Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A2334
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: ACTO MÉDICO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: SJ200709180023341
Data do Acordão: 09/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
- Convencionada entre o médico e a paciente a assistência num parto, a relação estabelecida é juridicamente qualificável como um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos;
- Da eventual violação das prestações contratuais – cumprimento defeituoso - decorre responsabilidade de natureza contratual, incidindo sobre o médico a legal presunção de culpa;
- A prestação do médico consiste na denominada obrigação de meios, pois que o médico não responde pela obtenção de um determinado resultado, mas pela omissão ou pela inadequação dos meios utilizados aos fins correspondentes à prestação devida em função do serviço que se propôs prestar;
- Não estando em causa a prestação de um resultado, quando se invoque o cumprimento defeituoso é necessário provar a desconformidade objectiva entre o acto praticado e as leges artes, só depois funcionando a presunção de culpa, a ilidir mediante prova de que a desconformidade não se deveu a culpa do agente;
- O que se presume é a culpa do cumprimento defeituoso, mas não o cumprimento defeituoso (acto ilícito), ele mesmo;
- Em sede de causalidade adequada, por sua vez, tem de ser provado pelo paciente que certo tratamento ou intervenção foram omitidos ou que os meios utilizados foram deficientes ou errados – determinação dos actos que deviam ter sido praticados e não foram, do conteúdo do dever de prestar - e, por tal ter acontecido, em qualquer fase do processo, se produziu o dano, ou seja, foi produzido um resultado que se não verificaria se outro fosse o acto médico efectivamente praticado ou omitido.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA intentou acção declarativa contra BB pedindo a condenação deste a pagar-lhe a indemnização de € 25.000,00, acrescida de juros desde a data da citação.
Fundamentando a pretensão, a A. alegou, resumidamente, ter recorrido aos serviços médicos, de obstetrícia, do R., que veio a assisti-la num parto em que a placenta não saiu totalmente, facto de que o R. se apercebeu e alertou a A.. Posteriormente, tendo a A. sofrido uma hemorragia, o R. fez internar a A., efectuou uma raspagem e deu-lhe alta de seguida, sem qualquer medicação. No dia seguinte, a A. teve nova hemorragia e recorreu a um Hospital onde lhe foi diagnosticada anemia e grave infecção no útero, que teve de ser eliminada antes de efectuar nova raspagem, com novo internamento. Sofreu a A. doença por 73 dias e perigo para a vida, por o R. ter omitido o “dever efectuar todas as diligências necessárias para averiguar se existiam ou não, restos de placenta no útero da A.”, despesas, temor dos internamentos e afectação psicológica, que valoriza no quantitativo peticionado.

Contestando, o R. alegou ter a A. uma placenta acreta, que impõe que se aguarde a sua expulsão ou, quanto necessária a realização de curetagem, como o R. fez. Após esta intervenção, a A. nem sequer o contactou, sendo certo que tinha apenas uma ligeira anemia, sem qualquer infecção

Foi requerida e admitida, como acessória, a intervenção principal da Seguradora “Axa, S.A.”, que fez sua a contestação do seu Segurado.

A final a acção improcedeu, decisão que a Relação revogou para, na parcial procedência da acção, “condenar os réus, solidariamente, a pagar à autora a quantia de €12.854,27” acrescida de juros de mora, á taxa legal, desde a data da citação.


Pedem revista o R. e a Interveniente, pugnando pela improcedência total da acção.

As conclusões de ambas as revistas podem resumir-se assim:
- A Autora teria de provar que no diagnóstico, no tratamento ou na intervenção cirúrgica foram omitidos actos médicos que, a serem praticados, teriam levado à cura ou atenuado a doença;
- A conduta do Réu para com a Autora no diagnóstico, tratamento e intervenções realizadas foi a correcta e necessária;
- Não há culpa efectiva ou presumida do R., que logrou ilidir a presunção de culpa;
- Não existe nexo de causalidade normativa entre a conduta do R. e os danos reclamados;
- Foi a própria A. quem deu causa aos danos patrimoniais ao recorrer aos serviços de outro médico

A A. respondeu, em defesa do julgado.

2. - Em causa, como questão única, embora complexa, está, pois, essencialmente, saber se concorrem os pressupostos da responsabilidade civil e obrigação de indemnizar, nomeadamente os seus requisitos ilicitude, culpa e nexo de causalidade.

