Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2344/15.8T8BCL.G1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PATERNIDADE BIOLÓGICA
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
DIREITOS FUNDAMENTAIS
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
PRAZO DE PROPOSITURA DA AÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO / ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO / RECONHECIMENTO JUDICIAL / ESTABELECIMENTO DA PATERNIDADE / RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS.
Doutrina:
-Guilherme de Oliveira, - Guilherme de Oliveira, “Caducidade das acções de investigação”, Lex Familiae, 2004, p. 10;
-Paulo Mota Pinto, O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, Portugal-Brasil, Ano 2000, Coimbra, 2000, p. 149 a 249;
-Vaz Serra, BMJ 107, p. 191.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1817.º, N.ºS 1 E 3, ALÍNEA C) E 1869.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 635.º, N.º 4 E 639.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 16.º, N.º1, 18.º, N.º 2 E 26.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 15-05-2013, PROCESSO N.º 787/06.7MAI.P1.S1;
- DE 05-05-2015, PROCESSO N.º 932/13;
- DE 08-03-2016, PROCESSO N.º 352/11;
- DE 21-04-2016, PROCESSO N.º 1974/13;
- DE 04-05-2016, PROCESSO N.º 2886/12;
- DE 08-11-2016, PROCESSO N.º 4704/14;
- DE 08-06-2017, PROCESSO N.º 513/16.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:


- ACÓRDÃO N.º 99/88;
- ACÓRDÃO N.º 451/89;
- ACÓRDÃO N.º 370/91;
- ACÓRDÃO N.º 311/95;
- ACÓRDÃO N.º 506/99;
- ACÓRDÃO N.º 486/2004;
- ACÓRDÃO N.º 23/2006, IN DR, I.ªSÉRIE-A, N.º 28, DE 08/02/2006;
- ACÓRDÃO N.º 401/2011;
- ACÓRDÃO N.º 750/2013;
- ACÓRDÃO N.º 373/2014;
- ACÓRDÃO N.º 383/2014;
- ACÓRDÃO N.º 529/2014;
- ACÓRDÃO N.º 547/2014;
- ACÓRDÃO N.º 704/2014.
Sumário :

I - O direito ao conhecimento da paternidade biológica (direito de conhecer e ver reconhecida a ascendência biológica e a marca genética de cada pessoa), decorrência dos direitos de identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, assume a natureza de direito fundamental.

II – Enquanto direito fundamental impõe que os meios legais se mostrem adequados à sua plena concretização por forma a lograr obter, eficazmente, a coincidência entre o vínculo jurídico e o biológico.

III – A existência de limitação temporal ao exercício deste direito, ainda que assente num princípio de proporcionalidade de direitos/interesses conflituantes, faz desmerecer a sua essência (direito pessoalíssimo e, por natureza, imprescritível) e põe em causa o equilíbrio que pretende instituir colocando em patamar equivalente interesses/valores (focalizados na segurança jurídica do investigado e das suas relações familiares protegendo a estabilidade da mesma) que, sem poderem ser desprezados, não poderão ser equacionados e tutelados de igual forma.

IV - Qualquer limitação temporal neste âmbito, ainda que se considere de prazo razoável, constitui uma compressão da revelação da verdade biológica, que é o princípio alicerçante do regime da filiação.

V - Consequentemente, a limitação temporal ínsita no n.º1 do artigo 1817.º do CC, viola, de forma desproporcionada, os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade e, nessa medida, mostra-se materialmente inconstitucional (violando, entre outros, dos arts.16.º, n.º1, 18.º, n.º 2 e 26.º, n.º 1, da CRP).

Decisão Texto Integral:


Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório

Recorrente: AA

Recorridos: BB, CC, DD e EE

1. AA, em 31 de Outubro de 2015, propôs a presente acção declarativa para investigação da paternidade contra BB, CC, DD e EE pedindo:

a) que seja reconhecido e decretado que o Autor é filho de FF;

b) que seja ordenado o averbamento de tal paternidade e da avoenga daí resultante ao assento de nascimento do Autor;

c) serem os réus condenados a reconhecer o Autor como filho de FF.

Alegou para o efeito e essencialmente:

- ter nascido a …/…/1959, e que, por assento lavrado em …/…/1959, ter sido registado como sendo filho de GG, sendo tal assento omisso na menção da sua paternidade;

- serem os réus os únicos herdeiros de FF, sendo a primeira Ré viúva sobreviva do finado FF e o segundo, terceiro e quarto réus filhos e herdeiros daquele FF.

- ter a sua mãe e o falecido FF travado conhecimento por aquela ser empregada doméstica na casa dos pais deste e onde aquele residia à data;

- ter o falecido FF seduzido sua mãe, iniciando-se entre ambos um relacionamento íntimo, desde pelo menos meados de 1955, que perdurou até pelo menos de Julho de 1958, altura em que sua mãe foi despedida por os pais do falecido CC terem descoberto que se encontrava grávida;

- ter a sua mãe confessado a familiares que tinha mantido relações de cópula completa com FF, não tendo tomado especiais cuidados para evitar uma eventual gravidez, relações que se situaram temporalmente no período compreendido dentro dos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o seu  nascimento;

- não ter a sua mãe mantido, desde que iniciou as funções de doméstica na casa dos pais do CC e até ter sido despedida, qualquer outro contacto de índole sexual para além da relação com CC;

- ser do conhecimento geral entre vizinhos, familiares e amigos que FF, era seu pretenso pai.

2. Após citação, os Réus apresentaram contestação excepcionando o caso julgado e a caducidade do direito de propor a presente acção. Deduziram ainda defesa por impugnação alegando essencialmente que, durante o período de concepção, a mãe do Autor manteve relações sexuais com vários homens, podendo qualquer um deles, ser o pai do Autor, negando que a mãe deste tivesse trabalhado para os pais de FF e que com este tenha estabelecido relações de amizade, de intimidade ou namoro, designadamente no período legal de concepção.

                Quanto ao caso julgado alegam que na década de 60 a mãe do Autor, em representação deste, intentou acção de investigação da paternidade contra o falecido FF, tendo sido proferida sentença, transitada em julgado, que julgou a acção improcedente, absolvendo o FF do pedido.

