Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
333/09.0TVLSB.L2.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: BANCO
TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA
NEGLIGÊNCIA
CULPA
MANDANTE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 09/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS.
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL / DEPÓSITO.
Doutrina:
- Alberto Luís, Direito Bancário, ed. 1985, p. 165.
- Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos recursos em Processo Civil, 6.ª edição Almedina, Coimbra, p. 256 e nota n.º 318, citando o ac. deste Tribunal de 3.11.92, in BMJ 421, p. 400.
- João Melo Franco e Herlander Antunes Martins, Dicionário de Conceitos e Princípios Jurídicos, Coimbra, 1995, p. 309.
- Paula Ponces Camanho, Do contrato de depósito bancário, p. 146/210.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 669.º, 762.º, N.º2, 770.º, 796.º, N.º1, 798.º, 799.º, N.º1, 800.º, 1185.º, 1205.º, 1206.º.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGOS 407.º.
LEI-QUADRO BANCÁRIA: - ARTIGOS 73.º E SS..
REGIME GERAL DAS INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO E SOCIEDADES FINANCEIRAS (RGIC): - ARTIGOS 73.º A 76.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 19.07.1979 E DE 21.05.1996, IN, RESPECTIVAMENTE, BMJ N.º 289, P. 345 E N.º 457, P. 343.
-DE 24.01.1991, BMJ N.º 403, P. 447.
-DE 18.12.2008, PROCESSO N.º 08B268, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 03.12.2009 E DE 19.04.2012 IN, RESPECTIVAMENTE, PROCESSOS N.OS 588/09.0YFLSB E 376/2002.E1.S1, AMBOS IN WWW.DGSI.PT .
-DE 08.03.2012, PROCESSO N.º 500/08.4TBESP.G1.S1, DISPONÍVEL IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I - Com a celebração do contrato de depósito bancário, o banco obriga-se, designadamente, a prestar ao cliente o serviço de caixa, efectuando os pagamentos solicitados, efectuando a cobrança de valores, as transferências e recepção de fundos por conta do cliente, e lançando em conta-corrente as várias operações que se forem sucedendo.

II – No contexto de transferências efectuadas, aparentemente por ordem do depositante, do que se trata é da movimentação de uma conta que (o banco) tinha à sua guarda, da saída de valores da mesma, o que implica para o depositário a responsabilidade de tal saída, sendo que a mesma só será excluída, caso o mesmo logre justificar essa mesma diminuição do saldo do depositante.

III - Recai, pois, sobre o banco o ónus de prova de que a movimentação da conta em causa só ocorreu por motivo justificado, designadamente porque tinha autorização para o fazer, prova essa que se não verifica se, pelo contrário, se demonstra que as transferências não foram ordenadas pelo depositante e foram efectuadas pelo banco sem a diligência exigível para a verificação da legitimidade da ordem e da verificação da respectiva autoria aparente.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 333/09.0TVLSB.L2.S1[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I ─ AA veio intentar acção de condenação, em processo declarativo comum, sob a forma ordinária, contra o Banco BB, S.A. na qual pede a condenação do R. a repor na conta da A. o montante de € 34.123,70, acrescido de juros à taxa legal, contados desde a data de cada uma das transferências até à efectiva reposição, devendo ainda indemnizar a A. por danos não patrimoniais, para ressarcimento da situação de sofrimento permanente que o R, com o seu comportamento, lhe causou.

Alega sucintamente que é a única titular da conta bancária n.º ..., no balcão do R. na Av.ª …, que incorporou, por fusão, o Banco CC.

Sucede que, em Janeiro de 2009, a A. recebeu um documento que lhe dava conta que tinha sido feita uma transferência da sua conta para o Bank of DD, em Nova Iorque, no valor de € 4.000,00, a favor de EE, que é pessoa que a A. não conhece.

Contactado o R., veio a ser informada que a partir da referida conta haviam sido processadas três transferências no valor de € 34.123,70, a favor da dita pessoa, transferências que a A. nunca ordenou.

Tendo sido solicitado ao R. que repusesse os fundos na sua conta, o mesmo não o fez.

Para além de impedir o uso por parte da A. dos fundos depositados na conta e que indevidamente foram transferidos para terceira pessoa, o comportamento do R. causou à A. sofrimento e stress.

Citado o R, contestou invocando que as transferências em causa foram feitas por ordem da A, tendo o Banco adoptado todos os procedimentos de segurança, concluindo assim pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.

 

Notificada, a A, replicou, mantendo no essencial a posição vertida na petição inicial.

O R. veio ainda suscitar a questão da inadmissibilidade da réplica, ao que a A. deduziu oposição.

Findos os articulados, veio a ser designada data para a realização de audiência preliminar, onde foi decidido ser a réplica admissível e, na sequência, proferido despacho saneador, com selecção da matéria de facto assente e a levar à base instrutória, por decisão de que ambas as partes reclamaram, tendo tais reclamações sido indeferidas, por despacho de fls. 216 a 219.

Admitida a prova requerida, veio a ser designada data para a realização de julgamento, que decorreu com observância das formalidades legais.

Finda a produção de prova, foi dada resposta aos factos que constavam da base instrutória, por decisão de que reclamou o R.

 

As partes apresentaram alegações de direito e, de seguida, foi proferida sentença que absolveu o R. dos pedidos.

Dessa sentença recorreu a A., tendo esse recurso sido decidido por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 782 a 800, que anulou o julgamento, ordenando que se procedesse a um novo julgamento quanto aos quesitos 9.º a 13.º, 19.º, 23.º a 26.º, 28.º a 30.º, 35.º e 36.º.

Regressados os autos à 1.ª instância, foi designada nova data para audiência de julgamento, a qual decorreu com observância das formalidades legais.

Finda a produção de prova, foram respondidos aos factos sobre que incidiu a repetição do julgamento, por decisão de que apenas a A. reclamou, tendo tal reclamação sido oportunamente apreciada.