3. – A factualidade provada.

1. O R., em 1998, era médico da PSP, em Lisboa (A).
2. Por sua vez a A. era casada com um agente da PSP, com direito aos serviços médicos da Corporação (B).
3. Para o que tinha a qualidade de beneficiária, com o número ... (C).
4. Por essa razão, a A., solicitou em princípios de 1997 os serviços médicos do R., tendo sido o R. que posteriormente acompanhou a sua gravidez a partir de Setembro de 1997 (D).
5. Para esse efeito, a A. ia mensalmente, ao consultório do R., por determinação deste (E).
6. Estas consultas mensais verificaram-se até à data do parto (F).
7. Na última consulta, ocorrida em 14 de Maio de 1998, o R. informou a A. de que o parto teria que ser provocado (G).
8. Para o que o próprio R. designou a data de 16 desse mesmo mês de Maio (H).
9. Do mesmo passo, o R. aconselhou à A. a Clínica de S. Gabriel, para o efeito (I).
10. Conselho que a A. seguiu, ficando internada na dita Clínica, no dia 15 do dito mês de Maio (1).
11. No dia seguinte, 16 de Maio, o R. provocou efectivamente o parto da A., ao qual prestou a necessária assistência clínica (K).
12. Tendo nascido uma criança de sexo feminino (L).
13. Após o parto a placenta não saiu integralmente (1°).
14. Após o parto, o R. apercebeu-se que a placenta não saíra e tentou retirá-la (M).
15. O R. alertou a A. para a possibilidade de terem ficado no útero restos de placenta (N).
16. A placenta da A. era uma placenta acreta, o que não é vulgar acontecer, nem sequer é previsível ou susceptível de ser evitada (35°).
17. Uma placenta é acreta quando está inserida de forma anómala no útero e, como não há um plano de clivagem entre a placenta e o útero, é difícil, se não mesmo impossível, retirar a placenta na sua totalidade, ou constatar se a mesma saiu totalmente (36°).
18. Nestes casos de placenta acreta, nada há a fazer se não aguardar pelo desenrolar do processo de expulsão natural ou provocado (37°).
19. Casos há em que é necessário proceder-se a uma curetagem, ou seja, a uma raspagem do útero se, como foi o caso da A., vierem a surgir hemorragias (38°).
20. Em 22 de Maio, a A. voltou ao consultório do R. para retirar os pontos da sutura efectuada na sequência do parto (O).
21. Quando o R. tirou os pontos à A., em 22 de Maio, nada referiu relativamente a restos de placenta (4°).
22. Por volta de 5/6 de Julho seguinte, a A. teve uma grande hemorragia uterina, precedida de dores intensas (5°).
23. Em 6 de Julho, a A. contactou o R. queixando-se de dores e hemorragia, pelo que o R. lhe disse para ir ao seu consultório no dia seguinte, ou seja, em 7 de Julho, o que a A. fez (P).
24. Submetida, então, a exame o R. revelou, efectivamente, terem sido os restos de placenta que originaram a hemorragia (Q).
25. O R. aconselhou, por isso, a A., a ir, no dia seguinte (8 de Julho) ao Hospital S. Francisco de Xavier (R).
26. Onde ele R. estaria, então de serviço e a poderia examinar (S).
27. Tendo, efectivamente, comparecido no dia 8 de Julho, no Hospital de S. Francisco de Xavier, a A. ficou internada, durante 6 (seis) horas, para ser examinada (T).
28. Para esse exame e eventual tratamento, foi a A. submetida a anestesia geral (U).