Relativamente à excepção da caducidade invocam o decurso do prazo previsto no artigo 1817.º, n.º1, do Código Civil.

Concluem pela improcedência da acção e a condenação do Autor como litigante de má-fé.

3. No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de caso julgado e relegado para sentença o conhecimento da caducidade do direito do Autor. Após realização de exame pericial e de audiência de julgamento foi proferida sentença (em 10 de Fevereiro de 2017), que julgou procedente a excepção de caducidade do direito de acção, absolvendo os Réus do pedido.

4. Inconformado o Autor apelou impugnando a matéria de facto fixada pela 1ª instância.

5. O Tribunal da Relação de Guimarães (por acórdão de 14 de Junho de 2017) julgou improcedente o recurso.

6. 5. Interpôs o Autor recurso de revista excepcional ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil (doravante CPC), considerando estar em causa questão de relevância jurídica e de particular interesse e relevância social. Formulou as seguintes conclusões:

I O Tribunal a quo considerou apenas os interesses dos recorridos.

II . Por ser inconstitucional o previsto no nº l do art.º 1817º e no art.º 1873º do Código Civil não deveria ter o Tribunal a que ter aplicado as referidas normas e em consequência 1ulgado procedente a exceção perentória da caducidade.

III            Assim, o artigo 1917º, n1, do CC. na redacção emergente da Lei nº 14/2009. de 01-04, ao estabelecer o prazo de caducidade de 10 anos após a maioridade (ou emancipação) do investigante para a propositura da acção de investigação de paternidade (cf. artigo1873º) é  inconstitucional, por violação dos artº s, 18º nºs 2 e 3, 26º,  nº 1 e 36º nº 1 da CRP.

IV.           Pelo que, deverá tal normativo ser declarado Inconstitucional, por violação dos artigos 26º nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2 do CRP, uma vez que, independentemente da proporcionalidade ou desproporcionalidade da consagração de um prazo de caducidade, o artigo 1817º, nº 1 do Código Civil, na sua nova redação, é uma lei restritiva de direitos, liberdades e garantias.

V.            Ao decidir como decidiu o Tribunal a que violou o disposto nos artigos 13º nº 1 e 218º nºs 1e 2, 26º, nºs 1 e 3 e 36º nº1 1 e 4 da Constituição da República portuguesa

7. Os Réus pugnaram pela improcedência do recurso.

8. Por decisão da Formação a que alude o artigo 672.º, n.º 3, do CPC, a revista excepcional foi admitida.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil, doravante CPC), impõe-se conhecer a seguinte questão:
ð Da caducidade do direito de acção

1. 1 Os factos provados
1. O Autor nasceu no dia …/…/1959, na freguesia ..., concelho de ... [artigo 1º da petição inicial].
2. Por assento lavrado em …/…/1959, foi o Autor registado como sendo filho de GG, residente no Lugar ..., freguesia ..., concelho de ... [artigo 2º da petição inicial].
3. O assento de nascimento do Autor é omisso na menção da sua paternidade [artigo 3º da petição inicial].
4. A mãe do Autor, GG, vivia no lugar ..., freguesia ..., concelho de ..., local onde residiu desde sempre e onde ainda actualmente se encontra [artigos 4º e 5º da petição inicial].
5. Os Réus são os únicos herdeiros de FF, residente que foi na freguesia ..., concretamente, na Av. …, lugar de ..., na citada freguesia e falecido na mesma freguesia em …/…/1987 [artigos 6º, 7º, 8º e 11º da petição inicial].
6. A primeira Ré é a viúva sobreviva de FF, com quem contraiu matrimónio [artigo 9º da petição inicial].
7. O segundo, terceiro e quartos Réus são filhos de FF [artigo10º da petição inicial].
8. A mãe do Autor, GG, e FF travaram conhecimento por aquela ser empregada doméstica na casa dos pais deste e onde aquele residia à data [artigos 12º e 15º da petição inicial].
9. Entre ambos se iniciou um relacionamento amoroso que perdurou até pelo menos desde data não concretamente apurada do ano de 1957 até Julho de 1958, altura, em que os pais do FF descobriram que a mãe do Autor estava grávida tendo esta deixado de ali trabalhar [artigos 18º, 19º, 21º, 22º, 30º e 31º da petição inicial].
10. Tal relação amorosa foi por muita gente conhecida [artigo20º da petição inicial].
11. Entre meados de 1957 e pelo menos Julho de 1958 GG e FF mantiveram entre si relações sexuais de cópula completa não tendo tomado especiais cuidados para evitar uma eventual gravidez [artigos 24º e 27º da petição inicial].
12. Tendo a sua mãe, confessado a familiares que tinha mantido relações com o FF [artigos 26º e 29º da petição inicial].
13. Desse relacionamento sexual de cópula completa nasceu o Autor [artigos 32º, 34º e 41º da petição inicial].
14. Era do conhecimento geral entre vizinhos, familiares e amigos, que o Autor era filho de FF e ninguém atribuía ou atribui ao Autor outro pai [artigos 35º e 36º da petição inicial].
15. A presente acção foi intentada no dia 31 de Outubro de 2015 [artigo 9º da contestação].
16. O Autor pelo menos desde Janeiro de 2005 tem conhecimento que FF pode ser seu pai [artigo10º da contestação].
17. O Autor casou em … de … de 1979 [artigo19º da contestação].
18. Foram realizados no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP, exames ao sangue colhido aos Autor e 2º, 3º e 4º Réus do que resultou a elaboração do respectivo laudo pericial, segundo o qual FF não pode ser excluído como pai biológico do Autor e a análise estatística da probabilidade de FF ser pai do Autor quando comparado ao acaso com um indivíduo da mesma população, conduziu a uma probabilidade de w=99,8%, considerando uma probabilidade a priori de 0,5.

