Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
24471/16.4T8PRT.P1.S2-A
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
ALOJAMENTO
FRAÇÃO AUTÓNOMA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
Data do Acordão: 03/22/2022
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Referência de Publicação: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA N.º 4/2022, PUBLICADO NO DR Nº 90, 1ª SÉRIE, 10 DE MAIO DE 2022, P. 8-32.
ARTIGO DE MARIA RAQUEL REI PUBLICADO NA "REVISTA DE DIREITO CIVIL" - A. 8 (2023), N.º 2 - P. 443-425
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO E UNIFORMIZADA A JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fracção se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Pleno das Secções Cíveis, do Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório

1. AA (A.) intentou, em 13/12/2016, acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC (R.R.), alegando, no essencial, o seguinte: 

a) O prédio urbano composto de cave, rés-do-chão e quatro andares, sito na freguesia da … do …, foi constituído em regime de propriedade horizontal mediante escritura pública outorgada em 11/03/2008, compreendendo 16 fracções autónomas designadas pelas letras A a Q;  

b) Nos termos dessa escritura e do documento complementar a ela anexo, as fracções autónomas designadas pelas letras A e B, localizadas no rés-do-chão, estão destinadas a comércio e as restantes, localizadas nos 1.º a 4.º andares, destinam-se a habitação;

c) A fracção C, localizada no 1.º andar, é propriedade do R. BB e a fracção E é propriedade do ora A.;

d) Em Março de 2016, começaram a ser prestados, na referida fracção C, serviços de alojamento temporário a turistas, mediante remuneração, sendo que o R. BB, sob a designação comercial P… H…, tem publicitado na Internet e disponibilizado aquela fracção mobilada e equipada para alojamento a turistas e como alojamento temporário, inferior a 30 dias, prestando ainda serviços remunerados de limpeza;

e) Para tanto, o mesmo R. cedeu essa fracção à R. CC, sua mãe, que procedeu ao registo da actividade de alojamento local na Câmara Municipal d… … e no Turismo de Portugal, I.P.;

f) Porém, não foi solicitado aos demais condóminos qualquer consentimento para a referida exploração da fracção C, nem estes concordam com a utilização que lhe tem vindo a ser dada, diversa do destino para habitação indicado no título constitutivo da propriedade horizontal;

g) Sucede que a rotatividade e a aleatoriedade dos utentes aumentam inevitavelmente o risco de perturbação ao descanso, a insegurança, o desgaste e a sujidade das partes comuns, sempre em prejuízo dos demais condóminos, que vêem o seu imóvel desvalorizado e com despesas adicionais, sem retirar qualquer proveito;

h) A par disso, os utentes alojados passam a ter acesso e a usar o espaço de garagem, reservado e exclusivo para o estacionamento de veículos dos condóminos moradores.

i) Assim, o sobredito uso da fracção C infringe o disposto nos artigos 1419.º e 1422.º, n.º 2, alínea c), do CC.

Concluiu a pedir que:

1) – Fosse declarada ilegal a utilização da fracção autónoma designada pela letra C dada pelos R.R. para estabelecimento de alojamento local;

2) – Fossem os R.R. condenados a cessar imediatamente essa utilização e a reintegrar a fracção no seu destino específico para habitação;

3) – Fossem ainda os R.R. condenados no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor de € 150,00/dia, a contar da data do trânsito em julgado até efetiva cessação do alojamento.


2. Os R.R. apresentaram contestação em que, aceitando serem prestados serviços de alojamento temporário a turistas na fracção em referência, sustentaram, em resumo, que:

a) A utilização dada à fracção em causa se enquadra no regime jurídico de alojamento local previsto no Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29/08, alterado pelo Dec.-Lei n.º 63/2015, de 23/04;

b) O 1.º R. adquiriu essa fracção para a sua habitação, mas, por razões profissionais, passou a residir também no estrangeiro, sendo-lhe legítimo destiná-la a alojamento local, o que não descaracteriza o destino para habitação que lhe é dado no título constitutivo;

c) Como utilizadores do edifício, as pessoas a quem cede a habitação tem o direito a aparcar o veículo na garagem.

d) A vingar a tese do A., estariam a ser coartados os poderes que assistem ao R. como proprietário da fracção C, tanto mais que nem todas as fracções do prédio se destinam a habitação.

Concluíram pela improcedência da acção e consequente absolvição dos R.R. de todos os pedidos.


3. Por despacho proferido a fls. 68, foi o A. convidado a fazer intervir os demais condóminos, por se afigurar ser de evitar a preterição de litisconsórcio necessário, o que foi requerido e ordenado, não tendo os chamados deduzido qualquer articulado.


4. Por fim, foi proferido saneador-sentença a julgar a acção totalmente procedente, conforme fls. 125-130, decidindo-se:

 “a) Declarar “ilegal” a utilização para estabelecimento de alojamento local que é dada pelos R.R. à fracção autónoma designada pela letra C;

b) Condenar os Réus a cessar imediatamente a utilização que fazem da fracção C e reintegrá-la no seu destino específico de habitação;

c) Condenar os Réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor diário de € 150,00, desde a data do trânsito em julgado da presente decisão e até efetiva cessação da actividade de alojamento local.”


5. Inconformados com essa decisão, os R.R. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação d… …, que julgou improcedente a apelação, confirmando inteiramente a sentença recorrida, conforme o acórdão de fls. 184-192.


6. Novamente inconformados, os R.R. interpuseram revista excepcional, ao abrigo dos pressupostos previstos no artigo 672.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do CPC, convocando, nomeadamente, como acórdão-fundamento o aresto proferido pela Relação do Porto, de 15/09/2016, no processo n.º 4910/16.5T8PRT-A.P1, reproduzido a fls. 214-224. 

A revista excepcional foi admitida pela formação dos três Juízes deste Supremo a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º do CPC, considerando-se, para tanto, bastar a verificação do pressuposto previsto na alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo, dada a sua abrangência. 


7. O Supremo Tribunal, por acórdão de 23-01-2020, negou provimento à revista e confirmou o acórdão da Relação.


8. Os réus, BB e CC, vieram interpor, a 03 de Março de 2020, RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, alegando o seguinte (transcrição):

1.1. No acórdão recorrido, foi entendido que:

- a actividade de alojamento local não integra o conceito de habitação como fim dado às fracções autónomas no título constitutivo da propriedade horizontal;

- o conceito de habitação, como destino da fracção autónoma, mostra-se qualitativamente distinto do conceito de utilização da mesma para alojamento local;

- a actividade de exploração de alojamento local, tal como se encontra regulada no Dec.-Lei n.° 128/2014, de 29/08, reveste natureza comercial.

1.2. No acórdão-fundamento, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 28-03-2017, no processo n.º 12579/16.0T8LSB.L1.SI, transitado em julgado, foi entendido que:

- o arrendamento da fracção a turistas por curtos períodos, designado por alojamento local, não é um acto de comércio;

- na cedência onerosa da fracção a turistas, a fracção autónoma destina-se à respectiva habitação e não a actividade comercial, respeitando o conteúdo do título constitutivo da propriedade horizontal onde consta que determinada fracção se destina a habitação, se essa fracção for objeto de alojamento local.

1.3. Ambos os acórdãos versam sobre as mesmas questões fundamentais de direito, a saber: determinar se a actividade de exploração de alojamento local integra um acto de comércio e se a utilização de uma fracção destinada a habitação para alojamento local viola o título constitutivo da propriedade horizontal;

1.4. Tais acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação - artigos 1418.°, n.° 2, alínea a), e 1422.°, n.° 2, alínea c), do CC e Dec.-Lei n.° 128/2014, de 29/08 com as sucessivas alterações;

1.5. Estamos perante uma clara contradição de julgados, que justifica a uniformização de jurisprudência.”


9. Não foram apresentadas contra-alegações.


10. Por decisão do Juiz Conselheiro Relator, proferida a 06 de Outubro de 2020, foi “admitido o presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência sobre a questão fundamental de direito suscitada pelos Recorrentes”.

A fundamentar a decisão foi dito (transcrição):

O artigo 688.º CPC prescreve que:

1. As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

2. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito em julgado, presumindo-se o trânsito.

3. O recurso não é admitido se a orientação perfilhada no acórdão recorrido estiver de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

Trata-se de recurso extraordinário cujo prazo de interposição é de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido (art.º 689.º, n.º 1, do CPC), tendo por finalidade verificar a alegada contradição jurisprudencial e, em caso afirmativo, decidir a questão controvertida, emitindo acórdão de uniformização sobre o conflito assim verificado.

Posto isto, em sede de exame preliminar, importa averiguar as condições de admissibilidade daquele recurso nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 692.º do CPC, segundo o qual o mesmo deverá ser rejeitado quando:

a) – Não tenha cabimento, seja intempestivo ou o recorrente não detenha as condições necessárias para recorrer – art.º 641.º, n.º 2, alínea a), do CPC;

b) – O requerimento de interposição não contenha alegações ou estas não sejam juntas ou sejam desprovidas de conclusões – art.º 641.º, n.º 2, alínea b), e 690.º, n.º 1, do CPC;

c) – O recorrente não junte cópia do acórdão-fundamento, nos termos do art.º 690, n.º 2, do CPC;

d) – Não exista a oposição que lhe serve de fundamento;

e) – A orientação perfilhada no acórdão recorrido esteja de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

Para tanto, importa que a contradição alegada se revele frontal nas decisões em equação, que não implícita ou pressuposta, muito embora não se mostre necessária a verificação de uma contradição absoluta, não relevando a argumentação meramente acessória ou lateral (obiter dicta). Essa contradição só é relevante quando se inscreva no plano das próprias decisões em confronto e não apenas entre uma decisão e a fundamentação de outra, ainda que as respetivas argumentações sejam pertinentes para ajuizar sobre o alcance do julgado.

Desde logo, como, de resto, foi assumido no próprio acórdão recorrido existe clara contradição entre o entendimento ali seguido e o adotado no acórdão-fundamento, precisamente sobre os pontos enunciados pelos Recorrentes, tendo, em consequência disso, desembocado em decisões antagónicas, não relevando aqui a mera circunstância de o acórdão-fundamento ter sido proferido em sede de tutela provisória cautelar e o acórdão recorrido no âmbito da tutela definitiva.

Com efeito, no acórdão recorrido, foi considerado, além do mais, que:

a) – Não é lícito inferir que a simples exigência de autorização de utilização ou de título de utilização válido do prédio urbano, para efeitos do registo do estabelecimento de alojamento local, implique, sem mais, a assunção legal de que a atividade de alojamento local integre o conceito de habitação como fim dado às frações autónomas no título constitutivo da propriedade horizontal nos termos do artigo 1418.º, n.º 2, alínea a), e para efeitos do disposto no artigo 1422.º, n.º 2, alínea c), do CC, no quadro privativo do estatuto condominial.

b) – A menção do fim das frações autónomas no título constitutivo da propriedade horizontal ao abrigo do artigo 1418.º, n.º 2, alínea a), do CC, embora de génese negocial, sendo objeto do registo nos termos dos artigos 2.º, n.º1, alíneas b) e v), e 95.º, n.º1, alíneas r) e z), do Código de Registo predial, integra o estatuto do condomínio, assumindo natureza real com eficácia erga omnes, para além do conteúdo típico dos direitos reais inerente ao numerus clausus estabelecido no art.º 1306.º do CC.

c)  – Nessas circunstâncias, o conceito de habitação como destino da fração autónoma mostra-se qualitativamente distinto do conceito de utilização da mesma para alojamento local, já que o gozo de uma fração habitacional tem uma envolvência personalizada e de tendencial estabilidade do usuário com a coisa, enquanto que o uso em sede de alojamento local por sucessivos e diversos utilizadores, transitórios, é volúvel e disseminado, um e outro com repercussões qualitativamente diferenciadas no meio inter-habitacional ou condominial em que se desenvolvem.

d) – A atividade de exploração de alojamento local, tal como se encontra regulada pelo Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29/8, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 63/2015, de 23-04, reveste natureza objetivamente comercial, à luz de uma interpretação atualista do disposto no artigo 2.º do Código Comercial, e não deve ser considerada como objeto de arrendamento habitacional.

e) – A não permissão de um condómino titular de fração autónoma destinada a habitação, conforme menção constante do título constitutivo da respetiva propriedade horizontal, usar essa fração na exploração de alojamento local, nos termos dos artigos 1418.º, n.º 2, alínea a), e1422.º, n.º 2, alínea c), do CC, não viola a garantia do direito de propriedade privada consagrada no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição.

