando a acusação.” “XV -Concluímos, assim, que é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade.”

9. Também não poderá ser admitido o presente recurso porque, de forma manifesta e bem clara não existe a violação do caso julgado.

10. O que os recorrentes vêm sustentar para defender a violação do caso julgado é que o arguido quando interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, não impugnou a matéria de facto e que essa matéria de facto se manteve inalterada no acórdão agora recorrido. E que, por isso, não permite outra apreciação de mérito do direito. Todavia,

11. Dizem, na sua motivação que, agora de forma contraditória, o Tribunal da Relação, não estava vinculado à qualificação jurídica e, portanto, o facto de a matéria de facto se manter não poderá obrigar o Tribunal à qualificação jurídica e apreciação da mesma tal como foi na 1ª Instância.

12. Portanto, não estamos nem numa situação de caso jugado formal, e muito menos material, pelo que, estando dentro do mesmo processo ainda não houve qualquer decisão que haja transitado em julgado.

13. Aliás, diz-nos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Processo Civil”, Almedina 2018, páginas 50 e 51, a propósito da alínea a) do aludido nº2 do artigo 629º do CPC, “a admissibilidade excecional do recurso não abarca todas as decisões que incidam sobre a exceção dilatória do caso julgado, mas apenas aquelas de que alegadamente resulte a “ofensa” do caso julgado já constituído, efeito que tanto pode emergir da assunção expressa de que a decisão recorrida não apresenta dilação do caso julgado, como do facto de ser proferida decisão sem consideração (ofensa implícita do caso julgado anteriormente formado)”.

14. Ora, é evidente que não nos encontramos perante uma decisão transitada em julgado. E, o quadro fático que passou da sentença para o acórdão foi objeto de uma apreciação pelo tribunal de recurso diversa e sem a colocar em causa chegando a uma conclusão diferente da 1ª instância, que resultou na absolvição do arguido/recorrido.

15. Para que houvesse violação do caso julgado teríamos de nos encontrar perante uma decisão in totum já transitada em julgado, e que fosse uma decisão sobre o mérito da causa, recaindo sobre a relação material controvertida. O que não é, manifestamente, o caso da decisão que recai sobre a apreciação da matéria de facto.

16. A matéria de facto não é uma decisão sobre o mérito da causa, mas sim sobre a verificação ou não verificação através da prova da ocorrência ou não de determinados factos.

17. Assim, só se houvesse qualquer sentença, nos autos, transitada em julgado, que decidisse do mérito da causa é que poderíamos dizer que a decisão sobre a relação material controvertida ficava a ter força obrigatória. E, consequentemente, impedindo que a mesma relação material viesse a ser definida em modos diferentes pelo Tribunal ou qualquer outra Autoridade.

18. Nestes autos, manifestamente, não temos qualquer sentença transitada em julgado, nem qualquer decisão de mérito sobre qualquer situação levada à consideração do Tribunal para apreciação.

19. Assim, também deve ser rejeitado o presente recurso por nem sequer existir caso julgado, muito menos, violação do mesmo que sustente a possibilidade, quanto a nós como supra defendemos inviável em processo penal; mas agora concedendo por mera hipótese académica que o recurso fosse admitido no uso da lei processual civil, ainda assim, seria inadmissível por não preencher os requisitos da referida lei processual civil, ou seja, pela inexistência da “violação de caso julgado”.

SEM PRESCINDIR, CASO ASSIM SE NÃO ENTENDA:

20. Salientar que, apesar de o presente recurso ter por fundamento a pretensa violação do caso julgado, nem uma única conclusão das 32 apresentadas se refere de forma concreta e objetiva à violação do caso julgado.

21. O que já por si deveria ser suficiente para declarar no caso do recurso ser admitido a total improcedência do mesmo, uma vez que em conclusões não se indica a razão de ser e o fundamento do recurso, isto é, a violação do caso julgado.

22. Reportando-nos às conclusões, propriamente ditas, a primeira conclusão nada nos diz a mais que a simples leitura do acórdão já não tenha dito. Ou seja, é a mera transcrição dos factos dados como provados.

23. A segunda conclusão, não é mais que um simples desabafo subjetivo dos recorrentes sem qualquer sustentabilidade legal como resulte da leitura do douto Ac. Recorrido, pelo que também não poderá interferir com qualquer alteração à decisão daquele.

24. A conclusão terceira, pois, mais não é do que uma interpretação descabida e contrária ao decidido no acórdão.

25. As conclusões quarta, quinta, sexta e sétima são discordâncias sem qualquer fundamentação legal e, muito menos factual, da forma como o douto Ac. foi gizado e orientado.

26. O mesmo se dirá em relação às conclusões oitava, nona e décima.

27. Quanto à conclusão onze não podemos deixar de realçar com certa mágoa a terminologia adotada pelos recorrentes que qualificação do douto acórdão, designadamente apodando a apreciação da factualidade como “divertida”, mas esquecem os recorrentes que na página 3 da sua motivação, concedem expressamente que o tribunal a quo “não estava vinculado à qualificação jurídica”. Portanto, se assim se expressam num primeiro momento não podem agora falar em qualquer apreciação “divertida”.

28. As conclusões doze, treze e catorze acabam por resumir-se à insistência de que a matéria de facto dada como provada só poderá ter uma única apreciação que, no ponto de vista dos recorrentes foi aquela que foi dada na 1ª Instância.