As partes voltaram a apresentar alegações sobre o aspecto jurídico da causa e, de seguida, foi proferida nova sentença, a absolver o R. dos pedidos.

Inconformada, voltou a apelar a A., tendo esse recurso sido decidido por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6.03.2014 que concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, julgando a acção parcialmente procedente, condenando o banco recorrido a colocar a recorrente na situação em que se encontrava se as transferências da conta da recorrente não tivessem sido ordenadas, restituindo-lhe os respectivos depósitos e reconstituindo os produtos financeiros por ela contratados, acrescidos dos juros, das despesas de transferências e penalizações ilicitamente aplicadas, bem como no pagamento dos juros de mora, à taxa legal, desde a data de cada uma das transferências e até à efectiva reposição e absolvendo-o do pedido de condenação no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais à autora.

 

De tal acórdão veio o R. interpor recurso de revista, recurso que foi admitido.

O recorrente apresentou as suas alegações, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:

A. O douto Acórdão recorrido, revogando a sentença recorrida, veio julgar a acção parcialmente procedente, condenando o ora Recorrente a "colocar a recorrente [aqui Recorrida] na situação em que se encontrava se as transferências da conta da recorrente não tivessem sido ordenadas, restituindo à recorrente os respectivos depósitos e reconstituindo os produtos financeiros contratados pela recorrente, acrescidos dos juros, das despesas de transferência e ilicitamente aplicadas, bem como no pagamento de juros de mora, à taxa legal, desde a data de cada uma das transferências e até à efectiva reposição".

B. Salvo o devido respeito, o douto Acórdão recorrido, decidindo como decidiu, apreciou de forma errada os termos da presente acção, face à prova produzida em audiência de julgamento e fixada assente e ao teor dos documentos aportados aos autos relevantes para a decisão de mérito.

C. A ora Recorrida peticionou a condenação do R. a repor na conta da A. o montante de € 34.123,70, acrescido de juros à taxa legal, contados desde a data de cada uma das transferências até à efectiva reposição, devendo ainda indemnizar a A. por danos não patrimoniais, para ressarcimento da situação de sofrimento permanente que a R. com o seu comportamento causou.

D. O douto Acórdão recorrido entendeu, contraditando o decidido em primeira instância, que do cotejo da matéria factual assente, que o "recorrido [aqui Recorrente] não cumpriu com a sua obrigação de agir com especial diligência e cuidado nas referidas operações em que procedeu às três transferências efectuadas, tendo contribuído objectivamente para o resultado verificado, ou seja, desmobilizado as aplicações financeiras da recorrente e transferido o respectivo montante para a conta n.º … ABA … no Bank of DD, nos EUA (Estados Unidos da América) em nome de EE".

E. Certo é que a asserção retirada resulta de uma apreciação selectiva e de prognose dos elementos documentais existentes nos autos, carecendo de valorar a profusa matéria de facto assente nos presentes autos, maxime todas as diligências encetadas pelo Apelado no sentido de confirmar os elementos necessários para a realização das transferências à data e no contexto em que tais eventos ocorreram.

F. A ponderação feita estende de forma irrazoável e inconcretizável no tempo e lugar em que a mesma teria de ter ocorrido, o dever de diligência imposto ao Recorrente para o cumprimento das obrigações que decorrem do serviço bancário que presta.

G. Na verdade, ficou provado que o Recorrente usou e procedeu com toda a diligência, dado o processo de verificação que encetou, convencido que estava que foi a Recorrida quem deu as ordens de transferência,

H. E mostra-se amplamente demonstrado que o Recorrente "agiu convencido de que estava a cumprir uma ordem legítima provinda da própria A. e, para tanto, teve o cuidado de não se bastar com a comunicação feita por via telefónica, tendo solicitado que essa ordem fosse confirmada por escrito, o que veio a acontecer das 3 vezes, conforme documentos de fls. 158, 162 e 164”.

I. E mais, "relativamente à segunda dessas confirmações por escrito, que era de maior valor, o funcionário do R. terá mesmo exigido que a assinatura da A. fosse reconhecida pelas autoridades consulares, o que ficou a constar de fls 162."

J. O Recorrente agiu assim julgando que estava a cumprir legitimamente um dever emergente do próprio contrato de depósito bancário,

K. Face ao que decorre do dever de diligência inscrito nos dispositivos legais que regem a actividade bancária, constata-se ex abundanti que o Recorrente tudo fez para confirmar a legitimidade das ordens de transferência,

L. O comportamento adoptado superou os normais padrões de exigibilidade contidos nos usos bancários e largamente superou o critério do "bonus pater famílias".

M. Sendo também relevante o facto de a Recorrida, alertada para a situação pelo contacto telefónico ocorrido, ter negligenciado a promoção das diligências necessárias para fazer cessar as transferências, contribuindo, assim, decisivamente, e por culpa sua, para a ocorrência das mesmas.

N. A colocação desta bitola de exigência no patamar idealmente conceptualizado pela Doutrina e pela Jurisprudência tem de estar confortada com factos que, de maneira indubitável, exijam ao prestador de serviços bancários um comportamento diverso, mais exigente e adequado à sua especialidade profissional.

O. Tal, porém, deverá provir de factos que, conferidos no tempo e lugar em que ocorreram, determinassem, de forma evidente ao julgador, a possibilidade de comportamento diverso face às circunstâncias.

P. O juízo censório do douto Acórdão recorrido provém, porém, não só de um juízo de prognose posterior, mas também da ponderação conjunta de todos os elementos probatórios carreados, o que, salvo melhor opinião, distorce a necessidade de filtrar tal juízo de acordo com as circunstâncias concretas do tempo e do lugar em que os eventos ocorreram.

Q. Doutro modo, estaríamos sempre perante uma inevitabilidade de impossibilidade de afastamento da presunção de culpa na medida em que a mera existência de um resultado prejudicial para o lesado, determina não só a elevação dos padrões de aferição mas também o cotejo das circunstâncias, efectuado de forma global e ponderando, em momento posterior e distanciado, premissas factuais que, no momento da ocorrência dos factos, não poderiam ser tomadas em consideração pelos protagonistas dos mesmos.