Contrariamente, no acórdão-fundamento, considerou-se, em síntese, que:

a) – O alojamento local, oneroso, de fração autónoma imobiliária mobilada a turistas, por curtos períodos, constitui um arrendamento para habitação, não se traduzindo em ato objetivo de comércio exercido na própria fração nos termos do artigo 2.º do Código Comercial;

b) – Assim, tal alojamento, regulado pelo Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29-8, respeita o conteúdo do no título constitutivo da propriedade horizontal de onde consta que determinada fração se destina a habitação, não violando o preceituado nos artigos 1418.º e 1422.º, n.º 2, alínea c), do CC.

Neste quadro, a questão fundamental de direito que importa aqui resolver consiste em saber se o exercício da atividade de alojamento local, regulada pelo Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29-8, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 63/2015, de 23-04, em fração autónoma destinada a habitação, segundo menção constante do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em que esta se integra, nos termos do artigo 1418.º, n.º 2, alínea a), do Código Civil, e do respetivo registo predial, constitui ou não um uso diverso do fim a que essa fração é destinada, vedado aos condóminos, nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 1422.º, n.º 2, alínea c), do mesmo Código.

Do acima exposto resulta, claramente, que esta questão, ancorada como se encontra em situações de facto de características análogas e no âmbito do mesmo quadro normativo, mais precisamente em torno das disposições legais referidas, obteve soluções diametralmente opostas nos acórdãos em confronto, as quais evidencia contradição jurisprudencial relevante nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 688.º, n.º 1, do CPC em ordem a justificar a intervenção uniformizadora do Supremo Tribunal de Justiça.” (fim de transcrição)


11. A Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer a 29/11/2020, com a referência citius 96…30, aceitando a existência de contradição jurisprudencial fundamentadora da admissibilidade do RUJ, mas defendeu “não ser possível o exercício da atividade de alojamento local, regulada pelo Decreto-Lei n.º128/2014, de 29-08, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 63/2015, de 23-04, em fração autónoma destinada a habitação, segundo menção constante do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em que esta se integra, nos termos do artigo 1418.º, n.º 2, alínea a), do Código Civil, e do respetivo registo predial, uma vez que tal atividade consubstancia uso diverso do fim a que essa fração se destinada, vedado aos condóminos, nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 1422.º, n.° 2, alínea c), do mesmo Código”.

Em termos de segmento uniformizador a proposta é de fixação da jurisprudência nos seguintes termos:

“O exercício da atividade de alojamento local, regulada pelo Decreto-Lei n.° 128/2014, de 29-08, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 63/2015, de 23-04, em fração autónoma destinada a habitação, segundo menção constante do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em que esta se integra, nos termos do artigo 1418.°, n.° 2, alínea a), do Código Civil, e do respetivo registo predial, constitui uso diverso do fim a que essa fração é destinada, vedado aos condóminos, nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 1422.°, n.° 2, alínea c), do mesmo Código.”


Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. Fundamentação

12. pressupostos do ruj

12.1. Nos termos do art.º 688.º, do CPC:

“1 - As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

2 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito em julgado, presumindo-se o trânsito.

3 - O recurso não é admitido se a orientação perfilhada no acórdão recorrido estiver de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.”


Como recurso extraordinário o prazo de interposição é de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido (art.º 689.º, n.º 1, do CPC) e a sua finalidade é apurar da alegada contradição jurisprudencial para, em caso afirmativo, decidir a questão controvertida, emitindo acórdão de uniformização sobre o conflito assim verificado e, sendo caso disso, fazer reflectir sobre o acórdão recorrido a orientação definida.


12.2. Do art.º 692.º, n.º 4 do CPC decorre que a decisão liminar de admissão do recurso para uniformização de jurisprudência não é vinculativa para este Pleno das Secções Cíveis, devendo o mesmo voltar a pronunciar-se sobre a questão, pelo que importa, a este título, confirmar se ocorre contradição jurisprudencial.

De acordo com a jurisprudência deste STJ tem-se entendido ser necessária a verificação cumulativa de três requisitos de carácter substancial para se poder afirmar ocorrer contradição jurisprudencial relevante para efeitos de admissão do indicado recurso:

(i) a identidade da questão fundamental de direito;

(ii) a identidade do regime normativo aplicável; e

(iii) a essencialidade da divergência para a resolução de cada uma das causas.


Serão, assim, os indicados pontos considerados de seguida, ainda que em ordem diversa.

13. Verificação da contradição. Análise especificada.

13.1. A similitude da realidade factual no contexto dos dois processos

13.1.1. No acórdão recorrido, AA (A.) intentou, em 13/12/2016, acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC (R.R.), alegando, no essencial, o seguinte: i) prédio urbano composto de cave, rés-do-chão e quatro andares, sito na freguesia da … d… …, foi constituído em regime de propriedade horizontal mediante escritura pública outorgada em 11/03/2008, compreendendo 16 fracções autónomas designadas pelas letras A a Q; ii) Nos termos dessa escritura e do documento complementar a ela anexo, as fracções autónomas designadas pelas letras A e B, localizadas no rés-do-chão, estão destinadas a comércio e as restantes, localizadas nos 1.º a 4.º andares, destinam-se a habitação; iii) A fracção C, localizada no 1.º andar, é propriedade do R. BB e a fracção E é propriedade do ora A.; iv) Em março de 2016, começaram a ser prestados, na referida fracção C, serviços de alojamento temporário a turistas, mediante remuneração, sendo que o R. BB, sob a designação comercial P… H…., tem publicitado na Internet e disponibilizado aquela fracção mobilada e equipada para alojamento a turistas e como alojamento temporário, inferior a 30 dias, prestando ainda serviços remunerados de limpeza; v) Para tanto, o mesmo R. cedeu essa fracção à R. CC, sua mãe, que procedeu ao registo da atividade de alojamento local na Câmara Municipal d… … e no Turismo de Portugal, I.P.; vi) Porém, não foi solicitado aos demais condóminos qualquer consentimento para a referida exploração da fracção C, nem estes concordam com a utilização que lhe tem vindo a ser dada, diversa do destino para habitação indicado no título constitutivo da propriedade horizontal; vii) Sucede que a rotatividade e a aleatoriedade dos utentes aumentam inevitavelmente o risco de perturbação ao descanso, a insegurança, o desgaste e a sujidade das partes comuns, sempre em prejuízo dos demais condóminos, que vêem o seu imóvel desvalorizado e com despesas adicionais, sem retirar qualquer proveito; viii) A par disso, os utentes alojados passam a ter acesso e a usar o espaço de garagem, reservado e exclusivo para o estacionamento de veículos dos condóminos moradores.

O A. pediu:

a) – Fosse declarada ilegal a utilização da fracção autónoma designada pela letra C dada pelos R.R. para estabelecimento de alojamento local;  

b) – Fossem os R.R. condenados a cessar imediatamente essa utilização e a reintegrar a fracção no seu destino específico para habitação;

c) – Fossem ainda os R.R. condenados no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor de € 150,00/dia, a contar da data do trânsito em julgado até efetiva cessação do alojamento.

Os R.R. apresentaram contestação em que, aceitando serem prestados serviços de alojamento temporário a turistas na fracção em referência, sustentaram, em resumo, que:  i) A utilização dada à fracção em causa se enquadra no regime jurídico de alojamento local previsto no Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29/08, alterado pelo Dec.-Lei n.º 63/2015, de 23/04; ii) O 1.º R. adquiriu essa fracção para a sua habitação, mas, por razões profissionais, passou a residir também no estrangeiro, sendo-lhe legítimo destiná-la a alojamento local, o que não descaracteriza o destino para habitação que lhe é dado no título constitutivo; iii) Como utilizadores do edifício, as pessoas a quem cede a habitação tem o direito a aparcar o veículo na garagem; iv) A vingar a tese do A., estariam a ser coartados os poderes que assistem ao R. como proprietário da fracção C, tanto mais que nem todas as fracções do prédio se destinam a habitação.

Por despacho proferido a fls. 68, foi o A. convidado a fazer intervir os demais condóminos, por se afigurar ser de evitar a preterição de litisconsórcio necessário, o que foi requerido e ordenado, não tendo os chamados deduzido qualquer articulado.

Por fim, foi proferido saneador-sentença a julgar a acção totalmente procedente, conforme fls. 125-130, decidindo-se:

a) - Declarar “ilegal” a utilização para estabelecimento de alojamento local que é dada pelos R.R. à fracção autónoma designada pela letra C;

b) - Condenar os Réus a cessar imediatamente a utilização que fazem da fracção C e reintegrá-la no seu destino específico de habitação;

c) - Condenar os Réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor diário de € 150,00, desde a data do trânsito em julgado da presente decisão e até efetiva cessação da actividade de alojamento local.

Inconformados com essa decisão, os R.R. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação d… …, que julgou improcedente a apelação, confirmando inteiramente a sentença recorrida, conforme o acórdão de fls. 184-192.

Novamente inconformados, os R.R. interpuseram revista excecional, admitida pela formação a que se reporta o art.º 672.º do CPC e o recurso foi conhecido, tendo sido proferido acórdão que culminou com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido, ainda que com fundamentação mais desenvolvida.”


No acórdão recorrido os factos provados foram os seguintes (transcrição):

1.1. No dia 10 de maio de 2008 foi realizada a assembleia de condóminos do prédio sito na Rua …. n.ºs 229, 231 e 241 e Avenida … n.º 365, n… …, conforme a ata de fls. 8v. a 17.;

1.2. Daquela mesma ata fazem parte integrante o regulamento do condomínio e o regulamento da garagem;

1.3. Nos termos do título constitutivo da propriedade horizontal, constituída mediante escritura pública outorgada no dia 11 de março de 2008 e inalterada desde então, daquele prédio fazem parte 16 fracções, designadas pelas letras A a Q - cfr. doc. de fls. 19 a 26, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

1.4. Daquelas fracções, as localizadas ao nível do rés-do-chão, designadas pelas letras “A”, com entrada pelo n.º 231 da Rua …, e “B”, com entrada pelo n.º 365 da Avenida …, são destinadas a comércio - cfr. fls. 21 v. do documento referido no facto anterior;

1.5. Todas as demais, localizadas no 1.º ao 4.º andares, são destinadas a habitação;

1.6. Nos termos do título constitutivo da propriedade horizontal, são zonas comuns às fracções destinadas a habitação, designadas pelas letras “C” a “Q”, a entrada pelo n.º 241 da Rua …, escadas, patamares, elevadores e respetivo equipamento, redes de abastecimento água, gás, eletricidade, incluindo respetivas colunas montantes, rede de telefones, incluindo coluna montante até à derivação individual para cada fracção, rede vertical de serventia e sistema de vídeo-porteiro - cfr. fls. 25 do documento a que se alude no facto 1.3;

1.7. O R. BB é o proprietário da fracção designada pela letra “C”, situada no 1.º andar - cfr. doc. de fls. 26v. e 27;

1.8. Em março de 2016, naquela fracção “C”, começaram a ser prestados serviços de alojamento temporário a turistas, mediante remuneração - admitido por acordo;

1.9. O R., sob a designação comercial “P… H…” tem publicitado na internet, nomeadamente no site www.airbnb.com, e disponibilizado aquela fracção mobilada e equipada como alojamento para turistas ou como alojamento temporário, ou seja, inferior a trinta dias, prestando ainda serviços de limpeza, sendo remunerado para o efeito - admitido por acordo;

1.10. Para tanto, a fracção foi cedida pelo seu proprietário à R. CC, sua mãe, que procedeu ao registo da atividade de alojamento local na Câmara Municipal d… … e no Turismo de Portugal, I.P. - admitido por acordo;

1.11. Na assembleia de condóminos realizada no dia 18 de maio de 2016, foi consignado em ata, cfr. doc. de fls. 30 a 31, o seguinte:

“Os condóminos defenderam que quando compraram as habitações foi para habitação e neste momento parece que moram num hotel, demonstraram-se incomodados com algumas situações que têm vindo a ocorrer tais como o transporte de bicicletas nos elevadores e a porta do condomínio tem sido encontrada aberta. … Vários proprietários mostraram-se contra o alojamento local estando na disposição de avançar em tribunal atendendo a que compraram as suas fracções para habitação com a suposição de viverem diariamente com vizinhos, pessoas conhecidas e neste momento estão frequentemente a cruzarem-se com estranhos, temendo pela segurança.”