29. As décima quinta, décima sexta e décima sétima conclusões acabam por ser ininteligíveis uma vez que a decisão sobre a matéria de facto, como já se viu supra, não é uma decisão de mérito nem que decida sobre a relação material controvertida e, como tal, nunca poderá formar o denominado caso julgado. Face ao presente recurso, e nos presentes autos, ainda não existindo, neste momento, qualquer decisão transitada em julgado, pois, a decisão sobre a matéria de facto é uma decisão meramente instrumental para posteriormente fundamentar a decisão final, essa sim, decisão de mérito com potencialidade para formar caso julgado.

30. Quanto à conclusão dezoito, dezanove e vinte entendemos que o tribunal da Relação fez uma subsunção jurídica acertada dos factos considerados provados e não vislumbramos qualquer nulidade, muito menos por omissão de pronuncia, antes se verificando uma manifesta ilegitimidade dos recorrentes nestes autos.

31. Por sua vez, as conclusões vinte e um, vinte e dois e vinte e três são meras interpretações de direito, nomeadamente no que tange ao artigo 410º, nº2 b) do CPP, mas que em nossa opinião não tem qualquer aplicabilidade in casu uma vez que o Ac. recorrido não sofre de qualquer vício de contradição entre a fundamentação e a decisão, pelo contrário, faz uma sã e escorreita aplicação do direito aos factos.

32. A vigésima quarta conclusão é confusa e traduz um esforço de raciocínio para justificar o injustificável, pelo que não deverá merecer qualquer acolhimento por parte deste STJ.

33. As conclusões vinte e cinco a trinta inclusive são a transcrição de artigos do CPC relativos ao mecanismo de controle da distribuição eletrónica dos processos judiciais onde são feitas alegações sem qualquer suporte factual e que poe em causa de forma quase juncosa o bom funcionamento das secretarias judiciais, no que respeita à distribuição de processos, in casu, à secretaria do Tribunal da Relação de Guimarães.

34. As inconstitucionalidades arguidas nos artigos trinta e um e trinta e dois não tem qualquer fundamento, são abusivas e mais não são do que uma tentativa de no caso de não admissibilidade ou improcedência do presente recurso, os recorrentes terem mais um expediente para não deixar finalizar o presente processo e face às inconstitucionalidades invocadas ainda terem uma derradeira tentativa de recurso recorrendo ao Tribunal Constitucional. Facto que bem sabem que não lhes assiste e que ao tentar provocar tal situação estao a fazer um manifesto mal uso diríamos mesmo abusivo do processo.

35. Pelo que, em nosso modesto entender, deverão improceder tais conclusões, pois, o douto acórdão não padece de qualquer nulidade, nem qualquer inconstitucionalidade, nem, tampouco, de qualquer irregularidade, antes faz uma justa e sã aplicação do direito e da justiça.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, referindo, no essencial:

“A decisão de admissão do recurso não vincula o tribunal superior (cfr, o art. 414º/3 do Código de Processo Penal).

Como resulta do intróito supra-delineado, o arguido, ora recorrido, foi condenado pelo Tribunal Singular em penas de multa, parcelares e única.

Tal condenação foi anulada, por decisão proferida em recurso pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em virtude da falta de legitimidade da queixa dos assistentes e do exercício da acção penal pelo Ministério Público, com a consequente absolvição do arguido.

4. Ou seja: O Tribunal da Relação de Guimarães proferiu, em recurso, Acórdão que não conheceu, a final, do objeto do processo, pois que fez cessar a relação jurídico-processual-penal por questões adjectivas, e não substantivas, abstendo-se de apreciar a viabilidade fáctico-jurídica da acusação (mérito da causa), em virtude da declarada ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção-penal: Embora tenha consignado que absolvem o arguido.

5. Pelo que ocorre um caso de irrecorribilidade para Supremo Tribunal de Justiça de um Acórdão de Tribunal da Relação, motivo por que o presente recurso deve ser rejeitado, pela via das disposições conjugadas dos arts. 400º/1-c) e 432º/1-b) do Código de Processo Penal).

6. Veja-se, nesta matéria – embora num caso de extinção do procedimento criminal por prescrição –, o Ac. do STJ de 07.10.2021, P-161/16.7T9AND.P1.S1.

I - O acórdão do Tribunal da Relação que, em recurso, põe termo à relação processual mediante declaração de extinção prescritiva do procedimento criminal, não é uma decisão de mérito uma vez que não conhece nem decide sobre o objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia.

II - Nessa conformidade, não é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça por interdição do art.º 432º n.º 1 al.ª b) e 400º n.º 1 al.ª c) do CPP.

7. Conquanto assim não fosse, sempre seria, em face do que ficou exposto, de rejeitar o presente recurso ao abrigo da disposição do art. 440º/1-d) do mesmo diploma legal:

Não é admissível recurso: … …

De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;

II Em síntese:

Deve ser rejeitado o presente recurso, em virtude de o Acórdão sub judice, proferido em recurso pelo Tribunal da Relação de Guimarães, não ter conhecido, a final, do objeto do processo; Ainda que assim não fosse, sempre o recurso deveria ser rejeitado por ser interposto de decisão absolutória, em recurso, da Relação, de decisão condenatória da 1ª Instância em pena de multa.”

Na resposta ao parecer, os assistentes reiteraram as razões do recurso, aditando ainda o seguinte:

“(…) Caso se entenda que o recurso não é admissível, o que não se aceita e apenas, por hipótese de raciocínio se concebe, terá que se proceder à remessa dos autos à Relação, para este Tribunal apreciar as nulidades invocados no recurso.

