Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
707/19.9PBFAR-G.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
CONTAGEM DE PRAZOS
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
RECURSO
EFEITO DEVOLUTIVO
JULGAMENTO
Data do Acordão: 07/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I -    O prazo de prisão preventiva, embora referenciável a várias fases processuais, é uno.

II -   Se o processo já tiver atingido a fase de julgamento, apesar de, entretanto, por via de anterior recurso com efeito devolutivo ter sido revertido o indeferimento do requerimento de abertura da instrução, para efeito de contagem do prazo máximo de prisão preventiva tem-se em conta a atual fase de julgamento. 

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório

O arguido AA com identificação nos autos, preso preventivamente, alegando encontrar-se atualmente em prisão ilegal, por considerar ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva, apresenta petição de habeas corpus, nos termos e com os seguintes

I.-1 - fundamentos:

“1º Os arguido (ora requerente) AA, foi sujeito a primeiro interrogatório judicial em 30 de junho de 2021, na sequência do qual lhe foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva e de proibição de contactos com os restantes arguidos, ao abrigo do disposto nos artigos 191.º a 193.º, 194.º, n.º1 e 2, 196.º, 200.º, n.º 1, al. d), 202.º, al. a) e 204.º, al. c), todos do CPP, por serem as únicas que se mostravam suficientes, proporcionais e adequadas aos factos que se julgaram indiciados.

2º O arguido está a cumprir a medida de prisão preventiva desde o dia 01.07.2021 no Estabelecimento Prisional ....

3º Em 30.12.2021 o requerente foi acusado pela prática, em co-autoria material, da prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21º, nº1 e 24º, alínea h) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C, anexas ao diploma legal mencionado, tendo sido notificado da acusação em 04.01.2022.

4º Em 04.03.2022 o requerente requereu a abertura de instrução.

5º Em 18.03.2020 foi proferido despacho a rejeitar o requerimento de abertura de instrução.

6º Em 06.04.2022 o requerente recorreu desta decisão.

7º Por despacho do Tribunal da Relação ... de 24.06.2022 foi concedido provimento ao recurso.

8º Sucede que até à presente data não foi proferida decisão instrutória.

9º De acordo com a alínea b) do nº1 do art. 215º do CPP a prisão preventiva extingue-se quando desde o seu início tiverem decorrido 8 meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória.

10º E nos termos do nº 2 do mesmo preceito legal este prazo é elevado para dez meses em caso de criminalidade altamente organizada (art. 1º alínea n) do CPP).

11º Sucede que nos presentes autos, tal prazo de 10 meses está claramente ultrapassado.

12º Pelo que a prisão preventiva aplicada ao requerente extinguiu-se em 02.05.2022.

13º Não obstante, ainda não foi dada ordem de libertação ao requerente, conforme impõe o nº1 do art. 127º do CPP.

CONCLUSÕES:

I. Pelo exposto o Requerente encontra-se ilegalmente preso nos termos da alínea c) do nº2 do art. 22º do CPC em clara violação do disposto nos arts. 27º e 28º da CRP e no nº1 alínea b) do art. 215º nº1 e nº2 do art. 215º do CPP.

II. Assim, deve ser declarada ilegal a prisão preventiva e ordenada a sua imediata libertação nos termos do art. 31º nº3 da CRP e dos arts. 222º e 223 nº4 al. d) do CPP.”

Acaba a fazer o 

I. -2 - pedido:

“Nestes termos e nos melhores de Direito deve ser declarada a ilegalidade da prisão preventiva e ordenada a libertação imediata do Requerente.”


I. -3 - Informação prestada ao abrigo do artigo 223, nº 1, do CPP

Da informação prestada pela Senhora Juíza do processo, a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), sobre as condições em que foi efectuada e se mantém a prisão, consta o seguinte:

“- O arguido AA foi submetido, juntamente com outros arguidos nos autos, a primeiro interrogatório judicial de arguido detido iniciado a 30/06/2021 e terminado a 01/07/2021.

- Por despacho proferido nesse interrogatório, veio o arguido a ser submetido à medida de coação prisão preventiva, com fundamento em indícios fortes da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/01 (além de um crime de condução de veículo sem habilitação, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do DL 15/93, de 22/01 e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, al. d) do RJAM) e existência de forte perigo de continuação da atividade criminosa, mantendo-se desde então o arguido em situação de prisão preventiva.