1.2. Os factos não provados:
a. Que a mãe do Autor não tivesse qualquer conhecimento da vida quando trabalhou na casa dos pais de FF [artigo 16º da petição inicial].
b. Que o FF tivesse seduzido a mãe do Autor e que esta fosse despedida pelos pais do CC [artigo19º da petição inicial].
c. A mãe do Autor, desde que iniciou as funções de doméstica na casa dos pais de CC até ter dali saído, não mais manteve qualquer contacto de índole sexual com quem quer que seja [artigo 23º da petição inicial].
d. Até ao nascimento do investigante Autor, a mãe deste não teve relações sexuais com nenhum outro homem [artigo 25º da petição inicial].
e. As linhas fisionómicas do rosto do Autor realçam inequívoca semelhança com os traços do semblante do CC [artigo 37º da petição inicial].

2. O direito

O acórdão recorrido, na sequência do decidido na sentença, concluiu no sentido da caducidade do direito do Autor accionar os Réus por decurso do prazo de 10 anos previsto no artigo 1817.º, n.º1, do Código Civil[1].

            Este entendimento mostra-se alicerçado nas seguintes premissas:

            - decorrer dos factos provados que o Autor desde, pelo menos, Janeiro de 2005, se encontrava em condições de propor a presente acção;

           - não se mostrarem provadas quaisquer circunstâncias que justificassem ou impossibilitassem a investigação por parte do Autor;

            - não padecer de inconstitucionalidade a norma do artigo 1817.º, n.º1, do CC, na redacção da Lei 14/2009, de 01-04, ao estabelecer um prazo de 10 anos para a propositura da acção de investigação da paternidade contado da maioridade ou da emancipação do investigante.

           Estriba-se a decisão recorrida no acórdão n.º 401/2011, do plenário do Tribunal Constitucional, que não julgou inconstitucional a referida norma, fazendo ainda referência a alguns dos posteriores arestos que, no mesmo sentido e quanto à mesma questão, vêm sendo proferidos pelo Tribunal Constitucional.

A esta decisão contrapõe o Recorrente defendendo a inconstitucionalidade do artigo 1817.º, n.º1 e n.º3, alínea c), do CC[2], concluindo que a decisão recorrida é violadora de vários direitos constitucionais (direito à identidade e historicidade do filho, direito ao desenvolvimento da personalidade e à biografia pessoal e ao conhecimento das suas origens e ao direito a constituir família por forma a ser-lhe reconhecida a relação de parentesco).  
            Os posicionamentos em confronto prendem-se, assim e apenas, com a questão da (in)constitucionalidade da norma aplicada pelo tribunal recorrido (artigo 1817.º, n.º1, do CC), que constituiu o fundamento jurídico da decisão que declarou a caducidade do direito de acção do Autor.
           Partilhamos o entendimento que defende que a acção de investigação de paternidade ou maternidade não deve ser limitada no tempo porquanto, atenta a essência do direito em causa, não se vislumbra justificação para a fixação de um condicionamento temporal (ainda que tido por razoável) ao seu exercício por parte do pretenso filho (inaplicabilidade do prazo fixado no n.º 1 do artigo 1817.º do CC).
            Vejamos.

1. De acordo com o regime legal instituído, o direito de investigar a paternidade é um direito eminentemente pessoal do filho[3] (artigo 1869.º do CC), que não pode ser exercido a todo o tempo, estabelecendo o actual n.º1 do artigo 1817.º do CC (ex vi do artigo 1868.º, do CC), o limite de dez anos, após a maioridade do filho, para instauração da respectiva acção. 

Trata-se de prazo de caducidade (cfr. artigo 298.º, n.º2, do CC), pelo que o seu decurso faz extinguir o direito de propor a acção[4]. E porque se encontra estabelecido em matéria excluída da disponibilidade das partes (porquanto o objecto da relação jurídica substancial é do domínio das relações indisponíveis), é de conhecimento oficioso e pode ser alegada em qualquer fase do processo – artigo 333.º, n.º1, do CC.

Nas acções de investigação da paternidade a causa de pedir é a procriação biológica ou natural do filho, pelo réu, a quem a paternidade é imputada.

A prova da procriação para efeitos de estabelecimento da paternidade biológica pode ser feita em tribunal por recurso a exames periciais (meios de prova científicos e cada vez mais rigorosos em certeza, destacando-se os testes de ADN com uma fiabilidade próxima da certeza e que torna possível estabelecer, com grande segurança, o vínculo da paternidade).

A problemática da (não) aceitação da limitação temporal ao exercício do direito ao reconhecimento de um estado pessoal, por envolver a satisfação de interesses inalienáveis, tornou-se premente com a entrada em vigor da Constituição de 1976 atenta as exigências constitucionais em matéria de direitos de personalidade e de direito da família.

As valorações constitucionais estiveram inicialmente confinadas aos direitos da igualdade, de constituir família e da não discriminação dos filhos fora do casamento (artigo 36, n.º4)[5]; posteriormente, ao âmbito do direito à identidade pessoal (artigo 26.º) e à integridade pessoal (artigo 25.º), sendo o direito (fundamental) ao conhecimento da paternidade biológica uma sua decorrência.

Passou igualmente a consagrar-se (com a revisão constitucional de 1997) um direito ao desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 26.º da Constituição, comportando dimensões como a liberdade geral de acção e uma cláusula de tutela geral da personalidade[6].

A incursão histórica sobre o artigo 1817.º, n.º1, do CC, evidencia que o controlo concreto da constitucionalidade funcionou, no caso específico do prazo de caducidade das acções de investigação (para além da sua finalidade enquanto expediente processual para aferir da constitucionalidade das normas de direito privado), como instrumento fulcral na função normativa consubstanciada na alteração do artigo 1817.º, do CC, pela Lei 14/2009, de 1 de Abril[7].

O acórdão n.º 23/2006 (publicado em 08 de Fevereiro de 2006, no Diário da República, I.ªSérie-A, n.º 28), que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, que previa o prazo de caducidade de dois anos a partir da maioridade do investigante, entendeu-o violador das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.