13.1.2. No acórdão fundamento, a A., A… intentou providência cautelar de Suspensão de Deliberação da Assembleia de Condóminos contra o CONDOMÍNIO …, representado pelo seu administrador, e respectivos condóminos, igualmente representados pelo administrador, pedindo que se decrete a suspensão da deliberação de 3 de Maio de 2016 da Assembleia de Condóminos do Edifício …, que aprovou a proibição do alojamento local, assim como a inversão do contencioso nos termos do artigo 369.º do Código de Processo Civil.

Alegou que é proprietária da fracção autónoma identificada pelas letras “AQ”, correspondente ao 6º andar, letra E, para habitação, incluindo um estacionamento. O imóvel possui a licença de utilização e destina-se a habitação. Deu entrada de uma declaração de início de actividade junto do Serviço de Finanças de … com vista a exercer a actividade Alojamento mobilado para turistas e deu entrada de um pedido de registo de alojamento local junto da Câmara Municipal de …, tendo o mesmo sido deferido pelo Turismo de Portugal. No dia 3 de Maio de 2016, realizou-se uma assembleia de condóminos do edifício, em que esteve representada e na qual foi aprovada a deliberação de proibição de alojamento local, com a maioria dos votos presentes e contra o voto da requerente.

Os requeridos apresentaram oposição, onde alegaram que, encontrando-se no título constitutivo consignado que a fracção da requerente é destinada unicamente para habitação, não pode a mesma por si, atribuir-lhe uma função comercial, sem a prévia modificação do título nos termos do artigo 1419º do C. Civil, e juntaram a acta da assembleia de condóminos de 03 de Maio de 2016, onde consta a deliberação posta em causa.

Na 1ª instância foi proferida a seguinte DECISÃO:

1 - Nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 383º do Código de Processo Civil, decido julgar procedente a presente providência cautelar e consequentemente determina-se a suspensão de deliberação de 3 de Maio de 2016 da assembleia de condomínio do prédio sito na Rua ..., nº 00, em ..., na parte em que proíbe o exercício do alojamento local na fracção “AQ”.

2 - Dispensa-se a requerente do ónus de propositura da acção principal, nos termos do disposto no artigo 369º nº 1 do Código de Processo Civil”.

O Condomínio recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que proferiu acórdão a julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e julgando improcedente a providência cautelar de suspensão da deliberação da assembleia de condóminos de 03 de Maio de 2016.

Inconformada com este acórdão, a requerente dele veio recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça.

O Supremo Tribunal de Justiça conheceu do recurso por acórdão de 28/2/2017, no qual figura o seguinte segmento dispositivo:

 “Nos termos expostos, decide-se conceder a revista, revogando o acórdão recorrido e repristinando a decisão da 1ª instância.”


No acórdão fundamento os factos provados foram os seguintes:

1º - A requerente A… é proprietária e legítima possuidora da fracção autónoma identificada pelas letras “AQ”, correspondente ao 6º andar, letra E, para habitação, incluindo um estacionamento com o nº … e uma arrecadação com o nº…, na …ª cave, do prédio urbano sito na Rua …, nº …, Edifício …, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … da freguesia do … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2079 da referida freguesia do … (artigo 1º do requerimento inicial).

2º – O imóvel possui a licença de utilização nº 84, emitida pela Câmara Municipal de …, a 11 de Fevereiro de 1993 (artigo 2º).

3º – O imóvel destina-se a habitação (artigo 3º).

4º – No dia 23 de Dezembro de 2014, a requerente deu entrada de uma declaração de início/reinício de actividade junto do Serviço de Finanças de … – 06, com vista a exercer a actividade com o “CAE 55201 – Alojamento mobilado para turistas” (artigo 4º).

5º – A 30 de Dezembro de 2014, a requerente deu entrada de um pedido de registo de alojamento local do imóvel no Balcão único do Município Oriental da Câmara Municipal de …, ao qual foi atribuído o nº de pedido 15…0, processo nº 85…4 (artigo 5º).

6º – O pedido foi deferido, tendo sido atribuído pelo Turismo de Portugal, I.P. ao estabelecimento de alojamento existente no imóvel o n.º de registo 2319/AL (artigo 6º).

7 – No dia 3 de Maio de 2016, realizou-se uma assembleia de condóminos do Edifício (artigo 9º).

8º – Da ordem de trabalhos constava “discussão e votação da proibição do alojamento local” (artigo 10º).

9º – A requerente esteve devidamente representada na Assembleia por si e por (…) (artigo 11º).

10º – Nessa assembleia foi aprovado a proibição do alojamento local, com a maioria dos votos presentes e com votos contra da requerente e do proprietário da fracção Z (artigo 17º).

11º - Desde Janeiro de 2015 que a requerente tem vindo a exercer a sua actividade regularmente no local.

12º – A requerente já tem reservas para o alojamento local para os meses de Julho e Agosto.

13.2. A diversidade do tratamento jurídico no âmbito do mesmo quadro legal

13..2.1. No acórdão recorrido o quadro jurídico dentro do qual o tribunal decidiu a questão suscitada resultou da conjugação do regime da propriedade horizontal consagrado no CC com o regime legal do alojamento local constante do Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29-08, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 63/2015, de 23-04 (antes da modificação de 2018, operada através da Lei 62/2018, de 22 de Agosto).

Porque os factos provados assim o determinaram, foi atendida ainda à situação do regulamento do condomínio, dizendo-se:

“No entanto, importa considerar que, a par do destino do prédio ou das suas frações autónomas fixado no projeto de construção e na autorização de utilização, pode o título constitutivo da propriedade horizontal conter a menção do fim a que se destina cada fracção autónoma ou parte comum, conforme o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1418.º do CC. Uma tal menção, contrariamente ao respeitante às especificações referidas no n.º 1 do mesmo artigo, não reveste natureza obrigatória, ficando na livre disponibilidade negocial de quem constitui a propriedade horizontal”, (…) “Tanto a menção do fim a que se destina cada fração autónoma ou parte comum como as específicas proibições de prática de atos ou atividades constantes do título constitutivo, de regulamento do condomínio nele inserido ou de deliberação posterior nos termos referidos devem ser compatíveis com o fim do prédio ou das suas frações fixado no projeto e atestado na autorização de utilização, sob pena de nulidade, conforme o estatuído no n.º 3, parte final, do mencionado artigo 1418.º.”

 (…) “Nessa medida, aquela menção e as aludidas proibições constituem modos de delimitar ou restringir, por via negocial, o destino ou o uso das frações autónomas ou das partes comuns, na órbita mais lata do fim fixado no projeto de construção e na autorização de utilização, em ordem a delinear o modelo ou estilo de convivência condominial pretendido, quiçá como mais-valia da função sócio-económica do conjunto imobiliário. O que não será lícito é que tais delimitações ou proibições desvirtuem o conteúdo essencial dos direitos de propriedade abrangidos.

Essa delimitação do fim e as restrições de utilização das frações autónomas e das partes comuns, embora de génese negocial, sendo objeto do registo a que se encontram sujeitas nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alíneas b) e v), e 95.º, n.º 1, alíneas r) e z), do Código de Registo Predial, integram o estatuto do condomínio, assumindo natureza real com eficácia erga omnes, para além do conteúdo típico dos direitos reais inerente ao numerus clausus estabelecido no artigo 1306.º do CC.”

Ali se defendeu ainda:

“a menção do destino para habitação das frações autónomas, mormente a constante do título constitutivo, nos termos do artigo 1418.º, n.º 2, alínea a), do CC, deve ser interpretada na perspetiva de uso substancialmente colimado ao modelo ou estilo de vivência condominial pretendido no âmbito do negócio constitutivo da propriedade horizontal. 

(…) “tratando-se de uma menção facultativa de quem constitui a propriedade horizontal, mal se compreenderia que aquela menção do destino das frações no título constitutivo fosse uma mera repetição ou reedição da indicação constante do projeto construtivo ou da autorização de utilização.”

Tendo-se concluído:

“conclui-se que o destino da fração autónoma C, propriedade do 1.º R., mencionado no título constitutivo da propriedade horizontal e constante do respetivo registo predial é o de ser usada para habitação como centro da vida doméstica.”

E definiu-se a questão jurídica a tratar:

“em função desse destino ou fim que importa aferir o âmbito de tutela traçado no artigo 1422.º, n.º 2, alínea c), do CC, que confere a cada condómino o direito de se opor a que qualquer das frações dos restantes condóminos seja usada para fim diverso do que lhe é destinado no estatuto da propriedade horizontal em foco.”


13.2.2. No acórdão fundamento o tribunal decidiu a questão conjugando o regime da propriedade horizontal (indicando expressamente os artºs 1418.º e 1422.º, nº2, al. c), do CC) com o regime do alojamento local vigente à data dos factos (2016) – o Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29.08, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 63/2015, de 23-04 (vigentes na data da decisão, antes da modificação de 2018, operada através da Lei n.º 62/2018, de 22 de Agosto), e fundamentou a decisão nos seguintes termos:

A única questão a tratar é a de saber se o arrendamento da fracção a turistas por curtos períodos, designado por alojamento local, viola o título constitutivo da propriedade horizontal, do qual consta que o seu fim é a habitação (artº. 1418º do CC).

Tal significa que a referida fracção não pode ser destinada a outro fim que não seja a habitação, constituindo violação do conteúdo do título o exercício na fracção de actividade comercial ou industrial.

O acórdão recorrido entendeu que a actividade de alojamento local consubstancia objectivamente um acto de comércio, ainda que não se mostre especificamente disciplinado no Código Comercial (artº. 2º do CC).

Não justifica esta ausência o facto de se tratar de um novo tipo de contrato.

Efectivamente, apesar de novo, o alojamento local já se mostra referenciado desde 2008 (DL 39/2008, de 07.03, e Portaria 517/2008, de 25.06), sendo o respectivo regime jurídico estabelecido hoje pelo DL 128/2014, de 29.08).

Houve muito tempo de o incluir no Código Comercial, diploma que já sofreu alterações de 2008 até hoje.

De qualquer modo, mesmo aceitando como mera hipótese de trabalho que o alojamento local é objectivamente um acto de comércio, o acórdão recorrido parece lavrar numa enorme confusão.

Na verdade, o facto de a recorrente ceder onerosamente a sua fracção mobilada a turistas constituir um acto de comércio não significa que na fracção se exerça o comércio, pois a cedência destina-se à respectiva habitação.

A fracção é um mero objecto do contrato supostamente comercial, não sendo a alegada actividade comercial da recorrente exercida na fracção.

O artº. 1422º nº2 al. c) do CC veda aos condóminos dar à respectiva fracção uso diverso do fim a que é destinada.

Uma imobiliária, quando celebra contratos de arrendamento das fracções que administra, pratica actos de comércio, mas o fim das mesmas não tem que ser o comércio, podendo ser a habitação, comércio ou indústria, em consonância com o que consta do respectivo título constitutivo da propriedade horizontal.