- Desde então para cá o arguido tem estado sempre sujeito à referida medida de coação, a qual foi revista trimestralmente, bem como após dedução da acusação e no despacho de recebimento da acusação.

- Nos autos foi deduzida acusação em 30/12/2021, na qual se mostra imputada ao arguido AA a prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos arts. 21º, nº 1 e 24º, al. h), ambos do DL 15/93, de 22/01, por referência às tabelas I-A, I-B e I-C e um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do DL 2/98, de 03/01.

- O arguido requereu a abertura de instrução, tendo a instrução sido rejeitada por despacho de 18/03/2022, em virtude de o recurso ter sido remetido por meio de correio eletrónico sem conter MDDE.

- O arguido recorreu do despacho que não admitiu a instrução, tendo o recurso sido admitido por despacho de 07/04/2022, tendo sido atribuído efeito devolutivo ao recurso, com subida imediata e em separado.

- Por Acórdão de 21/06/2022, ainda não transitado em julgado, foi concedido provimento ao recurso interposto pelo arguido e revogado o despacho recorrido, determinando-se que seja substituído por outro que notifique o arguido para, em prazo a fixar, apresentar o original do requerimento para abertura de instrução, que foi remetido a juízo por correio eletrónico simples.

- Nos autos a audiência de discussão e julgamento iniciou-se no dia 13/06/2022, tendo já tido continuação no dia 15/06/2022 e estando agendada continuação para os dias 29/06/2022, 30/06/2022, 14/09/2022 e 21/09/2022.

- No início da audiência pelo arguido BB (arguido que esteve em prisão preventiva e foi entretanto desligado para cumprimento de pena) foi requerido o adiamento da audiência, em virtude de ter sido proferido em 07/06/2022 Acórdão pelo Venerando Tribunal da Relação ..., de conteúdo semelhante ao supra referido, em recurso interposto por este arguido sobre a não admissão do requerimento de abertura de instrução que igualmente havia requerido (à data ambos os arguidos eram defendidos pela mesma defensora constituída), bem como que oportunamente se remetam os autos para a instrução, seja totalmente, seja por separação em relação ao arguido recorrente.

Nessa sequência, os arguidos CC, DD, EE e FF subscreveram o requerimento apresentado, bem como requereram que se determine que a totalidade dos autos seja remetida para a fase de instrução e se considerem ultrapassados os prazos da prisão preventiva, tendo o arguido GG igualmente subscrito o requerimento apresentado.

- O Tribunal Coletivo deliberou, por despacho exarado na ata da audiência de do Venerando Tribunal da Relação ... (à data ainda não havia sido proferido Acórdão no recurso interposto pelo arguido AA, mas só pelo arguido BB) poder ser considerado o decidido em tal Acórdão e, consequentemente, apenas após tal trânsito em julgado se tomar posição quanto à remessa da totalidade dos autos para a fase de instrução ou a separação processual, bem como tomar posição acerca do estatuto coativo dos arguidos na sequência dessa decisão.

- Até à presente data não foi comunicado aos autos o trânsito em julgado do Acórdão proferido no recurso interposto pelo arguido BB e, como supra referido, ainda não transitou em julgado o Acórdão proferido no recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se, assim, agendada para o dia de amanhã (29/06/2022) a continuação da audiência de discussão e julgamento em relação a todos os arguidos em relação aos quais foi deduzida a acusação.

II. - Instrução processual

O processo encontra-se instruído com todos os documentos pertinentes á decisão, nomeadamente auto de interrogatório de arguido, despacho de aplicação de medidas de coação, pedidos de informação ao Tribunal ... e da Relação ..., acórdãos da Relação ... de 21/0672022, quanto ao pedido de abertura da instrução do aqui Requerente, e de 07/06/2022, para situação idêntica de co-arguido.

III. - Audiência

Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Terminada a audiência, a secção reuniu para deliberar, ut artigo 223.º, n.º 3, do CPP. Assim:

IV. - Fundamentação

IV. - 1 - Factos:

- O arguido AA foi submetido, juntamente com outros arguidos nos autos, a primeiro interrogatório judicial de arguido detido iniciado a 30/06/2021 e terminado a 01/07/2021.

- Por despacho proferido nesse interrogatório, veio o arguido a ser submetido à medida de coação prisão preventiva, com fundamento em indícios fortes da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/01 (além de um crime de condução de veículo sem habilitação, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do DL 15/93, de 22/01 e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, al. d) do RJAM) e existência de forte perigo de continuação da atividade criminosa, mantendo-se desde então o arguido em situação de prisão preventiva.