No referido acórdão foi dado relevo à existência de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade, invocando a verificação de “uma progressiva, mas segura e significativa, alteração dos dados do problema, constitucionalmente relevantes, a favor do filho e da imprescritibilidade da acção – designadamente, com o impulso científico e social para o conhecimento das origens, os desenvolvimentos da genética, e a generalização de testes genéticos de muito elevada fiabilidade. Esta alteração não deixa incólume o equilíbrio de interesses e direitos, constitucionalmente protegidos, alcançado há décadas, e sancionado também pela jurisprudência, empurrando-o claramente em favor do direito de conhecer a paternidade.”.

Os argumentos do aresto reconduziram-se ao desajuste na ponderação das razões subjacentes ao estabelecimento de um prazo para propositura da acção (segurança pessoal, familiar[8] e patrimonial do investigado) face à diminuição do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família[9], que incluem o direito ao conhecimento da paternidade ou da maternidade.

Por outro lado, o acórdão chamou à atenção para o âmago da questão subjacente à imposição de um prazo limite para o exercício do direito de accionar o pretenso progenitor: “a segurança para sujeitos ou pessoas concretas – designadamente, o interesse do pretenso progenitor, que poderia ser investigado, em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, bem como o interesse, sendo o caso, da paz e harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai, a que se junta o argumento de que as acções de investigação visam frequentemente fins tão-só patrimoniais[10].

A orientação por que optou mostra-se sustentada nas posições doutrinárias de Guilherme de Oliveira, Rafael Valle Reis e Jorge Duarte Pinheiro, que defendiam o direito ao conhecimento da paternidade/maternidade como um direito pessoalíssimo e imprescritível, em reforço do princípio da verdade biológica por forma a assumir princípio absoluto e conformador de todo o regime de estabelecimento da filiação.

Todavia, conforme constitui a delimitação do objecto do acórdão, o mesmo restringiu a sua pronúncia ao limite temporal de “dois anos posteriores à maioridade ou emancipação, e não a possibilidade de um qualquer outro limite (…) só sobre aquele específico limite temporal, previsto actualmente no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, se poderá projectar o juízo de (in)constitucionalidade a proferir”, não querendo comprometer-se com a defesa de um  regime de imprescritibilidade enquanto “a única alternativa pensável ao regime do artigo 1817.º, n.º 1, do actual Código Civil.

A opção do legislador de 2009 foi, antes, a de manter um prazo de caducidade nas acções de investigação da paternidade.

Assim, com a publicação da Lei 14/2009, de 1 de Abril, frustradas que foram as expectativas de ver consagrada na lei o direito de propor acção de investigação sem condicionamentos temporais[11] (que assim se tornariam cognoscíveis a qualquer tempo), reacendeu-se a discussão quanto à questão da constitucionalidade do prazo de caducidade neste tipo de acções, discussão que o acórdão n.º 401/2011, do Plenário[12], conseguiu aplacar.

Neste aresto concluiu-se pela não inconstitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 1 do CC, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, aplicável às acções de investigação de paternidade por força do artigo 1873.º, do mesmo Código. Foi entendido que tal prazo não se mostrava desproporcional, não violando os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelo direitos fundamentais à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º, n.º 1, e o direito a constituir família, previsto no artigo 36.º, n.º 1, ambos da Constituição.

Na sua fundamentação o acórdão reconhece que os progressos científicos no domínio da determinação da filiação biológica, conjugados com a evolução verificada nos valores dominantes no âmbito da filiação, determinaram significativa desvalorização dos interesses que presidiam ao estabelecimento de prazos de caducidade para a propositura das acções de investigação da paternidade, todavia, faz referência a situações em que ainda fará sentido o estabelecimento de prazos de caducidade enquanto meio ao dispor do legislador para atingir certos objectivos:

a ) evitar a valorização de provas pouco fiáveis devido ao seu envelhecimento, e dá como exemplo situações em que apenas resta a utilização dos meios tradicionais de prova por não se mostrar possível a determinação científica da filiação: inexistência de um registo universal de ADN, quando não é conhecido o paradeiro do investigado ou este já faleceu e o seu cadáver não está acessível (porque foi cremado), não existindo familiares directos do suposto pai necessários à realização dos exames periciais.

b) o interesse de ordem pública na determinação integral do vínculo de filiação (indicando o tema dos impedimentos matrimoniais - dirimentes relativos)[13], aconselhando que tal determinação seja alcançada o mais rápido possível, numa fase ainda precoce da vida do filho, evitando-se um prolongamento injustificado de uma situação de indefinição na constituição jurídica da relação de filiação (segurança do investigante). 

c) a segurança, agora numa dimensão subjectiva do investigado e sua família atenta as inerentes perturbações e afectações sérias do direito à reserva da via privada.

E, nessa medida, conclui-se no acórdão que “o meio, por excelência, para tutelar estes interesses atendíveis públicos e privados ligados à segurança jurídica, é precisamente a consagração de prazos de caducidade para o exercício do direito em causa. Esses prazos funcionam como um meio de induzir o titular do direito inerte ou relutante a exercê-lo com brevidade, não permitindo um prolongamento injustificado duma situação de indefinição, tendo deste modo uma função compulsória, pelo que são adequados à protecção dos apontados interesses, os quais também se fazem sentir nas relações de conteúdo pessoal, as quais, aliás, têm muitas vezes, como sucede na relação de filiação, importantes efeitos patrimoniais..

No que toca à conciliação destes direitos/interesses com a Lei Fundamental, o acórdão em referência põe a tónica na necessidade de se avaliar as características do prazo por forma a que não impossibilite ou dificulte excessivamente o exercício maduro e ponderado do direito ao estabelecimento da paternidade biológica. Nesse sentido refere: “(…) o direito ao estabelecimento do vínculo da filiação não é um direito absoluto que não possa ser harmonizado com outros valores conflituantes, incumbindo ao legislador a escolha das formas de concretização do direito que, dentro das que se apresentem como respeitadoras da Constituição, se afigure mais adequada ao seu programa legislativo. Assim o impõe a margem de liberdade que a actividade do legislador democrático reclama. Caberá, assim, nessa margem de liberdade do legislador determinar se pretende atingir esse maximalismo, protegendo em absoluto o referido direito, ou se opta por conceder protecção simultânea a outros valores constitucionalmente relevantes, diminuindo proporcionalmente a protecção conferida aos direitos à identidade pessoal e da constituição da família. Ao ter optado por proteger simultaneamente outros valores relevantes da vida jurídica através da consagração de prazos de caducidade, o legislador não desrespeitou, as fronteiras da suficiência da tutela, uma vez que essa limitação não impede o titular do direito de o exercer, impondo-lhe apenas o ónus de o exercer num determinado prazo. É legítimo que o legislador estabeleça prazos para a propositura da respectiva acção de investigação da paternidade, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada do investigante, não sendo injustificado nem excessivo fazer recair sobre o titular do direito um ónus de diligência quanto à iniciativa processual para apuramento definitivo da filiação, não fazendo prolongar, através de um regime de imprescritibilidade, uma situação de incerteza indesejável.