Da conjugação dos arts. 379.º, n.º 2 e 414.º, n.º 4, do CPP, resulta hoje um entendimento generalizado, na doutrina e na jurisprudência, de que as nulidades de sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las; não sendo admissível recurso ordinário da sentença, ou não querendo o sujeito processual impugná-la por esta via, as eventuais nulidades de que a sentença enferme devem ser arguidas nos termos gerais, ou seja, perante o tribunal que proferiu a sentença, e dentro do prazo geral de 10 dias previsto no art. 105.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.

É que, como refere o Conselheiro Oliveira Mendes, as nulidades da sentença enumeradas no artigo 379.º, n.º 1, do CPP, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais, devendo ser arguidas ou conhecidas, oficiosamente, em recurso, só podendo ser arguidas, no prazo geral de 10 dias e perante o próprio tribunal que proferiu a decisão, no caso desta não admitir recurso ordinário, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 2, 120.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, todos do CPP

Assim, decidindo que o acórdão recorrido não admite recurso, devem ser apreciadas as nulidades arguidas, pelo Tribunal recorrido, por ter sido invocada a nulidade deste mesmo acórdão, nos termos do art. 379º., n.º 1, al. a) do CPP, perante o próprio Tribunal da Relação e no prazo geral de 10 dias, a contar da notificação, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 2, 120.º, n.º 1 e 105.º, n.º 1, todos do CPP.

“De acordo com a parte final do n.º 2, o tribunal recorrido pode, mesmo em caso de recurso, proceder ao suprimento das nulidades da sentença. É o sentido a retirar do segmento final do referido dispositivo “aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 4 do artigo 414º”. Dever-se-á ter em atenção, porém, que o suprimento das nulidades da sentença pelo tribunal recorrido deve ser efectuado com muita prudência, …”

Pelo que, no caso da não admissão do recurso pelo Mais Alto Tribunal, deve considerar-se erro na qualificação jurídica do meio processual apresentado pelos assistentes e, em consequência, deve remeter-se para a Relação para serem apreciadas as nulidades arguidas, no articulado, por eles, apresentado – art. 193.º, n.º 3, do CPC, ex vi art. 4º do CPP (…).”

1.2. O acórdão recorrido, na parte que releva para o recurso, tem o seguinte teor:

“1. Factos provados:

Após audiência final de discussão e julgamento, resultaram provados, com relevância para boa decisão da causa, os seguintes factos:

1. O arguido AA é padre na freguesia de ..., em ....

2. Os assistentes BB, CC e DD eram, à data dos factos infra descritos, respetivamente, presidente da Junta de Freguesia de ..., secretário e tesoureiro.

3. No dia 20 de outubro de 2020, pelas 21:20h, o arguido AA efetuou, na sua página da rede social Facebook denominada “EE”, uma publicação com o seguinte texto:

“Junta da freguesia de ... quer apoderar-se da igreja paroquial e do adro. Por isso meteu a fábrica da igreja em tribunal, cujo julgamento é no dia 21 de dezembro, do ano corrente, no tribunal de .... Agora não há sacos de esmolas para levar para casa. Já chegou.”

4. Acresce que, nos comentários e respostas a comentários em tal publicação, o arguido, no mesmo dia e no dia subsequente, em horas não concretamente apuradas, escreveu o seguinte:

“ (…) aqui roubaram muito e queriam continuar. Só que eu deitei a mão. Mas encheram-se”.

“ Mas há pessoas piores que os fariseus; não têm nada na cabeça e muito menos consciência. Até há anos atrás eram dois sacos, mas agora eram precisos três”.

“A junta nunca deu qualquer ajuda para as obras da Igreja. Deve ser para ir buscar as esmolas para acabarem as suas luxuosas moradias. Assim foi nos outros tempos” (após pergunta feita pelo utilizador “FF” – “Para que é que a Junta de Freguesia quer a igreja e o adro?”).

“(…) Sabe o provérbio? Tanto é ladrão o que rouba como que deixar roubar”.

“É minha obrigação defender os bens que pertencem à Igreja”.

5. O perfil da rede social Facebook do arguido é livremente acessível por todos utilizadores daquela rede social ou, pelo menos, pelos seus “amigos” (contactos) no âmbito da mesma, que leram tal publicação e comentários, sendo que alguns dos contactos do arguido reagiram à publicação referida no ponto anterior, através da aposição de ícones ou da inserção de comentários.

6. Utilizando tais expressões, o arguido visou os elementos do órgão executivo da Junta de Freguesia de ... e não o órgão em si, uma vez que os factos que imputou, ainda que sob a forma de suspeita, apenas por aqueles indivíduos poderiam ser praticados.

7. O arguido era conhecedor das funções então exercidas (à data) pelos assistentes BB, CC e DD, respetivamente, como presidente da Junta de Freguesia de ..., secretário e tesoureiro.

8. O arguido escreveu as sobreditas expressões representando, como resultado possível da sua conduta a imputação aos assistentes, perante terceiros, da suspeita de que estes, aproveitando-se das funções que exerciam na freguesia de ..., designadamente como presidente da Junta, secretário e tesoureiro, se apoderaram ou pretendiam continuar a apoderar-se de quantias em dinheiro da Fábrica da Igreja de ..., mormente do dinheiro das esmolas, dando-lhe o destino que entendessem, nomeadamente utilizando tais quantias para construírem as suas moradias e, ainda assim, atuou do modo descrito, conformando-se com essa representada possibilidade.