- Desde então para cá o arguido tem estado sempre sujeito à referida medida de coação, a qual foi revista trimestralmente, bem como após dedução da acusação e no despacho de recebimento da acusação.

- Nos autos foi deduzida acusação em 30/12/2021, na qual se mostra imputada ao arguido AA a prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos arts. 21º, nº 1 e 24º, al. h), ambos do DL 15/93, de 22/01, por referência às tabelas I-A, I-B e I-C e um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do DL 2/98, de 03/01.

- O arguido requereu a abertura de instrução, tendo a instrução sido rejeitada por despacho de 18/03/2022, em virtude de o recurso ter sido remetido por meio de correio eletrónico sem conter MDDE.

- O arguido recorreu do despacho que não admitiu a instrução, tendo o recurso sido admitido por despacho de 07/04/2022, tendo sido atribuído efeito devolutivo ao recurso, com subida imediata e em separado.

- Por Acórdão de 21/06/2022, ainda não transitado em julgado, foi concedido provimento ao recurso interposto pelo arguido e revogado o despacho recorrido, determinando-se que seja substituído por outro que notifique o arguido para, em prazo a fixar, apresentar o original do requerimento para abertura de instrução, que foi remetido a juízo por correio eletrónico simples.

- Nos autos a audiência de discussão e julgamento iniciou-se no dia 13/06/2022, tendo já tido continuação no dia 15/06/2022 e estando agendada continuação para os dias 29/06/2022, 30/06/2022, 14/09/2022 e 21/09/2022.

- Não há declaração de especial complexidade do processo.

-O Requerente está preso desde 01/07/2021 ao dia de hoje. Num total de um ano e cinco dias.

IV. - 2 - Direito

Citando o ac. do STJ de 09/06/2022, proc. 2610/18,

“O artigo 31.º, n.º 1, da Constituição consagra o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegais privativas do direito à liberdade.

O habeas corpus constitui uma providência expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344). O direito à liberdade consagrado e garantido no artigo 27.º da Constituição, que se inspira diretamente no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e em outros textos internacionais, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 9.º), que vinculam Portugal ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, é o direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço ou impedido de se movimentar [assim, por todos, o acórdão de 29.12.2021 (proc. 487/19.8PALSB-A.S1), em www.dgsi.pt].

Nos termos do artigo 27.º, todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena ou de aplicação judicial de medida de segurança privativas da liberdade (n.ºs 1 e 2), excetuando-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 2 do mesmo preceito constitucional, em que se inclui a prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos [n.º 3, al. b)]. Como tem sido repetidamente afirmado, a prisão é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos neste preceito constitucional (por todos, o acórdão de 2.2.2022, Proc. n.º 13/18.6S1LSB-G, em www.dgsi.pt).

De acordo com o disposto no artigo 28.º, a detenção é submetida, no prazo máximo de 48 horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coação, em que se inclui a prisão preventiva, a qual tem natureza excecional e está sujeita aos prazos previstos na lei. A prisão preventiva só pode ser aplicada por um juiz, que, em despacho fundamentado, verifica a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida, que a justificam (artigos 193.º, 194.º, n.ºs 1 e 5, e 202.º do CPP). Dispõe o artigo 202.º do CPP que:

“1 - Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando:

a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos;

b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta;

c) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;

d) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, recetação, falsificação ou contrafação de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;

e) Houver fortes indícios da prática de crime doloso de detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;

f) (…)

(…)”

6. A prisão preventiva, enquanto medida de coacção de ultima ratio, está sujeita aos prazos de duração máxima previstos no artigo 215.º do CPP, a contar do seu início, findos os quais se extingue.

Nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 deste preceito, a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação ou oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória.

Estabelecendo o respetivo n.º 2 que estes prazos são elevados, respetivamente, para seis meses e dez meses, em casos de criminalidade altamente organizada – categoria em que se incluem as condutas que integram os crimes tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, na definição da al. m) do artigo 1.º do Código de Processo Penal –, ou quando se proceder por crime punível com pena de máximo superior a 8 anos, como no caso de crime de tráfico p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, a que corresponde a pena de prisão de 4 a 12 anos, ou por um dos crimes indicados nas alíneas desta disposição legal.