Na avaliação da potencialidade do prazo de 10 anos, em termos de consubstanciar limitação desajustada ao exercício do respectivo direito, ao optar pela sua adequação, o acórdão considerou que tal prazo teria de ser compaginado com o conjunto de prazos de caducidade estabelecidos nos diversos números do artigo 1817.º, do Código Civil.

Entendeu, pois, que “Os efeitos da aplicação deste prazo, só podem ser medidos, na sua devida extensão, se ponderarmos também a latitude com que são admitidas, no regime envolvente daquela norma, causas que obstem à preclusão total da acção de investigação, por força do decurso do prazo geral de dez anos, após a maioridade”.

E porque os prazos (de três anos) previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 1817.º do CC, se contam para além do prazo fixado no seu n.º 1 (dez anos), considerou que “não funciona como um prazo cego, cujo decurso determine inexoravelmente a perda do direito ao estabelecimento da paternidade, mas sim como um marco terminal de um período durante o qual não opera qualquer prazo de caducidade.

Quanto à respectiva natureza, entendeu o acórdão não estar em causa um autêntico prazo de caducidade, antes a demarcação de um período de tempo que impede que operem os verdadeiros prazos de caducidade consagrados nos n.º 2 e 3, do mesmo artigo.

Na justificação do prazo invoca-se ainda o melindre e as implicações que a decisão de instaurar a acção de investigação da paternidade reveste, entendendo que num período inicial, após se atingir a maioridade ou a emancipação, em regra, não existe ainda um grau de maturidade, experiência de vida e autonomia que permita uma opção ponderada e suficientemente consolidada.

A configuração feita no acórdão sobre o juízo de conciliação entre a limitação temporal do exercício do direito de investigar a paternidade por parte do filho e a Constituição não pode, considerar-se pacífica[14], não obstante o posicionamento que o Tribunal Constitucional tem vindo a sedimentar quanto à constitucionalidade do preceito.

Na verdade, não podemos deixar de ser sensíveis às críticas tecidas pelo Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro na sua declaração de voto de vencido ao juízo de constitucionalidade proferido no acórdão apontando ao posicionamento que fez maioria fragilidades que assentam numa incorrecta ponderação dos valores/interesses em contraposição (tutela do interesse ao preenchimento completo dos dados de identificação pessoal e tutela de um interesse de segurança e estabilidade familiar e patrimonial do investigado) e que se mostra traduzida, essencialmente, quer na inconsideração da natureza dos direitos titulados pelo investigante (que não se compadece com qualquer limitação temporal para exercer a respectiva tutela dos mesmos), quer na sobrevalorização dos interesses alegadamente justificadores da temporalidade do direito, atribuindo-lhes um valor constitucional que não têm (o acórdão falha rotundamente a operação de ponderação em que a decisão assenta. É assim porque sobrevaloriza indevidamente as razões de segurança jurídica, atribuindo-lhes um peso que elas constitucionalmente não têm).

No que toca à natureza do direito e à questão da oportunidade de accionar dentro de um prazo razoável (ligado à ideia de “sanção” pela inércia ou pouca diligência do investigante), tendo por subjacente o apelo à auto-responsabilização do interessado/investigante, faz notar o ilustre Conselheiro que a faculdade de formação e de expressão da vontade daquilo que se é ou se quer ser, no presente, sem constrições limitativas decorrentes da vivência passada, apenas pode depender do critério subjectivo do filho investigante - «apreciação da conveniência em determinar a identidade do seu progenitor, como elemento da sua identidade pessoal, corresponde a uma faculdade eminentemente pessoal, em que apenas pode imperar o critério do próprio filho»[15].

Está-se, por isso, perante um critério de decisão que, dada a essência humana, é necessariamente mutável (o homem é um ser em devir) perante os quadros relacionais e situacionais que podem influenciar uma tomada de decisão (que apenas pode ser sentida e interpretada pelo pretenso filho).

Em reforço desta ideia de intemporalidade do direito fundamental e da consequente decisão do pretenso filho de restabelecer, por via de acção, o vínculo biológico de paternidade, importa encarar o direito numa dimensão mais abrangente que o conhecimento da proveniência biológica, que assume repercussão na constituição de uma relação jurídica correspondente e decorrente do estatuto de pai e filho, vinculados, juridicamente, por um conjunto de direitos e deveres: “Nesta matéria, tratando-se de bens atinentes ao núcleo da personalidade, uma atitude pretérita não deve prevalecer sobre a vontade actual, por respeito àquele direito fundamental. Nem mesmo quando há uma vinculação negocialmente assumida a uma forma de conduta que contenda agora (no momento do cumprimento) com a auto-apresentação do obrigado. É isso mesmo que justifica que a limitação voluntária dos direitos de personalidade, quando legal, seja sempre revogável (artigo 81.º, n.º 2, do Código Civil). Por maioria de razão, a simples inércia ou passividade, durante certo período temporal, em tomar a iniciativa de investigação de paternidade não deve ser destrutiva da legitimidade para o fazer quando, no critério actual do próprio, tal corresponde ao seu interesse na constituição plena da sua identidade pessoal. Tanto mais que o querer exercer, apenas numa fase mais tardia da vida, um direito de investigação que anteriormente foi negligenciado não é susceptível de censura por uma valoração externa, segundo padrões de conduta normalizada, tão complexa e singularizada é a teia de determinantes da decisão e forte a carga emocional que, muitas vezes, a caracteriza. Sem esquecer, no mesmo sentido, que a afirmação desse interesse, numa fase etária mais avançada, pode ser legitimamente influenciada pela consideração (só então possível) do interesse de outros (e, eventualmente, por pressão destes), igualmente afectados pelo desconhecimento da ascendência do investigante (os seus descendentes, muito em particular). (…) Mas este meio processual, para além de ser o único consagrado para obter o reconhecimento daquele factor da identidade pessoal, encontra também sólido arrimo no direito fundamental a constituir família (artigo 36.º, n.º 1, da CRP), de que é instrumento necessário, nas circunstâncias em que se encontra o investigante. Como direito normativamente constituído e normativamente dependente, uma vez que tem por objecto uma faculdade jurídica, esse direito fundamental reclama a predisposição e disponibilização pelo ordenamento de meios jurídicos de efectivação, no caso, meios de estabelecimento do vínculo jurídico de filiação, com realce para o exercitável pelo filho. A isso serve a acção de investigação.

