Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
300/13.0TJPRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: ABUSO DO DIREITO
PRESSUPOSTOS
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
RECURSO DE APELAÇÃO
TEMPESTIVIDADE
CASO JULGADO FORMAL
SENTENÇA
OBJECTO DO RECURSO
OBJETO DO RECURSO
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / APELAÇÃO / INTERPOSIÇÃO E EFEITOS DO RECURSO / APELAÇÕES AUTÓNOMAS.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, p. 211, 406 e 407;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2011, p. 241, 265, 341 e 346.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO N.º 644.º, N.º 2, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 07-02-2008, PROCESSO N.º 3934/07;
- DE 19-10-2017, PROCESSO N.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1.
Sumário :
I – Pedida em audiência de julgamento por uma das partes a junção de documentos, a sua rejeição é impugnável em recurso autónomo, nos termos da al. d) do nº 2 do art. 644º do CPC.

II – A não interposição deste recurso gera caso julgado formal quanto a essa rejeição, que não pode ser impugnada na apelação interposta da sentença.

III – Provando-se que os recorrentes residem em imóveis pertencentes à recorrida, mas não se provando factos reveladores da celebração de contrato de arrendamento, não pode o STJ deduzir a partir daqueles factos a existência de outros reveladores desse contrato.

IV – A intervenção do STJ no campo dos factos apenas se justifica nas situações excecionais em que se está perante verdadeiros erros de direito que, nesta perspetiva, se integram também na esfera de competência do Supremo.

V – O abuso do direito por desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício por ele imposto a outrem assenta na desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem, nomeadamente quando há a atuação de direitos com lesão intolerável de outras pessoas e o exercício jurídico-subjetivo sem consideração por situações especiais.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL



i - AA propôs contra BB, CC, DD, EE, FF, GG e incertos, HH, II e incertos, JJ, KK e incertos, LL e incertos, MM e incertos, NN e mulher, OO, PP e incertos, QQ e incertos, RR e incertos, SS e incertos, TT e incertos, UU e incertos, VV e incertos, XX e incertos, ZZ e incertos, AAA e incertos, BBB e incertos a presente ação declarativa, pedindo a condenação dos réus a reconhecerem o seu direito de propriedade e a restituírem os prédios, que identificou, por eles ocupados, livres de pessoas e bens.


Intervieram espontaneamente, como réus, CCC, DDD e marido, EEE.

        

    Alegou a autora, em síntese nossa, que comprou em 2012, fazendo registar em seu favor a aquisição, diversos prédios urbanos, sitos no …, na Calçada …, nº …, casa …, nº 22, nº 26, nº 30, nº 41, nº 45 e 49, nº 53, nº 53-A, casa 1, nº 53-A, casa 2, nº 53-A, casa 3, nº 53-A, casa 4, nº 57, nº 59, nº 61, nº 65, e na Travessa …, nº 88, nº 89, nº 90, nº 93, nº 94, nº 95, nº 123, nº 127, nº 131 e nº 143, os quais estão a ser ocupados pelos réus, ignorando em que título se funda a ocupação.

        

     Os réus JJ, DDD e marido, EEE, NN e mulher, OO, apresentaram contestação conjunta em que invocaram a existência de arrendamentos verbais; e também contestou CCC, invocando um arrendamento verbal feito em seu favor por procurador do senhorio.

     Em ambas as contestações os réus pediram a absolvição do pedido.

      Realizado o julgamento foi proferida sentença que condenou, entre outros:

    - o réu CCC e a interveniente FFF a reconhecerem a autora como proprietária do prédio sito na Calçada …, nº …, …, e a restituírem-lho, livre de pessoas e coisas;

     - a ré JJ a reconhecer a autora como proprietária do prédio sito na Calçada …, nº …-A, casa …, …, e a restituir-lho à autora, livre de pessoas e bens;

      - os réus DDD e EEE a reconhecerem a autora como proprietária do prédio sito na Calçada …, nº …, …, e a restituírem-lho, livre de pessoas e bens;

     - os réus NN e OO a reconhecerem a autora como proprietária do prédio sito na Calçada …, nº …, …, e a restituírem-lho, livre de pessoas e bens.