R. É, pois, incontestável a leitura, já presente em sede de primeira instância, que o Recorrente agiu em erro sobre a legitimidade das ordens de transferência que executou e que tal erro, nos termos conjugados do disposto nos artigos 338º e 799º, ambos do C.C., é desculpável.

S. E ainda que se descole do critério do bom pai de família e se alavanque o critério para o do profissional qualificado, a sorte dos factos ditará que, perante este conjunto factual, no tempo e no lugar em que ocorreram, comportamento diverso não poderia ser exigido, na medida em que as necessidades de segurança e certeza na formalização das operações bancárias não são, nem à luz do direito, nem perante a vida real e concreta, obstáculos inamovíveis ao ponto de impedir a normal prossecução e execução do comércio jurídico-‑bancário.

T. Os cuidados e a diligência que foram observados correspondem ao comportamento foram e são conformes às boas práticas bancárias, pelo que decidindo como decidiu o douto Acórdão recorrido violou o preceituado no artigo 799º, n.º 1 do CC e os artigos 73º a 76º do RGIC (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras).

U. Acresce ainda que, ao contrário do entendido pelo douto Acórdão recorrido, não é aplicável a disciplina contida nos artigos 769º e 770º, todos do C.C.

V. Na verdade, não decorre da matéria de facto dada como provada que as transferências hajam sido realizadas a favor de terceiro, nos termos alegados pela Recorrida.

X. O que se mostrou provado é que a Recorrida comunicou ao Recorrente que não terá sido a própria a ordenar as ditas transferências, nada mais. A Apelante não fez a prova de qualquer participação criminal ou de outra índole relativa aos factos em apreço e às alegadas transferências fraudulentas contra o alegado terceiro supostamente beneficiário das mesmas.

Y. A Apelante não fez a prova, que lhe competia, de que a prestação foi feita a pessoa diversa do credor ou que esta não foi por si ratificada ou consentida

Z. Na verdade, o que ressalta dos autos é que o Recorrente confirmou inequivocamente que as transferências se realizaram com a confirmação da identidade da Recorrida como sua ordenante.

AA. E a Recorrida apenas fez a prova de que comunicou não ter sido ela a ordená-las.

BB. Ora, o regime da prestação a terceiro não liberatória exige, de forma concludente, a prova de que o beneficiário da prestação não foi o credor ou alguém por si autorizado para tal.

CC. O que a Recorrida se limitou a demonstrar foi apenas e tão só a realização das transferências e que comunicou ao Recorrente não ter sido a própria a ordená-Ias por inexistência de factos concretos e assentes que permitam continuar a avaliação da matéria sub judice para este patamar que, aliás, não foi alegado pela Recorrida em momento algum com excepção das doutas alegações de recurso de apelação.

DD. Sem a alegação no momento adequado e sem a sindicância de factos com vista à conferência de tal asserção não pode, por ilegal, o Acórdão recorrido subverter o sentido da decisão de primeira instância com base na aplicação do regime contido nos artigos 769º e 770º do Código Civil.

EE. Pelo que, também por esta via, decidindo como decidiu, o douto Acórdão recorrido violou o preceituado nos artigos 769º e 770º do CPC (sic) e bem assim o disposto nos artigos 264º, n.º 2 e 273º do CPC na sua pretérita versão.

Pede que se dê provimento ao recurso com as legais consequências.

A A. apresentou contralegações, sustentando a bondade do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

II.A. De Facto

Da discussão da causa na 1.ª instância resultaram provados os seguintes factos:

1) A A. é titular da conta bancária nº ... no Balcão do Banco R., na Avª ... (al. A) dos factos assentes);

2) A conta foi aberta em 24.03.1993 no Banco CC que se fundiu com o R. (al. B) dos factos assentes);

3) A conta foi aberta por influência do pai da A. (al. C) dos factos assentes);

4) Por depositar confiança no Banco R. a A. confiou-lhe parte das suas poupanças (al. D) dos factos assentes);

5) A A. reside em São Paulo, no Brasil (al. E) dos factos assentes);

6) Em Setembro de 2008 após contacto entre as partes foi aceite pela A. a subscrição de PPR Dinâmico, Gestão Discricionária de Carteiras e Global Investment (al. F) dos factos assentes);

7) Da conta referida em 1) foram processadas as seguintes transferências:

– no dia 20.11.2008 – € 8.033,38;

– no dia 10.12.2008 – € 22.057,20;

– no dia 29.12.2008 – € 4.033,28 (al. G) dos factos assentes);

8) Após as transferências referidas em 7) o saldo remanescente era de € 1.200,14 (al. H) dos factos assentes);

9) A gerente do R. enviou à A. por fax de 14.01.09 o documento junto a fls. 18 (al. I) dos factos assentes);

10) Com data de 20.01.2009 a A. recebeu carta do R. solicitando a sua presença no escritório do BBB fazendo-se acompanhar dos seus documentos de identificação originais e de cópia certificada a que não respondeu (al. J) dos factos assentes);

11) No dia 04.02.2009 a A. interpelou o Banco para que procedesse à reposição dos fundos referidos em 7), no prazo de 24 horas, o que o R. não fez (al. L) dos factos assentes);

12) Em 06.02.2009 o R. envia à A. e-mail em que para além do mais consta: “No âmbito da reclamação por si apresentada junto do escritório de representação do BBB em S. Paulo, venho pela presente informá-la de que a respectiva análise transitou para o Gabinete de Inspecção do Departamento de Auditoria Interna do BBB, pelo que estão em curso diligências no sentido de apurar responsabilidades na execução das transferências ora reclamadas” (al. M) dos factos assentes);