Quanto à dimensão relativa da segurança para o investigado e sua família (que acaba por se reconduzir, sobretudo, ao domínio patrimonial), designadamente para os herdeiros, ainda que se mostrem atendíveis razões relativas ao interesse em não se ficar ilimitadamente sujeito à ameaça de instauração de uma acção de paternidade, mostram-se salientados os seguintes (4) aspectos que tornam frouxos os argumentos que pugnam no sentido da temporalidade do direito:
1. ser o interesse do investigado autotutelável (não se justificando que seja acautelado à custa do sacrifício de um bem pessoalíssimo da contraparte[16]);
2. a vantagem do reconhecimento da paternidade em fase precoce da vida do filho (para que este possa beneficiar de todas as dimensões do desempenho da responsabilidade parental) não pode constituir argumento em favor de perda da possibilidade de saber quem é o pai, pois redundaria numa sanção não admissível. Para além disso, ainda que no âmbito do direito a constituir família não possa ser garantida a inserção numa autêntica comunidade de afectos, não poderá ser desprezada a vertente do estatuto de filho quanto à titularidade de direitos patrimoniais (o direito a alimentos e o direito a herdar, na qualidade de herdeiro legitimário);[17]
3. mostrar-se desproporcionada a preocupação com a segurança patrimonial dos herdeiros reconhecidos do progenitor face ao posicionamento da legislador ínsito no artigo 2075.º, do CC, permitindo que qualquer herdeiro preterido possa intentar acção de “petição da herança”, a todo o tempo, com sacrifício de quem tiver recebido os bens[18].
4. o juízo de inconstitucionalidade quanto ao prazo não traduziria a tutela “absolutizada” da identidade pessoal (que a Constituição não exige), pois apenas seria circunscrito à situação especial do estabelecimento da paternidade, sem repercussão noutros casos em que estejam presentes interesses a valorizar que se oponham ao conhecimento da paternidade biológica[19]:

Os defensores do entendimento que não mereceu vencimento na decisão de constitucionalidade, defendem pois a falta de sustentabilidade, em termos de ponderação dos interesses e direitos conflituantes em presença, para a existência de limitação temporal ao exercício do direito do pretenso filho investigar/estabelecer a sua paternidade, radicados na ideia de que os imperativos constitucionais decorrentes dos direitos à identidade pessoal e à consequente historicidade pessoal e ao de constituir família reclamam do sistema meios jurídicos eficazes para o estabelecimento da filiação, sendo a acção de investigação de paternidade o meio processual de que o filho dispõe para o efeito. Por conseguinte, a fixação de um qualquer prazo para accionar revela-se, sempre, cerceadora do respectivo direito.

Contudo, tal como acima salientado, a orientação decidida no acórdão 401/2011 tem vindo a ser mantida em inúmeras decisões do Tribunal Constitucional, nomeadamente nos acórdãos n.ºs 750/2013, 373/2014, 383/2014, 529/2014, 547/2014, 704/2014, evidenciando a constância da orientação jurisprudencial em causa, que continuou a ser mantida nos vários arestos que vêm sendo proferidos nestes últimos dois anos relativamente à questão.

No que respeita às decisões deste Supremo Tribunal, na sequência do caminho feito pelo Tribunal Constitucional, vem a sentir-se a propensão para a consolidação da posição no sentido de não se mostrar questionável a constitucionalidade do prazo de caducidade consignado na lei[20], sendo que a discussão da questão não parece assumir contornos de se mostrar ultrapassada, perante a sustentabilidade dos argumentos em que se apoiam as vozes dissonantes[21].

O olhar retrospectivo da questão da limitação temporal do exercício do direito de investigar a paternidade por parte do pretenso filho indica-nos que as alterações legislativas ocorridas nesse âmbito foram, naturalmente, inspiradas pelas perspectivas político-sociais dos seus promotores e a evolução foi, sem sombra de dúvida, no sentido de representar um esforço para protecção dos direitos e interesses das pessoas envolvidas.

Atingido que foi o patamar de consenso quanto à natureza do direito ao conhecimento da paternidade biológica, uma vez elegido à categoria de direito fundamental[22], a questão que se passou a colocar foi a da adequação dos meios legais existentes à sua plena concretização.

No juízo de adequação dos meios legais para efectivação da tutela deste direito passou a sopesar a necessidade de se lograr obter, eficazmente, a coincidência entre o vínculo jurídico e o biológico.

Tal objectivo, embora encarado pela lei como essencial na tutela a atingir, não foi levado até às suas últimas consequências que, necessariamente, radicariam num princípio de imprescritibilidade do direito de cada indivíduo investigar e conhecer as suas origens genéticas, com os efeitos daí decorrentes em termos de estabelecimento de relação de filiação (no caso, de paternidade).

O legislador de 2009, ao não seguir a tendência generalizada dos ordenamentos jurídicos que lhe são próximos, não suprimindo os limites temporais ao exercício do direito de investigar/conhecer a paternidade, mantém acesa a discussão quanto à constitucionalidade dos entraves temporais estabelecidos por desrespeito pela suficiência de tutela que tal direito fundamental merece.