        

       Estes réus, inconformados, apelaram, tendo os recursos sido julgados improcedentes pela Relação do ….

 

     Os réus DDD e marido, EEE, JJ e NN e mulher, OO, interpuseram recurso de revista excecional, pedindo a revogação do acórdão, tendo, para tanto, formulado as conclusões que passamos a transcrever:

   1 - Os ora recorrentes estavam perfeitamente convencidos que os depósitos das rendas junto da Caixa GGG tinham sido juntos com a contestação através da aplicação informática CITIUS, como aliás é referido em tal peça processual.

   2 - Assim, tendo em consideração o princípio da verdade material e o lapso supra invocado, os documentos que se requereu a respetiva junção no decurso da audiência de julgamento do Tribunal de 1ª instância deviam ter sido admitidos pelo tribunal;

   3 - A justa composição da lide só será possível com a admissibilidade da junção aos autos de tais documentos.

   4 - Tendo em consideração o momento em que foi requerida a junção de tais documentos - no decurso da audiência de julgamento - cum grano salis, deverá entender-se que tal despacho não se subsume na previsão da alínea d) do nº 2 do artigo 644º do C. P. Civil e, por isso, tal decisão poderia ser sindicada no recurso a interpor da decisão final que ponha termo à causa, pelo que tal questão deveria ser conhecida pelo Tribunal da Relação do ….

  5 - Face ao exposto, nesta parte, deverá o douto Acórdão da Relação do …, que não conheceu da questão sobre a não admissão, por extemporaneidade, de documentos relevantes para a descoberta da verdade ser revogado e, em consequência disso, ordenar-se que baixem os autos ao Tribunal da Relação, determinando-se que seja proferida nova decisão tendo em consideração tais documentos.

  6 - Os Réus alegaram que ocupam os descritos prédios na qualidade de arrendatários, tendo, todos, sem excepção, nascido nesses imóveis, isto é, já anteriores familiares aí habitavam, donde resulta que aí residem, pelo menos, há mais de 40 anos.

   7 - Não pode, assim, restar qualquer dúvida que os Réus residem nesses prédios, sendo tais habitações as suas casas de morada de família.

   8 - Apesar do Tribunal dar como não provado a celebração de contratos de arrendamento verbais, o certo é que os Réus não caíram de "paraquedas" em tais locais.

   9 - Aliás, para aí residirem tinham que consumir e pagar várias prestações de serviços essenciais, designadamente água, luz e gás.

   10 - Assim, à míngua de melhor prova, conjugando-se estes factos com a situação dos restantes Réus, nomeadamente a existência de vários depósitos de rendas na Caixa GGG, o reconhecimento por parte da procuradora HHH que procedeu ao levantamento de tais rendas e o pagamento de serviços básicos para poderem aí residirem, parece de intuir que existiria um vínculo perante os anteriores proprietários que se comunicou à Autora.

  11 - Por não se poder alvitrar outra conclusão que não seja a de que os Réus ocupam os prédios em causa na qualidade de arrendatários e não apenas por mera tolerância dos anteriores proprietários, deveriam as instâncias julgarem a ação improcedente.

   12 - Conforme foi supra explanado, a conduta da Autora constitui o exercício abusivo de um direito, nos termos do artigo 334º do Código Civil, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé e, como tal, torna a sua pretensão ilegítima e equivalente à falta de direito, o que acarreta que a sua pretensão deveria ser julgada improcedente.

         Não houve contra-alegações.

     Cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação – visto o conteúdo das conclusões que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, delimitam o objeto do recurso -, as de saber se:

   - deve ser conhecida, contra entendeu o Tribunal da Relação, a apelação no tocante ao despacho que não admitiu a junção de documentos requerida pelos recorrentes;

   - devem ter-se como existentes entre os réus e a autora contratos de arrendamento dos imóveis que os primeiros vêm habitando;

         - é abusivo o exercício do direito por parte da autora.

    II – Vêm julgados como provados os seguintes factos:

  1. Por escritura de compra e venda exarada a 05 de Abril de 2012, de fls 28 a fls 33, verso do livro de escrituras diversas nº 257 do Cartório Notarial de III, a autora adquiriu:

      - o prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão com quintal, sito na Calçada …, nº …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 7019º, descrito na 2ª Conservatória do Registo predial sob o nº 5…2-C…;

      - o prédio urbano, correspondente a ilha de 18 casas, sito na travessa … e rua …, nº 5, 7, 22, 26, 30, 34, 88, 89, 90, 93, 94, 95, 123, 127, 131, 135, 139 e 143, inscrito na matriz sob os artigos 7032º, 7033º, 7034º, 7035º, 7036º, 7037º, 7038º, 7039º, 7040º, 7041º, 7042º, 7043º, 7044º, 7045º, 7046º, 7047º, 7048º e 7049º, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 6…2- C…;

    - o prédio urbano, correspondente a ilha composta por 12 casas, sito na Calçada …, nº 41, 45, 49, 53, 53 c/1, 53 c/2, 53 c/3, 53 c/4, 55, 57, 59 e 61, inscrito na matriz sob os artigos 7020º, 7021º, 7022º, 7023º, 7024º, 7025º, 7026º, 7027º, 7028º, 7029º, 7030 e 7031º, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 6…7- C…;

   - o prédio urbano, sito na Calçada …, nº 36, composto de 2 casas de rés-do-chão com quintal, inscrito na matriz sob os artigos 7017º e 7018º, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 6…9- C…;

     - o prédio urbano, composto de terreno para construção, sito na Calçada …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 11635º, descrito na 2ª Conservatória do Registo predial sob o nº 6…0-C… [artigo 1º da petição  inicial; matéria expressamente aceite no artigo 1º da contestação do réu ZZ; matéria não impugnada na contestação dos réus JJ, JJJ, DDD, EEE, NN, OO; matéria expressamente aceite no artigo 21º da contestação do réu CCC; documento que consta de fls 16 a 28].

  2. O direito de propriedade sobre o prédio descrito na 2ª Conservatória do Registo predial sob o nº 5…2/20…0, composto de casa de rés-do-chão com quintal, sito na Calçada …, nº …, mostra-se inscrito a favor da autora, AA, desde 05 de Abril de 2012 [artigo 2º da petição inicial; materia expressamente aceite no artigo 1º da contestação do réu ZZ; matéria não impugnada na contestação dos réus JJ, JJJ, DDD, EEE, NN, OO; matéria expressamente aceite no artigo 21º da contestação do réu CCC; documento que consta de fls 29 e 30].

  3. O direito de propriedade sobre o prédio descrito na 2ª Conservatória do Registo predial sob o nº 6…2/20…1, sito na travessa … e rua …, com os números de polícia 5, 7, 22, 26, 30, 34, 88, 89, 90, 93, 94, 95, 123, 127, 131, 135, 139 e 143, mostra-se inscrito a favor da autora, AA, desde 05 de Abril de 2012 [artigo 2º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 1º da contestação do réu ZZ; matéria não impugnada na contestação dos réus JJ, JJJ, DDD, EEE, NN, OO; matéria expressamente aceite no artigo 21º da contestação do réu CCC; documento que consta de fls 31 e 32].