7. As decisões relativas à aplicação e reexame dos pressupostos da prisão preventiva – reexame que deve ter lugar no prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame, e quando no processo for proferido despacho de acusação [artigo 213.º, n.º 1, al. a) e b), do CPP] –, podem ser impugnadas por via de recurso ordinário, nos termos gerais (artigos 219.º, n.º 1, e 399.º e segs. do CPP), sem prejuízo de recurso à providência de habeas corpus contra abuso de poder por virtude de prisão ilegal (artigos 31.º da Constituição e 222.º a 224.º do CPP), com os fundamentos enumerados no n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Dispõe este preceito que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

8. Em jurisprudência constante, tem vindo este Supremo Tribunal de Justiça a afirmar que a providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excecional de urgência – no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ou detenção ilegais – perante ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, ou seja, sem lei ou contra a lei, referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP (assim e quanto ao que se segue, por todos, de entre os mais recentes, o acórdão e 2.2.2022, Proc. n.º 13/18.6S1LSB-G, em www.dgsi.pt).

A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, um meio de reação tendo por objeto atos do processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido ou um «sucedâneo» dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (artigos 399.º e segs. do CPP). A diversidade do âmbito de proteção do habeas corpus e do recurso ordinário configuram diferentes níveis de garantia do direito à liberdade, em que aquela providência permite preencher um espaço de proteção imediata perante a inadmissibilidade legal da prisão.

9. Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se tem afirmado em jurisprudência uniforme e reiterada (acórdão de 2.2.2022 cit.), o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionante actualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respectivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (cfr. também, entre outros, os acórdãos de 26.07.2019 cit. e de 09.01.2019, proc. n.º 589/15.0JALRA-D.S1, em www.stj.pt/wpcontent/uploads/2019/06/criminal_ sumarios_ janeiro_ 2019 .pdf).

10. O habeas corpus pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que a petição é apreciada, como também tem sido reiteradamente sublinhado (assim, o citado acórdãos de 2.2.2022, bem como, de entre outros, os acórdãos de 21.11.2012, proc. n.º 22/12.9GBETZ-0.S1, 09.02.2011, proc. n.º 25/10.8MAVRS-B.S1, de 11.02.2015, proc. n.º 18/15.9YFLSB.S1, e de 17.03.2016, proc. n.º 289/16.3JABRG-A.S1, em www.dgsi.pt).”

E é a relevância do direito fundamental à liberdade pessoal que impõe a existência do habeas corpus, pois, como se disse, no ac. do STJ de 19/01/2022, proc. 57/18,:

“O direito à liberdade ambulatória é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países civilizados.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos/DUDH, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III (3º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.

Proclama no artigo IX (9º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.

No artigo XXIX (29º) admite que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra; “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.

Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH, no art. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.

Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH/) “enfatiza desde logo que o artigo 5 consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. O Reino Unido, citado acima, §§ 162 e 163)[1].

Interpreta: “no que diz respeito à «“legalidade” da detenção, a Convenção refere-se essencialmente à legislação nacional e estabelece a obrigação de observar as suas normas substantivas e processuais. Este termo exige, em primeiro lugar, que qualquer prisão ou detenção tenha uma base legal no direito interno”.

E que “a "regularidade" exigida pela Convenção pressupõe o respeito não só do direito interno, mas também - o artigo 18.º confirma - da finalidade da privação de liberdade autorizada pelo artigo 5.º, n.º 1, alínea a). (Bozano v. França, em 18 de dezembro de 1986, § 54, Série A n º 111, e Semanas v. Reino Unido, 2 de Março de 1987 § 42, Série A n º 114). No entanto, a preposição "depois" não implica, neste contexto, uma simples sequência cronológica de sucessão entre "condenação" e "detenção": a segunda também deve resultar da primeira, ocorrer "a seguir e como resultado "- ou" em virtude "-" desta ". Em suma, deve haver uma ligação causal suficiente entre elas (Van Droogenbroeck, citado acima, §§ 35 e 39, e Weeks , citado acima, § 42) [2].

Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art. 6º, o direito à liberdade pessoal.

Não consagrando o habeas corpus, reconhece, no art. 47º, o direito de ação judicial contra a violação de direitos ou liberdades garantidas pelo direito da União.

Assinala E. Maia Costa que os textos internacionais relativos aos direitos humanos preveem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação da liberdade ilegal, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus[3].