Neste sentido e no que toca ao prazo de dez anos de caducidade, não obstante o sentido da actual jurisprudência preponderante do Tribunal Constitucional, mostra total acuidade continuar a questionar as razões em que se fundamenta um tal juízo de conformação constitucional.

Na verdade, a razoabilidade da limitação temporal, assentando num princípio de proporcionalidade de direitos e interesses conflituantes, encarada sob o prisma do investigante, faz desmerecer a natureza do seu direito (direito pessoalíssimo e, por natureza, imprescritível)[23]/[24]e põe em causa o equilíbrio que pretende instituir, pois coloca em patamar equivalente interesses/valores (focalizados na segurança jurídica do investigado e das suas relações familiares protegendo a estabilidade da mesma) que, sem poderem ser desprezados, não poderão ser equacionados e tutelados de igual forma.

Assim sendo, não podemos deixar de considerar que qualquer limitação temporal neste âmbito, ainda que se considere de prazo razoável, constitui uma compressão da revelação da verdade biológica, que é o princípio alicerçante do regime da filiação e, nesse sentido, os direitos de identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (onde se inclui o direito de conhecer e ver reconhecida a ascendência biológica e a marca genética de cada pessoa), reconhecidos constitucionalmente enquanto direitos fundamentais, não podem deixar de ganham uma dimensão, que não se compagina com a fixação de qualquer prazo condicionante da instauração de acção de paternidade ou maternidade.

Consequentemente, a limitação temporal ínsita no n.º1 do artigo 1817.º do CC, viola, de forma desproporcionada, tais direitos fundamentais e, nessa medida, mostra-se materialmente inconstitucional (violando, entre outros, os arts.16.º, n.º1, 18.º, n.º 2 e 26.º, n.º 1, da CRP).

Assim sendo, reafirma-se, não descurando o entendimento que vem sendo assumido pelo Tribunal Constitucional (decidindo sempre no sentido da constitucionalidade da fixação do prazo de caducidade) e a competência própria do mesmo neste domínio, entendemos que a perspectiva de não ser acolhido por aquele Tribunal o posicionamento que consideramos por correcto, não nos pode desautorizar de decidir pela desaplicação, ao caso concreto, do artigo 1817.º, n.º1, do CC, porque materialmente inconstitucional.

Há pois que concluir pela tempestividade da instauração da acção e, como tal, pela improcedência da excepção de caducidade ao invés do decidido pelo tribunal a quo.

Procedem, por isso, as conclusões da revista.

III - Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista procedente e, em consequência, não aplicando o artigo 1817.º, n.º1, do Código Civil, porque materialmente inconstitucional, revogam o acórdão recorrido e julgam improcedente a excepção de caducidade, devendo a acção prosseguir os seus ulteriores termos.
Custas pelos Recorridos.

                                                                                                              Lisboa, 15 de Fevereiro de 2018

Graça Amaral (Relatora)