  4. O direito de propriedade sobre o prédio descrito na 2ª Conservatória do Registo predial sob o nº 6…7/20…5, sito na Calçada …, nº 41, 45, 49, 53, 53 c/1, 53 c/2, 53 c/3, 53 c/4, 55, 57, 59 e 61, mostra-se inscrito a favor da autora, AA, desde 05 de Abril de 2012 [artigo 2º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 1º da contestação do réu ZZ; matéria não impugnada na contestação dos réus JJ, JJJ, DDD, EEE, NN, OO; matéria expressamente aceite no artigo 21º da contestação do réu CCC; documento que consta de fls 33 e 34].

   5. O direito de propriedade sobre o prédio descrito na 2ª Conservatória do Registo predial sob o nº 6…9/20…4, sito na Calçada …, nº 36, mostra-se inscrito a favor da autora, AA, desde 05 de Abril de 2012 [artigo 2º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 1º da contestação do réu ZZ; matéria não impugnada na contestação dos réus JJ, JJJ, DDD, EEE, NN, OO; matéria expressamente aceite no artigo 21º da contestação do réu CCC; documento que consta de fls 35 e 36].

   6. Após a celebração da escritura referida em 1-, a autora nomeou seu procurador KKK, a quem conferiu poderes para administrar os bens móveis identificados em 2- a 5- [artigo 3º da petição inicial; matéria expressamente aceite no artigo 1º da contestação do réu ZZ; matéria não impugnada na contestação dos réus JJ, JJJ, DDD, EEE, NN, OO; matéria expressamente aceite no artigo 21º da contestação do réu CCC; documento que consta de fls 37 e 38]. (…)

  8. O réu CCC ocupa o prédio sito na Calçada …, nº …, … [artigo 4º da petição inicial; matéria não impugnada por nenhum dos réus; matéria expressamente reconhecida nos artigos 14º e 16º da contestação do réu CCC].

   9. O réu CCC é casado com a interveniente FFF [artigo 13º da contestação do réu CCC; documento que consta de fls 420 e 421].

   10. Já desde data anterior a 1990, o réu CCC e a interveniente FFF residem no prédio sito na Calçada …, nº …, …, aí dormindo, aí tomando as suas refeições, aí recebendo os amigos, aí guardando os seus haveres, aí recebendo o seu correio [artigos 15º e 16º da contestação do réu CCC; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial].

  11. O filho do réu CCC, LLL, nasceu na habitação sito na Calçada …, nº …, … [artigo 46º da contestação do réu CCC; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial].

   12. O réu CCC efetuou obra diversa no prédio sito na Calçada …, nº …, …, designadamente acrescentou 2 quartos no sótão da casa, e construiu 1 casa de banho privativa [artigos 47º a 49º da contestação do réu CCC; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial].

(…)

   15. A ré JJ ocupa o prédio sito na Calçada …, nº ..-A, casa …, … [artigo 4º da petição inicial; matéria não impugnada por nenhum dos réus; matéria expressamente reconhecida no artigo 1º da contestação da ré JJ].

  16. Utilizando-o como residência, aí dormindo, tomando as refeições, recebendo amigos e familiares [artigo 19º da contestação da ré JJ; matéria antecipadamente aceite pela autora no artigo 4º da petição inicial].

(…)

 18. Os réus DDD e EEE residem na habitação sita na Calçada …, nº …, … [artigos 6º e 29º da contestação dos réus DDD e EEE; matéria antecipadamente aceite pela autora no artigo 4º da petição inicial].

  19. Os réus NN e OO ocupam o prédio sito na Calçada …, nº …, …, aí residindo [artigo 4º da petição inicial; matéria não impugnada por nenhum dos réus; matéria expressamente aceite nos artigos 9º e 31º da contestação dos réus NN e OO].