29. Durante a qual lhe foi feita uma raspagem ao útero, para extracção dos restos de placenta que ainda lá se encontravam no útero (V).
30. Logo de seguida, nesse mesmo dia, foi dada alta à A. (W)
31. Sem que lhe tivesse sido receitado qualquer medicamento (X).
32. Tendo-lhe, até, sido dito não ser necessário tomar antibióticos (Y).
33. No regresso a casa, a A. sentiu muitas dores, tendo desmaiado já em casa (7º).
34. E no dia seguinte - 9 de Julho - a A., além das dores, teve de novo uma hemorragia (8º).
35. Alarmada, a A., por iniciativa própria, recorreu, em 10 de Julho, à urgência do Hospital Particular de Lisboa (9°).
36. Neste hospital, a A. foi de imediato submetida a análises e ecografias (10°).
37. As análises ao sangue eram compatíveis com uma ligeira anemia e uma infecção (11º).
38. A ecografia revelou existência de imagens heterogéneas intra-uterinas compatíveis com restos placentários (12°).
39. As análises ao sangue revelaram uma velocidade de sedimentação de 54 mm/hora, o que é compatível com a existência de uma infecção (13°).
40. Para combater a infecção foi receitado à A., pelo médico que a assistiu, Dr.L...A...M..., uma medicação com antibióticos, para debelar a infecção (15°).
41. Foi submetida a uma ecografia em 13 de Julho que revelou a existência de imagens heterogéneas intra-uterinas compatíveis com restos placentários (18°).
42. Em 14/07/1998, a A. foi consultada pelo Sr. Dr. A...M... (19°).
43. No dia 16 de Julho, a A. foi ao Hospital Particular e fez novas análises que revelaram uma velocidade de sedimentação de 25 mm/hora (20°).
44. Por indicação do Dr. L...A...M..., a A., no dia 18 de Julho, foi á maternidade Alfredo da Costa, onde ficou internada (21°).
45. Aí foi submetida a exames médicos (22°).
46. Tendo sido submetida a A., nesse mesmo dia - 18 de Julho - a uma cirurgia com anestesia geral para lhe serem retirados os restos de placenta que ainda se encontravam no útero (23º).
47. A intervenção a que a A. foi submetida em 18 de Julho foi exactamente a mesma que o Réu fez e que se chama curetagem ou raspagem do útero e que, em menos de 24 horas, a doente tem alta (39°).
48. Dessa curetagem saíram fragmentos de diâmetro inferiores a 2 cm com peso total de 8 gramas (40°).
49. A placenta tem um peso de cerca de 500 gramas (41°).
50. Era possível que aquela quantidade de restos de placenta viesse a ser expulsa na menstruação seguinte (42°).
51. Do sucedido não resultou, em concreto, perigo para a vida da A. (43°).
52. A A. teve alta da MAC em 19 de Julho de 1998 (24°).
53. Em 31/07/98 fez novas análises ao sangue que revelaram eritrócitos, hemoglobina e hematócritos com valores um pouco abaixo dos mínimos, e uma velocidade de sedimentação de 21 mm/hora; e em 30/07/98 fez ecografia, com resultados normais (27°).
54. Em consultas e exames a A. despendeu, pelo menos, 354,27 € (71.025$00) (32°).
55. Além de ter sentido medo dos internamentos, a A. ficou psicologicamente afectada com os riscos que pensou que corria e com a impossibilidade de prestar assistência à sua filha recém nascida (34°).
56. O R. transferiu a sua responsabilidade civil profissional para a AXA PORTUGAL, C.ª de Seguros, S. A., através da Apólice n.º 05-84-930766, com início em 1 de Janeiro de 1993, com o capital global de 329.206,61 € (Z).