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

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[1] Doravante sob a designação CC.
[2] Não obstante ter aludido no corpo das alegações erro de julgamento da matéria de facto relativamente à factualidade ínsita no ponto 16 dos factos provados (matéria em que o tribunal a quo fez assentar a sua decisão), não fez incluir tal questão das conclusões do recurso, sendo certo que, relativamente à mesma, sempre estaria este Tribunal impedido de a conhecer por se encontrar fora do âmbito dos seus poderes de cognição por se reportar a decisão de facto assente na livre apreciação da prova formada pelas instâncias.
[3] A legitimidade (processual) subsidiária atribuída ao cônjuge e aos descendentes do filho estabelecida no artigo 1818.º do CC, não decorre do direito encabeçado pelo filho transmitido aos familiares, mas constitui um direito próprio dos mesmos – cfr. acórdão do STJ de 15-05-2013, processo n.º 787/06.7MAI.P1.S1.
[4] O fundamento de um prazo de caducidade reporta a razões objectivas de segurança jurídica, sem atenção à negligência ou inércia do titular, mas apenas o propósito de garantir que dentro do prazo nela estabelecido a situação se defina – cfr. Vaz Serra, BMJ 107, p. 191.
[5] Por não poderem beneficiar da presunção de paternidade do marido, defendia-se que o reconhecimento dos meios para estabelecer a paternidade deveria ter maior abertura por forma a não limitar, em demasia, as possibilidades de estabelecimento da filiação dos filhos nascidos fora do casamento (mediante a prova do vínculo biológico).
[6]Paulo Mota Pinto, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, Portugal-Brasil, ano 2000, Coimbra, 2000, p. 149 a 249.
[7] O acórdão n.º 486/2004, do Tribunal Constitucional, inverteu o sentido do entendimento deste tribunal quanto à questão e impulsionou a declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral, e esta, a consequente alteração do preceito pela Lei 14/2009[7]. Com efeito, até à prolação daquele acórdão a pronúncia do Tribunal Constitucional radicou em considerar constitucionalmente incensurável a solução legislativa quanto à fixação de prazo de caducidade para a propositura deste tipo de acção (cfr., entre outros, acórdãos n.ºs99/88, 451/89, 370/91, 311/95, 506/99).
[8] Considerando discriminatória relativamente aos filhos nascidos fora do casamento o apelo à paz e harmonia familiar.
[9] Decorrente da fixação de um prazo curto para o desencadeamento da acção de investigação após completar a maioridade.
[10] Foi salientada a necessidade de ser ponderada sob as duas perspectivas (da família do pretenso progenitor e do investigante) a questão da motivação da segurança patrimonial de modo a determinar qual dos interesses mereceria maior relevo.
[11] Expectativas que vinham sendo alimentadas pela consistência do entendimento jurisprudencial ao nível dos tribunais da Relação e do Supremo e que decorria, sobretudo, da declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo contido no n.º1 do artigo 1817.º do CC
[12]Votado com sete votos a favor e seis contra.
[13]Cfr. artigo 1602.º, alínea a) e c), do CC, sendo certo que o artigo 1603.º, do mesmo Código, regula a questão da prova da paternidade/maternidade para tais efeitos admitindo-a sempre, ressalvando, contudo, que o reconhecimento do parentesco assim obtido não assume qualquer relevância (nem como começo de prova) na acção de investigação da paternidade/maternidade.
[14] Desde logo, evidenciada pela forma como este aresto foi aprovado (a tese que fez vencimento foi obtida apenas por um voto)
[15] Acórdão n.º 486/2004.
[16]Das duas uma: se o suposto progenitor julga que é progenitor, está nas suas mãos acabar com a insegurança – perfilhando – e se tem dúvidas pode mesmo promover a realização de testes científicos que as dissipem; se, pelo contrário, não tem a consciência de poder ser declarado como progenitor, não sente a própria insegurança.” - Guilherme de Oliveira, “Caducidade das acções de investigação”, Lex Familiae, 2004, p. 10.
[17] Refere-se na declaração de voto: “é pois descabido e constitucionalmente claudicante fazer decorrer de eventuais motivações patrimoniais uma razão bastante para precludir a aquisição do estado pessoal que é condição de satisfação desse interesse. No que, em particular, diz respeito ao direito à herança, no caso de o filho estar num período da vida em que já não pode beneficiar da acção paterna também na esfera pessoal, mormente do seu contributo educativo para a formação da personalidade, seria um efeito perverso negar-lhe, a pretexto dessa situação impossibilitante, o acesso ao único direito que lhe restará exercer, a ser procedente a acção de investigação. Mesmo que uma iniciativa tardia possa ser tipicamente associada ao exclusivo desejo de aquisição do direito a herdar – o que, aliás, é dificilmente sindicável, com objectividade – não se vê que alguém em condições de ver reconhecida a qualidade de filho deva ser impedido de accionar o meio processual para tanto pela razão de que só o faz para poder, em devido tempo, reclamar o que lhe é devido em função dessa qualidade. A efectiva vivência familiar, com a constituição de laços pessoais, não é, de acordo com o regime sucessório, condição de titularidade e de exercício dos direitos dos herdeiros legitimários. Tanto assim que os filhos gerados em matrimónio, e salvas as situações extremas justificativas de deserdação, não deixam de herdar, mesmo que não tenham chegado a estabelecer, ou tenham perdido, qualquer ligação pessoal com o progenitor, ou mesmo que essa ligação tenha um cunho litigioso. Não se compreende, neste contexto, que a procura, pelo pretenso filho, de um efeito legal, que decorre apenas, sem mais, do vínculo jurídico de filiação, seja considerado uma causa indigna da constituição desse vínculo, unicamente porque já não é possível dar realidade prática aos efeitos pessoais que dele também promanam – o que frequentemente só aconteceu, diga-se de passagem, porque o pai se furtou (ou, pelo menos, não diligenciou) a assumir, no passado, a responsabilidade decorrente do acto de procriação. Tal significaria uma disparidade de tratamento do nascido fora do casamento, sobrecarregando desvantajosamente a situação em que, por força dessa condição de nascimento, ele está já está naturalmente colocado.” 
[18] Nesse sentido, realça o Conselheiro Sousa Ribeiro, “não parece justificar-se que um herdeiro, que já o era à data da abertura da herança, seja melhor tratado, em caso de preterição, do que aquele que, naquela data, ainda não possuía essa qualidade, embora já reunisse as condições para ser reconhecido como tal.”;
[19] Nos termos do artigo 10.º, da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho (Lei da procriação medicamente assistida), em caso de inseminação heteróloga, as pessoas nascidas por esse processo só podem obter informações sobre a identidade do dador “por razões ponderosas reconhecidas por sentença judicial” (n.º 4 do artigo 15.º), norma que obteve um juízo de não inconstitucionalidade (Acórdão n.º 101/2009).Por sua vez, no regime da adopção, o artigo 1990.º,introduzido pela Lei 143/2015, de 08-09, sob a epígrafe Acesso ao conhecimento das origens, estabelece, aos adoptados, o direito ao conhecimento das suas origens, direito que tem de ser compaginado no âmbito das restrições constantes do regime jurídico do processo de adopção, designadamente do que resulta do artigo 4.ºquanto ao próprio processo de adopção (carácter secreto que poderá ser consultado pelo adoptado após a maioridade) e do artigo 6.º (acesso do conhecimento das origens a partir dos 16 anos do adoptado ou com Autorização dos pais adoptantes na menoridade).
[20] Cfr. entre outros, acórdão de 08-03-2016, Revista n.º 352/11, acórdão de 21-04-2016, Revista n.º 1974/13, acórdão de 08-11-2016, Revista n.º 4704/14, acórdão de 04-05-2016, Revista n.º 2886/12.
[21] Cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal de 05-05-2015, Revista n.º 932/13 e 08-06-2017, Revista n.º 513/16.
[22]Enquanto decorrência do direito à identidade pessoal (onde se encontra incluída a identidade genética, que o artigo 26.º, n.º 3, da CRP, considera constitucionalmente relevante) e à integridade pessoal (artigo 25.º), não dissociável do direito ao desenvolvimento da personalidade e do direito ao conhecimento das próprias raízes, o direito à historicidade pessoal (quais são os antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficas, culturais e genéticas de cada indivíduo).
[23] Como salienta o Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro no voto de vencido a “apreciação da conveniência em determinar a identidade do seu progenitor, como elemento da sua identidade pessoal, corresponde a uma faculdade eminentemente pessoal, em que apenas pode imperar o critério do próprio filho.
[24] Guilherme de Oliveira fala no dever jurídico de perfilhar por parte do pai biológico - “Não dou relevância à liberdade de não ser considerado pai, só pelo facto de terem passado muitos anos sobre a concepção, pai e filho estão inexoravelmente ligados e tanto o princípio da verdade biológica que inspira o nosso direito da filiação quanto as noções de responsabilidade individual a que adiro não reconhecem a faculdade de o pai biológico se eximir à responsabilidade jurídica correspondente.” – “Caducidade das acções de investigação”, Lex Familiae, revista portuguesa de direito da família.