9. O arguido, ao escrever no seu perfil da rede social Facebook o que supra se transcreveu, fê-lo, representando como possível a possibilidade das suas imputações, suspeitas e insinuações, perante terceiros, atingirem o bom nome e reputação pessoal e profissional dos assistentes BB, CC e DD, enquanto elementos do órgão executivo da freguesia de ..., respetivamente, como presidente da Junta de Freguesia, secretário e tesoureiro, e de os denegrir publicamente, o que sucedeu, tendo o arguido se conformado com tal resultado.

10. Mais sabia o arguido que o meio utilizado - a internet e a rede social Facebook - facilitava, como facilitou, a sua divulgação a um indiscriminado número de pessoas.

11. O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, não se coibindo, ainda assim, de a praticar.

12. O demandado sabia que as afirmações publicadas, melhor descritas supra, não correspondiam à verdade e que tinham a virtualidade de ofender a honra, consideração e dignidade dos demandantes, possibilidade, concretizada, com a qual se conformou.

13. Para além dos cargos que exerciam no órgão executivo da freguesia de ..., na altura das expressões publicadas, os demandantes exerciam as suas profissões, tendo família e amigos;

14. BB é sócio da sociedade comercial C... (com objeto social da prestação de serviços ...);

15. O demandante CC é professor do ensino ...;

16. Demandante DD é reformado.

17. São pessoas conhecidas e reconhecidas publicamente, quer por inerência dos cargos que exerceram na Junta de Freguesia de ..., quer pelas suas profissões, quer, ainda, pela sua interação social.

18. Os seus amigos vêem-nos como pessoas com educação, estima e consideração.

19. As publicações e imputações referidas na acusação pública foram comentadas entre a população do Concelho de ... e, até concelhos limítrofes.

20. Ainda, hoje essas publicações são comentadas e faladas.

21. Os demandantes são abordados por pessoas para os questionarem sobre o sucedido, o que os deixa envergonhados.

22. Com as imputações que o demandando publicou, os assistentes sofreram desgosto, revolta, indignação.

23. Os demandantes, na sequência das publicações e comentários publicados da lavra do arguido sentiram-se humilhados, achincalhados, rebaixados, envergonhados, nervosos e angustiados.

24. Sentiram que a sua honestidade, dignidade e bom nome foram postos em causa pelo teor das publicações.

25. Os demandantes exerceram funções na Junta de Freguesia de ..., desde 2010 a 2021.

26. O demandado é padre, exercendo as suas funções nas freguesias de ..., ... e ..., no Concelho de ..., e preside o Centro Paroquial e Social de ....

27. O arguido é padre de profissão e é o pároco da Paróquia de....

28. O arguido é pessoa respeitada na comunidade.

29. O arguido é também Presidente no Centro Paroquial e Social de ..., sendo que, tanto este Centro como o de ... foram obra de raiz do arguido, que sempre trabalhou para suprir as necessidades prementes das suas paróquias.

30. O Centro Paroquial de ... tem as valências de: Centro de Dia, Centro de Noite, Apoio Domiciliário e Creche.

31. Por sua vez, o Centro de ... tem as valências de: Centro de dia, centro de noite e apoio domiciliário, tendo sofrido uma ampliação ainda agora recentemente.

32. Sendo um dos maiores empregadores do concelho tendo em vista todas as valências dos dois centros.

33. Foi e é, agora reformado, professor de português do ensino secundário.

34. É uma pessoa respeitada na sociedade, muito graças à obra que tem realizado nas suas paróquias.

35. O arguido é aposentado, auferindo uma pensão de cerca de €1800,00 (mil e oitocentos euros mensais);

36. Vive em casa própria; com irmã e sobrinhas;

37. Suporta despesas mensais na ordem dos €700,00;

38. Não é titular de propriedades ou de veículos automóveis;

39. Tem por habilitações literárias a licenciatura em ...;

40. Desempenhou a profissão de professor no ensino secundário;

41. O arguido não averba qualquer antecedente criminal.

(…)

Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objecto do recurso, importa decidir as seguintes questões:

• a) FALTA DE LEGITIMIDADE DOS ASSISTENTES

• b) DISCORDÂNCIA QUANTO À FORMA COMO O TRIBUNAL A QUO APRECIOU A PROVA: Do vício do erro notório na apreciação da prova, a que alude o artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal;

• c) DA MEDIDA DA PENA

Analisemos as questões

A propósito da falta de legitimidade dos assistentes para apresentarem queixa enquanto representantes de órgão invoca o recorrente que: os três queixosos não representam a Junta no seu todo, porquanto, como resulta do disposto no art.º 246º da CRP e art.º 23º, nº2 da Lei 169/99 com alterações do artº3 da Lei 5-A/202 - a Junta é constituída por um presidente e por vogais, sendo que dois exercerão as funções de secretario e tesoureiro. De modo que, desde já, o três queixoso não tem legitimidade para representar a Junta de Freguesia. Os queixosos, formularam a queixa através do seu mandatário, a quem emitiram mandato em nome individual e não na qualidade de membros da Junta.