13) A A. recebeu o documento junto a fls 14, datado de 08.01.2009, que lhe dava conta de que tinha sido feita uma transferência da sua conta para o Bank of DD, em Nova Iorque, no valor de € 4.000,00 a favor de EE (Resposta ao 1º da base instrutória);

14) Após tal recepção a A. contactou o R., enviando-lhe e-mail que junta a fls 15, informando de que não emitiu qualquer ordem de pagamento e desconhece o beneficiário (Resposta ao 3º da base instrutória);

15) Em 14.01.2009 a A. telefonou para o banco, tendo sido informada por FF que haviam sido processadas as transferências referidas em 7) e que as mesmas haviam sido ordenadas via telefone (Resposta ao 4º e 5º da base instrutória);

16) A A. informou o R. de que não havia ordenado qualquer transferência, solicitando a imediata reposição dos fundos (Resposta ao 6º da base instrutória);

17) A A. perdeu a confiança que depositava no R. (Resposta ao 8º da base instrutória);

18) Em Novembro de 2008 houve um contacto telefónico por parte de alguém que se identificou como sendo a A. para o balcão do R., na Av. ..., em Lisboa, que foi atendido pelo seu funcionário GG, tendo aquela outra pessoa indicado o nome completo da A. como sendo o seu e, bem assim, o nº da conta bancária … e os saldos aí existentes como sendo da A. (Resposta ao 9º, 10º e 11º da base instrutória);

19) Ao introduzir tal número no sistema informático o funcionário automaticamente o associou à conta da A. …, confirmando que a pessoa que deu indicação daquele número conhecia em concreto aquela anterior aplicação associada à conta … (Resposta ao 12º da base instrutória);

20) O nº … indicado pela pessoa que se identificou como sendo a A. corresponde a uma conta associada à conta … e refere-se a uma aplicação que a A. possuiu no banco R. (Resposta ao 13º da base instrutória);

21) Pela pessoa que fez o contacto telefónico referido em 18), foi dito àquele funcionário que pretendia fazer uma transferência de € 8.000,00 sobre a sua conta bancária e solicitou informação como deveria proceder (Resposta ao 15º da base instrutória);

22) Tendo sido informada, naquele momento, por aquele funcionário que seria penalizada se fizesse o resgate antecipado daquela quantia, tendo tal pessoa persistido na concretização da transferência (Resposta ao 16º e 17º da base instrutória);

23) O funcionário comunicou à pessoa que fez o contacto telefónico que remetesse ao R. as suas instruções por escrito, com a sua assinatura reconhecida e acompanhadas da cópia de uma identificação pessoal (Resposta ao 18º da base instrutória);

24) O R. recebeu por fax, no dia 7 de Novembro de 2008, a comunicação constante de fls 158, tendo mais tarde, em data não apurada, recebido a de fls 159 como correspondendo ao original de fls. 158 (Resposta ao 19º da base instrutória);

25) Foi com base nas instruções recebidas por via telefónica, aquando do contacto mencionado em 18), e ainda na comunicação de fls 158, datada de 6 de Novembro de 2008 e recebida pelo R. no dia seguinte, que foram desmobilizadas aplicações financeiras e no dia 20.11.2008 operada a transferência do montante de € 8.033,28 (cfr. doc. de fls 16) para a conta nº … ABA … no Bank of DD, nos EUA (Estados Unido da América) em nome de EE (Resposta ao 23º e 24º da base instrutória);

26) Foi feito novo contacto telefónico para o banco R., para o funcionário GG, aparentemente pela mesma pessoa que fez o contacto mencionado em 18), tendo esta manifestado vontade de pretender fazer outra transferência, desta vez de € 22.000,00, informando que a ordem seguiria por fax e após seria remetido o original (Resposta ao 25º da base instrutória);

27) O R., dado o valor da transferência exigiu da A. que esta obtivesse o reconhecimento da assinatura no Consulado de Portugal (Resposta ao 26º da base instrutória);

28) Para o efeito foi remetido à R. a comunicação constante de fls. 162, sendo que mais tarde foi remetida a comunicação de fls. 163, que a R. recepcionou, pensando tratar-se do original de fls. 162 (Resposta ao 28º da base instrutória);

29) Voltou a ser feito novo contacto telefónico para o banco R., aparentemente pela mesma pessoa que fez os outros contactos mencionados em 18) e 26), o qual foi uma vez mais atendido pelo funcionário do R., GG, pretendendo-se então que se fizesse uma nova transferência de € 4.000,00 (Resposta ao 29º da base instrutória);

30) Para esse efeito foi remetido ao R. a comunicação constante de fls. 164, tendo mais tarde sido recepcionada pelo R. a comunicação de fls. 165 como sendo o original de fls. 164 (Resposta ao 30º da base instrutória);

31) Tendo sido dispensado pelo R. neste caso o reconhecimento da assinatura em face dos contactos telefónicos ocorridos e a convicção do R. de que estava a lidar com a A. (Resposta ao 31º da base instrutória);

32) Pelo menos uma vez o R., através do funcionário GG, fez um contacto telefónico através do número de telefone existente no sistema informático (Resposta ao 33º da base instrutória);

33) Antes de cumprir as transferências que haviam sido solicitadas ao R., este conferiu por semelhança, com as assinaturas constantes das fichas de Abertura de Conta de fls. 129 e 130, as assinaturas que constavam das comunicações de fls. 158, 162 e 164, que havia recebido para esse efeito (Resposta ao 35º da base instrutória);

34) No documento de identificação da A. constante de fls. 50 (correspondente ao de fls. 160), consta o nº de registo geral “… – 6”, onde estão os dados de identificação da titular, o número de identificação “ID: 2-L …” (Resposta ao 36º da base instrutória).

II.B. De Direito

II.B.1. Como se sabe, o âmbito do objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.º 684.º. n.º 3, e 690.º, n.os 1 e 3, do CPC), importando ainda decidir as questões nela colocadas e bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – art.º 660.º, n.º 2, também do CPC.