4. - Mérito do recurso.

4. 1. - Os Recorrentes não põem em causa, ao menos em termos de manifestação de discordância, pois que o admitem como pressuposto, que a relação estabelecida entre A. e R. é susceptível de ser juridicamente qualificada como um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos, com previsão no art. 1154º C. Civil, mas não especialmente regulado.

Porque inteiramente compatível com a factualidade alegada e provada, tem-se por adquirido que a responsabilidade actuada decorrerá da violação das prestações contratuais inerentes e próprias do cumprimento desse contrato, o que vale por dizer, como também vem admitido, que nos movemos no âmbito da responsabilidade contratual.

Situamo-nos, nesta modalidade de responsabilidade, no domínio do cumprimento das obrigações contratuais, ou seja, da responsabilidade contratual pelo incumprimento.

Quando haja incumprimento ou quando a prestação seja defeituosamente cumprida, o devedor, cuja culpa se presume, responde pelo prejuízo causado ao credor, nomeadamente, no caso, pelos efeitos danosos da privação da coisa cujo gozo se encontrava vinculado a facultar – arts. 798º e 799º-1 C. Civil.
Em caso de incumprimento da respectiva prestação, a lei impõe ao devedor a prova de que o mesmo não procede de culpa sua.

Ainda quanto a este ponto – da natureza contratual da responsabilidade e consequente presunção de culpa do devedor -, as Partes admitem o acerto da decisão impugnada, que não se afasta da jurisprudência e doutrina claramente dominantes.

Damos, pois, por assente, que a responsabilidade é de natureza contratual e sobre o R., médico, incide a presunção de culpa a que alude o dito art. 799º-1.

4. 2. - A inexecução da prestação contratual, como violação do contrato, é um acto ilícito, elemento integrante da responsabilidade contratual.

No domínio desta responsabilidade, presume-se, como se disse, a culpa, mas, na falta de norma que o permita, o mesmo não acontece relativamente aos restantes requisitos da responsabilidade civil.

Assim, há-de ser sobre quem invoca a prestação inexacta da outra parte como fonte da responsabilidade que há-de recair o ónus de demonstrar os factos que integram esse incumprimento (facto ilícito), os nexos de imputação e de causalidade, bem como os prejuízos dele decorrentes (dano), ou seja os pressupostos obrigação de indemnizar, com excepção da culpa, cuja demonstração de inexistência impende sobre o demandado – art. 342º-1 C. Civil.

Tem-se, então, por certo que quem invoca o cumprimento defeituoso tem de provar a existência do defeito, ou seja, que o devedor, apesar de realizar a prestação, não o fez em termos integralmente correspondentes ao exacto conteúdo da obrigação a que estava vinculado, satisfazendo o interesse do credor.

A ilicitude resulta sempre da violação de um dever jurídico, em regra, no caso de cumprimento defeituoso, no âmbito dos deveres secundários ou acessórios de conduta que acompanham o cumprimento adequado da prestação principal.
Como violação de um dever que tem ínsito um juízo de reprovação – por se ter omitido, podendo fazer-se, o que era devido -, a ilicitude do acto pressupõe, necessariamente, a existência desse dever e uma actuação voluntária diferente da que o dever impõe.

A execução defeituosa, ou ilicitude, objectivamente considerada, consiste, então, numa omissão do comportamento devido, consubstanciado na prática de actos diferentes daqueles a que se estava obrigado (cfr. PESSOA JORGE, “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 69).

À ilicitude, enquanto negação de valores tutelados pela ordem jurídica, considerada objectivamente, acresce a culpa, considerando os aspectos circunstanciais que interessam à censurabilidade da conduta, culpa que se refere ao acto ilícito e não ao dano, sendo que uma coisa é o aspecto da conduta irregular do agente, outra o da sua conduta faltosa (A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, 9ª ed., 607/8).
Esta, em sede de culpa, presume-se, aquela, no plano da ilicitude, não.

4. 3. - Convocando agora as especificidades do caso, vem sendo entendimento corrente que a obrigação a que o médico se vincula perante o paciente – ressalvados, naturalmente, os casos em que garante a obtenção de determinado resultado -, consiste em lhe proporcionar os melhores e mais adequados cuidados ao seu alcance, de acordo com a sua aptidão profissional e “em conformidade com as leges artes e os conhecimentos científicos actualizados e comprovados” ao tempo da prestação (ac. STJ, de 11/7/06, proc. 06A1503 ITIJ).

Estar-se-á, pois, perante a denominada obrigação de meios, pois que o médico não responde pela obtenção de um determinado resultado, mas pela omissão ou pela inadequação dos meios utilizados aos fins correspondentes à prestação devida em função do serviço que se propôs prestar.

Não estando em causa a prestação de um resultado, não será suficiente alegar e demonstrar a não obtenção de um certo resultado ou a verificação de um resultado diferente do esperado para que exista incumprimento ou cumprimento defeituoso, pois que a violação da obrigação reside sempre na prática deficiente/defeituosa do acto ou na abstenção da prática de actos exigidos pela situação clínica do doente. O que se exige, sob pena de violação do dever jurídico que enforma a sua prestação, é que o médico actue em conformidade com essas regras e actue com diligência normal.