2) A junta como Órgão é representada em Juízo pelo seu Presidente (art.º 38 nº 1 da Lei 169/99 de 18 de setembro. Ora, o Presidente como se comprova pela procuração intentou uma queixa em nome individual e não na qualidade de Presidente da Junta. 3)A queixa apresentada foi em nome individual e não na qualidade de membros da Junta, pois, nessa qualidade não o podiam fazer do modo que fizeram (art.º 113 nº1 do C. Penal) e, como tal, falta legitimidade ao MP para promover a ação penal e ao Exmo. Juiz para proferir a pronuncia (cfr. Art.º 48º e 49º, nº1 do C.P.P.

(…)

Daqui apenas podemos aferir que o arguido se refere explicitamente à junta e, nessa parte, se a junta entidade pretende denunciar a atitude do arguido como difamatória pode fazê-lo mediante queixa, mas devidamente representada.

Ora, tal não sucedeu uma vez que parte dos elementos da Juntas aqui representados fizeram-no a título individual e não em conjunto em representação da junta.

Decorre do exposto que lhes falta legitimidade para o exercício do direito que invocam.

Por outro lado, o arguido menciona ainda A junta nunca deu qualquer ajuda para as obras da Igreja. Deve ser para ir buscar as esmolas para acabarem as suas luxuosas moradias. Assim foi nos outros tempos. Mas há pessoas piores que os fariseus; não têm nada na cabeça e muito menos consciência. Até há anos atrás eram dois sacos, mas agora eram precisos três”.

Se foi em outros tempos certamente não se quer referir ao momento atual. Mas mesmo que fosse, perguntamos nós; quem? Como?

Quando afirma “eram” quer dizer “seriam precisos” reportando-se a momento futuro, caso se concretizasse.

Refere ainda Tanto é ladrão o que rouba como que deixar roubar”.

Tudo isto é vago pois não enuncia nomes, não diz expressamente se são estes elementos da junta ou não.

Sinceramente também não retiramos destas frases elementos que nos possam levar a subentender seja o que for.

O que sabemos é que houve efetivamente uma ação onde a junta pretende adquirir o adro e a igreja, e, quando afirma que já não há sacos de esmolas para levar, dá a entender que a ter ocorrido tal facto, foi no passado, pois disse já chegou e não já chega.

Resulta do exposto que:

A queixa apresentada foi em nome individual e não na qualidade de membros da Junta e, como tal, falta a legitimidade ao MP para promover a ação penal e ao Juiz para proferir a pronuncia (cfr. Art.º 48º e 49º, nº1 do C.P.P.

Como consequência a queixa é nula.

Por sua vez, não havendo queixa legitima, não confere legitimidade ao Ministério Público para promover a ação penal, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal.

Deste modo, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, sem que tivesse sido apresentada queixa pela respetiva titular ou ofendida, a junta de Freguesia.

A atividade desenvolvida pelo Ministério Público quando não dispõe de legitimidade para o exercício da ação penal, nos termos do artigo 48.º do Código Penal, equivale à falta de promoção do processo.

Assim a falta desse pressuposto de procedibilidade, ou seja, a falta de legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal determina a nulidade processual prevista no artigo 119.º, alínea b), do Código Processo Penal.

No caso presente, carecendo o Ministério Público de legitimidade para perseguir criminalmente contra o arguido, conclui-se que foi cometida nulidade insanável, que pode ser invocada e conhecida oficiosamente a todo o tempo até ao trânsito em julgado da decisão final.

Pelo que se considera tempestivamente arguida a nulidade e a sua declaração implica a invalidade de todo o processado, mormente da acusação e posterior tramitação, no que aos crimes de dano concerne, nos termos do artigo 122.º do Código Processo Penal.

Decorre do exposto que não pode manter-se o decidido, impondo-se antes arquivar o processo quanto ao indicado crime de difamação.

Mas, mesmo que assim não se considerasse, sempre teríamos de constatar a existência do vício previsto no artigo 410ºnúmero 2 do CPP, concretamente a sua alínea c), traduzido em erro notório na apreciação da prova, pela forma como foi apreciada a prova produzida, e que de igual modo acarreta a nulidade.

É o próprio tribunal que refere Quanto à extensa prova testemunhal produzida o Tribunal destaca a sua fraca relevância para a decisão dos autos, na medida em que a maior parte dos depoimentos enveredou por considerações opinativas sobre a hermenêutica do escrito do Sr. Padre, sendo percetível que perfilaram dois lados: as testemunhas apoiantes dos membros da junta (indignados com a atuação do Sr. Padre) e as testemunhas apoiantes do Sr. Padre (desvalorizando o teor do escrito – ainda que a maior parte delas nem sequer o tenha lido – limitando-se a fazer eco do que o arguido lhes disse ou ouviram dizer sobre o assunto e/ou a engrandecendo a obra e o caráter do seguido). Como tal, foi muito pouca a isenção de todas as testemunhas ouvidas, pelo que se atribuiu maior relevância à prova documental em conjugação com as explicações dadas em juízo pelo arguido.

Assim sendo, não acompanhamos o mesmo raciocínio que o tribunal recorrido pelas razões expostas.

Concluindo, a convicção do tribunal, apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação, não tem correspondência com os elementos de prova apresentados, razão pela qual constatamos a existência de erro na apreciação da prova.

Acresce que as queixas apresentadas neste processo carecem de legitimidade, em virtude de os queixosos se terem apresentado em nome individual e, nesta qualidade individual, nada lhes tendo sido imputado em concreto, carecendo o MP de legitimidade para o exercício da ação penal conclui-se pela nulidade de todo o processado

- declarando a nulidade de todo o processado por falta de legitimidade da queixa por parte dos assistentes e do exercício da acção penal pelo MP, consequentemente dele absolvem o arguido AA.”