Assim, a única questão a analisar é relativa ao incumprimento pelo Banco do dos deveres decorrentes do contrato de depósito e as consequências daí decorrentes.

II.B.2. Preliminarmente cabe dizer que:

A abertura de uma conta é, normalmente, a génese da relação bancária complexa entre o banqueiro e o seu cliente, traçando o “cenário” factual e legal do seu relacionamento, o qual se deve pautar por deveres de conduta, derivados da boa-fé, dos usos bancários ou dos acordos particulares que celebrarem, à luz do princípio da liberdade contratual.

O contrato de depósito bancário é geralmente definido como aquele “pelo qual uma pessoa entrega uma determinada quantidade de dinheiro a um banco, que adquire a respectiva propriedade e se obriga a restitui-lo no fim do prazo convencionado ou a pedido do depositante, mediante solicitação do depositante, nas condições previamente acordadas (Alberto Luís, Direito Bancário, ed. 1985, p. 165; João Melo Franco e Herlander Antunes Martins, Dicionário de Conceitos e Princípios Jurídicos, Coimbra, 1995, p. 309).

Desta noção poderemos desde logo concluir que o contrato de depósito bancário é um contrato real, “quoad constitutionem”, porque a sua constituição exige a entrega de dinheiro, ou seja, a transferência da propriedade do dinheiro do depositante para o banco.

Em resumo, o contrato de depósito bancário é um contrato real, cuja perfeição só se alcança através da prática material da entrega de dinheiro (artigos 1185.º, 1205.º e 1206.º do Código Civil).

O contrato de depósito bancário é um negócio jurídico bilateral, com a natureza de depósito irregular, quando tenha por objecto o depósito de fundos, com interesses quer do cliente quer do banco (PAULA PONCES CAMANHO, Do contrato de depósito bancário, p. 146/210).

Embora seja este o entendimento maioritário, há também quem o considere como contrato atípico e inominado, devendo, por isso, aplicar-se-lhe, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo (vide, entre outros, os acórdãos deste Tribunal de 19.07.79 e de 21.05.96, in, respectivamente, BMJ n.º 289, p. 345 e n.º 457, p. 343).

Do contrato de depósito resulta, grosso modo, a obrigação para o depositário de guardar a quantia depositada e de a restituir (outro tanto em género e qualidade) quando for pedida. (PAULA PONCES CAMANHO, op. cit., p 176).

Por outro lado, a utilização pelo banco dos montantes depositados, legalmente permitida e constitutiva da própria noção do depósito bancário, deve pautar-se pelas normas de utilização dos depósitos e pelas respectivas normas estatutárias ou usos bancários a que alude o art. 407º do C.Comercial, não podendo o banco, sem expressa anuência do depositante, dar-lhe outro fim diferente daqueles.

“Sendo certo que existem diversas teses no que tange à qualificação e regime jurídico do depósito bancário, adere-se ao entendimento de acordo com o qual o depósito bancário constitui uma operação que interessa ao depositário, ao depositante e à própria organização social enquanto entidade produtora de riqueza e bem-estar. Em tal operação figura, como intermediário activo e directamente interessado, o depositário que, por isso, tem que fornecer ao depositante a necessária imagem de confiança sem a qual o depositante não lhe faculta os seus capitais. E um dos aspectos mais relevantes dessa imagem de confiança é a certeza de que o depositário assegura ao depositante a restituição do capital e acrescido, nos termos do depósito contratado.”

A realização do depósito bancário (designadamente nos depósitos à ordem) dá origem à abertura de uma conta, na qual se vão registando as entregas feitas pelo cliente, ao abrigo do contrato de depósito, bem como todos os levantamentos, representando essa conta a expressão contabilística do depósito.

O banco que recebe os valores fica obrigado à restituição do saldo existente, (quando solicitado e de acordo com as cláusulas contratuais acordadas) e obrigado à guarda e manutenção da integralidade dos fundos. Apesar de poder haver, e normalmente há, várias entregas de valores, estas não dão lugar a novos contratos de depósito; essas operações (entregas e levantamentos) integram-se num só contrato, gerando créditos de que o “banco e o cliente (…) reciprocamente são titulares, de modo que, se o saldo é credor, o banco apenas deve tal saldo e não cada uma das parcelas, em numerário ou não, que foram sucessivamente creditadas ao cliente; se o saldo é devedor, é o cliente que o deve” (ac. do STJ de 24 de Janeiro de 1991, BMJ n.º 403, p. 447).

E é igualmente incontroverso que, a R. se faltar ao cumprimento do das suas obrigações contratuais, incorre em responsabilidade civil contratual perante a A., na forma estabelecida nos arts. 798.º e 800.º do CCivil, sendo, aliás, a sua culpa de presumir, nos termos do art. 799.º do CPC.

II.B.3. Depois destas considerações prévias, passaremos a abordar especificamente a tese do recorrente.

Quanto à culpa do banco R. ora recorrente, a 1.ª instância considerou verificada a exclusão da mesma por o banco, face ao conjunto das circunstâncias em que agiu, ter sido motivado por erro desculpável e, consequentemente, ter ficado desonerado da responsabilidade de indemnizar a autora.

Já não entendeu, assim, a Relação que considerou ter o recorrido agido de forma negligente no que respeita ao cumprimento do dever de verificação da legitimidade da pessoa que se apresentou a ordenar as transferências bancárias, uma vez que, se por um lado teve em consideração apenas o contacto telefónico, por outro lado conferiu por semelhança, com as assinaturas constantes das fichas de Abertura de Conta de fls. 129 e 130, as assinaturas que constavam das comunicações de fls. 158, 162 e 164, não as tendo conferido com os originais de tais comunicações que recebeu.

Pode entender-se que a Relação extraiu da matéria de facto provada ilações de facto, isto é, que a confirmação das ordens de transferência e da sua autoria foi feita de uma forma mecânica, formal, sem nenhuma atenção aos sinais evidentes de que se podia estar perante uma fraude.