Não se mostra, assim, violado o conteúdo do título constitutivo da propriedade horizontal, o fim a que se destina a fracção.”


13.2.3. Está assim confirmada a identidade do quadro jurídico subjacente às decisões em confronto.

14. Outros requisitos da admissão do RUJ

14.1. Não se revela obstaculizador da contradição de decisões o facto de no acórdão recorrido estarmos perante acção declarativa e no acórdão fundamento a questão ter sido suscitada em providência cautelar de suspensão de deliberação do condomínio.


14.2. Não se revela obstaculizador da contradição de decisões o facto de no acórdão recorrido existirem referências ao regulamento do condomínio e demonstração de neste existirem indicações de a fracção cuja utilização em alojamento local (AL) é questionada ser destinada a habitação, nada se indicando sobre o regulamento de condomínio no acórdão fundamento (nem quanto à existência, nem quanto ao conteúdo).


14.3. Não se revela obstaculizador da contradição de decisões o facto de no acórdão recorrido o Réu, proprietário da fracção autónoma, ter cedido a sua utilização à sua mãe, sendo esta quem registou o alojamento local (e parece ter sido quem o explorou).


14.4. A contradição de decisões é directa e não meramente implícita.

15. Nas decisões em confronto decidiu-se, em sentido contrário, pelo menos nas seguintes questões:

a) A fracção autónoma destinada a habitação não pode ser utilizada para alojamento local por essa actividade violar o “fim” a que se destina a fracção, segundo o estatuto da propriedade horizontal e regulamento do condomínio (acórdão recorrido) / A fracção autónoma destinada a habitação pode ser utilizada para alojamento local por essa actividade não violar o “fim” a que se destina a fracção, segundo o estatuto da propriedade horizontal (acórdão fundamento);

b) O alojamento local constitui acto de comércio - reveste natureza objetivamente comercial, à luz de uma interpretação atualista do disposto no artigo 2.º do Código Comercial - (acórdão recorrido) / não constitui acto de comércio (acórdão fundamento), e mesmo que fosse acto de comércio o AL não é destinado ao exercício do comércio mas para a habitação (dos turistas) (acórdão fundamento);


15.1. A questão b), no contexto dos acórdãos em confronto, aparece como relevante apenas para efeito de fundamentação da questão principal – em obiter dictum – o que justifica que a mesma não seja abarcada pelo âmbito do recurso de Uniformização interposto, que assim apenas se reporta à questão a).


15.2. Face à exposta oposição de entendimentos jurisprudenciais, verifica-se a necessidade de clarificar se o regime do art.º1422º, nº 2, al. c), do Código Civil (CC),  em conjugação com o regime do art.º 1418.º e as regras específicas do Alojamento Local impedem que se proceda a AL de fracção de propriedade horizontal com indicação de destino “habitação” no título constitutivo da propriedade horizontal, eventualmente reforçado por idêntica menção no regulamento do condomínio, pelo que o recurso deve ser admitido e conhecido o seu objecto.   


De Direito

16. Conforme decorre do exposto anteriormente, a questão do alojamento local a realizar em fracção autónoma de edifício constituído em propriedade horizontal, quando a referida fracção se encontra destinada a habitação – maxime com indicação dessa finalidade igualmente no regulamento do condomínio – tem sido questão jurídica debatida e sobre a qual é possível identificar, pelo menos, três orientações diversas: a do acórdão recorrido, a do acórdão fundamento, ou uma posição a que apelidaremos de intermédia.

A questão consiste em saber se o exercício da actividade de alojamento local, regulada pelo Dec.-Lei n.° 128/2014, de 29-08, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.° 63/2015, de 23-04, em fracção autónoma destinada a habitação, segundo menção constante do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em que esta se integra, nos termos do artigo 1418.°, n.° 2, alínea a), do Código Civil, constitui ou não uso diverso do fim a que essa fracção é destinada, vedado aos condóminos, nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 1422.°, n.° 2, alínea c), do mesmo Código.


17. Os contornos do regime da propriedade horizontal e do regime do alojamento local mais relevantes para efeitos do presente recurso são aqui considerados pressupostos – sendo escusada a sua repetição – tornando-se apenas essencial algumas notas, na medida em que o acórdão recorrido fez a análise dos indicados regimes em termos sobejamente desenvolvidos, evitando-se a necessidade da sua transcrição por se encontrar devidamente publicitado (cf. 2.2.1., 2.2.2., 2.2.3. e 2.2.4.).

A alteração legislativa ao regime da propriedade horizontal, empreendida pela Lei n.º 8/2022, de 10 de Janeiro, não alterou as disposições legais pertinentes para a resolução da situação em análise, nem aditou elementos relativos ao alojamento local.


Essas notas de relevo essencial são as que se seguem (acompanhando-se o sentido e modo de expressar da decisão recorrida, em grande medida).

O instituto da propriedade horizontal, previsto e regulado nos artigos 1414.º a 1438.º-A do Código Civil (CC), estabelece e reconhece na propriedade horizontal uma forma especial de propriedade imobiliária urbana, caracterizada pela atribuição aos seus titulares de direitos de propriedade singular e exclusiva sobre cada uma das fracções autónomas que integram o prédio urbano e de compropriedade sobre as partes comuns do mesmo, em incindível conexão recíproca, o que determina que o gozo pleno e exclusivo do direito de propriedade singular sobre cada uma das fracções autónomas, modelado no artigo 1305.º do CC, tenha de suportar restrições específicas requeridas pela ordem unitária do conjunto imobiliário em que essas fracções se integram.

A constituição válida da propriedade horizontal depende da verificação dos parâmetros e requisitos legais a que está sujeita, como são os previstos, quanto ao seu objeto, no artigo 1415.º do mesmo Código, e as prescrições respeitantes à construção urbanística e respectiva utilização constantes, nomeadamente, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU)[1].

Da conjugação destes regimes resulta que a existência de licença de utilização para um determinado uso de certa fracção não visa propriamente estabelecer as condições específicas ou sectoriais para o exercício de cada tipo de actividade económica que neles se pretenda instalar, mas tão só que se indica o fim, como categoria de utilização genérica ou aberta, no quadro dos usos urbanísticos dominantes admissíveis para cada zona territorial.

Por isso é admissível a utilização com sentidos complementares ou mistos, face ao indicado, sem necessidade de alteração das autorizações de utilização emitidas (cf. artigo 62.º do RJUE).

O alojamento local (AL), no quadro destas licenças, é compatível com o destino genérico “habitação” dado a um prédio urbano em regime de propriedade horizontal e às suas fracções autónomas no respectivo projecto de construção e atestado na subsequente autorização de utilização, o que também é compatível com o seu uso para a instalação de alojamento local, em face do disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29-08.

Ainda assim, isso não invalida que se tenham de conjugar as regras civilistas com o regime urbanístico e de cariz administrativo e que, em consequência, a par do destino do prédio ou das suas fracções autónomas fixado no projecto de construção e na autorização de utilização, o título constitutivo da propriedade horizontal contenha a menção do fim a que se destina cada fracção autónoma ou parte comum (cf. alínea a) do n.º 2 do artigo 1418.º do CC) de âmbito mais restrito do que aquele que consta do projecto ou da licença de utilização.

Na verdade, o título constitutivo pode conter proibições de os condóminos praticarem quaisquer actos ou actividades (cf. artigo 1422.º, n.º 2, alínea d), 1.ª parte, do CC) e pode do regulamento do condomínio que seja, porventura, inserido naquele título, constar a disciplina do uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das fracções autónomas.

Também posteriormente à constituição da propriedade horizontal pode ser proibida a prática de actos ou de actividades mediante deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição (cf. parte final da alínea d) do n.º 2 do citado artigo 1422.º).

No entanto, tanto a menção do fim a que se destina cada fracção autónoma ou parte comum, como as específicas proibições de prática de actos ou actividades constantes do título constitutivo, de regulamento do condomínio nele inserido ou de deliberação posterior nos termos referidos, devem ser compatíveis com o fim do prédio ou das suas fracções fixado no projeto e atestado na autorização de utilização, sob pena de nulidade (cf. n.º 3, parte final, do mencionado artigo 1418.º do CC).

Nessa medida, aquela menção e as aludidas proibições constituem modos de delimitar ou restringir, por via negocial, o destino ou o uso das fracções autónomas ou das partes comuns, desde que tais delimitações ou proibições não desvirtuem o conteúdo essencial dos direitos de propriedade abrangidos.

Não menos relevante é o efeito de publicidade que resulta da conjugação dos regimes indicados com as regras do registo predial, em que a delimitação do fim e as restrições de utilização das fracções autónomas e das partes comuns, porque objeto do registo, adquirem eficácia externa e oponibilidade generalizada (cf. artigos 2.º, n.º 1, alíneas b) e v), e 95.º, n.º 1, alíneas r) e z), do Código de Registo Predial),  da qual decorre ainda que o fim ou destino das fracções autónomas configurado no título constitutivo assegura, antecipadamente, aos potenciais adquirentes delas o conteúdo dos direitos de propriedade singular e de compropriedade que lhe são inerentes.

É por isso de acompanhar a posição afirmada no acórdão recorrido quando diz: “Em suma, as sobreditas delimitações do fim e proibições do uso das frações autónomas incorporadas no estatuto condominial não se confundem com as menções genéricas de destino e uso urbanísticos das mesmas constantes do projeto de construção e da autorização de utilização, devendo antes ser interpretadas na sua função económico-social de definição do conteúdo dos direitos de propriedade singular incidentes sobre essas frações em conexão com os direitos de compropriedade sobre as partes comuns.”

Por via destas afirmações, se conclui que o destino de certa fracção autónoma mencionado no título constitutivo da propriedade horizontal e constante do respectivo registo predial é o de ser usada para habitação como centro da vida doméstica, ainda que a licença de utilização se reporte a uma menção genérica de “habitação”, não é lícito concluir que qualquer utilização da fracção que comporte pernoitar ou descansar, independente do modo como ela ocorre ou se organiza, deve ser lícita, segundo as regras civilistas indicadas.

E é aqui que o alojamento local surge como potencialmente causador de problemas de compatibilidade entre o regime administrativo e o regime civilista da propriedade horizontal, pois de acordo com este será em função do destino ou fim decorrente da propriedade horizontal que importa aferir o âmbito de tutela traçado no artigo 1422.º, n.º 2, alínea c), do CC, que confere a cada condómino o direito de se opor a que qualquer das fracções dos restantes condóminos seja usada para fim diverso do que lhe é destinado no estatuto da propriedade horizontal.

Porque o “fenómeno hoje designado por “alojamento local” traduz-se numa realidade sócio-económica que tem vindo a desenvolver-se a partir de 2008 e, de forma exponencial, desde 2014, abrindo um pujante segmento de mercado, em especial na esfera da oferta turística, propiciador de proventos bem mais rentáveis do que os auferidos pela via do tradicional mercado imobiliário urbano de venda e arrendamento habitacional[2]” (citação do acórdão recorrido), originando uma pressão da crescente de procura turística no mercado português, muitos proprietários de prédios urbanos procederam à sua afectação ao mercado de alojamento local, respondendo ao repto de oportunidade económica surgida, e que também mereceu por parte do legislador uma atenção especial, com a criação de regras específicas dirigidas à referida mudança.

Através do Dec.-Lei n.º 39/2008, de 07-03, foi introduzido no nosso ordenamento jurídico o “alojamento local”, originalmente tendo por objectivo fundamental consagrar um novo regime jurídico disciplinador da instalação, exploração e funcionamento dos empreendimentos turísticos, situação que veio a modificar-se com a aprovação do Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29-08, momento em que o AL se autonomiza do regime dos empreendimentos turísticos, passando a ter um regime diferenciado e próprio, mas ainda assim com um enquadramento social e económico que marca o seu estatuto.

Este Dec.-Lei n.º 128/2014 foi modificado pelo Dec.-Lei n.º 62/2015, de 23-04, sem particular relevo para o caso dos autos, e veio a sofrer novas alterações pela Lei n.º 62/2018, de 22-08 (e ainda pela Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro e pelo Dec.-Lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro, ambos sem repercussão no caso dos autos).

Porque a situação de facto a que se reporta o acórdão recorrido ocorreu no domínio da vigência temporal do Dec.-Lei n.º 128/2014, será esta a lei aplicável, ainda que as soluções introduzidas devam ser tidas em conta para efeitos de interpretação do regime anterior à modificação, nomeadamente na parte que podem trazer aportações interpretativas à lei anterior e à questão da sua conjugação com o regime civilista (que consideramos serem sobretudo as seguintes: artigo 4.º, n.º 2, alínea b), e n.º 4[3]; artigo 6.º, números 9 e 10[4]).


17.1. Em defesa da posição adoptada no acórdão recorrido diz-se – em citação do aí exposto:

- O regime do alojamento local constante do Dec.-Lei n.º 39/2008, de 07/03, e depois do Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29/08, este na sua versão originária, não contém nenhuma disposição normativa que contemple a proteção dos direitos dos condóminos perante a instalação de estabelecimentos de alojamento local em fração autónoma destinada a habitação por parte de outro condómino. Como também não contém nenhuma disposição que possa ser tida como derrogatória da tutela desses direitos conferida pelo regime da propriedade horizontal disciplinado pelo CC.

-  Só com a Lei n.º 62/2018, de 22-08, que alterou o Dec.-Lei n.º 128/2014, é que passou a ser exigível, para efeitos de registo desses estabelecimentos, a apresentação com a comunicação prévia com prazo de ata da assembleia de condóminos a autorizar a instalação de “hostels” e se passou a admitir a faculdade de ser apresentada ao órgão municipal competente deliberação fundamentada, aprovada por mais de metade da permilagem do edifício, a comprovar a prática reiterada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo ou afetem o descanso dos condóminos, com vista a eventual cancelamento do registo por decisão desse órgão.

-  Esse mecanismo dirigido à proteção do condomínio, que não dos condóminos, previsto no artigo 9.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 128/2014, na redação dada pela Lei n.º 62/2018, traduz-se num meio alternativo de tutela administrativa, para efeitos de cancelamento, até ao máximo de um ano, do registo de estabelecimento de alojamento local, insuscetível de substituir os meios de tutela cível dos direitos privados dos condóminos alicerçada na reserva de jurisdição consagrada nos artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1 e 2, da Constituição.

- Das inovações introduzidas pela Lei n.º 62/2018 não se afigura resultar disposições normativas que impliquem a derrogação ou compressão dos meios de tutela cível dos condóminos constantes do estatuto da propriedade horizontal plasmado no CC, nomeadamente, do previsto na alínea c) do n.º 2 do respetivo artigo 1422.º.

- O conceito de habitação como destino de fração autónoma mostra-se qualitativamente distinto do conceito de utilização da mesma para alojamento local, já que o gozo de uma fração habitacional tem uma envolvência personalizada e de tendencial estabilidade do usuário com a coisa, enquanto que o uso em sede de alojamento local por sucessivos e diversos utilizadores, transitórios, é volúvel e disseminado, um e outro com repercussões qualitativamente diferenciadas no meio inter-habitacional ou condominial em que se desenvolvem.

- A atividade de exploração de alojamento local, tal como se encontra regulada no Dec.-Lei n.º 128/2014, reveste natureza comercial. 

- A menção do fim das frações autónomas, embora de génese negocial, sendo objeto do registo a que se encontram sujeitas nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alíneas b) e v), e 95.º, n.º 1, alíneas r) e z), do Código de Registo Predial, integram o estatuto do condomínio, assumindo natureza real com eficácia erga omnes, para além do conteúdo típico dos direitos reais inerente ao numerus clausus estabelecido no artigo 1306.º do CC.

- Tratando-se de uma menção facultativa de quem constitui a propriedade horizontal, mal se compreenderia que aquela menção fosse uma mera reedição da indicação constante do projeto construtivo ou da autorização de utilização.

- Terá, em princípio, de traduzir algo de mais útil, mormente associado à sua função de servir de parâmetro ao conteúdo dos direitos inerentes ao estatuto condominial, devendo o seu âmbito ser encarado neste contexto e não como simples expressão do uso urbanístico do prédio.

- Nessa medida, o sentido normal do destino “habitação” para qualquer potencial adquirente das referidas frações não poderá deixar de ser o de que a sua função económico-social é a de servir de fogos ou de residência para pessoas e agregados familiares, proporcionando-lhes o sossego, a tranquilidade, a segurança e o conforto requeridos por qualquer economia doméstica, num envolvente espaço comum instrumental desse tipo de convivência coletiva.”

(fim de citação).

Adicionalmente ainda se poderia considerar que esta orientação tem em seu favor dois argumentos: i) a possibilidade de haver alteração do título constitutivo e do regulamento do condomínio no sentido de permitir o alojamento local; ii) a prevalência da autonomia da vontade no que respeita à limitação das actividades passíveis de serem exercidas na fracção autónoma, face à introdução de uma permissão normativa de sua realização que não regula especificamente, nem altera o regime da propriedade horizontal.


17.2. Em contraposição com esta argumentação, os defensores da posição oposta – também acolhida no acórdão fundamento – aduzem:

- A alteração legal ao regime do alojamento local operada pela Lei n.º 62/2018, de 22 de Agosto – art.º 9, n.ºs 2 e 3 do Dec.-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto, permitindo à assembleia de condóminos adoptar deliberação em que se opõe ao exercício da actividade de alojamento local em fracções autónomas, por mais de metade da permilagem do edifício, fundamentando a deliberação na prática reiterada e comprovada de actos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de actos que causem incómodo e afectem o descanso dos condóminos; esta deliberação será adoptada e inscrita em acta, da qual é dado conhecimento ao presidente da Câmara Municipal territorialmente competente, que pode cancelar o alojamento local;

- A alteração legal ao regime do alojamento local operada pela Lei n.º 62/2018, de 22 de Agosto, mesmo para quem defendesse que o alojamento local não era compatível com o fim “habitação”, sendo proibido, a mudança legal vem indiciar uma menor protecção dos condóminos, pois na nova lei a matéria passa a estar sujeita a deliberação maioritária da assembleia de condóminos, em contraposição com uma protecção absoluta anterior por contrariedade ao fim;

- O Projecto de lei dos deputados do partido do Governo (PS) – Projeto de Lei n.º524/XII  –, abandonado, em que se propunha exigir como condição de registo do alojamento local, cópia de deliberação da assembleia de condóminos autorizando o titular da exploração do estabelecimento de AL a exercer a actividade naquele local, exigência que vinha justificada com a indicação de os conceitos de habitação e alojamento local serem realidades diferentes; de o conceito de habitação estar associado ao centro de organização da vida pessoal dos sujeitos; a de as fracções destinadas a habitação assim adquiridas fundarem uma expectativa dos seus adquirentes de serem um núcleo residencial, sem perturbações inerentes ao alojamento local (destinatários são turistas; ocupações de carácter transitório (segundo estatísticas, até 3 dias); comportamento dos destinatários diverso do habitual no dia-a-dia, nomeadamente em horários, barulhos e respeito pelo sossego dos outros; grande rotatividade dos alojados; possíveis sentimentos de insegurança criados nos “habitantes” do prédio; possíveis acréscimos de despesas para o condomínio, perante maior desgaste resultante do aumento de utilização);

- Há uma opção legal subjacente – no sentido de não impedir em absoluto e previamente o alojamento local em prédios constituídos em propriedade horizontal, com fracções habitacionais, admitindo-se a reacção dos condóminos à utilização como alojamento local em certas circunstâncias consideradas prejudiciais para os condóminos;

- a alteração legal ao regime do alojamento local operada pela Lei n.º 62/2018, de 22 de Agosto, cujo art. º4.º, n.º 4, exige autorização do condomínio para instalação de AL na modalidade hostel, quando esta venha a coexistir com fim “habitação”;

- Os usuários do alojamento local fazem do espaço um uso habitacional;

- Tratando-se de alojamento local de pequena dimensão, há paralelismo entre o alojamento local e as regras do arrendamento que autorizam os arrendatários habitacionais a ter hóspedes (até ao limite de 3 - art.º 1093.º, n.º1, al. b) e n.º 3 do CC), celebrando contrato de hospedagem em que faculta o gozo da coisa (uma parte, em regra quarto) e presta serviços, tipicamente limpeza e tratamento de roupas;

- Há diferença entre modalidades de alojamento local, nas quais se integram “quartos” (até 3 unidades) e estabelecimentos de hospedagem (quarto integrado em fracção autónoma e que, em certas situações, pode ser um “hostel”), além dos apartamentos e das moradias, o que deve relevar;

- Há possibilidade de o regulamento do condomínio proibir a realização de AL nas fracções, com indicação inequívoca de que não é permitida a sua utilização para esse fim (como é exemplo a situação a que o STJ foi chamada a pronunciar-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7/11/2019, Processo 25192/16.3T8PRT.P1.S1);

- Ainda que se reconheça o campo de intervenção autónomo da licença de utilização (de âmbito público) face ao fim indicado no título constitutivo da propriedade horizontal (de âmbito privado), é de admitir que este possa limitar a utilização mais vasta permitida pela licença;

- Conceito de alojamento vs. conceito de habitar – alojar está contido em habitar, embora envolva algo mais – quem se aloja vem pernoitar, dormir, descansar


17.3. Num sentido menos extremado encontra-se uma posição intermédia, que parte da seguinte ideia: é defensável a existência de uma posição que admita apenas certo exercício de alojamento local nas fracções destinadas a habitação, excluindo-se outras.


17.4. Na jurisprudência do STJ a dicotomia tem-se ficado pela adesão ora à posição do acórdão recorrido [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7/11/2019, Processo 25192/16.3T8PRT.P1.S1 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/1/2020, Processo n.º 24471/16.4T8PRT.P1.S1 (ACÓRDÃO RECORRIDO)], ora à do acórdão fundamento [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.03.2017, Processo n.º 12579/16.0T8LSB.L1.S1, (ACÓRDÃO FUNDAMENTO), tendência que se confirma ocorrer ainda nos Tribunais da Relação (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20.10.2016, Processo n.º 12579/16.0T8LSB.L1.S1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27.04.2017, Processo n.º 13721/16.7T8PRT.P1; Acórdão do Tribunal da Relação de Porto, de 11-04-2018, Processo n.º 24471/16.4T8PRT.P1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15.09.2016, Processo n.º 4910/16.5T8PRT-A.P1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10-01-2019, Processo n.º 25192/16.3T8PRT.P1; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 2/9/2019), todos disponíveis em https://dgsi.pt.


17.5. As posições indicadas têm tido, maior ou menor, reflexo na doutrina, sendo vários os estudos e autores que sobre o tema se têm pronunciado, entre os quais se indicam os seguintes:

i) Favorável à posição do acórdão recorrido - J. Pinto Furtado, “Do alojamento local, na sua relação com a propriedade horizontal”, Revista de Direito Civil, Ano II (2017), 3, página 529- 574; José Luís Bonifácio Ramos, Manual de Direitos Reais, 2017, págs. 392 a 395; Fernanda Paula Oliveira, Sandra Passinhas e Dulce Lopes, em Alojamento Local e uso de Fracção Autónoma, Almedina, 2018; Fernanda Paula Oliveira, Dulce Lopes, Susana Duarte A., Joana da Silva Guerreiro, Alojamento Local, Regime Jurídico Comentado e Guião Prático, Almedina 2019; vitor palmela fidalgo, “A intervenção do Condomínio na Regulação do Alojamento Local”, AA.VV, I Congresso do Alojamento Local, Almedina, Coimbra,  2020; Sandra Passinhas, O alojamento local e o uso das fracções autónomas”, AA.VV, I Congresso do Alojamento Local, Almedina, Coimbra,  2020, págs. 133-150; ANA TAVEIRA DA FONSECA, “Comentário ao art.º 1422.º do CC”, Comentário ao Código Civil, Vol. Direito das Coisas, UCEditora, 2021, p. 455.

ii) Favorável à posição do acórdão fundamento - Aristides Rodrigues de Almeida, “A actividade de exploração de estabelecimentos de alojamento local”, Revista Electrónica de Direito, 2017 (n.º3), disponível em  file:///C:/Users/MJ02385/Downloads/Artigo%20Aristides%20Almeida%20.pdf, mas com nuances em outra publicação (“A actividade de exploração de estabelecimentos de alojamento local”, Revista Electrónica de Direito, 2017, quando aceita o alojamento local em moldes semelhantes à permissão legal de indústrias domésticas (art.º 1092.º e 1093.º CC), mas já não quando o alojamento local apresente um nível de organização da actividade próximo da actividade comercial (atendendo ao nível de afectação de meio ou recursos e exemplificando com alojamento local que muna a fracção de espaço para receber turistas, com horário de funcionamento ao público, fornecimento de refeições, alimentação ou outros serviços executados na fracção); Miguel Fernandes Freitas – “ALOJAMENTO LOCAL EM APARTAMENTOS DA (DES)NECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO DOS CONDÓMINOS”, Ipso Jure - Abril 2017, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B123518e7-9a01-4ba3-97bb-9d5ff0712551%7D.pdf; Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 4ªed (revista e aumentada), Princípia, 2020, págs. 161 a 166; ISABEL MENERES CAMPOS, Anotação ao acórdão STJ de 28 de março de 2017 (alojamento local): acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção) de 28.3.2017, P. 12579/16.0T8LSB.L, Cadernos de Direito Privado, N.º 58 (abr.-jun. 2017), p. 42-5.

iii) Favorável à posição intermédia – os que entendem não ser permitido o AL na modalidade de “hostel”, mas já o aceitam em outras modalidades – conforme nos dá nota ANA TAVEIRA DA FONSECA, “Comentário ao art.º 1422.º do CC”, Comentário ao Código Civil, Vol. Direito das Coisas, UCEditora, 2021, p. 454-456, podendo ser exemplo a posição suavizada de Aristides Rodrigues de Almeida (Cf. supra).


17.6. Não menos relevantes são as análises doutrinais reportadas ao AL e seu confronto com outros institutos, ou que explicitam os contornos do seu regime jurídico, para as quais se reclama atenção, nomeadamente, através da seguinte bibliografia: Maria Olinda Garcia, “Arrendamento de curta duração a turistas: um (impropriamente) denominado contrato de Alojamento Local”, Revista Electrónica de Direito, 2017 (n.º3), disponível em https://cije.up.pt/pt/red/edicoes-anteriores/2017-nordm-3/arrendamento-de-curta-duracao-a-turistas-um-impropriamente-denominado-contrato-de-alojamento-local/; Januário da Costa Gomes, “Notas soltas sobre a relação entre o «proprietário» e o «hóspede» no alojamento local”, I Congresso do Alojamento Local, Almedina, 2020; ANA TAVEIRA DA FONSECA, “Comentário ao art.º 1422.º do CC”, Comentário ao Código Civil, Vol. Direito das Coisas, UCEditora, 2021, p. 454-456.


18. desenvolvimento da fundamentação e segmento uniformizador

18.1. Não é hodiernamente questionada a autonomia dogmática ou legal da propriedade horizontal relativamente à propriedade das fracções autónomas e à compropriedade das partes comuns.

A sujeição do prédio constituído em propriedade horizontal a regras administrativas de construção e licenciamento é outro facto incontestável, sendo de assumir que a licença de utilização emitida para uma fracção autónoma com destino à habitação é compatível com a fixação de residência, permanente ou não, e sendo possível aí pernoitar de modo continuado, ou esporádico. Em regra, essa permissão administrativa, indicativa da finalidade possível da utilização de fracção, não é contrária a uma utilização no âmbito da regulamentação legal do alojamento local.

Contudo, como se diz no acórdão recorrido:

“A par do destino do prédio ou das suas fracções autónomas fixado no projeto de construção e na autorização de utilização, pode o título constitutivo da propriedade horizontal conter a menção do fim a que se destina cada fracção autónoma ou parte comum, conforme o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1418.º do CC.

Uma tal menção, contrariamente ao respeitante às especificações referidas no n.º 1 do mesmo artigo, não reveste natureza obrigatória.

Pode ainda o título constitutivo conter proibições de os condóminos praticarem quaisquer atos ou atividades, de acordo com o previsto no artigo 1422.º, n.º 2, alínea d), 1.ª parte, do CC, e pode do regulamento do condomínio que seja, porventura, inserido naquele título, constar a disciplina do uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das frações autónomas.

Como pode também, já posteriormente à constituição da propriedade horizontal, ser proibida a prática de atos ou de atividades mediante deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição, conforme resulta do disposto na parte final da alínea d) do n.º 2 do citado artigo 1422.º.

No entanto, as proibições assim tomadas são suscetíveis de ser suprimidas por nova deliberação aprovada por maioria dos votos representativos do capital investido, nos termos gerais do artigo 1432.º, n.º 3, do CC.

Tanto a menção do fim a que se destina cada fração autónoma ou parte comum como as específicas proibições de prática de atos ou atividades constantes do título constitutivo, de regulamento do condomínio nele inserido ou de deliberação posterior nos termos referidos devem ser compatíveis com o fim do prédio ou das suas frações fixado no projeto e atestado na autorização de utilização, sob pena de nulidade, conforme o estatuído no n.º 3, parte final, do mencionado artigo 1418.º.

Nessa medida, aquela menção e as aludidas proibições constituem modos de delimitar ou restringir, por via negocial, o destino ou o uso das frações autónomas ou das partes comuns, na órbita mais lata do fim fixado no projeto de construção e na autorização de utilização, em ordem a delinear o modelo ou estilo de convivência condominial pretendido, quiçá como mais-valia da função sócio-económica do conjunto imobiliário. O que não será lícito é que tais delimitações ou proibições desvirtuem o conteúdo essencial dos direitos de propriedade abrangidos (1Neste sentido, vide HENRIQUE MESQUITA, A propriedade horizontal no Código Civil português, in RDES Ano XXIII, pp.123-124).

Essa delimitação do fim e as restrições de utilização das frações autónomas e das partes comuns, embora de génese negocial, sendo objeto do registo a que se encontram sujeitas nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alíneas b) e v), e 95.º, n.º 1, alíneas r) e z), do Código de Registo Predial, integram o estatuto do condomínio, assumindo natureza real com eficácia erga omnes, para além do conteúdo típico dos direitos reais inerente ao numerus clausus estabelecido no artigo 1306.º do CC.

(…) tais restrições só assumem eficácia real, tornando-se eficazes em relação a terceiros, após o respetivo registo predial.

Em suma, as sobreditas delimitações do fim e proibições do uso das frações autónomas incorporadas no estatuto condominial não se confundem com as menções genéricas de destino e uso urbanísticos das mesmas constantes do projeto de construção e da autorização de utilização, devendo antes ser interpretadas na sua função económico-social de definição do conteúdo dos direitos de propriedade singular incidentes sobre essas frações em conexão com os direitos de compropriedade sobre as partes comuns.”


É assim defensável a orientação perfilhada no acórdão recorrido quando afirma:

“a menção do destino para habitação das frações autónomas, mormente a constante do título constitutivo, nos termos do artigo 1418.º, n.º 2, alínea a), do CC, deve ser interpretada na perspetiva de uso substancialmente colimado ao modelo ou estilo de vivência condominial pretendido no âmbito do negócio constitutivo da propriedade horizontal. 

Com efeito, tratando-se de uma menção facultativa de quem constitui a propriedade horizontal, mal se compreenderia que aquela menção do destino das frações no título constitutivo fosse uma mera repetição ou reedição da indicação constante do projeto construtivo ou da autorização de utilização. Terá, em princípio, de traduzir algo de mais útil, mormente associado à sua função de servir de parâmetro ao conteúdo dos direitos inerentes ao estatuto condominial, devendo o seu âmbito ser encarado neste contexto e não como simples expressão do uso urbanístico do prédio.    

Em tal perspetiva, importa colher, nos termos do artigo 236.º, n.º 1, do CC, o alcance da declaração negocial constitutiva da propriedade horizontal com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de um real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante constituinte.” (fim de citação)


18.2. A posição adoptada no acórdão recorrido é aquela que melhor adesão colhe no regime civilista da protecção da propriedade condominial e dos direitos dos condóminos, suplantando-se os eventuais obstáculos da posição contrária, e pode sustentar-se a partir das seguintes premissas, também desenvolvidas no acórdão recorrido (que se seguem de perto):

a) A nova versão dada ao regime do AL pela Lei n.º 62/2018 não introduz alterações no regime civilista da propriedade horizontal, envolvendo uma opção legal de âmbito administrativo no sentido de se prescindir do controlo administrativo sobre o fim ou destino ou sobre as proibições de uso da fracção constantes do título constitutivo da propriedade horizontal ou de deliberações levadas a registo;

b) Do novo regime do AL não consta qualquer disposição que revele intenção de derrogar o estatuto condominial inserido no CC;

c) A alteração legal ao regime do alojamento local operada pela Lei n.º 62/2018, de 22 de Agosto – art.º 9, n.ºs 2 e 3 do DL 128/2014, de 29 de Agosto, permitindo à assembleia de condóminos adoptar deliberação em que se opõe ao exercício da actividade de alojamento local em fracções autónomas, por mais de metade da permilagem do edifício, fundamentando a deliberação na prática reiterada e comprovada de actos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de actos que causem incómodo e afectem o descanso dos condóminos é uma medida de reacção, a posteriori, para um AL que não respeita o normal funcionamento de um condomínio, distinta da permissão para o exercício do AL a partir de uma “autorização para habitação” da fracção autónoma; não se trata de um meio susceptível de substituir os meios de tutela cível dos direitos privados dos condóminos alicerçada na reserva de jurisdição consagrada nos artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1 e 2, da Constituição;

d) Aquele meio constituiu apenas uma tutela administrativa que, além de apresentar uma frágil garantia do exercício dos direitos condominiais, nem tão pouco contempla a tutela de cada condómino nos casos em que ocorra uso da fracção autónoma diversa do destino que lhe é dado pelo estatuto condominial, nem das hipóteses de violação de proibições condominiais de actos ou actividades, nos termos previstos, respectivamente, nas alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 1422.º do CC, independentemente do seu grau de concretização, podendo aproximar-se da tutela concedida ao condomínio, que não propriamente aos condóminos, confinada a actos de turbação à semelhança do tipo de actos previstos no artigo 1346.º do CC;

e) Nas situações dos autos o regime do alojamento local constante dos Dec.-Leis n.º 39/2008 e n.º 128/1014 – o aplicável - , não contém sequer nenhuma disposição normativa que contemple a protecção dos direitos dos condóminos perante a instalação de estabelecimentos de alojamento local em fracção autónoma destinada a habitação por parte de outro condómino, como também não contém nenhuma disposição que possa ser tida como derrogatória da tutela desses direitos conferida pelo regime da propriedade horizontal disciplinado pelo CC;

f) Na situação dos autos, a par deste regime de alojamento local (constante dos Dec.-Leis n.º 39/2008 e n.º 128/1014), a qualquer condómino de fracção autónoma de prédio em regime de propriedade horizontal assistem os meios de tutela previstos no âmbito deste regime consagrado no CC para reagir contra a violação das limitações ao exercício do direito de outro condómino, nomeadamente em caso de uso da respectiva fracção em desvio do destino que lhe é dado pelo estatuto condominial ou nos casos de prática de actos ou actividade violadoras de proibições condominiais, respectivamente, ao abrigo do disposto nas alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 1422.º do referido Código, assim como assiste a qualquer condómino a tutela geral da propriedade constante do artigo 1346.º do mesmo Código contra concretos actos de turbação ali contemplados praticados por outro condómino;

g) A tais domínios de tutela não obsta o facto de ter sido viabilizado, por via administrativa, o registo e instalação de estabelecimento de alojamento local nos termos do respectivo regime;

h) O AL não é um simples habitar da fracção, equivalente à habitação que dele fazem os usuários não abrangidos pelo AL, ainda que possam aí pernoitar e descansar - sob o ponto de vista da destinação da coisa e da respectiva envolvência sócio-económica condominial, uma vivência habitacional é essencialmente diversa da sua utilização em alojamento de terceiros, com repercussões diversas no meio inter-habitacional ou condominial em que se desenvolvem;

i) A afectação de uma fracção destinada a habitação a AL pode ou não implicar o exercício de actividade comercial, mas isso não afasta a sua natureza de afectação distinta da habitação constante do título constitutivo da propriedade horizontal;

j) Os motivos que conduziram o legislador a autonomizar a figura do AL são específicos e não conduzem a que no AL se possa identificar um arrendamento de curta duração, nos termos desta figura;

k) As utilidades proporcionadas pelo explorador do alojamento local ao utente alojado, através do uso do prédio ou fracção dele, embora requeiram as necessárias condições de habitabilidade, não se consubstanciam numa prestação de gozo habitacional, por natureza com um grau de permanência e estabilidade que não se verificam nos casos de alojamento local;

l) No âmbito do Dec.-Lei n.º 128/014, quer na sua versão original, quer na actual redacção dada pela Lei n.º 62/2018, a exploração de estabelecimentos de alojamento local é expressamente definida no artigo 4.º, n.º 1, como correspondendo ao exercício, por pessoa singular e coletiva, da actividade de prestação de serviços de alojamento;

m) Para efeitos tributários o AL não é tratado como habitação;

n) O uso de fracções autónomas em hospedagem no âmbito do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1093.º do CC, em arrendamentos sazonais de curta duração em áreas de veraneio ou “alojamento” de estudantes em determinados núcleos urbanos universitários inserem-se noutro contexto económico-social, distinto do AL, não justificando necessariamente a mesma solução jurídica;

o) A solução preconizada é perfeitamente harmoniosa com a Constituição da República Portuguesa, que reconhece a propriedade privada mas não a absolutiza em termos de impedir que o legislador ordinário limite os direitos de propriedade singular sobre as fracções autónomas, no âmbito do regime da propriedade horizontal, atenta a especificidade deste direito real, que sofre de limitações específicas ao seu exercício, como as constantes do artigo 1422.º, n.º 2, do CC, e que são justificadas pela ordem unitária do conjunto imobiliário em que essas fracções se integram;

p) O paralelismo que se possa fazer com outras actividades permitidas pelo legislador, em diploma específico, como sucede como o Regime Jurídico aplicável ao Sistema de Indústria Responsável (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 169/2012, de 1 de Agosto – art.º 18.º do SIR), não determina que a solução preconizada pelo legislador nesse diploma se possa sobrepor necessariamente ao estatuto condominial, sem alteração jurídica do mesmo.


18.3. Na situação de facto apurada nos acórdãos recorrido e fundamento, porque similares, o título constitutivo da propriedade horizontal, no que se reporta à situação sujeita a apreciação do tribunal era idêntica: estavam em causa fracções autónomas destinadas a habitação.

No caso do acórdão recorrido foi dado por assente que:

“Dos factos assentes consta que o prédio urbano aqui em referência compreende 16 frações autónomas, das quais as designadas pelas letras A e B, localizadas no rés-do-chão, com entradas, respetivamente, pelo n.º 231 da Rua … e pelo n.º 365 da Avenida …, se destinam a comércio, enquanto que as designadas pela letras C a Q, localizadas nos 1.º a 4.º andares, com entrada pelo n.º 241 da Rua …, se destinam a habitação.

No caso do acórdão fundamento também se apurou que a A. era proprietária da fracção autónoma identificada pelas letras “AQ”, correspondente ao 6º andar, letra E, para habitação, incluindo um estacionamento. O imóvel possui a licença de utilização e destina-se a habitação e em assembleia de condóminos foi aprovada deliberação de proibição de realização de alojamento local na fracção da A., com a sua oposição (e de outro condómino).


18.4. A dicotomia de destinos das fracções autónomas aporta significado (citando o acórdão recorrido):

“Esta dicotomia revela, por si só, um padrão condominial em que as frações destinadas a comércio se encontram localizadas em espaço físico distinto do ocupado pelas frações habitacionais e até com entradas também distintas entre aquelas e estas.”


Apurando-se o carácter voluntário da dicotomia de destinos, não se apurando o sentido efectivo da vontade dos declarantes, é de aplicar o regime legal decorrente das normas de interpretação dos negócios jurídicos – art.º 236.º e ss do CC – para se concluir (citando o acórdão recorrido):

“o sentido normal do destino “habitação” para qualquer potencial adquirente das referidas frações não poderá deixar de ser o de que a sua função económico-social é a de servir de fogos ou de residência para pessoas e agregados familiares, proporcionando-lhes o sossego, a tranquilidade, a segurança e o conforto requeridos por qualquer economia doméstica, num envolvente espaço comum instrumental desse tipo de convivência coletiva.”

(…)

“Será, portanto, em função desse destino ou fim que importa aferir o âmbito de tutela traçado no artigo 1422.º, n.º 2, alínea c), do CC, que confere a cada condómino o direito de se opor a que qualquer das frações dos restantes condóminos seja usada para fim diverso do que lhe é destinado no estatuto da propriedade horizontal em foco.”

(…)

“Não é demais sublinhar que o fim ou destino das frações autónomas configurado no título constitutivo assegura, antecipadamente, aos potenciais adquirentes delas o conteúdo dos direitos de propriedade singular e de compropriedade que lhe são inerentes.”


18.5. Decorre do exposto que a orientação tida por mais conforme com o espírito do sistema jurídico e com as normas legais que regulam a propriedade horizontal e o alojamento local, em análise, coincide com a orientação adoptada no acórdão recorrido.


18.6. Cumpre, no entanto, indicar (de novo) que não se envereda neste recurso na análise da questão da comercialidade ou não da actividade do alojamento local, por a mesma não integrar o objecto do recurso e por não se considerar que a mesma tenha repercurssões na questão condominial.

Considerando que no alojamento local podem estar envolvidas organizações de actividades económicas de dimensão diversa – desde a empresa societária ao sujeito individual, proprietário de espaço que aloca ao alojamento local, com maior ou menor frequência (podendo ser marginal mesmo ou acessória de uma qualquer outra actividade não comercial, o que sempre levaria a excluí-la da natureza comercial), a qualificação como acto de comércio tout court pelo intérprete, sem cabal enquadramento legal inequívoco, não se apresenta isenta de dúvidas, como sucede igualmente na delimitação do AL face a outras figuras, conforme se destaca da literatura, nomeadamente no escrito de Januário da Costa Gomes, “Notas soltas sobre a relação entre o «proprietário» e o «hóspede» no alojamento local”, I Congresso do Alojamento Local, Almedina, 2020, págs. 96-97, onde se lê:

“…o contrato de alojamento local apresenta-se, debaixo do manto da sua unicidade designativa, como uma figura bicéfala: tanto pode ter, em concreto, a natureza de arrendamento de vilegiatura como pode assumir, em concreto, a natureza de hospedagem.

Como conjugar o exposto com o facto de o próprio art.º 4º, n.º 1 do RAL se reportar a uma “atividade de prestação de serviços de alojamento” por parte do titular do estabelecimento? E como compatibilizar essa diversidade sob a unidade designativa com o facto de o RAL insistir em ver um “estabelecimento” em cada modalidade de alojamento local?

Essas linguagens designativas revelam, por um lado, o facto acima referido, de o berço do alojamento local estar na legislação do turismo; por outro, evidenciam o propósito “normalizador” do legislador, quer das plúrimas situações de alojamento local quer dos clássicos, fiscalmente “rebeldes”, arrendamentos de vilegiatura.”


A integração do AL nos actos de comércio, tal como indicada no acórdão recorrido, parece-nos ter sido justificada sobretudo com base na necessidade de distinguir a utilização da fracção para “habitação” de outras utilizações, distinção esta que sempre será possível de realizar sem entrar na qualificação da actividade de alojamento local como comercial.

É que com alguma facilidade se consegue distinguir o fim “habitação” do fim “comércio” inserido no título constitutivo da propriedade horizontal com recurso às regras da interpretação do negócio jurídico – art.º 236.º e ss do CC – sem qualificar o alojamento local como acto de comércio, dada a artificialidade da qualificação, em face da utilização específica que o alojamento local comporta (pernoitar e ter certos serviços associados à pernoita).


18.7. Na esteira do afirmado no acórdão recorrido, a solução  interpretativa proposta na Uniformização não é contrária à letra ou ao espírito do regime do alojamento local constante dos Dec.-Leis n.º 39/2008 e n.º 128/1014, os quais não contém nenhuma disposição normativa que contemple a protecção dos direitos dos condóminos perante a instalação de estabelecimentos de alojamento local em fracção autónoma destinada a habitação por parte de outro condómino, tal como não contém nenhuma disposição que possa ser tida como derrogatória da tutela desses direitos conferida pelo regime da propriedade horizontal disciplinado pelo CC e legislação de direito privado.

Mesmo após a alteração do regime do alojamento local introduzida pela Lei n.º 62/2018, de 22-11, e no que toca ao mecanismo introduzido no n.º 2 do artigo 9.º  (prevendo a possibilidade de oposição ao exercício da atividade de alojamento local em fracção autónoma de prédio sujeito a propriedade horizontal mediante apresentação ao órgão municipal competente de deliberação fundamentada da assembleia de condóminos, aprovada por mais de metade da permilagem do edifício, decorrente da prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos) a situação não se modificou, pelo que é de  considerar que se  trata “de um meio alternativo de tutela administrativa, para efeitos de cancelamento, até ao máximo de um ano, do registo de estabelecimento de alojamento local, o que se mostra, portanto, insuscetível de substituir os meios de tutela cível dos direitos privados dos condóminos alicerçada na reserva de jurisdição consagrada nos artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1 e 2, da Constituição.” (cf. acórdão recorrido).


18.8. Ainda que o regime legal do alojamento local aplicável à situação sub judice no âmbito dos acórdãos recorrido e fundamento não seja aquele que decorre da redacção legal introduzida em 2018, não poderá deixar de se considerar a solução legal introduzida, para daí concluir: ainda que fosse aplicável, nada se modificaria na situação jurídica do acórdão recorrido, por a alteração legal não ter modificado o estatuto condominial, com base no qual o tribunal tem de julgar a causa.


18.9. É assim de confirmar a orientação colhida no acórdão recorrido, em detrimento da constante do acórdão fundamento, e, tendo em conta a contradição jurisprudencial, uniformizar jurisprudência nos seguintes termos:

No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fracção se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local.


19. Reflexo da posição adoptada em Uniformização sobre o acórdão recorrido

O Acórdão recorrido colheu a orientação correcta, de acordo com a perspectiva defendida nesta uniformização, pelo que não é de alterar a decisão adoptada pelo tribunal, que assim se mantém.

III. Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos invocados, acorda-se no Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:

a) Uniformizar a Jurisprudência nos seguintes termos:

No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fracção se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local.

b) Confirmar o acórdão recorrido.


Custas pela recorrente.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Março de 2022


Fátima Gomes (Relatora)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia (com declaração de voto)

Catarina Serra

António Oliveira Abreu

Maria João Vaz Tomé

António Magalhães

Fernando Jorge Dias

José Maria Ferreira Lopes

João Cura Mariano

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva

António Barateiro Martins

Fernando Batista de Oliveira

José Vieira e Cunha

Luís Espírito Santo

António Isaías Pádua

Nuno Ataíde das Neves

António José Ferraz de Freitas Neto

Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza

Ana Paula Boularot

Maria Clara Sottomayor

Manuel Tomé Soares Gomes

José Rainho

Maria da Graça Trigo

Pedro de Lima Gonçalves

Maria Rosa Oliveira Tching

Rijo Ferreira (vencido conforme declaração de voto que junto).