2. Fundamentação

Pretendem os assistentes recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que, na procedência do recurso interposto pelo arguido da decisão de 1.ª instância que o condenara na pena única de 200 dias de multa a 8.00€, no total de 1.600.00€, declarou a nulidade de todo o processado por falta de legitimidade da queixa dos assistentes e do exercício da acção penal pelo Ministério Público, e, em consequência absolveu o arguido.

Trata-se, assim, de um acórdão absolutório proferido em recurso pela Relação, decisão inequivocamente irrecorrível nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. d) do CPP.

É este acórdão que os assistentes pretendem impugnar, dizendo fazê-lo ao abrigo do disposto no art. 629.º, n.º 2, a. a), do CPC, ex vi art. 4.º do CPP, certamente cientes da irrecorribilidade da decisão à luz das normas que regem no Código de Processo Penal a matéria dos recursos.

Da fundamentação e conclusões do recurso, resulta inequívoco que os recorrentes agem ao abrigo do art. 629.º, n. º 2, al. a) do CPC, norma que pretendem ver aplicada em processo penal. Na parte que agora releva, esta norma processual civil preceitua que “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso (…) com fundamento (…) na ofensa de caso julgado”.

Pugnam assim os recorrentes pela aplicação de norma do processo civil por via da aplicação concomitante do art. 4.º do CPP, que, como se sabe, trata da “Integração de lacunas”, dispondo que “nos casos omissos (…) observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal (…)”.

Assim, não se apresenta controvertido que o acórdão da Relação que se visa impugnar é irrecorrível à luz do Código de Processo Penal. Ou seja, a lei processual penal não prevê, vedando mesmo, a possibilidade de nova reacção processual com vista à obtenção de um reexame da decisão por um tribunal superior, num caso como o presente.

Na verdade, o presente acórdão da Relação é já uma decisão que, em recurso, conheceu da impugnação de sentença de 1.ª instância. E a irrecorribilidade do acórdão da Relação impõe-se aqui, pois a decisão sub judice não beneficia da possibilidade de duplo grau de recurso.

Desde logo, o art. 400.º do CPP é uma norma de excepção ao regime-regra de recorribilidade dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, regime-regra afirmado no art. 399.º do CPP. E da limitação do direito ao recurso consagrada na norma em causa (art. 400.º do CPP), designadamente do seu n.º 1, al. d), decorre que não é admissível recurso “de acórdãos absolutórios proferidos em recurso pelas relações, excepto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos”, e a excepção não ocorre no caso presente.

Daí que, cientes da irrecorribilidade, pretendam os recorrentes ver aplicada norma do Código de Processo Civil. E, para tanto, argumentam que o acórdão recorrido teria violado o caso julgado parcial que se teria formado no processo relativamente a matéria de facto conhecida na sentença. O que, na sua alegação, viabilizaria agora a interposição do presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, pretensamente aplicável ex vi art. 4.º do CPP, e onde pretenderiam ver ainda discutidas outras questões, a acrescer à invocada violação do caso julgado.

A pretensão dos recorrentes não é, porém, de atender, pois o acórdão recorrido é uma decisão irrecorrível, como se disse.

Na verdade, em processo penal e em matéria de recursos, o Código de Processo Penal prevê e regulamenta autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso. E a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso num caso como o presente. Duplo grau de recurso que a Constituição, aliás, não consagra, sendo jurisprudência desde sempre pacífica, do Tribunal Constitucional, que o direito ao recurso constitucionalmente assegurado se basta com a garantia de um grau de recurso. Grau este que, no presente caso, se mostra assegurado. Mostra-se cumprido um grau de recurso e o duplo grau de jurisdição.

A norma processual civil cuja utilização se pretende não tem aplicação em processo penal, desde logo porque o art. 4.º do CPP pressupõe a existência de uma lacuna. E lacuna não ocorre em matéria de recursos.

Não ocorre seguramente ao nível das grandes linhas de organização do modelo e de classificação dos vários tipos de recursos, ordinários e extraordinários.

Logo na fundamentação do Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 9/2005, o Supremo Tribunal de Justiça reafirmou a autonomização dos recursos em processo penal prosseguida pelo Código de Processo Penal vigente, jurisprudência que o decurso do tempo só veio consolidar. Fê-lo ali, ao que ora interessa, nos seguintes termos:

“O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos modos de decisão do recurso e aos respectivos prazos de interposição, está construído numa perspectiva de autonomia processual, que o legislador pretende própria do processo penal e adequada às finalidades de interesse público a cuja realização está vinculado.

O regime de recursos em processo penal, tributário e dependente do recurso em processo civil no Código de Processo Penal de 1929 (CPP/29), autonomizou-se com o Código de Processo Penal de 1987 (CPP/87), constituindo actualmente um regime próprio e privativo do processo penal, tanto nas modalidades de recursos como no modo e prazos de interposição, cognição do tribunal de recurso, composição do tribunal e forma de julgamento.

No CPP/29, o recurso em processo penal seguia a forma do processo civil, sendo processado e julgado como o agravo de petição em matéria cível (artigo 649.º do CPP/29); não existia, então, como regra, regulamentação própria e autónoma, privativa do processo penal.