Disse-se no acórdão recorrido:

“Como supra se referiu, os documentos constantes de fls. 162 e fls. 163, recebidos pelo recorrido, tendo o de fls. 163 sido considerado como o original de fls. 162, quando confrontados permitem verificar que não são iguais, sendo manifesta a falta de correspondência literal entre ambos, o que permite concluir que um não é cópia do outro, sendo tal falsificação imperfeita, grosseira, do doc. de fls. 163.

O mesmo acontece com o doc. de fls. 159, tido como original do doc. de fls. 158, que, confrontado com o doc. de fls. 163, tido também como original, ao contrário do doc. de fls. 163, apresenta um selo autocolante do 1º Tabelionato de Notas de São Leopoldo apresenta uma mera cópia do selo do 1º Tabelionato de Notas de São Leopoldo e não um selo autocolante, o que, como se disse, se detecta por simples exame táctil do documento.

Por outro lado, no doc. de fls. 163, tido como original, a data constante do selo autocolante do 1º Tabelionato de Notas de São Leopoldo é de 26.11.2008, sendo esta data posterior à data do reconhecimento consular – 25.11.2008 – quando o reconhecimento do Consulado Português sempre teria de ser ou do mesmo dia do reconhecimento efectuado pelo Tabelionato de Notas de São Leopoldo ou em dia posterior, mas nunca em dia anterior, uma vez que o Consulado Português só poderia reconhecer o que o Tabelionato de Notas de São Leopoldo tivesse previamente reconhecido.

Ora, a exigência de reconhecimento notarial e consular da respectiva assinatura da recorrente visava assegurar a sua identidade e respectiva legitimidade para as ordens de transferências.

Todavia, apurou-se nos autos que o recorrido conferiu por semelhança, com as assinaturas constantes das fichas de Abertura de Conta de fls. 129 e 130, as assinaturas que constavam das comunicações de fls. 158, 162 e 164 não as tendo conferido com os originais de tais comunicações que recebeu.

Não demonstrou o recorrido, nos autos, ter procedido ao exame dos documentos tidos por originais, tendo-se limitado, face aos contactos telefónicos, a conferir por semelhança, com as assinaturas constantes das fichas de Abertura de Conta de fls. 129 e 130, as assinaturas que constavam das comunicações de fls. 158, 162 e 164, sendo que também não as conferiu com as dos originais de tais comunicações.”

Do que vem dito, sendo todos os elementos referidos visíveis, podiam e deviam ter sido detectados pelos funcionários do Banco que com tais documentos lidaram, desde que tivessem agido “com diligência e especial cuidado nas operações bancárias ordenadas por clientes que não estão presentes, porquanto o risco de fraude é evidentemente maior”, tal como se referiu na sentença recorrida.

Não foi isso que aconteceu, pois o funcionário bancário que procedeu às transferências não cumpriu com a sua obrigação de agir com especial diligência e cuidado nas operações em que procedeu às três transferências efectuadas, tendo contribuído objectivamente para o resultado verificado, ou seja, desmobilizado as aplicações financeiras da recorrente e transferido o respectivo montante para a conta nº … ABA … no Bank of DD, nos EUA (Estados Unido da América) em nome de EE.

 

Às entidades que exercem profissionalmente o comércio bancário exige-se cuidado e rigor na identificação das pessoas que se apresentam como ordenantes de movimentos das contas bancárias, mormente quando o pedido é feito por telefone, através de chamadas internacionais e não presencialmente, e que a transferência é para pessoa diferente do titular da conta, sendo este tipo de movimentos os que demandam maior cuidado, por serem os que propiciam mais facilmente as fraudes e a perda do controle do dinheiro.

Nas duas primeiras transferências o banco solicitou que as instruções fossem apresentadas por escrito e com a sua assinatura reconhecida e acompanhadas da cópia da identificação pessoal.

Na 2.ª transferência, a de maior montante, exigiu ainda que o reconhecimento da assinatura fosse confirmado pelo Consulado de Portugal.

No entanto, tais exigências traduziram-se em meras formalidades burocráticas, uma vez que a finalidade visada pelas mesmas, de confirmação da legitimidade do mandante e da autenticidade da ordem, não foi atingida, quando uma mera análise dos documentos enviados implicaria a recusa da efectivação das transferências.

Na 3.ª transferência prescindiu-se de formalidades, dando-se por adquirido o que faltava demonstrar.

Assim agindo, de forma negligente, descuidada e ligeira, contribuiu o banco para o logro de que foi objecto, não se verificando qualquer erro desculpável, erro esse que pressuporia que as fraudes e falsificações utilizadas seriam difíceis de detectar, para quem se comportasse com a diligência exigível.

A Relação entendeu, e bem, ter agido o Réu com culpa, porquanto a sua conduta é merecedora de reprovação e censura do direito, face à sua capacidade e perante as circunstâncias concretas e especiais da situação em apreço.

Entendimento que só podemos sufragar, pois a matéria de culpa é matéria de direito que se integra na competência do STJ (FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos recursos em Processo Civil, 6.ª edição Almedina, Coimbra, p. 256), sendo que a diligência exigível se apura, em abstracto, em conformidade com o género de actividade desenvolvida e, sendo esta uma actividade profissional, em referência ao nível técnico e à perícia de um bom profissional na actividade em causa (ibidem, nota n.º 318, citando o ac. deste Tribunal de 3.11.92, in BMJ 421, p. 400).

Tendo isto por incontroverso, isto é, que se provou a culpa do R. no caso em apreço, não seria diverso o resultado se se optasse por fazer apelo ao disposto no art.º 799.º, n.º 1, do CC: que, na responsabilidade contratual, faz recair sobre o devedor a prova de que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.

Não tendo o Banco logrado provar ter feito tudo o que estava ao seu alcance para evitar as transferências, sempre a responsabilidade seria sua.

Tomaremos em consideração o Ac. do STJ de 18.12.08, in Proc. 08B2688, disponível in www.dgsi.pt, que transcreveremos em grande parte:

«Os Bancos são entidades legalmente habilitadas a praticar profissionalmente actos bancários. E a referência ao carácter profissional da sua actividade significa, antes de mais, que se trata de uma prática habitual – o banco não se limita à prática de actos bancários ocasionais ou isolados, mas sim à sua prática em cadeia, em sequência articulada – lucrativa, isto é, que visa a obtenção de lucros, de proventos, assentando, por isso, numa organização empresarial – e tendencialmente exclusiva, do ponto em que só pode ser exercida por certas entidades (as instituições de crédito, categoria em que se englobam), que, em princípio, só devem exercer a actividade bancária (e não qualquer outra, ou mais qualquer outra).

Estas características obrigam as instituições bancárias a adoptar uma orgânica própria e muito especializada, que possa responder, com eficácia, ao complexo de deveres a que estão vinculadas, e que têm a ver, no sector bancário, não só com preocupações de política económica, de salvaguarda do sistema, mas também com a tutela dos direitos e interesses dos clientes.

O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGIC) contém mesmo um complexo de normas relativas às regras de conduta do banqueiro, aí sendo destacadas, no que tange a deveres gerais, regras respeitantes à competência técnica, às relações com os clientes, ao dever de informação e ao critério de diligência (arts. 73º a 76º).

A competência técnica (art. 73º) tem subjacente deveres de qualidade e de eficiência: o banqueiro deve assegurar ao cliente, em todas as actividades que exerça, “elevados níveis de competência técnica”, devendo, para a consecução de tal objectivo, dotar a sua organização empresarial “com os meios materiais e humanos necessários para realizar condições apropriadas de qualidade e eficiência”.

No tocante às relações com os clientes (art. 74.º) vem referenciado o dever de adopção, por parte do banqueiro, enquanto instituição, de procedimentos de diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados.

E quanto ao critério de diligência (art. 76.º), também referenciando o banqueiro enquanto instituição, aponta ele para o modelo do banqueiro criterioso e ordenado, no que pode ver-se a recuperação, com fins bancários, da figura do bonus paterfamilias, prudente, ordenado e dedicado ().

A relação de clientela, estabelecida entre uma instituição bancária e o cliente, surge normalmente com a celebração de um contrato de abertura de conta de depósito, e intensifica-se ao longo do tempo, transformando-se numa relação contínua, assente na estreita confiança pessoal entre as partes, e que, podendo ser preenchida com os mais diversos negócios, mantém, todavia, uma certa unidade.

A relação bancária tem, pois, origem contratual. É certo que, celebrado o acordo inicial, intervêm e logram depois aplicação regras legais, ou fundadas nos usos ou em cláusulas contratuais gerais – mas a natureza contratual subsiste, configurando-se como uma relação contratual duradoura.

E entre as partes – banqueiro e cliente – haverá deveres de conduta, decorrentes da boa-fé, em articulação com os usos ou os acordos parcelares que venham a celebrar, designadamente deveres de lealdade, com especial incidência sobre a parte profissional, o banqueiro.

Como decorre do que já ficou referido, este fica vinculado a deveres de actuação conformes com aquilo que é expectável da parte de um profissional tecnicamente competente, que conhece e domina as regras da ars bancaria, e que deve ter na mira a defesa e o respeito dos interesses do seu cliente. A tutela da confiança é um dos valores fundamentais a ter em conta no desenvolvimento da relação bancária, tal como acima a definimos.

Assim, na relação contratual bancária, importa salientar, a par de outros, os seguintes aspectos:

– há um fundamental dever de prestação de serviços, no qual se insere, designadamente, a obrigação de o banco «colocar à disposição do cliente a respectiva estrutura organizativo-funcional, em ordem à execução de tarefas de tipo variado» no âmbito da actividade bancário-financeira;

– o já assinalado carácter profissional e a competência técnica da sua organização impõem ao banco «uma obrigação de acautelamento de interesses do cliente, no que respeita a todos os assuntos de carácter bancário-financeiro» e implicam, neste particular domínio, «uma continuada promoção e vigilância dos interesses do cliente» ().

E, como escreveu CALVÃO DA SILVA, «esta especial relação obrigacional complexa, de confiança mútua e dominada pelo intuitus personae», imporá à instituição financeira, mesmo no silêncio do contrato, «padrões profissionais e éticos elevados numa política de “conhece o teu cliente”, traduzidos em deveres de protecção dos legítimos interesses do cliente, em consonância com os ditames da boa fé (art. 762º, n.º 2 do Cód. Civil; arts. 73º e segs. da Lei-Quadro bancária): deveres de diligência e cuidado, deveres de alerta, aviso, advertência e prevenção para certos riscos e sua repartição, deveres de informação, deveres de discrição, sigilo ou segredo profissional, cuja inobservância ou violação poderá pôr em causa a uberrima fides do cliente e o intuitus personae da relação e assim originar a responsabilidade de instituição financeira imprudente ou não diligente».

 

No que concerne ao caso sub judicio, verifica-se que entre o banco recorrente, e a recorrida foi celebrado um contrato de depósito bancário – contrato que servia de base e de suporte a diversas operações do cliente (a agora recorrida) na sua relação duradoura com o banco, que àquela presta um conjunto de serviços.

 

Com a celebração deste contrato, o banco obriga-se, designadamente, a prestar ao cliente o serviço de caixa, efectuando os pagamentos solicitados, efectuando a cobrança de valores, as transferências e recepção de fundos por conta do cliente, e lançando em conta-corrente as várias operações que se forem sucedendo.

Um dos aspectos deste serviço de caixa é, pois, a efectivação, pelo banco, das transferências ordenadas pelo cliente.