A Constituição da República, no artigo 27º n.º 1, reconhece e garante do direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos.

O direito a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é um direito absoluto.

À semelhança da CEDH, a Constituição da República, no art. 27º n.º 2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições.

Entre estas sobressai, desde logo (n.º 2), a privação da liberdade decretada em sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão. No caso da prisão as restrições à liberdade “só podem decorrer de sanção penal[4].

Sobressia também “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” (n.º 3), nos casos de (b) “prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos”.

Das providências cautelares de natureza pessoal processualmente previstas, a prisão preventiva é a medida coativa mais restritiva da liberdade individual. Exige a concorrência, em cada caso, dos requisitos comuns às demais medidas de coação – sejam positivos (art. 191º n.º 1, 192º n.º 1, 193º n.ºs 1 e 2, 204º), sejam negativos (art. 192º n.º 6) -, e dos pressupostos específicos - positivos (art. 202º) e negativos (art. 193º n.º 3 e 194º n.º 3, todas as normas citadas do CPP). Ademais da reserva de lei, está também submetida à reserva de juiz (só pode ser aplicada em decisão judicial). A drástica restrição ao direito fundamental à liberdade ambulatória que encerra, não permite que seja aplicada se não se revelar a única adequada a acautelar o normal desenvolvimento do procedimento (a finalidade primordial desta e de qualquer outra medida coativa) ou a obstar a que o arguido se exima à execução da fortemente previsível condenação.”

Com o que, dizemos nós, o primado da liberdade não pode ser afrontado em nenhuma circunstância.

Neste caso, a este Supremo caberá tão só averiguar se o prazo máximo de prisão preventiva do Requerente se mostra, ou não, excedida.

Tendo em conta que no caso não houve instrução, (pese embora ainda a possa haver, desde que o Ac. da RE transite em julgado com o deferimento do RAI), não se pode ter em conta tal fase nos termos e para os efeitos do artigo 215 do CPP – “prazos máximos de duração da prisão preventiva”.

No caso estando o processo em fase de julgamento o prazo máximo de duração da prisão preventiva, considerando o tipo de crime que é imputado ao arguido, sem que tenha havido condenação em primeira instância, cifra-se em um ano e seis meses.

Maia Costa, in “Habeas corpus, passado, presente, futuro”, in Julgar, nº 29, afirma que “o acesso a nova fase processual amplia o prazo anteriormente fixado, nos termos aí indicados. Não existem, portanto, vários prazos, um para cada fase, antes um único prazo, contado a partir do início da execução da medida, que se dilata à medida que o processo passa à fase seguinte.”  Os prazos regra de duração máxima de prisão preventiva reportam-se a determinados momentos processuais, a existirem, como se sublinha no “Comentário Judiciário ao CPP”, António Gama et alii, notas ao artigo 215, em “II”, mas o prazo é único. Por isso é que, “Se o arguido apenas for preso preventivamente na fase de julgamento o prazo regra é o estabelecido para essa fase (ou seja, segundo o artigo 215/1), 1 ano e 2 meses sem que tenha havido condenação em primeira instância e de 1 ano e 6 meses sem que tenha havido condenação com transito em julgado. (idem, ibidem).

No nosso caso houve inquérito e está-se na fase de julgamento, o prazo de prisão preventiva, considerando o tipo de ilícito imputado, vai até 1 ano e seis meses. O arguido foi preso em 01/07/2021. Com o que não se mostra ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva.

Situação idêntica foi decidida no ac. de 12/12/2019, proc. 47/18, com a fundamentação que se transcreve:

1.1. Nos termos do art. 31.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, o interessado pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de detenção ou prisão ilegal. “Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito[1].

Exigem-se, cumulativamente, dois requisitos: 1) abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e, 2) detenção ou prisão ilegal (cf. neste sentido, ibidem, anotação ao art. 31.º/ II, p. 508). Nos termos do art. 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), a ilegalidade da prisão deve ser proveniente de aquela prisão “a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

2. AA encontra-se preso preventivamente, ao abrigo destes autos e por força do disposto nos arts. 191.º, 193.º, 202.º, e 204.º, als. a) e c), do Código de Processo Penal (CPP), desde … .02.2019, após interrogatório judicial de arguido detido, por estar indiciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, nos termos do art. 21.º, n.º 1, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01, e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, nos termos dos arts. 69.º n.º 1, al. a) e 291.º, n.º 1, al. b), do Código Penal (CP). Considerou-se, então, “existir, em concreto, riscos de fuga do arguido e o risco de, em razão das circunstâncias do crime e personalidade do arguido de este continuar a actividade criminosa e perturbar gravemente a tranquilidade pública.”Acrescentou-se ainda que a “única forma (...) de debelar eficazmente estes riscos não se compadece com a manutenção do arguido em liberdade, adstrito à medida de coacção não afectante da mesma nem outrossim à obrigação de permanência na habitação, dado que como se sabe a actividade de tráfico pode continuar ser exercida a partir de casa”.

A aplicação da medida de coação foi sendo sucessivamente revista e mantida, considerando-se que persistiam os pressupostos que permitem a aplicação desta medida de coação (cf. despachos juntos a estes autos).

Após o decurso do inquérito, a 26.06.2019, quanto ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário foi proferido despacho de arquivamento. E, na mesma data, foi o arguido acusado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, nos termos do art. 21.º, n.º 1, do Decreto Lei n.º 15/93, e de um crime de resistência e coação sobre funcionário, nos termos do art. 347.º, n.ºs 1 e 2, do CP.

Após esta acusação, o arguido requereu a abertura de instrução, relativamente a parte dos factos pelos quais tinha sido acusado, pedido que foi rejeitado por decisão de 30.07.2019. Desta decisão de rejeição o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação ..., que foi admitido por despacho, a 10.09.2019, e determinando um efeito devolutivo a este recurso.

No entretanto, o processo prosseguiu para a fase de julgamento, tendo sido marcada e realizada a 1.ª sessão da audiência de discussão e julgamento, a 18.11.2019. E nova sessão foi iniciada a 05.12.2019, tendo, porém, sido suspensa (cf. ata de audiência junta a estes autos) após conhecimento do acórdão do Tribunal da Relação ..., de 03.12.2019, que determinou a revogação do despacho que rejeitou o pedido de abertura de instrução e determinou a prolação de novo despacho que admitisse a abertura daquela instrução conforme requerimento apresentado.

A pergunta que se coloca é a de saber se os prazos máximos de duração da medida de coação de prisão preventiva, estabelecidos no art. 215.º, do CPP, foram ultrapassados, tendo em conta que, apesar de os autos já terem entrado na fase de julgamento, o processo se encontra agora na fase de instrução.

Tem-se entendido que, de acordo com um princípio da unidade processual do prazo das medidas de coação, este prazo é único num mesmo processo[2]. Pelo que os prazos máximos determinados no art. 215.º, do CPP, num mesmo processo não podem ser ultrapassados, ou seja, se o arguido esteve já na fase de inquérito durante um certo período em prisão preventiva, quando volta a ser decretada a prisão preventiva numa fase posterior do processo, por exemplo, na fase de instrução, o prazo máximo agora admissível é o correspondente ao determinado até à decisão instrutória, descontado do período que cumpriu em prisão preventiva na fase de inquérito[3]. O que tem permitido igualmente que se considere que o arguido pode ver decretada a medida de coação de prisão preventiva numa fase do processo e, ainda que tenha sido libertado por o prazo ter sido ultrapassado, possa vir a ser decretada nova prisão preventiva em outra fase[4].

Sendo o prazo de prisão preventiva um único, o certo é que, nos termos do art. 215.º, do CPP, foram estabelecidos limites para cada uma das fases de processo. No que respeita a estes autos, são elementos importantes o prazo de prisão preventiva até ao final da fase de instrução — que é de 8 meses, nos termos do art. 215.º, n.º 1, al. b), do CPP, mas no caso estendido até aos 10 meses, por força do disposto no art. 215.º, n.º 2, do CPP — , e o prazo de prisão preventiva até à condenação — que é de 1 ano e 2 meses, nos termos do art. 215.º, n.º 1, al. c), aqui estendido até 1 ano e 6 meses, por força do disposto no art. 215.º, n.º 2, do CPP.

Tem sido entendido pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, em casos similares, que quando ocorre uma anulação de uma sentença (e ainda que o recurso tenha tido efeito suspensivo) o prazo máximo de duração da prisão preventiva não é diminuído para o prazo correspondente à anterior fase processual como se não tivesse havido anteriormente uma condenação em 1.ª instância. E este entendimento foi, por maioria, acolhido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 404/2005: “não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 215.º, n.º 1, alínea c), com referência ao n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação que considera relevante, para efeitos de estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva, a sentença condenatória proferida em 1.ª instância, mesmo que, em fase de recurso, venha a ser anulada por decisão do Tribunal da Relação” (e no mesmo sentido também o acórdão n.º 208/2006, do Tribunal Constitucional).