A autonomização do modelo de recursos constituiu mesmo um dos momentos de reordenamento do processo penal no CPP/87. A lei de autorização legislativa (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro), que concedeu autorização para a aprovação de um novo Código de Processo Penal, definiu expressamente como objectivo a construção de um modelo, que se pretendia completo, desde a concepção das fases do processo até aos termos processuais da reapreciação das decisões na concretização da exigência - que é de natureza processual penal no plano dos direitos fundamentais - de um duplo grau de jurisdição. A lei consagrou imposições determinantes no que respeitava ao regime de recursos, apontando para uma perspectiva autónoma e para uma regulação completa.

Os pontos 70 a 75 do n.º 2 do artigo 2.º da lei de autorização (sentido e extensão), referidos especificamente às orientações fundamentais em matéria de recursos, impunham, decisivamente, a construção de um modelo com autonomia, desligado da tradição da referência aos recursos em processo civil.

Por seu lado, a nota preambular do CPP/87, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, qualifica o regime de recursos como «inovador», estabelecido na perspectiva da obtenção de um amplo efeito («potenciar a economia processual numa óptica de celeridade e eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico»), assim autonomizado como modelo próprio para realizar finalidades específicas do processo penal.

A intenção e a autonomia do modelo mantêm-se após a reformulação do regime de recursos na reforma de 1998 (Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto), a formulação reguladora das diversas modulações nos recursos (tribunal singular, tribunal colectivo e tribunal do júri; matéria de facto e matéria de direito; tribunais da relação e Supremo Tribunal de Justiça; oralidade e audiência no tribunal de recurso) continua a constituir um sistema com regras próprias e específicas do processo penal (cf. a exposição de motivos da proposta de lei n.º 157/VII, n.os 15 e 16).

A autonomia do modelo e das soluções processuais que contempla coloca-o a par dos regimes de recursos de outras modalidades de processo, independente e com vocação de completude, com soluções que pretendem responder, por inteiro e sem espaços vazios, às diversas hipóteses que prevê.

Não obstante alguma proximidade ou «analogia semântica» nos nomina de designação entre as categorias de recursos (uma «civilprocessualização» do recurso em processo penal, como refere Damião da Cunha, in Caso Julgado Parcial, 2002, a pp. 528 e 529), a similitude não se verifica, no rigor das coisas, no plano da regulamentação e no modo operativo; nem o recurso em processo penal para o Tribunal da Relação constituiu uma apelação em processo civil, como o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça constitui, mais que um recurso de revista (revision), uma espécie autónoma de revista (revista alargada) em que o poder de cognição se estende a importantes domínios atinentes ao complexo material ainda pertencente ao âmbito - alargado - da matéria de facto.”

A autonomia total do modelo e regime de recursos em processo penal, a par da regra da suficiência do processo penal consagrada no art. 7.º, n.º 1 do CPP, mantém-se até ao presente. E mantém-se com o sentido conhecido apresentado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, sem censura de constitucionalidade, e em interpretação também sabida pelo legislador.

Sucede que não ocorreu qualquer alteração legislativa nesta parte, nomeadamente nas reformas operadas pelas Leis n.ºs 48/2007, de 29 de Agosto, e 20/2013, de 21 de Fevereiro, o que podia ter sido feito, se essa fosse a intenção do legislador. Tanto mais que, repete-se, é bem conhecida a jurisprudência consistentemente maioritária do Supremo Tribunal de Justiça a este propósito, bem como a completa ausência de censura por parte do Tribunal Constitucional a tal interpretação.

Vejam-se, entre muitos outros:

- O acórdão do STJ de 17.06.2015 (Rel. João Miguel) em que se notou que “O TC já afastou a prevalência do caso julgado como fundamento de recurso por referência a normas do processo civil e do processo penal, não surpreendendo nessa interpretação desconformidade constitucional, não tendo o acórdão reclamado levado a cabo interpretação tida por inconstitucional de qualquer norma do CPP”, citando-se aqui os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 630/2011, de 19 de dezembro de 2011, e n.º 33/2015, de 14 de janeiro de 2015.

- O acórdão do STJ de 04.12.2019 (Rel. Manuel Matos), no sentido de que

“V - O artigo 432.º do CPP delimita exaustivamente os casos de recurso para o STJ, sendo que a vigente lei processual penal contempla taxativamente os recursos extraordinários previstos, quais sejam, o recurso para fixação de jurisprudência, o recurso interposto de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (artigos 437.º e 446.º do CPP) e o recurso de revisão (artigo 449.º do CPP), não prevendo a revista excepcional sobre objecto penal.

VI - Tendo o regime processual dos recursos penais sido autonomizado no Código de 1987, só em caso de lacuna do regime processual penal, que careça de integração, é lícito ao intérprete socorrer-se dos atinentes preceitos processuais civis (art. 4.º do Código de Processo Penal).

VII – No caso presente, não se nos afigura que se possa afirmar a existência de uma lacuna que careça de ser integrada. As necessidades de certeza e segurança do direito obrigam o legislador a uma «hierarquização de valores», originando a exclusão de situações que, embora alguns possam considerar carecidas de tutela, não foram realmente na hipótese contempladas. Pelo que, nesta perspectiva, o intérprete terá de presumir, em princípio, que o legislador elaborou um «sistema completo», não podendo, sem risco de subversão das regras hermenêuticas, recuperar por sua conta aquelas situações.