     E, como não provados, vêm descritos os seguintes factos:

   c - os réus JJ, JJJ, DDD, EEE, NN e OO tenham celebrado qualquer contrato verbal de arrendamento com um antecessor da autora [artigos 11º a 13º da contestação dos réus JJ, JJJ, DDD, EEE, NN e OO; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

  d - a ocupação referida em 15 - ocorra desde Novembro de 2001 [artigo 2º da contestação da ré JJ; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

  e - a ré JJ há mais de 40 anos pague rendas pela utilização do prédio sito na Calçada …, nº …-A, casa …, …, designadamente ao MMM e à HHH [artigo 14º da contestação da ré JJ; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

  f - em Novembro de 2001 a representante dos senhorios, HHH, tenha recusado receber a renda da ré JJ [artigo 17º da contestação da ré JJ; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial] (…)

  j - a ré DDD tenha nascido, há mais de 45 anos, na habitação sita na calçada …, nº …, …; e que aí tenha regressado após casar com o réu EEE [artigo 7º da contestação dos réus DDD e EEE; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

  k - os avós da ré DDD, NNN e OOO, tenham residido até 1995 na habitação sita na calçada …, nº …, … [artigo 8º da contestação dos réus DDD e EEE; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

  l – a ré DDD e os seus avós sempre tenham pago renda pela ocupação do prédio sito na calçada …, nº …, … [artigo 26º da contestação dos réus DDD e EEE; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

  m - no início de 2013 a representante dos senhorios tenha recusado receber a renda dos réus DDD e EEE [artigo 27º da contestação dos réus DDD e EEE; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

   n - o réu NN resida há mais de 37 anos no prédio sito na Calçada …, nº …, … [artigo 10º da contestação dos réus NN e OO; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

   o - o réu NN tenha nascido no prédio sito na Calçada …, nº …, … [artigo 30º da contestação dos réus NN e OO; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

  p - os pais do réu NN tenham celebrado qualquer contrato de arrendamento relativo ao prédio sito na Calçada …, nº …, … [artigo 31º da contestação dos réus NN e OO; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

  q - os réus NN e OO tenham acordado seja o que for com a representante dos senhorios, HHH, quanto a uma dívida à EDP de PPP, designadamente quanto ao pagamento dessa dívida por aqueles réus e à isenção do pagamento de renda nesse período, relativamente ao prédio sito na Calçada …, nº …, … [artigos 33º a 36º da contestação dos réus NN e OO; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

 r - os réus NN e OO tenham procurado encontrar a representante dos senhorios, HHH, com vista ao pagamento da renda mensal de € 50,00 pela utilização do prédio sito na Calçada …, nº …, … [artigos 37º e 38º da contestação dos réus NN e OO; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

  s - em data anterior a 1990, o réu CCC e o procurador do anterior proprietário do prédio sito na Calçada …, nº …, …, tenha acordado em dar de arrendamento o referido prédio ao dito réu, mediante o pagamento da renda mensal de 600$00 [artigos 29º e 30º da contestação do réu  CCC; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

  t - o réu CCC alguma vez tenha solicitado, ao senhorio ou ao seu representante, a redução do arrendamento a escrito; e que a procuradora dos senhorios sempre o tenha protelado [artigos 33º e 34º da contestação do réu CCC; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

   u - a procuradora dos senhorios tenha dito ao réu CCC não ser possível a celebração de contrato de arrendamento escrito por falta de condições de habitabilidade do imóvel sito na Calçada …, nº …, … [artigo 35º da contestação do réu CCC; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial];

    v - o réu CCC sempre tenha procedido ao pagamento da renda devida pela ocupação do imóvel sito na Calçada …, nº …, … [artigo 42º da contestação do réu CCC; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 5º a 12º da petição inicial].


    III – Abordemos, então, as questões suscitadas.

        

      Sobre a junção de documentos:

  Na audiência de julgamento realizada em 29.3.2017, os recorrentes pediram a junção aos autos dos documentos aludidos nas conclusões 1 a 5, o que foi indeferido ao abrigo do disposto no art. 423º do CPC[1], por estar já ultrapassado o momento a que alude este artigo e não se configurar a situação prevista no seu nº 3.