A defesa e o respeito dos interesses do seu cliente, a obrigação de acautelamento dos interesses deste, no quadro relacional a que acima fizemos alargada referência, impõem ao banco, dotado de meios humanos e técnicos de elevada competência e eficiência, que também neste domínio, aja com elevados padrões de diligência e cuidado, de modo a não fazer transferências da conta de depósitos do cliente sem estar seguro de que tais transferências são queridas e ordenadas por este. E, embora os actos concretos de transferência de fundos não estejam sujeitos a qualquer forma específica, nada impedindo que o banco execute, por exemplo, uma ordem de transferência dada por telefone, uma coisa parece certa: a transferência de fundos pressupõe uma ordem do titular da conta de depósito, pelo que, não demonstrado este pressuposto, a responsabilidade recai sobre o banqueiro.

Como refere a Relação, “neste contexto, do que se trata é da movimentação de uma conta que (o banco) tinha à sua guarda, da saída de valores da mesma, o que implica para o depositário a responsabilidade de tal saída, sendo que a mesma só será excluída caso o mesmo logre justificar essa mesma diminuição do saldo do depositante.

Recai, pois, sobre o banco o ónus de prova de que a movimentação da conta em causa só ocorreu por motivo justificado, designadamente porque tinha autorização para o fazer.”

Não pode, assim, o banco sustentar que efectuou as transferências de boa-‑fé, convicto da sua regularidade, porque as regras da ars bancaria e os interesses do seu cliente não abonam essa asserção: seria fazer reverter em seu benefício a sua própria negligência ou imprudência e falta de competência técnica.

Não pode contrapor neste caso qualquer passividade da A, porquanto só tendo recebido comunicação, datada de 8.1.2009 sobre a última transferência efectuada, logo de seguida comunicou ao R. que não tinha emitido qualquer ordem de transferência e desconhecia o destinatário.

Cremos que não faz, de facto, sentido a invocação do disposto nos artigos 669.º e 770.º do CC, porquanto não se está perante o cumprimento de prestação feita a terceiro, isto é, alguém que não é o credor ou o seu representado.

Está-se perante transferências não ordenada pelo depositante e efectuadas pelo banco sem a diligência exigível para a verificação da legitimidade da ordem e da verificação da respectiva autoria aparente.

No mesmo sentido vejam-se os acórdãos deste Tribunal de 03.12.2009 e de 19.04.12 in, respectivamente, processos n.os 588/09.0YFLSB e 376/2002.E1.S1, ambos in www.dgsi.pt.

No primeiro destes afirma-se:

«Como se refere de forma correcta na douta sentença de 1ª instância, “exercendo os bancos uma actividade que se traduz, além do mais, na guarda de numerário e de outros valores, são responsáveis pela conjugação de meios humanos e materiais que evitem os efeitos de comportamentos ilícitos, tanto mais que, tendo em conta o modo como se encontra organizada a actividade bancária, a gestão de recursos, a verificação de formalismo das operações bancárias e contabilísticas e o controle de erros ou fraudes constituem tarefas da sua exclusiva responsabilidade”.

E mais adiante:

«Ultimamente o STJ foi chamado a pronunciar-se sobre questões idênticas à dos autos, tendo decidido, de forma persistente em idêntico sentido, isto é, o banco só ilide a presunção de culpa no pagamento de cheques falsificados se provar culpa do cliente, já que lhe é exigível um graus elevado de meios técnicos de preparação para detectar falsificações (). Em sentido semelhante defende Sofia Galvão que é dever essencial absoluto da entidade bancária a verificação da assinatura, sendo que “o Banco só se liberta da responsabilidade se conseguir provar que, mesmo cumprindo escrupulosamente tal dever, não podia ter dado pela falsificação”».

E, finalmente, perspectivando a questão de uma forma diferente, mas reconduzindo-a à responsabilização do banco, mesmo sem culpa, diz-se no Acórdão do STJ de 08.03.2012, in Proc. 500/08.4TBESP.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt:

«A principal obrigação do depositário no depósito bancário é conservar disponível, nos termos contratuais, o valor depositado. Mas dificilmente se poderá dizer aqui que o banco mantém o domínio sobre a coisa, uma vez que estamos perante dinheiro, ou seja, coisa fungível. O depositário não perdeu a possibilidade de pagar ao depositante. Deste modo, não pode ter aplicação o princípio consagrado no citado art.º 796.º n.º 1 do res perit domino, uma vez que não existe coisa que possa perecer.

O que acontece é que há um depósito bancário, cujo respectivo valor, só pode ser movimentado, como dissemos, nos termos contratuais, nomeadamente, com autorização do depositante. O que ocorreu foi uma movimentação fora desses termos contratuais, estranha ao depositante que a não autorizou e que, portanto, não lhe é oponível, não sendo relevante no que à sorte do depósito respeita.

Consequentemente, não cabe ver se o banco agiu com ou sem culpa. Perante o depositante mantém-se válido e inalterado o depósito, com a consequente obrigação do depositário de prestar.

A posição do banco de não prestar compreende-se perante a sua alegação – cf. a contestação – de que as transferências em causa tinham sido autorizadas pelo autor. Mas, ficou provado o contrário, que o mesmo autor fora estranho às ordens de transferência.

Deste modo, o banco é responsável, independentemente de culpa, pela movimentação fraudulenta por terceiro de um depósito bancário – cf. Acórdão deste STJ de 18.12.08 Cons. Santos Bernardino www.stj.pt 08B268.

“Recai sobre o banco o ónus da prova de que a movimentação da conta ocorreu por motivo justificado, designadamente, porque tinha ordem ou autorização de transferência emanada do cliente, pelo que, não demonstrado este pressuposto, o banco responde perante o cliente.”

Tudo o que se deixou dito torna prejudicada a apreciação das violações processuais invocadas.

Não merece, pois, o acórdão recorrido qualquer reparo.

III. Termos em que se acorda em negar a revista.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 16 de Setembro de 2014


Paulo Sá (Relator)

Garcia Calejo

Helder Roque

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[1]              N.º 660
                Relator:    Paulo Sá
                Adjuntos: Garcia Calejo e
                                  Hélder Roque