Consequentemente, quando se invoque tratamento defeituoso para efeito de obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade contratual é necessário provar “a desconformidade (objectiva) entre os actos praticados e as leges artes, bem como o nexo de causalidade entre defeito e dano” (CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, in “Direito da Saúde e Bioética”, AAFDL, 1996, pg. 117).
Feita essa prova, então sim, funciona a presunção de culpa, a impor ao R., como condição de libertação da responsabilidade, que prove que a desconformidade (com os meios que deveriam ter sido usados) não se deveu a culpa sua (por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados), mas já não, por exemplo, que o evento danoso se produziu por causa estranha à sua actuação e/ou qual tenha sido essa causa.

Numa palavra, presume-se a culpa do cumprimento defeituoso, mas não o cumprimento defeituoso, ele mesmo.

Depois, já em sede de culpa, como se escreveu no acórdão de 22/5/03 (proc. 03P912, ITIJ), “o ponto de partida essencial para qualquer acção de responsabilidade médica é a desconformidade da concreta actuação do agente no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na altura”, enfim, uma conduta deficiente, merecedora de reprovação à luz dum correcto e adequado do desempenho profissional, nas concretas circunstâncias.

É esta conformidade de actuação entre a conduta exigível e a conduta efectivamente observada que, provada a desconformidade objectiva, o médico tem de provar, quando confrontado com esta última, enquanto acto ilícito.

Finalmente, em sede de nexo de causalidade, dir-se-á que obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que provavelmente não teriam ocorrido se não fosse a lesão – art. 563º C. Civ..
É pacífico que o nosso sistema jurídico acolheu a doutrina da causalidade adequada, que não pressupõe a exclusividade de uma causa ou condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano.
Por outro lado, o nexo de causalidade que se exige apresenta-se, a um tempo, como pressuposto da responsabilidade e como medida da obrigação de indemnizar e “não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano” no âmbito da aptidão geral ou abstracta desse facto para produzir o dano (vd. A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, I, 9ª ed., 925).

Serão sempre as circunstâncias a definir a adequação da causa, mas sem perder de vista que para a produção do dano pode ter havido a colaboração de outros factos, contemporâneos ou não, e que a causalidade não tem de ser necessariamente directa e imediata, bastando que a acção condicionante desencadeie outra condição que, directamente, suscite o dano – causalidade indirecta.
Aqui cabem, naturalmente, os casos em que a condição directamente operante é um facto do próprio lesado ou de terceiro, designadamente aqueles em que a uma omissão se segue o acto danoso.

Assim entendido o nexo de causalidade, restará, por referência a um juízo de "prognose posterior objectivo" formulado a partir das enunciadas circunstância efectivamente conhecidas e cognoscíveis de um observador experimentado, retirar a pertinente conclusão.

Na responsabilidade em análise, tem de ser provado pelo paciente que certo tratamento ou intervenção foram omitidos ou que os meios utilizados foram deficientes ou errados – determinação dos actos que deviam ter sido praticados e não foram, do conteúdo do dever de prestar - e, por tal ter acontecido, em qualquer fase do processo, se produziu o dano, ou seja, foi produzido um resultado que se não verificaria se outro fosse o acto médico efectivamente praticado ou omitido.

4. 4. - Passando ao caso concreto, temos, na síntese factual utilizada no acórdão impugnado, o seguinte quadro:
A A. contratou os serviços médicos do R., que a assistiu na gravidez e realizou o parto.
Após o parto, o R. constatou que a placenta não saíra totalmente, por ser acreta, a alertou a A. para a possibilidade de terem ficado no útero restos de placenta, caso em que, não sendo expulsos naturalmente, há que provocar a sua saída, fazendo uma raspagem ao útero, se surgirem hemorragias.
Tal veio efectivamente a ocorrer, pelo que o R. constatou a necessidade da curetagem (raspagem), com a finalidade de retirar os restos da placenta que eram causa de dores e hemorragias.
A curetagem, com essa finalidade, foi realizada e, no próprio dia, o R. deu «alta» à A..
Aconteceu, porém, que, ainda no mesmo no dia, de regresso a casa, a A. sentiu muitas dores e, no dia seguinte, teve de novo uma hemorragia.
No dia imediato recorreu a outro médico e a outro hospital, onde se submeteu a exames, apresentando anemia e infecção, a que foi tratada, e realizou, depois, nova curetagem.
Desta curetagem saíram fragmentos de diâmetro inferior a 2cm, com o peso total de 8 gramas, que era possível que viessem a ser expulsos ma menstruação seguinte.