   Proferida a sentença em 17.5.2017, nas alegações da apelação que contra ela interpuseram, os ora recorrentes impugnaram esse despacho, pedindo a sua revogação e consequente anulação da sentença, a fim de ser proferida outra que tomasse em conta esses documentos.

    No acórdão recorrido esta pretensão foi rejeitada, com a seguinte fundamentação:

    “Ora, decorre do artigo 644º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Civil, ser autónoma a apelação do despacho que rejeite um meio de prova. A ser interposta no prazo de 15 dias após a data de prolação do mesmo – artigo 638º, nº 1, desse código. Subindo imediatamente e em separado, que não com o recurso da decisão final - artigos 645º, nº 2, e 646º.

   Assim sendo, dado que não foi interposto esse recurso, terá o dito despacho transitado em julgado – artigo 620º, nº 1. Não podendo no presente recurso ser posto em causa e pedida a sua revogação.”

   Ao entendimento assim exposto, os recorrentes contrapõem que à previsão da al. d) do nº 2 do art. 644º - se interpretada “cum grano salis” -, não deve ser reconduzida a situação em causa - junção de documentos requerida na audiência de julgamento.

    Não lhe assiste razão.

   Como se lê em Abrantes Geraldes[2], comentando este art. 644º, “(…) a opção pela admissão de recurso imediato em cada uma das mencionadas situações visou atenuar os efeitos negativos que poderiam produzir-se ao nível da tramitação processual (…). Com efeito, a sujeição daquelas decisões interlocutórias a impugnação diferida para o recurso da decisão final (…) potenciaria o risco de anulação do processado, para ponderação ou desconsideração dos meios de prova (…) rejeitados ou admitidos.

Não explicitam os recorrentes, nem se vê, como pode o despacho que não admitiu a junção de documentos deixar de ser reconduzido à previsão da alínea d) do nº 2 do art. 644º.

São fases processuais distintas e autónomas a da audiência de julgamento e a da prolação da sentença; e a proximidade temporal que, em princípio, existe entre ambas não serve, naturalmente, para excluir da previsão daquela norma o despacho proferido em audiência de julgamento que rejeita meio de prova.

Ocorre neste caso, tal como nas hipóteses em que a rejeição tem lugar em fase processual mais distante da sentença, a necessidade, subjacente à criação da norma, de evitar o risco de anulação do processado que adviria da sujeição da respetiva decisão a impugnação diferida.

A não interposição do recurso contra aquele despacho que não admitiu a pretendida junção de documentos acarretou, pois, a formação de caso julgado formal quanto à decidida rejeição, pelo que não merece censura o que o acórdão recorrido decidiu a esse propósito.


    Da existência de um vínculo de arrendamento a favor dos réus:

É tema que os recorrentes abordam ao longo das conclusões 6ª a 11ª, onde defendem, em resumo, que os factos conhecidos – a saber: residência dos recorrentes nos prédios em causa há mais de 40 anos, o consumo e pagamento que vêm fazendo de serviços públicos essenciais, bem como a situação de outros réus, com depósitos de rendas levantados e reconhecidos pela procuradora dos anteriores proprietários – levam a que, não havendo mera tolerância, pareça ser de intuir pela existência de um vínculo de arrendamento a seu favor.

   Os factos provados nºs 15, 16, 18 e 19 mostram, efetivamente, que os recorrentes têm residência em prédios que são reivindicados pela recorrida.

   Porém, contrariamente ao que naquelas conclusões é dito, esses factos não mostram desde quando essa residência começou a ter lugar, nem evidenciam que os mesmos recorrentes aí consumam serviços públicos essenciais e suportem os respetivos custos.

  Não decorre da factualidade provada que hajam sido celebrados contratos de arrendamento onde os réus, ora recorrentes - todos eles, ou só algum ou alguns – tenham intervindo como arrendatários.

   Excluída, assim, a existência de factos provados que consubstanciem esses vínculos, não é, manifestamente, possível que se intua a sua existência, o que significaria que a partir dos referidos factos provados se deduziria a existência de outros reveladores da constituição desses contratos – arts. 349º e 351º do CC -, conclusão que está vedada ao STJ.

Ademais, constando como facto julgado não provado que “os réus JJ, JJJ, DDD, EEE, NN e OO tenham celebrado qualquer contrato verbal de arrendamento com um antecessor da autora” (alínea c)), o acolhimento da tese dos recorrentes levaria a que, usando de presunção judicial, este tribunal, em manifesta violação do que é o seu poder de cognição, julgasse matéria de facto, alterando o decidido nas instâncias[3] quanto àquele concreto ponto.

Com efeito, segundo o art. 33º da LOFTJ, este tribunal apenas conhece de matéria de direito, ressalvadas as exceções previstas na lei.

Na mesma linha vão os arts. 674º, nº 3 e 682º, nº 2, estabelecendo o primeiro que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, e impondo o segundo a definitividade da decisão proferida pela Relação quanto à matéria de facto, ficando ressalvada a possibilidade de o STJ a alterar no caso excecional previsto na primeira das referidas normas.

A sua intervenção no campo dos factos, apenas se justifica nas situações excecionais em que, como escreve Abrantes Geraldes[4], se está perante “verdadeiros erros de direito que, nesta perspectiva, se integram também na esfera de competência do Supremo” que então “pode cassar uma decisão sustentada em determinado facto cuja prova, dependente de documento escrito, foi declarada a partir de depoimento testemunhal, de documento de valor inferior, de confissão ineficaz ou de presunção judicial.

Por seu lado deverá também introduzir as modificações na decisão da matéria de facto que se revelarem ajustadas quando, por exemplo, tenha sido descurado o valor probatório pleno de determinado documento ou tenham sido desatendidos os efeitos legais de uma declaração confessória ou do acordo das partes.

         Assim, por manifestamente infundada, soçobra esta pretensão dos recorrentes.

 

            Do abuso do direito:

Na conclusão 12ª os recorrentes defendem que a recorrida, ao pedir a entrega dos imóveis por eles ocupados, age em abuso do direito.

    Explicitando esta conclusão, argumentam na parte da motivação das suas alegações, essencialmente, o seguinte:

- Desde há longos anos residem nos prédios em causa, estando eles e os anteriores proprietários convictos da existência de vínculos de arrendamento entre as partes;

- Vêm os recorrentes depositando as rendas e pagando os consumos de água, luz e gás;

- A ocupação nunca foi contra a vontade dos senhorios e estes nunca deram sinal de que a situação se devia a mera tolerância;

- A modalidade de abuso do direito presente na situação concreta é o desequilíbrio no exercício de direitos;

- A nova proprietária, ao invocar inicialmente o desconhecimento de tal vínculo, para depois pretender que os Réus desocupem os prédios por inexistir relação locatária, está a exercer de forma ilegítima o seu direito, com um resultado em desacordo com a boa fé e a confiança.

        

Avaliemos então o mérito desta argumentação.

     O art. 334º do Código Civil qualifica de ilegítimo o exercício de um direito quando são manifestamente excedidos os limites impostos pela boa fé (objetiva), pelos bons costumes (de acordo com a moral social, nomeadamente regras de conduta sexual e códigos deontológicos) ou pelo seu fim social ou económico.[5]

     Em acórdão deste STJ de 19.10.2017[6] escreveu-se a propósito deste instituto o seguinte:

“Esta figura complexa do abuso de direito, é uma válvula de segurança, uma de várias cláusulas gerais com que o legislador pode obtemperar a injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, a injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido.

No dizer do Acórdão do STJ, de 07.02.2008 (revista nº 3934/07- 2ª Secção), representa «o controlo institucional da ordem jurídica no que tange ao exercício dos direitos subjectivos privados.