Ora, considerando que o prazo de prisão preventiva ao longo do mesmo processo é apenas um (“Não existe um certo prazo de prisão preventiva próprio de cada fase do processo, há sim um limite máximo de prisão preventiva até que se atinja um dado momento processual” — ac. do STJ, de 23.04.2015, proc. n.º 686/11.0GAPRD-E.S1, Relator: Cons. Souto de Moura), e seguindo a jurisprudência dominante neste Supremo Tribunal de Justiça, consideramos que isto não impede que, uma vez chegados a uma nova fase processual, não valha o prazo correspondente a esta nova fase, ainda que por vicissitudes várias o processo tenha que voltar a uma fase anterior. Porém, o decurso do tempo vai sempre contando, de modo que o prazo que já correu conta sempre, o que significa que uma vez chegados novamente à fase de julgamento não acresce novo período, isto é, na totalidade e até à decisão em 1.ª instância o prazo máximo é sempre de um ano e dois meses ou um ano e seis meses, consoante o caso se integre na previsão do n.º 1 ou do n.º 2, do art. 215.º, do CPP.

É certo que, após estar na fase de julgamento, o processo volta à fase de instrução, por força da decisão do Tribunal da Relação. Porém, os efeitos impostos por lei, máxime os efeitos decorrentes do momento em que o processo se encontra quanto aos prazos máximos de prisão preventiva, não são destruídos.

Na verdade, após o termo da fase de inquérito, com a acusação do arguido, o requerente deste habeas corpus apresentou requerimento de abertura de instrução. Não seguindo o entendimento de que a fase de instrução se inicia com aquele requerimento, e considerando que apenas ocorre com o despacho de admissibilidade, poderemos considerar que não existiu uma fase de instrução. Ora, não tendo havido lugar a instrução (até à decisão do Tribunal da Relação), não se pode considerar que o prazo máximo de prisão preventiva era o previsto para os casos em “havendo lugar a instrução”, ou seja, não se pode aplicar o disposto no art. 215.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP. Assim, a partir do momento em que o requerimento de abertura de instrução foi rejeitado, o processo entrou na fase de julgamento (tanto mais que foi atribuído, por despacho, efeito devolutivo ao recurso interposto da decisão de não admissibilidade da instrução, havendo caso julgado formal).

Ora, os efeitos legais, os efeitos ope legis, decorrentes do facto de se ter entrado numa nova fase, nomeadamente, a extensão dos prazos de prisão preventiva, por força do disposto no art. 215.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, do CPP, não podem ser destruídos pela decisão do Tribunal da Relação. Não pode agora dizer-se que nunca o disposto no art. 215.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, do CPP, produziu qualquer efeito determinando um novo prazo de prisão preventiva. Este que se iniciou deve manter a sua validade, sem que se possa dizer que a decisão do Tribunal da Relação, porque determinou a abertura de instrução, destrói o efeito decorrente da anterior abertura da fase de julgamento. Não podemos dar como inexistente a fase de julgamento que se iniciou, e tendo sido aberta a audiência de discussão e julgamento e tendo sido suspensa, não podemos agora considerá-la inexistente.

Acontece, porém, que o prazo máximo de prisão preventiva até à condenação em 1.ª instância se mantém o mesmo, independentemente de agora ter sido suspensa a audiência e se ir realizar a instrução.

Os prazos máximos de prisão preventiva estabelecidos no art. 215.º, do CPP, estão previstos para um decurso normal do processo, sem que haja uma regressão a uma fase anterior, e operam imediatamente, por força da lei, uma vez entrado o processo numa nova fase. Tal como nos casos de nulidades se entende que não há uma destruição dos atos processuais entretanto ocorridos, por maioria de razão, os efeitos produzidos ope legis e consolidados não são destruídos.