IX – Já relativamente à matéria penal, ao objecto penal tramitado no processo penal, observa-se a inaplicabilidade das normas processuais civis relativamente aos recursos aí interpostos e, muito em particular, aos recursos interpostos perante o STJ. Neste ponto, o regime jurídico-processual dos recursos e respectivas espécies, consagrado no CPP pauta-se pela suficiência (princípio da auto-suficiência), é taxativo, exaustivo e completo.

X - Ora, reafirmando-se, o regime processual penal português vigente não prevê a existência do recurso de revista excepcional em matéria penal, não se vislumbrando, ao invés do que o recorrente pretende, razões ou fundamentos que permitam concluir no sentido de o sistema jurídico reclamar, por via interpretativa ou integrativa, a aplicabilidade do recurso à revista excepcional para ultrapassar os efeitos decorrentes de duas decisões conformes (da 1.ª instância e da Relação) quanto ao objecto penal.”.

- O acórdão do STJ de 16-06-2020 (Rel. Margarida Blasco), no sentido de não ser “convocável em recurso da matéria penal a aplicação supletiva do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC. O regime de recursos em processo penal é hoje, e, em princípio, auto-suficiente, não havendo lacuna que permita, a coberto do artigo 4.º, do CPP, que seja lançada mão do disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC relativamente ao recurso em matéria penal para o STJ com base em ofensa ao caso julgado. Sendo que a jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal assim tem decidido”;

- O acórdão do STJ de 06-05-2020 (Rel. Raul Borges), no sentido de “no domínio do processo penal, a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça da parte da sentença relativa à matéria criminal está essencialmente dependente da medida concreta da pena aplicada ao arguido.

(…) Não tem aplicação em processo penal a recorribilidade com base em incompetência material ou violação de caso julgado. - art.º 629.º, n. º 2, al. a), do CPC.

(…) Este Supremo Tribunal já se pronunciou no sentido de inexistência de lacuna e de não ser aplicável em processo penal o disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, como consta do sumário do acórdão de 7 de Janeiro de 2016, proferido no processo n.º 204/13.6YUSTR.L1-A.S1, da 5.ª Secção.

No sentido de inexistência de lacuna e de não aplicação da revista excepcional em matéria penal, pronunciaram-se os acórdãos de 06-10-2016, proferido no processo n.º 535/13.5JACBR.C1.S1 - 5.ª Secção e de 4-12-2019, proferido no processo n.º 354/13.9IDAVR.P2.S1, da 3.ª Secção, in CJSTJ 2019, tomo 3, págs. 230 a 235.”;

- O acórdão do STJ de 27-01-2021 (Rel. Nuno Gonçalves) em que que pode ler:

“(…) a autonomização dogmática e metodológica do regime dos recursos processo penal, em matéria criminal, em relação à lei adjectiva do processo civil, foi uma das preocupações do legislador do vigente CPP, informado pelo ideário de estabelecer um sistema integrado - e completo - de soluções potenciadoras da “economia processual numa óptica de celeridade e de eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico. (…) as excepções ao princípio geral da recorribilidade das decisões em processo penal estão expressamente previstas no CPP, não existindo qualquer lacuna, nem, consequentemente, margem para convocar a aplicabilidade da norma do artigo 629. ° n.º 2, do Código de Processo Civil”.

Tudo visto, ficam também por justificar as inconstitucionalidades invocadas, que os recorrentes nem apoiam em jurisprudência do Tribunal Constitucional, jurisprudência que tem sido aliás em sentido oposto ao propugnado no recurso.

O recurso deve, pois, ser rejeitado por inadmissibilidade face à irrecorribilidade da decisão, e a tal não obsta a circunstância de ter sido admitido no Tribunal da Relação, pois a “decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior” (art. 414.º, n.º 3, do CPP).

E sendo a presente uma decisão de rejeição do recurso, não cumpre conhecer de nenhuma das questões suscitadas. Como sejam a da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia (art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP), a da violação do caso julgado, a do vício de contradição entre fundamentação e decisão e a do vício do erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. b) e c) , do CPP), pois esse conhecimento pressuporia a prévia admissibilidade do recurso interposto.

Também não pode haver lugar agora a devolução dos autos ao Tribunal da Relação, para eventual conhecimento, ali, das nulidades do acórdão arguidas no recurso para o Supremo, conforme vieram os recorrentes peticionar subsidiariamente na resposta ao parecer.

Na verdade, não foi opção dos recorrentes, no momento e no modo próprio, a arguição de nulidades do acórdão perante o Tribunal que o proferiu (o Tribunal da Relação). O que podiam e deviam ter feito, se pretendiam ver ali conhecidas e apreciadas tais nulidades, uma vez que o acórdão da Relação é (era) claramente uma decisão irrecorrível.

Ao prescindirem dessa oportuna e adequada arguição perante o tribunal da Relação, antes tendo optado, indevidamente, pela interposição de um recurso de um acórdão irrecorrível (recurso este inadmissível, portanto), obstaram ao conhecimento de toda a matéria que visavam ver apreciada no recurso impropriamente interposto, incluindo as referidas nulidades, cujo conhecimento comprometeram assim irremediavelmente.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar os recursos por irrecorribilidade da decisão.

Pagarão os recorrentes, cada um deles, 5 UC de taxa de justiça e ainda a importância de 3UC, nos termos do art. 420.º, n.º 3 CPP.

Lisboa, 25.10.2023

Ana Barata Brito, relatora

Pedro Branquinho Dias, adjunto

Maria Teresa Féria de Almeida, adjunta