Os direitos subjectivos e o seu exercício não são garantidos sem limites: eles devem manter-se dentro da sua função útil, prevista pelo direito objectivo.

A figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo».

Segundo Manuel Andrade, existe abuso de direito quando um certo direito, admitido como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.

Por sua vez, refere Antunes Varela que o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal, que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, e que se designa por abuso de direito o exercício desse poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em aberta contradição, seja com o fim (económico ou social) a que um poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento.

Na configuração da figura do abuso de direito, o art. 334º do C. Civil, consagra uma concepção objectiva ou objectivista: não só tem o excesso cometido no exercício do direito de ser manifesto, como não é necessária a consciência do abuso, isto é, a consciência, por parte do agente, da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido.”

De entre os vários tipos de atos abusivos enunciados por Menezes Cordeiro[7], acolhem-se os recorrentes ao desequilíbrio no exercício, que “(…) abriga subtipos diversificados: em comum têm o despropósito entre o exercício e os efeitos dele derivados (…) com três sub-hipóteses:

- a do exercício danoso inútil;

- a do dolo agit qui petit quod statim redditurus est;

- a da desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício por ele imposto a outrem.”[8]    

      Cremos que é a este último sub-tipo que os recorrentes pretendem reconduzir o caso em análise.

     Assenta ele na “(…) desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem (…)”, nomeadamente quando há “(…) a actuação de direitos com lesão intolerável de outras pessoas e o exercício jurídico-subjectivo sem consideração por situações especiais.”[9]

      Mas não podemos acompanhar os recorrentes na tese que a este propósito defendem.

      Na perspetiva da sua situação, os factos provados apenas evidenciam que vêm residindo nos prédios cuja entrega lhes é exigida pela recorrida, sendo omissos quanto aos demais pontos que invocam, designadamente quanto ao depósito de rendas, quanto ao pagamento dos consumos de água, luz e gás e quanto à convicção, tanto sua como dos anteriores proprietários, da existência de contratos de arrendamento a propiciar-lhes a ocupação dos imóveis.

     E, na perspetiva da recorrida, desconhecem-se circunstâncias que possam convencer de que a vantagem para ela emergente da eventual procedência desta ação é de pouca importância ou insignificante, de sorte a revelar uma inaceitável desproporção entre a vantagem obtida e o prejuízo causado.

     Sendo o abuso do direito um fator impeditivo do seu exercício, o ónus da sua prova cabe a quem dele aproveita, nos termos do nº 2 do art. 342º do CC.

Por isso, não dando os factos provados apoio à tese dos recorrentes, tem de concluir-se pela inexistência desse impedimento ao exercício do direito que nesta ação a autora quer ver tutelado.

    Isto porque, sem se negar que a atuação do abuso do direito pressupõe a “primazia da materialidade subjacente[10], tal materialidade, no caso, não se reveste das caraterísticas indispensáveis para o efeito.

        

Assim, a revista improcede.

IV – Pelo exposto, julga-se a revista improcedente, confirmando-se o acórdão impugnado.

       Custas a cargo dos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que gozam.

Lisboa, 6.12.2018

Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

Bernardo Domingos

João Bernardo

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[1] Diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência
[2] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 211
[3] Deve notar-se que já em sede de apelação os recorrentes impugnaram, sem sucesso, a decisão proferida em 1ª instância que julgara como não provado o referido facto, descrito sob a alínea c).
[4] Autor e obra acabados de citar, pág. 406 e 407
[5] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2011, pág. 241
[6] Proferido no proc. nº 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1. relatora Conselheira Maria Rosa Tching e no qual intervieram como adjuntos a ora relatora e o ora 2º adjunto
[7] Obra e vol. citados, págs. 265 e segs.
[8] Mesmo autor, obra e volume, pág. 341
[9] Mesmo autor, obra e volume, pág. 346.
[10] Mesmo autor, obra e volume, pág. 241