Na verdade, tem sido considerado por este Tribunal que, no caso de uma decisão ser declarada nula, ainda que se regresse a uma fase anterior, os prazos da prisão preventiva não passam a ser os desta outra fase[8]. Na base deste entendimento está a distinção entre atos nulos e inexistentes, considerando-se que o ato nulo “não determina o total apagamento de uma actividade processual efectivamente desenvolvida nem dos efeitos ligados a essa realidade” (ac. do Tribunal Constitucional n.º 404/2005), pelo que o início de uma audiência de discussão e julgamento, com suspensão na segunda sessão, constitui uma “significativa e relevante realidade jurídica” (ac. do TC citado) que teve em vista, pese embora o recurso interposto, assegurar que o processo continuava e portanto era satisfeito o direito do arguido a “ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, nos termos do art. 32.º, n.º 2, da CRP. Se o ato nulo não apaga a atividade processual realizada numa certa fase, nem os efeitos daí decorrentes, por maioria de razão a regressão no decurso da atividade processual por força de uma decisão judicial não apaga os efeitos ope legis que se produziram com a remessa dos autos para a fase de julgamento e a abertura da audiência de discussão e julgamento, entretanto suspensa.

Acresce que este entendimento permite ao arguido avaliar com previsibilidade qual o prazo máximo de prisão preventiva a que pode ser sujeito, não ficando dependente de uma eventualidade quanto a saber se irá ou não ser alterado esse prazo consoante uma decisão posterior de um Tribunal superior. Os prazos são sempre os mesmos — até à decisão em 1.ª instância não poderá ser preso preventivamente por um prazo superior ao determinado no art. 215.º, n.ºs 1, al. c), e 2, do CPP.

Por fim, deve salientar-se que assim se cumpre um princípio da igualdade entre todos os arguidos — entre aqueles que não requereram a abertura de instrução e seguiram para a fase de julgamento, e aqueles outros que, tendo requerido a abertura de instrução e não tendo esta sido admitida, após recurso, e pese embora tenham igualmente entrado na fase de julgamento, obtêm uma decisão de admissibilidade daquela instrução.

Assim sendo, e uma vez que a prisão preventiva do requerente foi aplicada a 02.02.2019, e sabendo que foi acusado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e de um crime de resistência e coação sobre funcionário, o prazo máximo é o de um ano e seis meses, nos termos do art. 215.º, n.º 2, do CPP, até à decisão final em primeira instância. No caso, o prazo de prisão preventiva é o previsto no art. 215.º, n.º 2, não só porque o requerente foi acusado pelo crime de tráfico de estupefacientes cujo limite máximo da moldura penal é superior a 8 anos (o crime de tráfico de estupefacientes, previsto no art. 21.º, n.º 1, do Decreto Lei n.º 15/93, é de 12 anos), mas também porque estamos perante um crime que se integra no conceito de criminalidade altamente organizada, previsto no art. 1.º, al. m), do CP; para além disto, o requerente foi ainda acusado pelo crime de resistência e coação sobre funcionário, nos termos do art. 347.º, n.ºs 1 e 2, do CP, um crime contra a autoridade pública e cuja pena é de prisão entre 1 e 5 anos, pelo que estamos perante um caso de criminalidade violenta, nos termos do art. 1.º, al. j), do CPP.

De tudo o exposto se conclui que o requerente se encontram em prisão preventiva, tendo sido esta ordenada pela autoridade competente, por facto pelo qual a lei permite e não estando ainda ultrapassados os prazos máximos determinados na lei, pelo que se mostra infundado o pedido de habeas corpus.”

Conforme exposto, a situação em apreço nesta providência é idêntica à julgada no acórdão que se vem de transcrever.

Perfilhando igual interpretação, entende- este Supremo Tribunal que o prazo da prisão preventiva neste caso passou a ser aquele que decorre até à condenação do requerente em 1ª instância, sem prejuízo, evidentemente, de a medida coativa ser substituída ou revogada, ou se extinguir se entretanto sobrevier fundamento bastante para tanto.

Conclui-se, por isso, que a privação da liberdade do Requerente, determinada pelo juiz competente, por facto que admite prisão preventiva, se mantém no prazo legalmente fixado.

Pelo que o presente habeas corpus carece de fundamento bastante.


V. - Decisão

Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.ºs 3, 4, alínea a), e 6 do artigo 223.º do Código de Processo Penal (CPP), acordam os juízes da 3.ª Secção Criminal em indeferir o pedido por falta de fundamento bastante.

Custas pelo Requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8, nº 9, e da Tabela III do RCP.

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de julho de 2022.


Os juízes conselheiros

Ernesto Vaz Pereira (relator)

José Luís Lopes da Mota, (Adjunto)

Nuno António Gonçalves (Presidente da Secção)