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Proc. 24471/16.4T8PRT.P1.S2-A



Declaração de voto


Voto favoravelmente o acórdão; embora com algumas dúvidas, porque sob a designação ampla de “alojamento local” (enquanto alojamento para fins turísticos ou para satisfazer outras necessidades habitacionais transitórias), desenvolvido numa fração autónoma, podem caber realidades contratuais bastante diversas (que serão diferentemente afetadas pelos sentidos possíveis a dar ao problema em equação).

Todavia, o desenvolvimento do “alojamento local”, enquanto sinónimo de uma atividade organizada de caráter regular e intenso (ressalvadas as restrições que já resultam da própria lei, nos artigos 4º, n.4 e 11º, n.4 do DL n. 128/2014, alterado e republicado pela Lei n.62/2018), em prédios exclusivamente ou dominantemente compostos por frações destinadas a habitação permanente, é dificilmente compaginável com o fim habitacional tipicamente pressuposto pelo regime legal da propriedade horizontal.

Entender que o alojamento local constitui um uso diverso do fim habitacional (constante do título constitutivo a que a fração se destina) para, com base no art.1422º, n.2, al. c) do CC, considerar tal prática vedada aos condóminos, não é uma mera questão de interpretação literal. É um modo de (sopesando interesses contrapostos) dar prevalência aos interesses (legítimos) de sossego e segurança dos condóminos que têm no prédio a sua residência habitual, em detrimento dos interesses económicos dos condóminos que, não necessitando da fração para sua própria habitação, pretendem a respetiva rentabilização.

O denominado alojamento local, em termos genéricos, não constitui um uso tipologicamente diverso da habitação, porque continua a corresponder a uma finalidade habitacional. Mas pode corresponder a um uso funcionalmente diverso, porque enformado por dinâmicas diferentes daquelas que compõem as rotinas próprias da habitação comum ou permanente. São estas diferentes dinâmicas de uso da fração destinada regularmente ao alojamento local que contêm a potencialidade de afetar os interesses de sossego e segurança dos condóminos que residem habitualmente num imóvel de habitação coletiva.

Sob a designação “alojamento local” é comportável uma multiplicidade de configurações contratuais e de intensidades organizativas que, em concreto, são suscetíveis de conduzir a diferentes níveis de afetação dos interesses dos residentes permanentes. Se em alguns casos essa afetação pode ser inexpressiva, noutros casos o prejuízo para o sossego e o repouso (e, consequentemente, a saúde) dos residentes permanentes poderá ser muito significativa. Assim acontecerá, sobretudo, na hipótese de o condómino “hospedeiro” (diretamente ou por intermédio de outrem) ter uma organização profissionalizada propiciadora de grande rotatividade de hóspedes ou facilitadora de sobreocupação da fração. Em tal tipo de hipótese existirá já uma grande aproximação à realidade fáctica própria de um estabelecimento comercial onde se regista o rotineiro afluxo de clientes. E aqui já não será difícil concluir que se trata de uma realidade equiparável a um uso diverso da habitação (dita normal). E, por isso, um uso vedado pelo art.1422º, n.2, al. c) do CC.

O proprietário da fração destinada a habitação, que não necessita dela para sua própria residência, tem legítimo interesse em rentabilizar esse património. Porém, o denominado alojamento local (no sentido em que tipicamente o estamos a considerar) não é a única forma de rentabilização da fração, pois este imóvel pode ser destinado ao arrendamento urbano, nas diferentes modalidades temporais previstas nos artigos 1094º e 1095º do CC.

O alojamento local desenvolvido numa fração autónoma será potencialmente menos conflituante com os interesses dos demais condóminos, se estiver em causa um prédio composto, essencialmente, por segundas residências ou residências de férias (sobretudo localizados em praias ou lugares de vilegiatura). Neste tipo de situação, a solução defendida no acórdão acaba, na prática, por ser menos justificada, porque as razões fundamentais para equiparar o alojamento local a um uso não habitacional (ou próximo de um uso comercial) não têm aqui a mesma intensidade.

De todo o modo, o facto de o DL 128/2014 pressupor que o AL é suscetível de ser desenvolvido numa fração autónoma não deve ser interpretado como contendo um comando permissivo que se projeta inelutavelmente no regime da propriedade horizontal. Dir-se-ia: se as frações destinadas a comércio ou serviços não têm, em regra, pelas suas caraterísticas próprias, aptidão física e funcional para servir o alojamento local, então o DL n. 128/2014 só poderá estar a referir-se às frações licenciadas para fim habitacional. Logo, deste diploma resultaria a autorização para o exercício do “alojamento local” em frações destinadas (pelo título constitutivo) ao fim habitacional. Porém, tal conclusão não deve extrair-se com absoluta linearidade, pois ao regular o exercício do alojamento local em frações autónomas, aquele diploma apenas pressupõe que esse exercício é, em termos genéricos, possível. Não estabelece específicas normas permissivas que se sobreponham às normas da propriedade horizontal em matéria de definição do uso do imóvel.

Assim, face ao quadro legal vigente, ainda que a opção defendida no acórdão possa ser, em algumas hipóteses, significativamente penalizadora dos interesses do proprietário da fração que pretende rentabilizar o seu património, ela acaba por, de modo preventivo, tutelar os interesses de sossego e segurança dos residentes habituais de um imóvel de habitação coletiva.


Maria Olinda Garcia



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Declaração de voto



A meu ver, o Regime Jurídico da Exploração dos Estabelecimentos de Alojamento Local (DL 128/2014, 29AGO, na republicação anexa à Lei 62/2018, 22AGO) ao excepcionar única e especificamente a necessidade de autorização prévia do condomínio no caso de ‘hostel’ – nº 4 do art.º 4º, introduzido em 2018 – ou do senhorio no caso de arrendamento – art.º 6º, nº 2, al. d) – e ao estabelecer um limite máximo do número de fracções exploráveis por edifício – art.º 11º, nº 4 – está a permitir, genérica e incondicionalmente, em todas as demais situações, e uma vez cumpridos os requisitos de tal legislação específica, a exploração de estabelecimentos de alojamento local em fracções autónomas de edifícios destinadas a ‘habitação’; o que pressupõe e implica que aquele é um uso compatível com o fim a que são destinadas, retirando essa actividade do âmbito de aplicação da al. c) do nº 2 do art.º 1422º do Código Civil.


 Além de que não só não se mostra líquido que o conceito de ‘habitação’ não englobe também o de ‘alojamento local’, como não se mostra, à luz do critério do art.º 236º do CCiv, que a expressão ‘habitação’ atinente ao uso das fracções autónomas constante dos títulos constitutivos de propriedade horizontal quisesse excluir esse tipo de actividade, na medida em que à data da outorga daqueles títulos (momento em que se deve colocar o declaratário normal) a problemática em causa ainda se não vislumbrava., ou pelo contrário, e pense-se em imóveis situados em zonas de vilegiatura, até foi pensada e admitida.


Isso não prejudica, no entanto, que os condóminos não possam, em função do concreto circunstancialismo em que essa exploração se desenvolva, lançar mão dos meios de tutela que a lei lhes confere, em particular a tutela geral do direito de propriedade – art.º 1346º do Código Civil – e a tutela geral dos direitos de personalidade – art.º 70º do Código Civil (sendo que a oposição prevista no nº 2 do art.º 9º do referido regime jurídico mais não é do que um meio alternativo e simplificado, dependente da formação da maioria aí requerida para a aprovação da deliberação da assembleia de condóminos e da apreciação do Presidente da Câmara Municipal, não constituindo um verdadeiro meio de defesa dos condóminos).


 Nem, por outro lado, prejudica a proibição específica desse tipo de actividade no título constitutivo ou por deliberação posterior da assembleia de condóminos aprovada sem oposição – art.º 1422º, nº 2, al. d) do Código Civil (na medida em que tal proibição seja oponível ao explorador do estabelecimento).


 Numa outra perspectiva argumentativa, reconhecendo que nas situações em causa possa ocorrer um conflito de interesses, não se me afigura adequado que a sua resolução se faça partindo da genérica e apriorística afirmação da ilicitude da exploração de alojamento local em fracção autónoma destinada a ‘habitação’, devendo antes, por mais consentâneo com critérios de proporcionalidade, tal conflito ser resolvido, na falta de  prévia e específica proibição de tal actividade, em função da ponderação da concreta e individualizada situação e mediante a subsequente invocação de um uso efectivo que ponha em causa a integridade do imóvel ou os direitos de personalidade dos condóminos.


 Por outro lado, ainda, não vislumbro que tenham sido ponderadas as consequências da jurisprudência firmada, sendo que um dos factores de interpretação estabelecido no art.º 9º do Código Civil são ‘as condições específicas do tempo em que é aplicada’. Com efeito da jurisprudência firmada resulta a ilicitude de todas as explorações de alojamento local instaladas em fracções autónomas de imóveis constituídos em propriedade horizontal destinadas a ‘habitação’, ainda que registadas e com título de abertura ao público, podendo qualquer condómino isoladamente exigir a cessação de tal actividade, perspectivando-se uma avalanche de processos dessa natureza e uma disrupção significativa nesse não despiciendo sector da actividade económica.


   Destarte formularia o seguinte segmento uniformizador:

 “Sem prejuízo da oponível proibição específica desse tipo de actividade no título constitutivo ou em deliberação posterior da assembleia de condóminos sem oposição (art.º 1422º, nº 2, al. d), do Código Civil) e do uso dos meios de tutela geral dos direitos de personalidade (art.º 70º do Código Civil) e de propriedade (art.º 1346º do Código Civil), a exploração de estabelecimento de alojamento local em fracção autónoma de edifício constituído em propriedade horizontal destinado no título constitutivo a ‘habitação’ não constitui ‘uso diverso do fim a que é destinada’, nos termos e para os efeitos do art.º 1422º, nº 2, al. c), do Código Civil”.


 E, consequentemente, revogaria o acórdão recorrido, julgando a acção improcedente.

Rijo Ferreira

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[1] Aprovado pelo Dec.-Lei n.º 38 382, de 07/08/1951, e do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), estabelecido pelo Dec.-Lei n.º 555/99, de 16-12, com as sucessivas alterações neles introduzidas.
[2] Sobre o fenómeno do Alojamento Local e sua evolução, vide estudo intitulado O Alojamento Local em Portugal – qual o fenómeno?, desenvolvido pela Nova School of Business and Economics e pela Faculdade da Universidade Nova de Lisboa para a Associação Hotelaria de Portugal, Novembro de 2016, acessível na Internet. 
[3] N.º 4 com a seguinte redacção:
Não pode haver lugar à instalação e exploração de “hostels” em edifícios em propriedade horizontal nos prédios em que coexista habitação sem autorização dos condóminos para o efeito, devendo a deliberação respetiva instruir a comunicação prévia com prazo.

[4] Com a seguinte redacção:

9 – Pode haver oposição à comunicação prévia com prazo se, num prazo de 10 dias contados a partir da sua apresentação ou num prazo de 20 dias no caso dos hostels, o Presidente da Câmara Municipal territorialmente competente, com faculdade de delegação nos vereadores ou dirigentes, se oponha ao registo, com os fundamentos identificados se seguida:

a) Incorreta instrução da comunicação prévia com prazo;

b) Vigência do prazo resultante de cancelamento de registo, nos termos do artigo 9.º;

c) Violação das restrições à instalação decididas pelo município, nos termos do artigo 15.º-A, ou falta de autorização de utilização adequada do edifício.

10 – A oposição prevista no número anterior obsta à atribuição do número de registo.