Ora, percorrida a matéria alegada como fundamento da pretensão da A., limitando-se ela, como limita, a remeter para “o dever do R., como profissional de saúde, de efectuar toadas as diligências necessárias para averiguar se existiam ou não restos de placenta no útero, o que não fez, podo em perigo a vida da A.” – arts. 64º e 65º da p.i. -, atribui, se bem interpretamos, a deficiência de actuação do R. à omissão de actos posteriores à curetagem por este realizada, eventualmente, presume-se, exame por ecografia, que seria, admite-se, uma das diligências a que se refere, necessárias para averiguar se existiam ainda restos de placenta.

Seja como for, certo é que nada se alegou relativamente à necessidade de tais diligências não identificadas, como nenhuma desconformidade, deficiência, inadequação ou má execução se provou, ou, tão pouco se alegou, relativamente a toda a sequência de actos praticados pelo Réu, desde a assistência e intervenção no parto até à realização da curetagem.
Sabe-se, é certo, que esta se destinava a retirar os restos da placenta que se sabia subsistirem no útero e que, apesar disso, ali permaneceram ainda fragmentos que, pesando 8 gramas, poderiam ser naturalmente expulsos.
Como se sabe que, dois dias após a raspagem feita pelo R., a A. apresentava ligeira anemia e infecção.
Porém, uma vez mais, nenhuma relação se estabelece entre a estas constatações e os actos praticados pelo R. ou por ele omitidos.

Em vão se procura, na verdade, uma desconformidade entre a actuação do R. e as leges artes, seja por ter praticado a curetagem de forma deficiente - o que, de resto não lhe é imputado, mas apenas omissão de diligências para averiguação da existência de restos de placenta -, seja por ter omitido actos necessários e adequados à atenuação ou superação do estado da Autora, designadamente perante a circunstância de ser portadora de placenta acreta – actos que também, em concreto, não se referem.

Se se alegasse e provasse, por exemplo, que a manutenção dos fragmentos de placenta se deveu a incumprimento das leges artes e que a anemia e infecção detectadas foram dele consequência adequada, então sim, estaria demonstrado o cumprimento defeituoso, funcionando, de pleno, a presunção de culpa.

Diversamente, indemonstrado o incumprimento objectivo dos deveres do médico – a ilicitude-, a questão da prova, por este, da utilização das técnicas adequadas, ou da impossibilidade de as utilizar, em sede de ilisão de culpa, já nem sequer se coloca.

A terminar, resta notar que não há que convocar aqui qualquer dever de vigilância subsequente à prática da curetagem pelo R., tendo em vista reduzir ou afastar o risco de ocorrências anómalas passíveis prejudicarem a saúde do paciente.
Sem prejuízo de se entender que existe um dever de vigilância no período pós intervenção que se funda naquele dever acessório de superar riscos possíveis, certo é que, qualquer que seja o conteúdo, extensão ou densidade desse dever, decerto a determinar casuisticamente, a Autora, confrontada, ainda no mesmo dia, com dores, e, no dia seguinte com a hemorragia, optou por procurar outro médico e outros serviços, inviabilizando, ela mesma, o cumprimento dum tal dever e interrompendo o desenvolvimento do vínculo com o R. no complexo das respectivas obrigações (contratuais).

Surge, a este propósito, um corte do nexo de causalidade, a reflectir-se, não só na responsabilidade, nas se ainda fosse necessário invocá-lo, na obrigação de indemnizar e respectiva medida.

4. 5. - Em conclusão, não concorrem os pressupostos da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar, desde logo a prática de facto ilícito imputável ao Réu.

Por isso, a decisão impugnada não pode subsistir, devendo, antes, repor-se o sentenciado na 1ª Instância.

5. - Decisão.

Em conformidade com o exposto, decide-se:
- Conceder as revistas pedidas pelo Réu e pela interveniente “Axa Portugal, S.A.”;
- Revogar o acórdão recorrido;
- Repor em vigor a sentença proferida na 1.ª Instância; e,
- Condenar a Recorrente nas custas.

Lisboa, 18 Setembro 2007

Alves Velho (relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias