Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
267/18.8GDTVD-I
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO PENAL
AUXÍLIO À IMIGRAÇÃO ILEGAL
DECISÃO CONDENATÓRIA
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
METADADOS
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
NULIDADE
PROVAS PROIBIDAS
EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
ESCUTAS TELEFÓNICAS
Data do Acordão: 05/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - O fundamento previsto no art. 449.º, n.º 1, al. e), do CPP, introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, distingue este meio de reação extraordinário que é a revisão do recurso ordinário, uma vez que, por um lado, não se refere à alegação de quaisquer provas proibidas, nomeadamente previstas noutros preceitos legais (caso que pode ser objeto de recurso ordinário), mas apenas abrange as provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º do CPP e, por outro lado, exige que as provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º do CPP, que serviram de fundamento à condenação, tenham sido descobertas após o trânsito em julgado da decisão a rever.

II - Por sua vez, segundo o fundamento previsto no art. 449.º, n.º 1, al. f), do CPP, também introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do acórdão do TC tem de ser posterior ao trânsito em julgado da sentença a rever e tem de declarar a inconstitucionalidade de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação. Se a norma declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, não serviu de fundamento à condenação da sentença a rever, não se verifica este fundamento. Para além de que, nos termos do art. 282.º, n.º 3, da CRP, não havendo decisão em contrário do TC (que declara a norma inconstitucional, com força obrigatória geral), ficam ressalvados os casos julgados.

III - neste caso concreto, as escutas telefónicas foram autorizadas judicialmente, seguindo o formalismo previsto nos arts. 187.º a 190.º do CPP, constituindo provas válidas. Ora, o regime das escutas telefónicas previsto no CPP, nomeadamente no âmbito da investigação “do crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183.º da lei n.º 23/2007, de 04.07; tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160.º do Código Penal; extorsão, p. e p. pelo art. 223.º do Código Penal e associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.º do Código Penal”, sendo os três últimos punidos com penas superiores a três anos de prisão, não foi afetado pela declaração de inconstitucionalidade decidida, com força obrigatória geral, pelo ac. do TC n.º 268/2022.

IV - De igual forma, o pedido de identificação do n.º de telefone e/ou do IMEI às Operadoras de telecomunicações para execução de interceções telefónicas, são perfeitamente válidos porque se tratam (como se diz no ac. do STJ de 6.09.2022, em que foi relatora Teresa Almeida) “de elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os respetivos registo e fornecimento à autoridade judiciária competente, ao abrigo dos arts. 187º, 189º e 269º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, não importam desproporcionalidade ou desadequação face ao fim em vista, nem a afetação do direito fundamental à autodeterminação informativa.”

V - Com efeito, ocorrendo a recolha desta particular prova que questionam em tempo real e para o futuro (como sucede quando, no âmbito de interceções telefónicas judicialmente autorizadas, o JI também autoriza a localização celular dos telemóveis, o registo trace-back e a respetiva faturação detalhada), não se verifica a situação aludida no ac. do TC 268/2022, que se reporta a dados anteriores armazenados, conservados e arquivados nos sistemas informáticos das operadoras, que é regulado pela Lei n.º 32/2008.

VI - Por isso, incorrem em confusão/erro os recorrentes, quando pretendem aplicar neste caso o ac. do TC 268/2022, visto que nestes autos a prova recolhida foi em tempo real e para futuro, como aconteceu no âmbito de interceções telefónicas judicialmente autorizadas, nos termos dos arts. 187.º a 190.º do CPP, cujas normas não foram declaradas inconstitucionais.

VII - Mas, ainda que assim não fosse, também teria de improceder o presente recurso de revisão, uma vez que face ao disposto no art. 282.º, n.º 3, da CRP, inexistia razão para que a declaração de inconstitucionalidade contida no acórdão do TC n.º 268/2022 fizesse alguma exceção ao caso julgado, pelo que sempre ficava ressalvado o caso julgado da sentença condenatória que se pretendia rever.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça



I Relatório

1. Os arguidos/condenados AA, BB e D..., Lda, vieram nos termos (entre outros) do artigo 449.º, n.º 1, als. e) e f), do CPP, interpor recurso extraordinário de revisão do acórdão de 30.12.2020, proferida no processo comum (tribunal coletivo) n.º 267/18.8GDTVD, do Juízo Central Criminal ..., juiz ..., comarca de Lisboa Norte, que foi parcialmente confirmada por ac. do TRL de 1.07.2021, e que se encontra transitado em julgado quanto a eles, acabando por ser condenados cada um dos dois primeiros arguidos pela prática de um crime de auxilio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 04-07, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, com o dever de pagamento de 8.000€ (oito mil euros) à A.P.A.V. (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), que podia ser dividido em três prestações anuais, de idêntico valor, vencendo-se a primeira um ano após o trânsito em julgado da decisão e as restantes no mesmo dia dos anos subsequentes e, a terceira arguida, sendo condenada pela prática de um crime de auxilio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183.º, n.º 2 e 5, da Lei n.º 23/2007, de 04-07, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de 150€, o que perfaz o montante total de 45.000,00€.


2. Para o efeito, os recorrentes AA, BB e D..., Lda apresentaram as seguintes conclusões no recurso que apresentaram conjuntamente:

I. Os arguidos foram condenados nos presentes autos, cuja prova foi carreada aos autos através de metadados.

II. Constando da acusação e que o tribunal a quo deu como provados no acórdão condenatório as informações das operadoras (fls. 23, 32 e 36); reportagem fotográfica, de fls. 630 a 633; fls. 651 a 657; fls. 668 a 669); Apenso ALVO ...60, de fls. 43 a 54; fls. 55 a 67; fls. 83 a 89; fls. 170 a 171; Apenso ALVO ...70, de fls. 2 a 7; fls. 308; fls. 362; fls. 364 a 365; fls. 234; e fls. 437.

III. De entre a prova indicada no despacho de acusação (referência ...55) constam segmentos referentes a informações recolhidas pela análise dos metadados e na qual assenta a condenação dos arguidos.

IV. Nomeadamente, através de diligências de intercepção de comunicações, ou seja metadados, que permitiram saber a identidade d utilizador do telefone, a duração e destino das chamadas e a sua localização e, assim, ao conteúdo das comunicações.

V. O que significa que, com a acusação deduzida contra os aqui recorrentes, houve, sem sombra de dúvida, plena violação dos princípios da proporcionalidade na restrição aos direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar, ao sigilo das comunicações e a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrados nos artigos 26.º, n.º1, 34.º, n.º1 e 20.º, n.º1, e, ainda 35.º, n.º1 todos da Constituição da Republica Portuguesa.

VI. Pelo que, nesta conformidade os recorrentes recorrem ao presente recurso extraordinário de revisão, a fim de o Supremo Tribunal de Justiça apreciar a validade da prova obtida nos presentes autos, quanto aos aqui recorrentes, uma vez que a mesma se baseou em metadados.

VII. Sempre se dirá que são metadados os dados dos dados recolhidos da utilização de um IP e fornecidos pelas operadoras de comunicações ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho (no seguimento da transposição da Directiva Comunitária n.º 2006/24/CE a qual foi declarada inválida por decisão judicial do Tribunal de Justiça da União Europeia em 08/04/2014 não tendo, o Estado Português, efectuado qualquer alteração legislativa com vista à adaptação para o ordenamento jurídico de tal decisão).

VIII. Por douto acórdão n.º 268/2022, do Tribunal Constitucional, foi declarada: a) a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma constante do artigo 4º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, conjugada com o art. 6º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35º e do n.º 1 do artigo 26º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18º, todos da Constituição da República Portuguesa. B) a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma constante do artigo 9º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja susceptível de comprometer as investigações nem a vida ou a integridade física de terceiros, por violação do n.º 1 do artigo 35º e do n.º 1 do artigo 20º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.

IX. O Tribunal Constitucional considerou igualmente que guardar os dados de tráfego e localização de pessoas restringe de modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade e da vida privada.

X. Designadamente, por poder atingir sujeitos relativamente sobre os quais não existe qualquer suspeita de prática de crimes.

XI. Por outro lado, o artigo 9º da Lei n.º 32/2008 foi declarado inconstitucional pois não previa que o visado fosse informado de que os seus dados tinham sido consultados por terceiros (mesmo investigadores criminais).

XII. Consequentemente, a partir do momento em que tal informação não protege o visado nem terceiros o acórdão supra refere que estes ficam privados de exercerem um controlo real e efetivo sobre a licitude de tal acesso o que, sem dúvida, viola o DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA.

XIII. E que é traduzido no direito individual de cada pessoa poder exercer controlo sobre os seus dados pessoais.

XIV. Desta forma a conservação dos dados fornecidos pelas operadoras de comunicações e acesso e seu uso para a apreciação de prova, nestes autos, é INCONSTITUCIONAL.

XV. Por conseguinte, é nula toda a prova obtida com recurso aos METADADOS recolhidos e guardados pelas operadoras telefónicas para prova da alegada utilização, pelos arguidos, de equipamentos telefónicos e respectivas geo-localizações celulares.

XVI. A propósito da produção de prova em audiência vide Extrato do Ac. STJ de 14-07-2010: As proibições de prova dão lugar a provas nulas – art. 38º, n.º 2, da CRP. A lei portuguesa proíbe as provas fundadas na violação da integridade física e moral do agente e as provas que violem ilicitamente a privacidade.

XVII. Maia Gonçalves, Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal, 1989, pág. 195, a propósito dos n.ºs 1 e 3 do artigo 126º, referia tratar-se em seu entender de dois graus de desvalor de provas obtidas contra as comunicações legais, sendo maior o desvalor ético-jurídico das provas obtidas mediante os processos referidos no n.º 1 e tal diferente grau de desvalor tem reflexo nas nulidades cominadas «enquanto as provas obtidas pelos processos referidos no n.º 1 estão fulminados com uma nulidade absoluta, insanável e de conhecimento oficioso, que embora como tal não esteja consagrada no art. 119.º e está neste art.º 126.º, através da expressão imperativa não podendo ser utilizadas, já as provas obtidas mediante o processo descrito no n.º 3 são dependentes de arguição, e portanto sanáveis, pois que não são apontadas como insanáveis no art. 119.º ou em qualquer outra disposição da lei. Em relação a estas últimas provas, obtidas mediante os processos aludidos no n.º 3, a lei atendeu de algum modo à vontade do titular do interesse ofendido e ao princípio volenti non fit injuris».

XVIII. Como expende Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, Dezembro 2007, pág. 326, anotação 3 « A nulidade das provas proibidas obedece a um regime distinto da nulidade insanável e da nulidade sanável. Trata-se de um regime complexo, que distingue dois tipos de proibições de provas consoante as provas atinjam a integridade física e moral da pessoa humana ou a privacidade da pessoa humana». E no ponto 4º quanto ao regime da nulidade da prova produzida diz que há que distinguir: a nulidade da prova proibida que atinge o direito à integridade física e moral previsto no artigo 126.º, n.ºs 1 e 2 do CPP é insanável; a nulidade da prova proibida que atinge os direitos previstos no artigo 126.º, n.º 3 é sanável pelo consentimento do titular do direito. A legitimidade para o consentimento depende da titularidade do direito em relação ao qual se verificou a intromissão ilegal. O consentimento pode ser dado ex ante ou ex post facto. Se o titular do direito pode consentir na intromissão na esfera jurídica do seu direito, ele também pode renunciar expressamente à arguição da nulidade ou aceitar expressamente os efeitos do acto, tudo com a consequência da sanação da nulidade da prova proibida. Em síntese, o artigo 126.º, nºs 1 e 2, prevê nulidades absolutas de prova e o n.º 3 prevê nulidades relativas de prova.

XIX. Assim também Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, 2007, em anotação XV ao artigo 32.º, pág. 524: A interdição é absoluta no caso do direito à integridade pessoal e, relativa, nos restantes casos, devendo ter-se por abusiva a intromissão quando efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (art. 34.º-2 e 4), quando desnecessária ou desproporcionada ou quando aniquiladora dos próprios direitos.

XX. Simas Santos-Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, 3.ª edição, 2008, volume I, pág. 832, distinguem entre os métodos proibidos de prova, os absolutos (proibidos mesmo com consentimento), abrangendo as provas obtidas mediante tortura, coacção e ofensa à integridade física ou moral, e os relativos (proibidos apenas sem consentimento), abrangendo as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações.

XXI. Os n.ºs 1 e 2 enunciam os métodos de prova que o legislador considera proibidos em termos absolutos, pois que atentam contra direitos indisponíveis para o seu próprio titular e em relação aos quais é irrelevante o consentimento.

XXII. Os métodos proibidos de carácter relativo abrangem os casos em que se utilizam processos de recolha de prova sem o consentimento dos respetivos titulares Aqui, já não existe uma proibição absoluta, mas meramente relativa, uma vez que, estando apenas em causa direitos disponíveis, é sempre possível utilizar os meios de prova aí referidos se houver consentimento válido para tal ou a situação esteja prevista na lei.

XXIII. A propósito da questão de saber se a nulidade contemplada no n.º 3, 2.ª parte, é ou não sanável, consideram - pág. 840 - que a última alteração legislativa pôs fim à dúvida, ao acrescentar que, em tais casos as provas obtidas em desrespeito da lei não podem ser utilizadas.

XXIV. Na obra coletiva Prova Criminal e Direito de Defesa, Almedina, 2010, no trabalho Da Autonomia do Regime das Proibições de Prova, págs. 257 e seguintes, afirma-se que as proibições de prova não estão numa mera relação de especialidade face às nulidades. São, antes, tal como as nulidades, uma espécie de invalidade, que constitui o padrão comum a que se reportam ambas as figuras.

XXV. Sendo uma espécie autónoma de invalidade, o efeito associado às proibições de prova tem de ser distinto das nulidades. E conclui-se que esse efeito é a inexistência jurídica. A afirmação da autonomia das proibições de prova em relação às nulidades e a destrinça entre métodos absoluta e relativamente proibidos estava já presente no acórdão deste Supremo Tribunal, de 08-02-1995, processo n.º 47.084, in CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 194.

XXVI. E ainda Ac. STJ de 20-09-2006 : Nos termos do art. 126.º do CPP, os métodos proibidos de prova são de duas categorias, consoante a disponibilidade ou indisponibilidade dos bens jurídicos violados: os absolutamente proibidos, pelo uso de tortura, coacção ou em geral ofensas integridade física ou moral - n.ºs 1 e 2 -, que não podem em caso algum ser utilizados, mesmo com o consentimento dos ofendidos, e os relativamente proibidos - n.º 3 -, que respeitam ao uso de meios de prova com intromissão na correspondência, na vida privada, domicílio ou telecomunicações, sem consentimento do respetivo titular.

XXVII. A locução «sem o consentimento do respetivo titular» tem sido usado como pedra de toque para o estabelecimento da dicotomia prova absolutamente nula e prova relativamente nula. Se o consentimento do titular afasta a nulidade, então esta não é insanável e o decurso do prazo de invocação preclude o direito declaração de invalidade do acto e dos que dela dependerem, no caso vertente até 5 dias sobre a notificação de encerramento de inquérito - n.º 3 do art. 120.º do CPP.

XXVIII. Os métodos absolutamente proibidos de prova, por se referirem a bens absolutamente indisponíveis, determinam que a prova seja fulminada de nulidade insanável, a qual está consagrada na expressão imperativa «não podendo ser utilizadas», usada no art. 126.º, n.º 1, do CPP.

XXIX. Ainda sobre este tema vide o Ac. STJ de 31-01-2008 : Repensar os numerosos e difíceis problemas que se situam em zonas conflituais era tarefa que - ao tempo (1983) - haveria de cometer ao reformador da legislação processual penal. E este, no CPP de 1987, distinguiu as «provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas» (art. 126.1 do CPP) das «provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou na telecomunicações» (n.º 2): aquelas - em que os meios de obtenção da prova ofendiam «interesses individuais que contendem diretamente com a garantia da dignidade humana» - considerou-as absolutamente nulas; mas já «admitiu» (art. 125.º) as demais - por não contenderem diretamente com a garantia da dignidade da pessoa - quando obtidas «com o consentimento do titular» ou, mesmo sem este, nos «casos previstos na lei» (art. 126.2).

XXX. É certo que estas 'são igualmente nulas' (também, por isso, 'não podendo ser utilizadas') quando, 'ressalvados os casos previstos na lei', forem 'obtidas sem o consentimento do respetivo titular'. Mas se assim é quanto às provas diretamente obtidas por 'métodos proibidos' (que 'são nulas, não podendo ser utilizadas'), já - 'perante interesses individuais que não contendam diretamente com a garantia da dignidade da pessoa' - 'poderá eventualmente vir a reconhecer-se a admissibilidade de provas consequenciais à violação da proibição de métodos de prova'.

XXXI. E, em tal hipótese, a circunscrita invalidação (ou inutilização) da prova (diretamente) obtida poderá satisfazer os interesses (de proteção constitucional da privacidade das conversações ou comunicações telefónicas, sem afetação do conteúdo essencial do correspondente preceito constitucional) decorrentes da proibição do art. 126.3 do CPP. Pois que a otimização dos interesses em conflito (aqueles, por um lado, e os de 'um eficaz funcionamento do sistema de justiça penal', por outro) poderá demandar (ante a (estrita) 'necessidade' de proteção 'proporcionada' dos últimos (também eles 'juridicamente protegidos por essenciais à vida comunitária') - a conjugação (ou 'concordância prática') de ambos em termos de 'criação e conservação de uma ordem na qual uns e outros ganhem realidade e consistência'.

XXXII. Ora, será justamente no âmbito dos efeitos à distância dos 'métodos proibidos de prova' que se poderá dar consistência prática a essa distinção entre os métodos previstos no n.º 1 do art. 126.º e os previstos no n.º 3, pois que, enquanto os meios radicalmente proibidos de obtenção de provas inutilizará - expansivamente - as provas por eles directa e indiretamente obtidas, já deverá ser mais limitado - em função dos interesses conflituantes - o efeito à distância da 'inutilização' das provas imediatamente obtidas através dos demais meios proibidos de obtenção de provas (ofensivos não do 'valor absoluto da dignidade do homem', mas de 'interesses individuais não diretamente contendentes com a garantia da dignidade da pessoa', como a 'intromissão sem consentimento do respetivo titular' na 'vida privada', 'no domicílio', na 'correspondência' ou nas 'telecomunicações').

XXXIII. 'Sobretudo quando [como no caso] a nulidade do meio utilizado (a 'escuta telefónica') radique não nos seus 'requisitos e condições de admissibilidade' (art. 187.º) mas nos 'requisitos formais' das correspondentes 'operações'. Pois que, sendo esta modalidade, ainda que igualmente proibida (art.s 126.1 e 3 e 189.º), menos agressiva do conteúdo essencial da garantia constitucional da inviolabilidade das telecomunicações (art. 34.4 da Constituição), a otimização e a concordância prática dos interesses em conflito (inviolabilidade das comunicações telefónicas versus 'verdade material' e 'punição dos culpados mediante sentenciamento criminal em virtude de lei anterior que declare punível a acção') poderá reclamar a limitação - se submetida aos princípios da necessidade e da proporcionalidade - dos 'interesses individuais, ainda que emanações de direitos fundamentais, que não contendam diretamente com a garantia da dignidade da pessoa.

XXXIV. E ainda, Extrato do Ac. STJ de 8-01-2014 : As proibições de prova são , na definição de Gossel , citado in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal , Prof. Costa Andrade , pág. 83, «barreiras colocadas á determinação dos factos que constituem objecto do processo» , o que as define é a prescrição de um limite á descoberta da verdade , tendo em conta a prevalência dos valores a defender , pela sua grandeza no plano individual , já que o Estado não deve perseguir criminalmente á margem da ética , mantendo uma superioridade conseguida a qualquer preço.

XXXV. Sob a invocação da necessidade de investigação, quase a todo o custo e ilimitadamente , enfatizada em crescendo, em processo penal, pelo alcance de uma justiça penal eficaz , direcionada para o atenuar de um clima de «moral panic» ( Cohen ) ou «de estado de necessidade de investigação» nas palavras de Hassemer , para quem a «sociedade é encostada á parede», «induzindo a colonização da política criminal pelos lastros da irracionalidade» , á custa de uma alegada compressão e subvalorização da liberdade , donde o recurso , em casos de criminalidade grave , se dever estender á valoração dos diários íntimos ou ao alargamento do «efeito à distância» , enquanto se possibilita considerar em certas circunstâncias uma prova que aparece depois, no decurso da investigação , demandando uma apreciação cuidada dos interesses em jogo, conducente ao seu aproveitamento.

XXXVI. Historicamente o «efeito à distância» , já reconhecido como vigente entre nós por Figueiredo Dias , antes do CPP actual - cfr. Para uma Reforma Global do Processo Penal , in Para uma Nova Justiça Penal , Coimbra , 1983 , 208- aparece pela primeira vez proclamado na sentença do juiz Oliver Wendell Holmes, em 1920 , a propósito do caso Silverthorne Lumber Co .v. United States ( 251 U . S . , 385) dela se extraindo que foi pensamento cristalino o de que se o conhecimento de factos obtidos ilegalmente o Governo não os pode aproveitar, já, mas diversamente, se«o conhecimento deles é adquirido por uma fonte independente ( independent source ) podem ser provados , como quaisquer outros».

XXXVII. Em torno desta ideação construiu, em 1939, o Juiz Félix Frankfurter , do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos, no caso Nardone v. United States , ( 308, U S , 338 ) a metáfora, não mais abandonada, irradiando, desde logo para os direitos continentais, do «fruto da árvore venenosa» (Fruit of the poisonus tree) , podendo dizer-se constituir o meio de prova inválido, a árvore venenosa , importando saber se flui dela a prova ulterior , como «fruto» envenenado» ou são.

XXXVIII. Com a doutrina do «fruto da árvore venenosa» trata-se de estender a regra da exclusão às provas reflexas. 38º Esta projeção da invalidade aparece desde os primórdios da sua formulação, matizada por uma série das circunstâncias em que a prova derivada , porque relacionada com a prova inválida , pode , não obstante, ser aceite como válida , pela evidente relação da causalidade ( cfr. Ac. do TC , n.º 198/04 , de 24/3/2004 , in DR , II Série, de 2.6.2004 ). Uma longa evolução jurisprudencial , de que dá nota aquele Ac. do TC, exemplificou-se os casos em que aquele efeito á distância se não projeta, os casos em que a indissolubilidade entre as provas é de repudiar, por não verificação da árvore venenosa, reconduzindo-os a três hipóteses que o limitam: a chamada limitação da fonte independente , a limitação da descoberta inevitável e a limitação da mácula «( nódoa) dissipada» -cfr. Criminal Procedure, Jerold H .Israel e Wayne R. Lafave, 6.ª Ed., St . Paul, Minnesota, 2001 , págs. 291 a 301.

XXXIX. De considerar, ainda, os conhecimentos fortuitos, acidentais, em sede de escutas telefónicas, que se distinguem, dos conhecimentos de investigação, de a esta se lhes imputar tout court, integrantes da constelação objecto do processo, do «processo histórico que a seu tempo ofereceu o motivo para uma ordem legitima de escuta», enquanto aqueles, havendo que reportar-se ao crime de catálogo, enquanto exigência mínima, não dispensando a intervenção de um estado de necessidade investigatório, a legitimá-los , em nome de um sentido juízo hipotético de investigação, na opinião de Costa Andrade, na esteira de autores alemães, como Rudolphi e Schroder, in Sobre as Proibições de prova em Processo Penal , págs ., 306, 311, 309 e 312.

XL. Pelo exposto é nula toda a prova produzida nos autos resultante da recolha e conservação de dados móveis e metadados fornecidos pelas operadoras de comunicações, nos termos do disposto no acórdão n.º 26268/2022 do Tribunal Constitucional conjugado com os artigos 125º, à contrário; 126º, n. 2 e 3 todos do Código de Processo Penal a qual é, desde já, arguida.

XLI. Devendo em consequência os arguidos virem a ser absolvidos dos crimes em que foram condenados.

Terminam pedindo que, admitido o recurso, seja decretada a nulidade arguida e, consequentemente, sejam declaradas nulas as provas constantes de fls. 23, 32 e 36 (informações das operadoras); de fls. 630 a 633; fls. 651 a 657; fls. 668 a 669 (reportagem fotográfica); Apenso ALVO ...60, de fls. 43 a 54; fls. 55 a 67; fls. 83 a 89; fls. 170 a 171; Apenso ALVO ...70, de fls. 2 a 7; fls. 308; fls. 362; fls. 364 a 365; fls. 234; e fls. 437 e, assim, os arguidos absolvidos dos crimes em que foram condenados.


3. O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que se deverá negar provimento, por se mostrar manifestamente improcedente, e, assim, deverá ser rejeitada a revisão do acórdão proferido (em resumo por, nos termos do art. 282.º, n.º 1 e n.º 3 da CRP, estar ressalvado o caso julgado da sentença que se pretende rever, que ocorreu anteriormente à prolação do ac. do TC n.º 286/22 e, igualmente, por as interceções telefónicas no âmbito dos presentes autos, terem sido determinadas por despacho do JI, nos termos dos arts. 187.º, 189.º e 269.º, n.º 1, al. e), do CPP, normas essas que não foram declaradas inconstitucionais).


4. A Sr. Juiz pronunciou-se sobre o mérito do pedido (art. 454.º, CPP), nos seguintes termos:

Vieram os arguidos AA, BB e D..., Lda. interpor recurso de revisão nos termos do art. 449.º, n.º 1, als. e) e f) do CPP concluindo, em suma apertada, para o efeito o seguinte:

- Os arguidos foram condenados nos presentes autos, cuja prova foi carreada aos autos através de metadados;

- Constando da acusação e que o tribunal a quo deu como provados no acórdão condenatório as informações das operadoras (fls. 23, 32 e 36); reportagem fotográfica, de fls. 630 a 633; fls. 651 a 657; fls. 668 a 669); Apenso ALVO ...60, de fls. 43 a 54; fls. 55 a 67; fls. 83 a 89; fls 170 a 171; Apenso ALVO ...70, de fls. 2 a 7; fls. 308; fls. 362; fls. 364 a 365; fls. 234; e fls. 437.

- De entre a prova indicada no despacho de acusação (referência ...55) constam segmentos referentes a informações recolhidas pela análise dos metadados e na qual assenta a condenação dos arguidos.

- Nomeadamente, através de diligências de intercepção de comunicações, ou seja metadados, que permitiram saber a identidade do utilizador do telefone, a duração e destino das chamadas e a sua localização e, assim, ao conteúdo das comunicações.

- O que significa que, com a acusação deduzida contra os aqui recorrentes, houve, sem sombra de dúvida, plena violação dos princípios da proporcionalidade na restrição aos direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar, ao sigilo das comunicações e a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrados nos artigos 26.º, n.º1, 34.º, n.º1 e 20.º, n.º1, e, ainda 35.º, n.º1 todos da Constituição da Republica Portuguesa.

- O acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes: do art. 4.º da Lei n.º 32/2008 de 17/06; do 9.º da Lei n.º 32/2008 de 17/07.

- Desta forma a conservação dos dados fornecidos pelas operadoras de comunicações e acesso e seu uso para a apreciação de prova, nestes autos, é inconstitucional.

- Por conseguinte, é nula toda a prova obtida com recurso aos metadados recolhidos e guardados pelas operadoras telefónicas para prova da alegada utilização, pelos arguidos, de equipamentos telefónicos e respectivas geo-localizações celulares.

Termina concluindo que é nula toda a prova produzida nos autos resultante da recolha e conservação de dados móveis e metadados fornecidos pelas operadoras de comunicações, nos termos do disposto no acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional conjugado com os arts. 125,º « a contrario », 126 n.º 2 e 3, ambos do CPP, devendo ser declarada a nulidade da prova constante de fls. 23, 32 e 36 (informações das operadoras ); de fls. 630 a 633, fls. 651 a 657, fls. 668, 669 (reportagem fotográfica); Apenso Alvo ...60, de fls. 43 a 54; fls. 55 a 67; fls. 83 a 89; fls. 170 e 171; Apenso Alvo ...70, fls. 2 a 7, fls. 308, fls. 362; fls. 364, 365; 234, e 437, e, em consequência serem absolvidos os arguidos.


Foi proferido despacho a admitir o recurso de revisão, a determinar a junção de documentos dos autos principais e notificado o Ministério Público para, querendo, responder ao recurso interposto, nos termos do art. 454.º, (1.ª parte) do CPP.

O Ministério Público veio responder conforme fls. 646-651, concluindo que se deve negar provimento ao recurso, o qual se mostra manifestamente improcedente, e que deve ser rejeitada a revisão do acórdão proferido.


Dado que não se impõe realizar mais quaisquer diligências, cumpre emitir informação sobre o mérito do pedido, nos termos do art. 454.º do CPP.

Vejamos.


Os arguidos AA, BB e D..., Unipessoal, Lda., bem como outros arguidos, foram condenados, pelo Tribunal de 1.ª instância, por acórdão de 30 de Dezembro de 2020.

Os arguidos AA e BB foram condenados pela prática de um crime de auxilio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 04-07, fixando-se para cada arguido, a pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, impondo-se o dever de pagamento, a cada um dos arguidos, de um valor de 15.000€ (quinze mil euros) à Associação A.P.A.V. (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), que podia ser dividido em três prestações anuais, de idêntico valor, vencendo-se a primeira um ano após o trânsito em julgado da decisão e as restantes no mesmo dia dos anos subquentes, devendo os arguidos juntar o comprovativo de tal pagamento, absolvendo os arguidos dos restantes crimes imputados na acusação.

A arguida D..., Unipessoal, Lda foi condenada pela prática de um crime de auxilio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183.º, n.º 2 e 5, da Lei n.º 23/2007, de 04-07, na pena de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa com o quantitativo diário de 170,00€ (cento e setenta euros), absolvendo a arguida dos restantes crimes imputados na acusação,

Não se conformando com o acórdão proferido, vieram recorrer do mesmo para o Tribunal da Relação de Lisboa, o Ministério Público e, entre outros arguidos, os arguidos AA, BB e D..., Unipessoal, Lda.

Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 1 de Julho de 2021, transitado em julgado relativamente aos aqui recorrentes, em 21 de Fevereiro de 2022, foram julgados parcialmente procedentes os recurso interpostos por estes arguidos, tendo sido condenado:

A Sociedade D..., Lda. na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de 150€, o que perfaz o montante total de 45.000,00€.

Os arguidos AA e BB no dever de pagamento a favor da APAV de um valor pecuniário no montante de 8.000€ cada um.


O recurso extraordinário de revisão de sentença transitada em julgado, com consagração constitucional no artigo 29.º, n.º 6, da Constituição da Republica Portuguesa, constitui um meio processual vocacionado para reagir contra clamorosos e intoleráveis erros judiciários ou casos de flagrante injustiça, fazendo prevalecer o princípio da justiça material sobre a segurança do direito e a força do caso julgado. Estes princípios essenciais do Estado de Direito cedem perante novos factos ou a verificação da existência de erros fundamentais de julgamento adequados a porem em causa a justiça da decisão.

Atendendo ao caracter excecional que qualquer alteração do caso julgado pressupõe, o Código de Processo Penal prevê, de forma taxativa, nas alíneas a) a g) do artigo 449.º, as situações que podem, justificadamente, permitir a revisão da sentença penal transitada em julgado.


Dispõe o art. 449.º do CPP que:

1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.

3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.

4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.”


Vêm os arguidos interpor recurso de revisão ao abrigo das als. e) e f) do art. 449.º do CPP. Ou seja, condenação com fundamento em provas proibidas (al. e); e declaração pelo Tribunal Constitucional, com forca obrigatória geral, de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que haja servido de fundamento a condenação (al. f).

Dada a invocação da al. f) do n.º 1 do art. 449.º do CPP importa também chamar à colação o art. 282.º da Constituição da República Portuguesa, o qual dispõe que:

“1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.

2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infracção de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última.

3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.”


O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 é datado de 19-04-2022, e foi publicado em Diário da República n.º 108, 1.ª Serie, em 03-06-2022 e foi ali decidido:

a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;

b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.


Constata-se assim que o acórdão do Tribunal Constitucional foi proferido depois de terem sido julgados os factos e proferida a condenação nestes autos, com trânsito em julgado, quer pelo Tribunal da 1ª instância, quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa, sendo que a condenação dos arguidos transitou em julgado em 21-02-2022.

No acórdão do Tribunal Constitucional não foi tomada decisão nos termos do art. 282.º, n.º 3, da Constituição da Republica Portuguesa, razão pela qual se entende que se encontram ressalvados os casos julgados.

Isto é, é nosso entendimento que a al. f) do n.° 1 do art. 449.º do CPP deve ser sujeita a uma interpretação conforme ao artigo 282.°, n.° 3, parte final, da CRP, no sentido de só constituir fundamento de revisão a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral relativamente aos casos julgados determinados pelo Tribunal Constitucional[1].

Assim sendo, é nosso entendimento que não é aplicável aos presentes autos, o fundamento de revisão previsto na al. f) do n.º 1 do art. 449.º do CPP. Conforme consta, entre outros, do Acórdão do STJ de 30-11-2022, proferido no Proc n.º 71/11.4JABRG-G.S1, disponível em www.dsgi.pt “(…), uma vez que não houve decisão em contrário do TC, nos termos do art. 282.º, n.º 2, 2.ª parte, deve manter-se incólume o caso julgado. Não havendo, assim, lugar à aplicação da al. f) do nº 1 do art. 449.º do CPP. Cf., v.g., Acórdão deste STJ proferido no Proc. n.º 79/13.5JBLSB-C.S1; Acórdão deste STJ, de 06-09-2022.”


Mas sem prejuízo do que atrás se referiu, entendemos que não serviram de fundamento à condenação quaisquer provas proibidas nos termos do art. 126.º, n.ºs 1 a 3 do CPP (al. e) do n.º 1 do art. 449.º) e nenhumas das normas declaradas, pelo Tribunal Constitucional, inconstitucionais com força obrigatória geral, serviram de fundamento à condenação (al. f) do n.º 1 do art. 449.º).

Cumpre salientar que invocam os recorrentes a al. e) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, porém verifica-se que não há uma descoberta da utilização de provas proibidas, trata-se, antes, na perspetiva dos recorrentes, da aplicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas utilizadas, no que à prova produzida concerne. Ou seja, constata-se que o fundamento invocado ao abrigo da al. e) do n.º 1 do art. 449.º do CPP reconduz-se à al. f) do mesmo artigo, veja-se nesse sentido, entre outros, Acórdãos do STJ de 06-09-2022, Proc. n.º 4243/17.0T9PRT-K.S1 - 3.ª Secção e de de 10-11-2022, Proc. n.º 120/17.2TELSB-B.S1- 5.ª Secção, ambos disponíveis in www.dgsipt.


Defendem os arguidos recorrentes que deve ser declarada a nulidade da prova constante de fls. 23, 32 e 36 (informações das operadoras); de fls. 630 a 633, fls. 651 a 657, fls. 668 e 669 (reportagem fotográfica); Apenso Alvo ...60, de fls. 43 a 54; fls. 55 a 67; fls. 83 a 89; fls. 170 e 171; Apenso Alvo ...70, fls. 2 a 7, fls. 308, fls. 362; fls. 364, 365; 234, e 437 e, em consequência serem absolvidos os arguidos, por ser prova resultante da recolha e conservação de dados móveis e metadados fornecidos pelas operadoras de comunicações.


Vejamos cada uma das provas indicadas pelos recorrentes.


As informações das operadoras de comunicações de fls. 23 (NOS), 32 (MEO/Altice) e 36 (Vodafone) não constam indicadas nem valoradas como meio de prova no acórdão condenatório, ou seja, não foram meios de prova que serviram de fundamento à condenação dos arguidos, ora recorrentes. Acresce que as folhas 23, 32 e 36 indicadas pelos recorrentes, são resultados negativos de identificação de IMEI´s por banda das Operadoras de telecomunicações. Ou seja, não foram fornecidos quaisquer dados relevantes pelas Operadoras de Telecomunicações, pois o resultado foi negativo, pelo que aquelas informações para além de não terem sido invocadas no acórdão condenatório e nessa medida em nada relevarem para a condenação dos arguidos, também as mesmas não possuem qualquer relevo.

Porém, importa ainda referir que quanto a esta matéria de pedido de identificação do n.º de telefone e/ou do IMEI às Operadoras de telecomunicações para execução de interceções telefónicas, seguimos de perto o entendimento vertido no Acórdão do STJ, proferido no Proc. n.º 4243/17.0T9PRT-K.S1, de 06-09-2022, disponível em www.dgsi.pt “Não assiste, assim, razão ao arguido quando pretende considerar o acesso à identificação do n.º de telefone e da IMEI, para a execução de interceções telefónicas, abrangido pela declaração de inconstitucionalidade invocada – trata-se de acesso a dados que não respeitam a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho e constituem “caracteres permanentes, pelo que a identificação do sujeito a que pertencem pode ser obtida independentemente de qualquer comunicação”(Ac. 268/2022, TC). Por outro lado, tratando-se de elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os respetivos registo e fornecimento à autoridade judiciária competente, ao abrigo dos art.ºs 187º, 189º e 269º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, não importam desproporcionalidade ou desadequação face ao fim em vista, nem a afetação do direito fundamental à autodeterminação informativa.”


As fls. 630 a 633, 651 a 657 e 668 a 669 invocadas pelos recorrentes, conforme resulta de fls. 626 a 633, fls. 644 a 657 e 664 a 669 (dos autos principais), foram fotografias retiradas nos locais objecto da busca e foram retiradas no âmbito dos mandados de busca e apreensão devidamente autorizados e em obediência aos normativos legais e constitucionais.

Conforme resulta de fls. 626 e 644 tratam-se de mandados de busca e apreensão devidamente autorizados e assinados por Magistrado Judicial e com fundamento nos arts. 174.º, n.ºs 1 a 4, 176.º, n.º 1, art. 177.º, n.ºs 1 e 2, 178.º e 269.º, n.º 1, al. c), todos do CPP (buscas domiciliárias).

A fls. 664 trata-se de mandado de busca e apreensão devidamente autorizado por Magistrada do Ministério Público e com fundamento nos arts. 174.º, n.ºs 1 a 4, 178.º ambos do CPP (busca a estabelecimento comercial).

As fotografias e as apreensões realizadas tratam-se de provas obtidas em tempo real aquando das buscas levadas a cabo pelos OPC, que em nada se confundem com informações obtidas por Operadoras de telecomunicações.

As fotografias elencadas pelos recorrentes como prova nula, não foram recolhidas ao abrigo das normas declaradas inconstitucionais, nem integram metadados, razão pela qual tal matéria é completamente alheia à declaração de inconstitucionalidade do acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional.

As fotografias (de fls. 630 a 633, 651 a 657 e 668 a 669 dos autos principais) retiradas pelo Órgão de Polícia Criminal aquando da execução dos mandados de busca e apreensão, os quais resultam de despachos judicias dados ao abrigo dos artigos 174.º a 178.º do Código de Processo Penal, são provas válidas e não nulas, sendo que de maneira alguma decorrem da aplicação da Lei n.º 32/2008, de 17-07 que obviamente nem é citada em tais mandados, porque em nada se relaciona com tal matéria.


Por sua vez as fls. 43 a 54; fls. 55 a 67; fls. 83 a 89; fls. 170 e 171 do Apenso Alvo ...60 e as fls. 2 a 7, fls. 308, fls. 362; fls. 364, 365; 234, e 437 do Apenso Alvo ...70, são transcrições de interceções telefónicas realizadas através (de/ para) do telemóvel do arguido CC, sendo que as mesmas foram devidamente autorizadas por despacho judicial, nos termos do art. 187.º e 188.º do CPP.


O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 chamado à colação pelos recorrentes incide apenas sobre algumas normas da Lei nº 32/2008 de 17 de Julho que se referem ao acesso a dados conservados pelas operadoras por conversações e/ou comunicações telefónicas pretéritas, sendo tais normas e apenas estas que foram declaradas inconstitucionais.

Sobre os dados relativos a conversações e/ou comunicações telefónicas em tempo real versam os artigos 187.º a 190.º do Código de Processo Penal e o Acórdão do Tribunal Constitucional em questão não se pronunciou sobre tais normativos e não questionou a sua vigência e constitucionalidade.

No âmbito das intercepções telefónicas, incluindo a localização celular dos aparelhos aquando das mesmas, o registo trace-back e a respectiva facturação detalhada, estamos perante recolha de prova em tempo real e para o futuro e não qualquer tipo de dado que esteja já armazenado e preservado.

Ora, há que distinguir naturalmente a prova decorrente de dados de tráfego conservados em sistemas informáticos e a que se refere a Lei n.º 32/2008 de 17 de Julho, da prova resultante de dados de tráfego interceptados e conhecidos em tempo real a que é aplicável o regime das intercepções telefónicas - artigo 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Veja-se claramente neste sentido, o Acórdão do STJ de 06-09-2022, Proc. n.º 618/16.0SMPRT-B.S1 - 3.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt “[…] VI. Os arts.187 a 189, do CPP, regulam o recurso aos dados relativos a conversações ou comunicações telefónicas em tempo real, enquanto o acesso aos dados conservados pelas operadoras por conversações ou comunicações telefónicas passadas é regulado pela Lei nº32/2008, de 17 Julho; o nº1, do art.187 citado, delimita o objeto dessa regulação como “a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas”, o que representa comunicações a ocorrer, conversações ou comunicações telefónicas em tempo real. Já se o que interessa processualmente são comunicações passadas, localizadas no tempo e no espaço, chama-se à colação a Lei nº32/2008, de 17 de Julho, VII. São, pois, dois meios de prova diferentes, um as escutas telefónicas, outro a conservação e transmissão dos dados. O primeiro regulado nos arts 187 a 190 do CPP. O segundo previsto nos artigos 4º, 6º e 9º da L. 32/2008, agora declarados inconstitucionais nos termos do acórdão nº 268 do Tribunal Constitucional.”


Os dados recolhidos nos autos a que aludem os recorrentes e que também constam como fundamento da condenação, mormente várias sessões de interceções telefónicas daqueles alvos decorrem da aplicação do regime previsto no artigo 187.º a 190.º e 269.º n.º 1 als. e) e f) do Código de Processo Penal e sobre o mesmo não versa o citado Acórdão.

As transcrições das comunicações interceptadas foram judicialmente autorizadas nos autos conforme decorre dos respectivos despachos e não se tratam de elementos de prova subsumíveis ao citado Acórdão do Tribunal Constitucional.

Ao contrário do invocado pelos arguidos, ora recorrentes, os dados recolhidos (interceções telefónicas) e que o mesmo refere que devem ser declarados nulos, e que juntamente com demais prova sustentam os factos do acórdão condenatório, resultam de despachos judiciais dados ao abrigo dos artigos 187.º, n.º 1, al. a), a 189.º, n.ºs 1 e 2 e 269.º n.º 1 als. e) e f) todos do Código de Processo Penal e não decorrem da aplicação da Lei n.º 32/2008 de 17 de Julho que aliás nem citam para fundamentar tais despachos, pois, o que se pretendia era a recolha de dados de conteúdo em tempo real e para o futuro e não aproveitar dados já armazenados.

A obtenção da informação do inicio e fim da chamada e hora da mesma e quem foi o número emissor e o número recetor são dados obtidos em tempo real, quando o arguido CC estava a ser escutado, pelo que aquelas interceções telefónicas (sessões) estão autorizadas a coberto de base legal válida e com cobertura constitucional, inexistindo qualquer prova proibida, nos termos do art. 126.º, n.ºs 1 a 3 do CPP. Veja-se neste sentido, Acórdão do STJ 10-01-2023, proferido no Proc. n.º 731/09.0GBMTS-J.S1 - 3.ª Secção[2]2 “III -As interceções telefónicas, por sua vez, não respeitam a dados de tráfego relativos a comunicações pretéritas, armazenados nos termos da Lei n.º 32/2008, de 17-07, mas a comunicações captadas em tempo real. IV - Mantiveram-se intactas, na sua validade constitucional, as normas do CPP e da Lei do Cibercrime que regulam, respetivamente, as interceções telefónicas e a pesquisa e apreensão de dados eletrónicos armazenados em sistemas (no caso, dispositivos).”


O acórdão condenatório fundamenta a condenação dos arguidos, ora recorrentes, num conjunto de meios de prova, começando pelas próprias declarações dos arguidos, da inquirição de testemunhas e variada prova documental, v.g. como autos de apreensão e busca, documentação bancária/extractos bancários, documentação da segurança social, relatórios de vigilância, algumas interceções telefónicas, Apensos, com contratos de trabalho.

Não existe qualquer vício na prova que fundamenta a condenação, designadamente nas interceções telefónicas invocadas, porém também cumpre salientar que a prova sindicada no recurso de modo algum é a única valorada pelo Tribunal ou sequer a decisiva, mas sim uma variedade de prova produzida que, conjugada entre si, permitiram chegar ao juízo de condenação.


Desta feita, entendemos que toda a prova que fundamenta a condenação dos ora recorrentes é valida, com coberturas legal e constitucional, ou seja, não padece de qualquer vício e consequentemente inexiste qualquer fundamento para a revisão do acórdão condenatório.

Por tudo o que atrás se expos, é nosso entendimento que deverá ser negada a revisão. Subam os presentes autos ao Supremo Tribunal de Justiça.

Notifique.”


5. Já neste Tribunal o Sr. PGA pronunciou-se pela improcedência do recurso, concordando com a resposta do MP (acrescentando, em resumo, que “em momento algum, as normas da Lei 32/2008, de 17 de junho, declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral, serviram de fundamento à condenação dos Requerentes”, e também “não se vislumbra que tenham servido de fundamento a essa condenação provas proibidas nos termos do disposto nos n.ºs 1 a 3 do art. 126.º do Código de Processo Penal”, tanto mais que “quer as informações das operadoras, quer a reportagem fotográfica, quer as interceções telefónicas foram obtidas/realizadas com autorização do Mmº Juiz de instrução, a qual foi conferida nos termos da lei”, o que não se pode confundir com a “conservação e a transmissão de dados que foi declarada inconstitucional), concluindo dever ser negada a revisão.


6. Notificados do Parecer do Sr. PGA, os recorrentes reiteraram tudo o que haviam alegado na motivação conjunta.


7. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem cumpridos os vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.


II. Fundamentação

Em sede da decisão sobre a matéria de facto, com relevância para esta decisão, quanto aos arguidos aqui recorrentes, foram considerados como provados os seguintes factos (que não foram alterados no acórdão do TRL de 5.07.2021):

(…)

47. CC, agindo do modo descrito e no âmbito da organização que integrava, angariou na Moldávia os cidadãos moldavos DD, EE, FF, GG, HH e II, os quais trouxe para Portugal, apesar de não terem autorização de residência nem visto para exercerem uma actividade profissional em território nacional, o que o arguido sabia, tendo agido com o objectivo de os colocar a trabalhar na exploração agrícola da empresa D..., UNIPESSOAL LDA., com o conhecimento e aceitação da arguida BB e a colaboração do marido desta, o arguido AA.

48. Na verdade, na sequência de contacto profissional entre AA e JJ, aquele questionou este último sobre se conhecia pessoas disponíveis para trabalhar em explorações agrícolas, tendo JJ indicado o seu irmão CC como sendo alguém que conhecia trabalhadores para esse efeito.

49. Após o que AA, em nome da D..., UNIPESSOAL, LDA. e da sua gerente BB, em data não concretamente apurada, mas dias antes do dia 09/04/2019, contactou o arguido CC, solicitando que lhe arranjasse pessoas para trabalhar nas explorações agrícolas daquela sociedade, o que este fez.

50. Em consequência, CC diligenciou por arranjar na Moldávia cidadãos que aceitassem viajar para Portugal nas condições seis cidadãos que se disponibilizaram para vir para Portugal trabalhar naquelas condições, sem estarem legalmente autorizados a tanto.

51. Após o que tratou do seu transporte para Portugal nos mesmos moldes já descritos.

52. Esses cidadãos foram transportados da Moldávia para Portugal, tendo vários chegado a Lisboa de autocarro no dia 12/04/2019.

53. CC, acompanhado por outro indivíduo, deslocou-se a Lisboa nesse dia, dirigiu-se ao motorista do autocarro e pagou valores relativos à viagem dos trabalhadores transportados.

54. Após o que esse motorista foi buscar os passaportes desses passageiros e entregou-os.

55. De seguida, CC e outro indivíduo transportaram os referidos passageiros em automóveis até à Rua ..., sita na localidade de ..., alojando-os nos apartamentos G e H dessa artéria.

56. Entre os cidadãos moldavas ora referidos e que viajaram nesse dia para Portugal e ficaram alojados em ... figuram II e FF.

57. No dia 14/04/2019, CC deslocou-se a Coimbra transportando os seis cidadãos angariados do modo descrito, até ao local onde ficariam alojados, informando dessa circunstância o arguido AA.

Aquando da chegada dos cidadãos estrangeiros, as instalações residenciais desta sociedade arguida encontravam-se sujas, igualmente tendo estado sem água quente durante alguns dias.

58. CC transportou os cidadãos moldavas II, DD, EE, FF, GG e HH, aos quais transmitiu, em conjugação de esforços e vontades com AA, BB e a sociedade D..., UNIPESSOAL, LDA., que iriam trabalhar na exploração agrícola cerca de 50 horas por semana, seis dias por semana e que por aquele trabalho iriam receber uma quantia de cerca de 1000 dólares por mês embora no seu correspondente valor em euros sendo que, oficialmente, constaria o valor de 600 euros por mês, acrescido Assim, aqueles seis cidadãos estrangeiros aí permaneceram e foram colocados a trabalhar na exploração agrícola daquela sociedade D..., UNIPESSOAL, LDA..

59. A D..., UNIPESSOAL, LDA., gerida pelos arguidos BB e AA, que, de facto, participava na sua gestão, bem como estes dois arguidos, tinham conhecimento que os trabalhadores que recebiam, nos termos descritos, eram cidadãos estrangeiros, em situação ilegal em território nacional, por não terem autorização de residência nem visto que os habilitasse a exercerem uma actividade profissional em território nacional.

60. A solicitação de CC e depois de este ter previamente combinado com AA, no dia 22/04/2019 KK deslocou-se da localidade de ... até Coimbra para tratar da emissão do número de contribuinte destes trabalhadores moldavos que se encontravam a trabalhar naquela sociedade, declarando-se como representante fiscal da maior parte dos mesmos.

61. CC acordou com AA e BB que a D..., UNIPESSOAL, LDA., procederia à retenção, no ordenado dos trabalhadores, de determinadas quantias que deveriam ser entregues a CC.

62. Nesse âmbito, AA e BB concordaram em reter valores, que ascendiam até cerca de E500,00 do salário de cada trabalhador angariado, que seriam entregues a CC, por conta das dívidas resultantes de este ter trazido os trabalhadores para trabalharem em Portugal, nos moldes já supra descritos.

63. No dia 10/05/2019, AA telefonou a CC informando que pretendia terminar o vínculo laboral com os seis trabalhadores moldavos por não estar contente com o seu desempenho.

64. Assim, AA combinou com CC a melhor forma de garantir que este receberia as quantias mencionadas em 63. daqueles trabalhadores.

65. Pelo que ficou combinado que os trabalhadores iriam assinar uma declaração para justificar o não pagamento directo dos vencimentos devidos no mês de Maio e o seu posterior envio para CC, sendo que estes vencimentos teriam cheque, por causa da contabilidade da sociedade empregadora, e que seriam retidos esses cheques para posterior entrega a CC, já devidamente endossados a este.

67. Assim, no dia 10.05.2019, BB apresentou aos seis identificados trabalhadores estrangeiros, para assinatura, documentos de reconhecimento de dívida a CC e, por via disso, os trabalhadores deixaram com a própria (BB) os cheques no valor de E 221,21 a que tinham direito, referentes ao mês de Maio, por conta da dívida que tinham com CC, endossados a este.

68. De modo a convencer os trabalhadores a assinar os referidos documentos, BB e CC combinaram que este último contactaria os trabalhadores, assim os convencendo a assinar a referida documentação que se encontrava previamente preparada e na posse de BB, sendo que CC procedeu a contacto directo com GG, tendo este falado com os restantes trabalhadores sobre este assunto.

69. Neste contexto, os trabalhadores assinaram os mencionados documentos, os quais não se encontravam redigidos na língua materna dos mesmos.

70. Mais concretamente, estes seis trabalhadores assinaram documentos redigidos em língua portuguesa, datados de 22/04/2019 e mencionando os seguintes valores em dívida de cada um dos trabalhadores para com CC:

- II, HH e FF: 510 euros;

- EE: 360 euros;

- GG: 370 euros;

- DD: 410 euros.

71. Bem como endossaram os cheques que receberam de BB, cada um no valor de €221,21, referente ao vencimento de Maio, num total de 6 cheques no valor de E €327,26,00, os quais foram apresentados para depósito na conta n.° ...63 do Banco Millennium BCP, titulada por CC.

72. E assinaram, cada um dos trabalhadores, os respectivos recibos de pagamento daquele vencimento de Maio, emitidos no valor de €221,21 cada, confirmando o Igualmente, assinaram contratos de trabalho com a sociedade D..., UNIPESSOAL, LDA., datados de 30/04/2019.

73. Bem como assinaram um documento redigido em língua inglesa, cujo teor não conheciam na íntegra, por não dominarem aquela língua, intitulada "Resignation Letter", onde atestam que se demitem do seu posto de trabalho a 10/05/2019 por motivos pessoais.

74. Após o que BB remeteu, por correio, no dia 28/05/2019 os referidos cheques para CC, conforme combinado entre ambos, sendo que este os recebeu no dia 30/05/2019.

75. Igualmente, AA e BB, apesar de ser devido a cada um destes trabalhadores a quantia de cerca de €240,00 a título de vencimento pelos dias que trabalharam no mês de Abril, entregaram a estes um montante inferior, ficando com €30,00 devidos a cada um dos seis trabalhadores, com fundamento nas diligências de legalização realizadas.

76. A empresa D..., UNIPESSOAL, LDA. Registou como seus seis trabalhadores de nacionalidade moldava e cinco deles têm KK como representante fiscal.

77. Mais concretamente, KK aceitou e passou a ser representante fiscal em Portugal de DD, EE, FF, GG e HH.

78. KK igualmente aceitou e passou a ser representante fiscal em Portugal de LL.

79. Desta forma, KK, no âmbito desta organização criminosa, a pedido de CC, aceitava ser representante fiscal em Portugal de cidadãos que se encontravam ilegalmente a prestar trabalho em território nacional, por não possuírem a necessária autorização, o que o mesmo bem sabia.

(…)

87. AA e BB retiraram também vantagens económicas das condutas descritas, através da empresa D..., UNIPESSOAL, LDA., pelo recrutamento de trabalhadores estrangeiros sem procederem ao pagamento de todo o vencimento que lhes era devido, para além de não procederem a todos os descontos legalmente devidos sobre o trabalho destes e respectiva entrega, nomeadamente antes da celebração dos contratos de trabalho escritos.

(…)

198. No dia 17.04.2019, CC contactou o arguido AA e este interlocutor informou CC que os trabalhadores estrangeiros da D... começaram a trabalhar no dia 16.04.2019, sendo que não tinham contratos de trabalho escritos ou autorização do SEF.

(…)

200. No dia 28.05.2019, BB combinou com CC a forma de lhe remeter os cheques com o vencimento dos trabalhadores.

(…)

274. No dia 04.07.2019, foi apreendido:

Na residência de CC:

O montante já referido de E 3.105,00, em 57 notas do BCE com o valor facial de € 20,00, 9 notas do BCE com o valor facial de € 100,00, 21 notas do BCE com o valor facial de 50,00, 1 nota do BCE com o valor facial de € 10,00, 1 nota do BCE com o valor facial de € 5,00,

bem como um computador portátil da marca Toshiba e respectivo carregador.

No veículo, de marca Mercedes, também apreendido, com a matrícula ..-FB-.., de CC:

-   uma anotação manuscrita num papel com o título LL, contendo instruções para regularizar a sua situação em Portugal.

Na residência de MM:

O telemóvel Samsung, modelo Galaxy S9, com os IMEI ...95 / 53 e ...93 / 53;

O passaporte de NN, cidadão estrangeiro menor de idade (nascido a ... .10.2002),

O valor total de € 2.600,00 em 12 notas do BCE com o valor facial de € 50,00, 66 notas do BCE com o valor facial de E 20,00, 68 notas do BCE com o valor facial de € 10,00, dinheiro obtido com a actividade ilícita de MM aqui descrita,

um documento provisório de identificação fiscal referente a lon Cartoflea, com o NIF ...;

-   5 extractos de depósitos bancários em valores - directo, emitidos pela Caixa de Crédito Agrícola de ..., em nome de OO;

29 extractos de depósito em numerário, emitidos pelo Banco BPI de ...;

2 extractos de depósito em numerário na conta titulada por OO e MM, com o n.° ...19 emitidos pelo Banco Millennium BCP de ...;

um telemóvel de marca Wiko;

-   um computador portátil da marca HP, com o respectivo carregador e bolsa.

No veículo de marca Audi, também apreendido, com a matrícula ..-QP-.., modelo A4 Limousine, de MM, entre outros documentos:

-   9 comprovativos de depósitos na conta da Caixa de Crédito Agrícola n.° 208950/001, cujo titular é OO, perfazendo montante não inferior a 17.700 euros, no período compreendido entre 12.12.2018 e 01.07.2019.

Nos escritórios da empresa D..., LDA., na Quinta ...

uma agenda de marca Ivory Paper Collection, do ano de 2019, com a inscrição, a tinta preta "assinatura dos contratos dos moldavos 10 horas", no dia 2 de Maio;

uma pasta com documentação referente a seis cidadãos de nacionalidade moldava em situação ilegal em território português: PP, QQ, RR, HH, FF, DD, angariados pelo Arguido CC;

nos processos individuais destes trabalhadores foram encontrados documentos redigidos em português no qual todos eles assumem a existência de dívidas para com o arguido CC comprometendo-se a saldar a mesma após o recebimento dos respectivos salários e cópias dos seis cheques no valor de E 221,21.

No veículo, de marca BMW, com a matrícula ..-QX-.., de AA:

-   um livro de cheques e uma agenda.

(…)

286. Os arguidos D... UNIPESSOAL, LDA., AA, BB, R..., LDA., SS, T... UNIPESSOAL, LDA., TT, H...COMÉRCIO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS, LDA., UU, H..., LDA., VV, WW, HORTO.... COMÉRCIO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS, LDA. e XX, favoreceram a vinda, permanência e inserção no mercado de trabalho nacional, de cidadãos estrangeiros, que não eram detentores de visto adequado à finalidade da sua estada, ou seja de visto de trabalho, nem de autorização de permanência ou de residência, admitindo-os a trabalhar nessas condições, bem sabendo os mesmos que não o podiam fazer por não terem a situação documental regularizada em Portugal.

Actuaram os arguidos, gerentes das sociedades arguidas, sempre com intenção lucrativa para si e para a sociedade arguida respectiva, agindo assim em conjugação de esforços e vontades em seu nome e em representação da respectiva sociedade.

Sabiam os arguidos que as condutas que assumiam, de forma livre, consciente e voluntária, eram proibidas e punidas por lei penal.

(…)

Por sua vez, consta da Motivação/fundamentação do Acórdão da 1ª instância, que foi reproduzido no referido acórdão da Relação, o seguinte, no que aqui interessa, quanto aos recorrentes:

No tocante à existência da organização direcionada à angariação, transporte, introdução em território nacional e colocação laboral em explorações agrícolas portuguesas, de cidadãos estrangeiros desprovidos de autorização de residência ou visto laboral, foi importante a conjugação das declarações de CC com os relatórios de vigilância e resultado das intercepções telefónicas, aliados aos esclarecimentos prestados pelos inspectores do SEF que depuseram em audiência de julgamento, bem como o teor das declarações dos próprios trabalhadores que mantiveram alguma ligação aos elementos da organização.

CC, ouvido em primeiro interrogatório judicial, reconheceu ter trazido entre dez a quinze pessoas da Moldávia, para trabalharem em Portugal, alojando vários deles em habitação junto da sua, arrendada pelo irmão JJ, cobrando cerca de E150 por pessoa a título de renda, e pagando ao senhorio E320. Reconheceu ainda ter uma boa relação com dois motoristas que traziam os trabalhadores da Moldávia, pagando 130E pela viagem de cada trabalhador e cobrando, posteriormente, a cada um deles o montante de E250.

Mais referiu ter esta actividade desde 2018, assumindo expressamente saber da ilegalidade da sua conduta.

Desde logo, quanto à anterioridade da conduta assumida, foi relevante o depoimento dos trabalhadores YY e ZZ, de cuja conjugação resulta que CC já havia iniciado a sua actividade em 2017. De facto, ZZ esclareceu a data e forma como chegou a Portugal, para trabalhar, em 2017 e a intervenção de CC na sua vinda e colocação laboral.

ZZ esclareceu ainda que CC lhe propôs que angariasse trabalhadores estrangeiros, porque precisava de mais pessoas, oferecendo-lhe cinquenta euros por cada trabalhador. ZZ recusou tal proposta. Porém, a mesma é demonstrativa do procedimento seguido por CC, no sentido de tentar aliciar trabalhadores já instalados para angariarem outros.

Esta testemunha igualmente esclareceu sobre o interesse da organização, dedicada à angariação e colocação laboral em Portugal de imigrantes, em garantir que a maior parte destes trabalhadores apenas ficasse dois ou três meses em território nacional, aludindo, desde logo, ao facto de uma maior afluência de trabalhadores, por curtos períodos, assegurar ganhos económicos superiores.

ZZ informou também que CC contava com a colaboração de uma pessoa na ..., para angariar trabalhadores.

Relativamente às condições do alojamento fornecido por CC, foram relevantes as observações feitas pelos inspectores do SEF, plasmadas no croquis de fls. 629, quanto à fracção G do Edifício ..., bem como as declarações dos próprios trabalhadores que lá residiram, nos termos que serão explicitados mais adiante.

MM, que também fazia parte da organização, em primeiro interrogatório judicial, reconheceu que, no café D..., onde trabalhava com a sua esposa, por vezes o contactavam para saberem se arranjava trabalhadores para as estufas, tendo sido desta forma que conseguiu emprego para trabalhadores vindos da Moldávia, cedendo-lhes um anexo da sua casa como residência, embora — segundo refere — apenas exigindo o pagamento das despesas, que eram divididas.

Quanto a este aspecto, porém, o depoimento do arguido foi desmentido por AAA, que ficou a residir no referido anexo, onde, além da testemunha e do casal de tios, viviam ainda mais seis pessoas, sendo que cada pessoa pagava E150 de renda. Igualmente o marido, BBB, confimou que no referido anexo residiam nove pessoas, pagando 150€ de renda, que incluía água, luz e gás.

NN, nascido a .../.../2002, conforme passaporte reproduzido a fls. 691, também foi ouvido em declarações para memória futura.

O menor NN confirmou que residiu por cima do café D... e, posteriormente, no anexo da casa do arguido MM, pagando E150 a cada três meses. Admite-se que, atenta a idade da testemunha, o arguido tenha cobrado um valor de renda inferior à regra resultante das declarações de AAA e BBB.

Das intercepções telefónicas resulta que CC e MM mantinham contactos relativos à vinda e colocação labora! de trabalhadores. Nesse sentido, são eloquentes, nomeadamente, as sessões 1315, 1327, de 30/03/2019 (Apenso do Alvo ...60), onde os dois irmãos combinam, designadamente, acordar com a entidade patronal que a mesma lhes descontará os valores em dívida da "pensão", pretendendo, dessa forma, aludir à retenção, nos salários dos trabalhadores, de montantes exigidos pela organização a que os dois irmãos pertenciam.

Não obstante CC ter pretendido convencer, nas suas declarações, que não articulava a sua actividade com o irmão MM, tal resulta desmentido nas mesmas intercepções em que este último refere, nomeadamente, que "[m]al [os trabalhadores] cheguem de autocarro, envia-os para ti. Sobem e seguem". Igualmente na sessão 5147 de 26/04/2019 do mesmo Apenso, diz expressivamente CC ao irmão MM: "Ligou-me o chefe", esclarecendo que lhe pedira satisfações sobre o furto a um trabalhador, ficando claro da conversa estabelecida que ambos sabiam a quem se reportavam com a referência a "chefe".

De modo idêntico, a sessão 7279, de 10 de Maio de 2019, do mesmo Apenso, demonstra articulação entre CC e MM, quanto à partilha de informações, controlo e colocação de trabalhadores nas explorações agrícolas, bem como controlo sobre os valores pelos mesmos recebidos, para garantia da cobrança das quantias exigidas no âmbito dos serviços prestados pela organização. Refere CC: "Amanhã sempre vai sair com estes para o trabalho?", respondendo MM: "Eu já lhes mostrei onde sair e tudo (...) e à noite eles vão receber o dinheiro. Tu não lhes dês dinheiro para a comida". CC ainda diz: "Amanhã saem ao XX" e MM refere: "E vê lá quanto é que eles têm que dar porque o homem já perguntou". CC responde: "560" e MM acentua: "Então, pronto, porque ele perguntou-me. «Quanto te vão dar?», acrescentando CC: "Sim, eles sabem e portam-se bem".

Na sessão n.° 6434, do mesmo Alvo, de 6 de Maio de 2019, diz MM: "vem dois «ratinhos» daqueles da ..., amanhã sobem no autocarro...", perguntando CC: "Tem rapariga?" e respondendo MM: "Tem (...) Para ser um casal."

A forma e o conteúdo das conversações entre CC e MM demonstram que estão cientes de que a sua actuação se conjuga e articula com a de âmbito de uma organização destinada à actividade de angariação e transporte de cidadãos estrangeiros para colocação laboral em Portugal.

Ambos, porém, organizam as viagens de trabalhadores angariados na Moldávia, de acordo com as solicitações das entidades empregadoras, denotando controlo de alguns aspectos desta estrutura organizacional.

Atente-se, neste aspecto, quanto a MM, nos depoimentos de AAA e de BBB. Ambos prestaram declarações para memória futura, tendo sido, nesse âmbito, confrontados com as declarações prestadas anteriormente, que mereceram, por parte do Tribunal, maior credibilidade. De facto, os depoimentos prestados na data da inquirição para memória futura foram mais defensivos de MM, assumindo AAA expressamente: "[n]ão tenho nada contra o MM. Ele tem-nos ajudado sempre e esteve connosco quando precisamos dele". Porém, tendo sido lidas as declarações anteriores — que, por essa razão, podem ser valoradas — conclui-se que MM não apenas angariou o casal na Moldávia, a troco de trezentos euros por cada elemento, como propiciou alojamento e disse para quem iriam trabalhar, igualmente arranjando um segundo local de trabalho para estes imigrantes, que trabalhavam dez horas por dia de segunda-feira a sexta-feira, trabalhando oito horas ao sábado, sem qualquer contrato escrito.

Os referidos depoimentos denotam uni controlo, por parte de MM, das várias tarefas desde a angariação até à colocação laboral e alojamento, o que pressupõe algum domínio do funcionamento da estrutura organizacional.

As comunicações entre MM e CCC, em 2018, integrando-se no padrão de contactos com empregadores portugueses, evidenciam que MM já se dedicava à actividade em análise nesse ano, conforme resulta de fls. 1870 e 1871. Tal circunstância é corroborada pelas declarações de DDD, que negociou a cedência do espaço onde funciona o café D... e dos dois apartamentos situados no 1.0 andar do mesmo edifício. Do depoimento desta testemunha resulta que já em 2018 MM alojava pessoas num desses apartamentos, residindo no outro. Igualmente EEE, que foi vizinho de MM, atestou que existia uma grande rotatividade de pessoas aparentemente estrangeiras que residiam no imóvel onde

O envolvimento directo de outros elementos da organização, a quem competia a função de angariação de trabalhadores na Moldávia, de acordo com as necessidades de mão-de-obra transmitidas por empresários de explorações agrícolas, também resulta demonstrado através do resultado das intercepções telefónicas.

Na verdade, FFF, na sessão 12808 do mesmo Alvo, de 15/06/2019, conversa com CC sobre a confirmação da vinda de trabalhadores para Portugal que apenas não chegarão "se acontecer alguma coisa na fronteira" — expressão demonstrativa da consciência da ilegalidade da entrada dos mesmos — e sobre os ganhos resultantes da actividade, concluindo FFF que "[a]ssim que [os trabalhadores] receberem, tiro-lhes a minha parte e corro com eles." Igualmente nas sessões 6588, 7169, 7418 do mesmo Alvo, de 6/05/2019, de 10/05/2019 e de 11/05/2019, os dois indicados interlocutores falam sobre a vinda de trabalhadores estrangeiros, resultando que alguns "foram mandados de volta" —referência que, face ao contexto, é compatível com problemas de acesso ao Espaço Schengen —, e que os trabalhadores são aguardados para colocação em explorações agrícolas. Na sequência dessas conversas, surgem as sessões 7494, 7495, 7643 do mesmo Alvo, de 11/05/2019 e 12/05/2019, demonstrativas da situação de vulnerabilidade dos trabalhadores e das dívidas contraídas, perante as exigências de CC e de FFF.

De forma expressiva, nessas conversações, refere CC: "Há um rapaz e uma rapariga (...) Mas estão no .... (...) eles pagam-te a gasolina, pagam-te o que for necessário, se quiseres ir buscá-los (...) E querem por muito tempo (...) Quanto tu quiseres, por um ano, por meio ano, por oito meses". Posteriormente, tendo o rapaz ficado sozinho, CC diz a FFF que "(...) se quiseres e se precisares, (...) podes buscá-lo a ele. Durante uma-duas semanas arranjas-lhe qualquer coisa, dás-lhe trabalho, tiras-lhe quanto precisares", mais mostrando interesse em recuperar o dinheiro, nomeadamente o que pagou da viagem do trabalhador, correspondente a 135 euros.

FFF confirma, a 12 de Maio, na referida sessão 7643, que trouxe o trabalhador, planeando ambos os arguidos a forma como farão a cobrança dos montantes que reputam devidos.

Do teor das conversações resulta que os arguidos aludem a cidadãos estrangeiros que não detêm autorização para trabalhar em Portugal

encontrava no Algarve e cujo transporte e colocação laboral se encontravam na completa disponibilidade dos arguidos CC e FFF, sendo assim claro que o imigrante não dispunha de contrato de trabalho ou promessa de contrato de trabalho que legitimasse a sua permanência e ocupação laboral no país.

A linguagem utilizada nas referidas conversações, por referência aos trabalhadores, e a forma como os interlocutores se preocupam em obter o pagamento dos montantes que entendem serem devidos, por pagamento de viagens e do serviço de obtenção de colocação laboral, são demonstrativas do desprezo manifestado por estes cidadãos estrangeiros.

Além de FFF, também GGG operava no âmbito da organização em análise, circunstância que resulta designadamente do resultado da intercepção telefónica plasmada na sessão 6442 do mesmo Alvo, datada de 6 de Maio de 2019, em que GGG fala com CC, aludindo à vinda de doze trabalhadores que estão destinados a determinado empregador, que lhes pagará a viagem, dando conta da preocupação deste empregador em assegurar que, uma vez paga a viagem, os trabalhadores não vão trabalhar para outro sítio. GGG refere que deu a garantia de que isso não acontecerá, porque esse assunto é da sua responsabilidade.

Resulta claro do contexto da conversa que GGG e CC falam da vinda de trabalhadores ilegais, apenas aludindo ao seu número, o que transmite uma ideia de indiferenciação de identidade e de possibilidade de substituição, aspectos característicos dos trabalhadores que chegam sem contrato de trabalho ou promessa de contrato de trabalho já celebrado, circunstância cuja verificação surge reforçada pelo facto de ser necessário garantir que tais trabalhadores não irão trabalhar para empregador diferente daquele que já adiantou o dispêndio da respectiva deslocação.

Apesar de resultar da conversação que GGG angariou os aludidos trabalhadores para os colocar a trabalhar em Portugal, não resultaram demonstrados outros actos subsequentes de concretização de tal inserção laboral.

No tocante a KK, o conteúdo das intercepções telefónicas plasmadas nas sessões 6503, 3287, 3290, de 6/05/2019 e 12/04/2019, traduzem uma ligação com CC, que questiona o primeiro sobre se determinados trabalhadores se encontram em laboração, o que aquele confirma — evidenciando colaboração no controlo dos trabalhadores —dando ainda CC instruções para que sejam obtidos números de contribuinte para os trabalhadores estrangeiros, demonstrando KK familiaridade com o tratamento destes assuntos, falando da insuficiência dos documentos e da possibilidade de "envi[arem] os bilhetes de identidade através de autocarro".

A conjugação destes elementos probatórios demonstra que a organização contava com uma distribuição de tarefas pelos vários membros, mostrando os mesmos estarem cientes dos assuntos que se encontravam incumbidos de tratar e da circunstância de a sua actuação se articular e integrar no quadro de uma estrutura organizada.

Apesar de não se ter conseguido apurar o exacto montante auferido pelas tarefas desempenhadas por alguns elementos da organização, nomeadamente por GGG e KK, resulta das regras de experiência comum aplicadas ao comportamento objectivo assumido por estes arguidos que os mesmos actuavam com intenção lucrativa.

Na verdade, as conversações interceptadas demonstram que as alusões aos trabalhadores imigrantes eram impessoais, frias ou mesmo desrespeitosas, o que se coaduna com a utilização dos mesmos numa actividade de natureza económica, afastando a verosimilhança de uma ajuda altruísta ou gratuita.

Das sessões com os n.rºs 1056, 2242, 2275, de 29 de Março, 4 e 5 de Abril de 2019, resulta que CC mantinha uma relação muito próxima com as transportadoras dos imigrantes, nomeadamente com os motoristas que davam informações sobre o decurso da viagem e a iminência da chegada.

No tocante à situação que envolve a arguida D...- Unipessoal, Lda., foram relevantes, desde logo, as declarações prestadas pelo arguido AA, em primeiro interrogatório judicial e em audiência de julgamento.

O arguido assumiu que, apesar de não ser formalmente gerente da sociedade D...- Unipessoal, Lda., desempenhava funções como gerente operacional de tal sociedade, fazendo, nomeadamente, a distribuição de pessoal.

O exercício de tais funções, além de ser assumido pelo próprio arguido, resulta também da circunstância de o mesmo negociar directamente com CC, quer o recebimento de trabalhadores moldavos, quer a

desempenho dos mesmos, como se depreende, desde logo, do conteúdo das intercepções dos contactos telefónicos estabelecidos entre ambos os arguidos.

O arguido AA, nas suas declarações, descreveu a forma como conheceu CC, através de familiar do mesmo, de nome JJ, que tinha trabalhado na recuperação das estufas, após uma tempestade. O arguido AA assumiu a intervenção nas conversas telefónicas interceptadas e relatou o modo como decorreu a negociação com CC, no sentido de o mesmo fornecer trabalhadores moldavos para trabalharem nas explorações agrícolas.

O arguido AA negou que tivesse conhecimento da situação ilegal em que os trabalhadores se encontravam em território nacional, quando os recebeu, tendo confiado que se encontravam legalmente habilitados para trabalhar em Portugal, porque CC lhe tinha assegurado que sim. Porém, não logrou credibilidade nessa parte, porquanto, por um lado, a sua formação e actividade profissional não se mostram compatíveis com um desconhecimento absoluto da exigência de um processo formal de obtenção de visto de trabalho para cidadãos moldavos e, por outro lado, das comunicações telefónicas com CC não resulta qualquer animosidade - como seria normal caso o arguido AA tivesse sido enganado por aquele - mas, pelo contrário, evidencia-se uma relação de simpatia. Idênticas considerações são válidas relativamente a BB, que igualmente sempre mostrou simpatia, nas comunicações interceptadas, por CC.

O arguido AA explicou as condições habitacionais de que os trabalhadores dispunham, referindo que se mantêm as mesmas. Aceitou, porém, que, no exacto momento em que os trabalhadores chegaram às instalações, ainda não tinha sido feita a limpeza do local, que se encontrava sujo por ter sido utilizado pela anterior equipa de trabalhadores, mais referindo que solucionou a falha de água quente, quando tal problema lhe foi relatado, dias depois da ocorrência.

Aludiu ainda às diligências encetadas pela esposa, no sentido da regularização da situação dos trabalhadores, no aspecto legal, tendo tal procedimento sido interrompido pelo facto de o desempenho dos trabalhadores não ser satisfatório, deixando de haver interesse na manutenção da relação laboral.

Nesse contexto, esclareceu quais as diligências realizadas para garantir que a cessação da relação laboral com os trabalhadores fornecidos por CC salvaguardaria, na medida do possível, o pagamento dos créditos que CC invocava e a regularidade documental da contabilidade da sociedade arguida.

Assumiu, ainda que reteve, dos salários dos trabalhadores, montante que reputou justo pela preparação do processo de legalização de cada um dos imigrantes, tarefa que fora assumida pela sua esposa.

Em conjugação com as declarações do arguido AA, relevaram ainda as declarações prestadas em 1° interrogatório pela esposa do mesmo.

Ambos assumiram que, mesmo depois de confessadamente terem constatado a situação ilegal em que os trabalhadores se encontravam, lhes atribuíram trabalho, uma vez que os mesmos não dispunham de dinheiro.

A arguida esclareceu que directamente encetou as diligências necessárias para a legalização dos trabalhadores. Mais explicou o procedimento adoptado para regularizar a cessação da relação laboral com os mesmos, nomeadamente a entrega dos cheques, endossados pelos trabalhadores, a CC.

Das sessões de intercepção telefónica com os Cs 2889, de 9/04/2019, 3509, de 13/04/2019, 3635, de 14/04/2019, do mesmo Alvo, resultam as combinações relacionadas com a chegada prevista dos trabalhadores estrangeiros angariados por CC e levados pelos mesmo a Coimbra e das sessões 4054, de 17/04/2019, do mesmo Alvo, e 4118, do mesmo dia, relativamente ao Alvo ...70, resultam as queixas dos trabalhadores alojados pela D... Unipessoal, Lda., que foram reportadas a AA por CC.

Das sessões de intercepção telefónica com os nºs 7098, 7142, datadas de 10 de Maio de 2019, do Alvo ...60 já aludido, resulta que os arguidos AA e BB se prontificaram a reter valores da remuneração dos trabalhadores, para auxiliar CC a receber o pagamento do montante que alegava que os trabalhadores lhe deviam. Nesta última conversa telefónica, refere CC "você guardou o dinheiro para mim, não?", respondendo BB "foi o compromisso que tínhamos, não é" e, mais adiante "Nós guardamos o cheque, mas eles têm que lho endossar. (...) Nós salvaguardamos o … o … o seu interesse. Percebeu, senhor CC?", "Foi isso que o meu marido se comprometeu e é isso que vamos fazer!", referências que apontam para a existência de um acordo prévio de salvaguarda dos créditos do arguido CC, cujo procedimento concreto foi adaptado à circunstância de os trabalhadores cessarem a relação laboral antes do tempo previsto, por insatisfação da entidade patronal.

Das sessões do mesmo Alvo com os n.°s 7165, de 10/05/2019, 10049 e 10117 de 28/05/2019, 10415, de 30/05/2019, resulta que a arguida BB diligenciou pelo envio dos cheques endossados pelos trabalhadores a CC.

Em conjugação com os referidos meios de prova, relevou a análise dos Apensos VII e CE2, donde constam os contratos de trabalho celebrados e datados de 30 de Abril de 2019, com início de prestação de trabalho prevista para 2 de Maio de 2019, com DD; EE, GG; HH; II; FF.

De tais contratos consta expressamente a referência à aplicabilidade do Instrumento de Regulamentação Colectiva de Trabalho plasmado no contrato colectivo de trabalho celebrado entre a CAP (Confederação dos Agricultores de Portugal) e o SETAAB (Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Agricultura, Floresta, Pesca, Turismo, Indústria Alimentar, Bebidas e Afins), publicado no BTE n.° 18 de 15/05/2018, que prevê, quanto ao horário de trabalho, um regime de adaptabilidade, permissivo de um número de horas de trabalho semanal correspondente a 50 e o aumento do número de 8 horas diárias para mais duas horas diárias, com compensações.

Igualmente se encontram juntos os recibos do vencimento de Maio de 2019, bem como as declarações de dívida assinadas pelos trabalhadores e ainda as cartas em que manifestam a vontade de cessar a relação laboral. Constam ainda as manifestações de interesse relativas aos trabalhadores, resultantes das diligências encetadas para regularizar a situação dos mesmos.

Valorou-se o auto de busca e apreensão nos escritórios da D... Unipessoal, HHH, na Quinta ..., onde foi apreendida a documentação referente aos trabalhadores estrangeiros, nos termos referidos na factualidade assente e já analisados.

Valorou-se também o teor de fls. 1703, 1706 a 1709, 1964 verso, 2065 a 2071, relativamente aos cheques emitidos e endossados a CC, bem como o respectivo depósito. Mais se analisou a documentação relativa à Segurança Social e à celebração de contratos de seguro, nomeadamente fls. 4113, 4144 e seguintes, 4150 e 4151.

Foram também importantes as declarações de HH, que afirmou ter vindo para Portugal em Abril de 2019, com II e FF, tendo CC ido buscá-los à camioneta e tendo pago a viagem, mediante valor que o depoente posteriormente reembolsou.

Mais referiu que trabalhou durante um mês nas instalações geridas pelos arguidos AA e BB, seis dias por semana, começando a trabalhar antes das 8h00 até às 17h00 ou 18h00, com uma hora de almoço e pausa de quinze minutos.

Esclareceu também que tinha ficado acordado que receberiam cerca de 1000 dólares mensais, embora oficialmente apenas constasse o valor de seiscentos euros, a que acrescia alimentação e alojamento.

Porém, apesar de ter trabalhado durante um mês, no final, não recebeu dinheiro nenhum. Esclareceu que a entidade patronal lhes foi entregando dinheiro ao longo das semanas: quarenta euros; cinquenta euros; cem euros. Admite que o restante valor devido tenha sido entregue a CC.

Mais referiu que se verificou situação semelhante com os restantes trabalhadores, confirmando que assinaram os documentos que lhes foram apresentados, apesar de não conhecerem exactamente o respectivo teor.

Aludiu ainda à circunstância de não terem trabalhado nos primeiros dias, por não terem documentos, tendo existido a preocupação de tratar da documentação, por parte da entidade patronal.

Quanto a este último aspecto, consigna-se que, não obstante se admitir que os trabalhadores imigrantes não tenham começado imediatamente a trabalhar, certo é que iniciaram a actividade laboral muito antes da celebração do contrato de trabalho, o que resulta da conjugação das declarações de BB e de AA com as do próprio imigrante HH, que refere ter trabalhado durante um mês.

Face aos períodos de trabalho que HH declarou ter prestado, resulta que não foram pagos todos os valores devidos, nomeadamente, não foi pago na íntegra o trabalho suplementar, nem foram feitos os descontos legais, antes da celebração do contrato de trabalho escrito.

Nesse contexto, salienta-se o teor da intercepção telefónica, sessão n.° 4707 de 22/04/2019, do mesmo Alvo ...60, em que AA refere que os trabalhadores, para compensarem o tempo despendido para obterem o número de contribuinte, trabalharão à noite. Igualmente se salienta que, na sessão 4071, de 17/04/2019, do Alvo ...70, AA informa CC que os trabalhadores já se encontram a trabalhar e que "já trabalharam ontem", resultando inequivocamente que o início da prestação laboral teve lugar antes da celebração dos contratos de trabalho escrito.

Foi ainda analisado o relatório de vigilância de 12/04/2019, que demonstra que o arguido CC se deslocou a Lisboa, na companhia de outro indivíduo, para ambos receberem e transportarem cidadãos imigrantes, conduzindo-os até ao Edifício ..., como já resultava das declarações de HH.

Analisou-se também o teor do extracto bancário de fls. 1964 verso, que atesta o depósito dos cheques endossados pelos trabalhadores, na conta bancária de CC.

Relevou igualmente o relatório junto sobre as instalações de alojamento propiciadas pela D...- Unipessoal, Lda., que foram fornecidas aos trabalhadores imigrantes em análise e cujas condições se mantêm, de acordo com AA.

Foi ainda valorado o comprovativo de depósito autónomo, junto aos autos na fase de julgamento, do montante indevidamente retido aos trabalhadores imigrantes.

(…)

III, director de empresa que fornece mão-de-obra para a D...- Unipessoal, Lda., asseverou que nunca ouviu queixas dos trabalhadores relativamente a esta entidade patronal, depondo sobre as condições de alojamento de que a sociedade dispunha.

Igualmente JJJ, contabilista da D...- Unipessoal, Lda., confirmou a ausência de queixas dos trabalhadores e as qualidades profissionais e humanas dos arguidos AA e BB.

(…)

KKK, fornecedor da H..., Lda., e LLL, amigo de VV e de WW, depuseram sobre o MMM, trabalhador da D...- Unipessoal, Lda., esclareceu sobre as condições de alojamento de trabalhadores que a referida sociedade disponibilizava, bem como sobre o transporte para os cidadãos estrangeiros fazerem compras, atestando as boas qualidades como patrões dos arguidos BB e AA.

Igualmente NNN, como trabalhador da D...- Unipessoal, Lda., embora num depoimento mais incoerente, aludiu às instalações disponibilizadas para alojamento de trabalhadores, manifestando não ter razões de queixa dos seus patrões.

OOO, que também trabalhou para a D...- Unipessoal, corroborou o bom funcionamento desta empresa a testou os esforços de BB para regularizar a situação dos trabalhadores imigrantes.

PPP, director comercial da Quinta ..., igualmente atestou a competência e qualidades de trabalho de AA e de BB, destacando a D...- Unipessoal, Lda. como uma boa referência nacional.

(…)

Do documento de fls. 480 resulta que KK foi representante fiscal de cinco dos seis trabalhadores da D...- Unipessoal, Lda.: DD; EE, GG; HH e FF.

KK foi ainda representante fiscal de lhe QQQ, desde 23/10/2018, tendo igualmente figurado, em relação já cessada, como representante fiscal de LL, em Abril de 2019, conforme resulta de fls. 480.

(…)

Igualmente foram analisados os autos de revista a CC e de busca e apreensão relativos à sua residência, na fracção H do Edifício ..., em ....

(…)

Foi ainda analisado o auto de busca e de apreensão relativo à residência de MM, na rua das ..., n.° ..., onde existiam dois anexos, sendo que um deles dispunha de dois quartos e uma sala, bem como um WC, aí se encontrando dispostas seis camas e o outro dispunha de um WC e de uma área comum.

Igualmente se valorou o auto de busca e apreensão nos veículos automóveis utilizados por CC e por MM.

(…)

No tocante à identidade dos interlocutores das sessões telefónicas, foram relevantes as declarações dos inspectores do SEF, que explicaram a forma como chegaram a tais dados, através de pesquisas nomeadamente em sítios da intemet - atestadas nos autos - mais esclarecendo que, com o tempo, foram reconhecendo as vozes.

Foram valorados os autos de detenção e os restantes autos de apreensão juntos aos autos, bem como as cópias dos passaportes dos imigrantes, que também foram juntas aos autos.

Relativamente ao exercício efectivo da gerência das sociedades arguidas, por parte dos arguidos gerentes, o mesmo resulta quer dos contactos dos mesmos, nos termos das intercepções de conversas telefónicas e SMS, que evidenciam domínio e poder de decisão sobre tais sociedades, nomeadamente ao nível dos trabalhadores, bem como dos elementos probatórios já analisados supra, relativamente a TT, UU e VV.

Relativamente à circunstância de as sociedades arguidas, através dos seus gerentes, terem conhecimento da situação ilegal em que se encontravam os trabalhadores imigrantes, nos termos dados como assentes no elenco da matéria de facto, o Tribunal baseou-se nas regras de experiência comum aplicadas ao comportamento objectivo assumido pelos arguidos. Na verdade, é do conhecimento da população em geral ligada a empresas que o exercício de actividade laboral, por parte de cidadãos estrangeiros não pertencentes à União Europeia, exige prévias autorizações, pelo que se concluiu que a contratação de trabalhadores, não titulares de autorizações de residência ou vistos para trabalhar em Portugal, mesmo antes ou independentemente da outorga do contrato escrito, foi acompanhada da consciência da ilegalidade da situação e da vontade de usufruir da força de trabalho de tais trabalhadores, de forma simplificada e com intenção lucrativa.

A circunstância de alguns arguidos terem procurado informação e encetado diligências, no sentido da legalização dos trabalhadores em análise, não infirma a conclusão sobre a prévia consciência do carácter ilícito da conduta assumida, mas apenas demonstra a vontade de regularizar a situação ilegal.

Nestes termos, não foi conferida credibilidade às declarações de várias testemunhas que, com base nas qualidades pessoais dos arguidos ligados às empresas agrícolas, manifestaram a sua convicção de que os mesmos desconheciam o carácter ilícito das condutas assumidas.

Os restantes elementos subjectivos dados como assentes resultaram de presunção natural extraída da aplicação das regras de experiência comum ao comportamento objectivo assumido pelos arguidos, nos termos apurados e à circunstância de tal comportamento permitir inferir domínio das capacidades cognitivas inerentes ao juízo de imputabilidade criminal.

Desta forma se firmaram as conclusões sobre a intencionalidade, voluntariedade e liberdade de actuação de todos os arguidos, bem como sobre o conhecimento do carácter ilícito das condutas que assumiam, que, desde logo quanto ao crime de extorsão e de tráfico de pescnas é indesmentivelmente do conhecimento de todos os cidadãos penalmente imputáveis, face à ressonância axiológica dos bens jurídicos envolvidos.

No tocante aos crimes ligados à imigração ilegal, o Tribunal também considerou, nos termos já expostos, que os arguidos conheciam o carácter ilícito das condutas assumidas, tendo em conta a sua ressonância axiológica e a actividade exercida pelos arguidos, quer no âmbito da organização que integravam, ligada a estes ilícitos, quer pelas ligações a empresas empregadoras.

Foram ainda valorados os relatórios sociais, que obtiveram a concordância dos arguidos neles visados, bem como as declarações de IRC das sociedades arguidas, sendo que, quanto ao número de trabalhadores, foram valoradas as declarações dos arguidos gerentes.

Foram também analisados os certificados de registo criminal juntos aos autos. No tocante aos factos não provados, não houve produção de prova positiva segura.


Direito

O recurso extraordinário de revisão, previsto nos artigos 449.º a 466.º CPP, é um meio processual (que se aplica às sentenças transitadas em julgado, bem como aos despachos que tiverem posto fim ao processo – art. 449.º, n.º 1 e n.º 2 do CPP – também transitados) que visa alcançar a possibilidade da reapreciação, através de novo julgamento, de decisão anterior (condenatória ou absolutória ou que ponha fim ao processo), desde que se verifiquem determinadas situações (art. 449.º, n.º 1, do CPP) que o legislador considerou deverem ser atendíveis e, por isso, nesses casos deu prevalência ao princípio da justiça sobre a regra geral da segurança do direito e da força do caso julgado (daí podendo dizer-se, com Germano Marques da Silva[3], que do “trânsito em julgado da decisão a ordem jurídica considera em regra sanados os vícios que porventura nela existissem.”).

A sua importância (por poder estar em causa essencialmente uma “condenação ou uma a absolvição injusta”) é de tal ordem que é admissível o recurso de revisão ainda que o procedimento se encontre extinto, a pena prescrita ou mesmo cumprida (art. 449.º, n.º 4, do CPP).

O que, quanto às condenações, se conforma com o artigo 29.º, n.º 6, da CRP, quando estabelece que “Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.”

Tem legitimidade para requerer a revisão os sujeitos indicados no art. 450.º do CPP, entre eles, o condenado ou o seu defensor, relativamente a sentenças condenatórias (ver art. 450.º, n.º 1, al. c), do CPP).

Comportando o recurso de revisão duas fases (a fase do juízo rescindente decidida pelo STJ e a do juízo rescisório, começando esta última apenas quando é autorizado o pedido de revisão e, por isso, acontecendo quando o processo baixa à 1ª instância para novo julgamento) e, sendo esta, a primeira fase (a do juízo rescindente), importa analisar se ocorrem os pressupostos para conceder a revisão pedida aqui em apreço.

Neste caso concreto, invocam os arguidos/condenados, no requerimento/petição desta providência de revisão da sentença condenatória que apresentaram conjuntamente, como seu fundamento, o disposto no art. 449.º, n.º 1, alíneas e) e f), do CPP, apelando ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, que indicam ter declarado com força obrigatória geral a inconstitucionalidade das normas previstas nos artigos 4.º, conjugado com os arts. 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17.07 e, sustentando, em resumo, por um lado que a sua condenação assentou em provas proibidas e, por outro lado, que a factualidade dada como provada baseia-se em provas (informações de operadoras telefónicas, reportagens fotográficas e nos apensos alvo ...60 e ...70, tudo identificando por referência a fls. do processo) adveniente de Metadados recolhidos no decurso do inquérito, que constituem provas nulas e, como tal devem ser declaradas (sendo que, sem esses elementos de prova, inexistiriam quaisquer provas que pudessem sustentar a condenação dos recorrentes e fundamentar os factos dados como provados) e, por isso, concluem que não podiam ter sido condenados, devendo ser revista a decisão condenatória e absolvidos.

Vejamos.

Fundamento do art. 449.º, n.º 1, al. e), do CPP

Dispõe o art. 449.º, n.º 1, do CPP, que “A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;”

Aqui a revisão da sentença transitada em julgado é admissível no caso de se descobrirem provas proibidas nos termos do art. 126.º, n.ºs 1 a 3 do CPP, que serviram de fundamento à condenação.

Assim, vemos que este fundamento introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, distingue esta meio de reação extraordinário que é a revisão do recurso ordinário, uma vez que, por um lado, não se refere à alegação de quaisquer provas proibidas, nomeadamente previstas noutros preceitos legais (caso que pode ser objeto de recurso ordinário), mas apenas abrange as provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º do CPP e, por outro lado, exige que as provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º do CPP, que serviram de fundamento à condenação, tenham sido descobertas após o trânsito em julgado da decisão a rever.

Pois bem.

Os recorrentes invocam que as provas produzidas são proibidas (art. 449.º, n.º 1, al. e), do CPP), por todas as que concorreram para a sua condenação advirem da recolha e conservação de dados móveis e metadados fornecidos pelas operadoras de comunicação, baseando-se no ac. do TC n.º 268/2022, assim concluindo que eram provas nulas, que justificavam a pedida revisão do acórdão condenatório.

No entanto, fizeram-no sem razão, por quatro motivos: primeiro a matéria que invocam quanto às provas que sustentam a sua condenação não obedecerem aos requisitos legais não integra o conceito de prova proibida para efeitos do art. 449.º, n.º 1, al. e), do CPP, antes integraria argumentação que deveriam ter suscitado em sede de recurso ordinário; segundo, esquecem que as provas em que a sua condenação se baseia, nomeadamente, as relativas às escutas telefónicas foram recolhidas mediante autorização judicial, não se verificando a situação descrita no invocado ac. do TC n.º 268/2022, estando os recorrentes a usar indevidamente o recurso de revisão como se fosse um recurso ordinário; terceiro, a sua pretensão de lhes ser aplicado o ac. do TC n.º 268/2022 não integra o fundamento da alínea e), mas antes, a verificar-se, o da alínea f) do n.º 1 do art. 446.º do CPP; quarto, também não alegaram a descoberta de prova proibida nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º do CPP, que tivesse servido de fundamento à condenação, o que inviabiliza a verificação do fundamento previsto no art. 449.º, n.º 1, al. e), do CPP.

A argumentação dos recorrentes, em sede de recurso de revisão, invocando que a prova é nula, nos moldes em que o fizeram, é irrelevante e inconsequente não integrando a descoberta de prova proibida nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º do CPP, que tivesse servido de fundamento à condenação.

Daí que, não se verifica este fundamento que invocaram previsto no art. 449.º, n.º 1, al. e), do CPP.

Como já se referiu, a finalidade do recurso de revisão não é sindicar a sentença condenatória tendo em conta a prova então produzida, o que evidencia que não se pode confundir um recurso extraordinário, com um recurso ordinário, nem tão pouco se pode transformar o recurso extraordinário de revisão em recurso ordinário.

Fundamento do art. 449.º, n.º 1, al. f), do CPP

Dispõe o art. 449.º, n.º 1, do CPP, que “A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;”

Trata-se de um fundamento de revisão introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29.08.

A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do acórdão do TC tem de ser posterior ao trânsito em julgado da sentença a rever e tem de declarar a inconstitucionalidade de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação.

Se a norma declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, não serviu de fundamento à condenação da sentença a rever, não se verifica este fundamento.

Para além de que, nos termos do art. 282.º, n.º 3, da CRP[4], não havendo decisão em contrário do TC (que declara a norma inconstitucional, com força obrigatória geral), ficam ressalvados os casos julgados.

Ora, no citado Acórdão nº 268/2022, de 19.04.2022, o Tribunal Constitucional (TC) decidiu:

a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos n.ºs 1e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição;

b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.

Como sabido, a Lei n.º 32/2008, de 17.07, “Transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações.”

Genericamente as normas da Lei n.º 32/2008, de 17.07, que o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais, pelos motivos que indicou no acórdão n.º 268/2022, relacionam-se com o armazenamento de dados em arquivos, durante o período de um ano, pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações.

Como se refere no mesmo ac. do TC n.º 268/2022 “os dados referidos no artigo 4.º não abrangem o conteúdo das comunicações, dizendo respeito somente às suas circunstâncias – razão pela qual são usualmente designados por metadados (ou dados sobre dados) – cf. Acórdãos n.ºs 403/2015 e 420/2017: (…) A este propósito, o Tribunal Constitucional acolheu, desde o Acórdão n.º 241/2002, de 29/05/2002, uma classificação tripartida (louvando-se, então, nos Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 16/94, votado em 24/06/94, na base de dados da DGSI, n.º 16/94 – complementar, votado em 2/05/1996, in Pareceres, vol. VI, págs. 535 a 573, e n.º 21/2000, de 16/06/2000, no Diário da República – II Série, de 28/08/2000) dos dados resultantes do serviço de telecomunicações. Ali se distinguiram: ‘(…) os dados relativos à conexão à rede, ditos dados de base; os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência), dados de tráfego; dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, dados de conteúdo’.

O conjunto de metadados elencado no artigo 4.º abrange dados de diferente natureza, categorizados na jurisprudência constitucional como dados de base e dados de tráfego.”

Por seu turno, analisando a fundamentação do acórdão transitado em julgado que se pretende rever, particularmente no que se refere à fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto no que diz respeito aos recorrentes (ou seja, analisando a decisão da 1ª instância, bem como o acórdão do TRL de 5.07.2021, transitado em julgado, que julgou parcialmente procedente os recursos, apenas quanto às penas nos moldes acima indicados), verifica-se que (ao contrário do que alegam os recorrentes) apenas foram utilizados declarações prestadas por arguidos (nomeadamente pelos arguidos CC, MM, AA, BB), o depoimento de testemunhas (v.g. HH, III, JJJ, KKK, LLL, NNN, OOO, PPP, inspetores do SEF ouvidos em audiência), prova documental (entre outra, relativo a dois apensos contendo transcrições de conversações telefónicas provenientes de escutas telefónicas autorizadas judicialmente; relativa a apensos contendo prova documental relativa a contratos de trabalho; recibos de vencimento; autos de busca e apreensão, onde também foi apreendida documentação referente aos trabalhadores estrangeiros, nos termos referidos na factualidade assente; documentação relativa aos cheques emitidos e endossados a CC, bem como ao respetivo depósito; documentação relativa à Segurança Social e à celebração de contratos de seguro; relatórios de vigilância externa; extratos bancários; documento de fls. 480; autos de revista a CC e de busca e apreensão relativos à sua residência, na fracção H do Edifício ..., em ...; auto de busca e de apreensão relativo à residência de MM, na rua das ..., n.° ...; auto de busca e apreensão nos veículos automóveis utilizados por CC e por MM; os autos de detenção e os restantes autos de apreensão juntos aos autos, bem como as cópias dos passaportes dos imigrantes, que também foram juntas aos autos; relatórios sociais, que obtiveram a concordância dos arguidos neles visados, bem como as declarações de IRC das sociedades arguidas; os certificados de registo criminal juntos aos autos), sendo todos esses elementos de prova assinalados, conforme acima foi transcrito.

Foram esses meios de prova referidos nessas decisões/acórdãos, analisados também pela Relação no seu acórdão de 5.07.2021 (e, não outros, nem tão pouco, tudo o mais que consta do inquérito, a que os recorrentes apelam para convocar o acórdão do TC n.º 268/2022, alegando que teriam sido aplicados direta ou indireta ou mesmo reflexamente), que foi valorado para fundamentar os factos dados como provados relativos aos recorrentes.

Note-se, ainda, que como bem refere a Srª. Juiz que prestou a informação aludida no art. 454.º do CPP, “As informações das operadoras de comunicações de fls. 23 (NOS), 32 (MEO/Altice) e 36 (Vodafone) não constam indicadas nem valoradas como meio de prova no acórdão condenatório, ou seja, não foram meios de prova que serviram de fundamento à condenação dos arguidos, ora recorrentes. Acresce que as folhas 23, 32 e 36 indicadas pelos recorrentes, são resultados negativos de identificação de IMEI´s por banda das Operadoras de telecomunicações. Ou seja, não foram fornecidos quaisquer dados relevantes pelas Operadoras de Telecomunicações, pois o resultado foi negativo, pelo que aquelas informações para além de não terem sido invocadas no acórdão condenatório e nessa medida em nada relevarem para a condenação dos arguidos, também as mesmas não possuem qualquer relevo. (…) As fls. 630 a 633, 651 a 657 e 668 a 669 invocadas pelos recorrentes, conforme resulta de fls. 626 a 633, fls. 644 a 657 e 664 a 669 (dos autos principais), foram fotografias retiradas nos locais objecto da busca e foram retiradas no âmbito dos mandados de busca e apreensão devidamente autorizados e em obediência aos normativos legais e constitucionais.

Conforme resulta de fls. 626 e 644 tratam-se de mandados de busca e apreensão devidamente autorizados e assinados por Magistrado Judicial e com fundamento nos arts. 174.º, n.ºs 1 a 4, 176.º, n.º 1, art. 177.º, n.ºs 1 e 2, 178.º e 269.º, n.º 1, al. c), todos do CPP (buscas domiciliárias).

A fls. 664 trata-se de mandado de busca e apreensão devidamente autorizado por Magistrada do Ministério Público e com fundamento nos arts. 174.º, n.ºs 1 a 4, 178.º ambos do CPP (busca a estabelecimento comercial).

As fotografias e as apreensões realizadas tratam-se de provas obtidas em tempo real aquando das buscas levadas a cabo pelos OPC, que em nada se confundem com informações obtidas por Operadoras de telecomunicações.

As fotografias elencadas pelos recorrentes como prova nula, não foram recolhidas ao abrigo das normas declaradas inconstitucionais, nem integram metadados, razão pela qual tal matéria é completamente alheia à declaração de inconstitucionalidade do acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional.

As fotografias (de fls. 630 a 633, 651 a 657 e 668 a 669 dos autos principais) retiradas pelo Órgão de Polícia Criminal aquando da execução dos mandados de busca e apreensão, os quais resultam de despachos judicias dados ao abrigo dos artigos 174.º a 178.º do Código de Processo Penal, são provas válidas e não nulas, sendo que de maneira alguma decorrem da aplicação da Lei n.º 32/2008, de 17-07 que obviamente nem é citada em tais mandados, porque em nada se relaciona com tal matéria.

Por sua vez as fls. 43 a 54; fls. 55 a 67; fls. 83 a 89; fls. 170 e 171 do Apenso Alvo ...60 e as fls. 2 a 7, fls. 308, fls. 362; fls. 364, 365; 234, e 437 do Apenso Alvo ...70, são transcrições de interceções telefónicas realizadas através (de/ para) do telemóvel do arguido CC, sendo que as mesmas foram devidamente autorizadas por despacho judicial, nos termos do art. 187.º e 188.º do CPP.”

Ou seja, não há dúvidas, analisando quer a decisão da 1ª instância, quer as decisões da 2ª instância (estando transitada em julgado a decisão da Relação de 5.07.2021, visto que foi negada a arguição de nulidade por acórdão da mesma Relação de 20.10.2021, como os recorrentes bem sabem), que as normas fiscalizadas e declaradas inconstitucionais no ac. do TC n.º 268/2022, não foram nessas decisões aplicadas.

Com efeito, como é bem explicado no ac. do STJ de 6.09.2022[5], não se pode confundir “a disponibilidade, no momento do início da interceção, de um número de telefone ou de um IMEI (International Mobile Equipment Identity ou Identificação Internacional de Equipamento Móvel), não no contexto de comunicações pretéritas, mas destinada à interceção, em tempo real e no futuro, com o fornecimento de dados armazenados pelos operadores, ao abrigo, com o fim e o âmbito da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho.».

E, neste caso concreto, as escutas telefónicas foram autorizadas judicialmente, seguindo o formalismo previsto nos arts. 187.º a 190.º do CPP.

Ora, o regime das escutas telefónicas previsto no CPP, nomeadamente no âmbito da investigação “do crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo art. 183.º da lei n.º 23/2007, de 04.07; tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160.º do Código Penal; extorsão, p. e p. pelo art. 223.º do Código Penal e associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.º do Código Penal”, sendo os três últimos punidos com penas superiores a três anos de prisão, não foi afetado pela declaração de inconstitucionalidade decidida, com força obrigatória geral, pelo ac. do TC n.º 268/2022, como também concluiu o Ministério Público na resposta apresentada na 1ª instância, com a qual o Sr. PGA junto deste STJ concordou, salientando-se (como consta do mesmo ac. do TC) que “a declaração de inconstitucionalidade não abrangeu todos e quaisquer metadados, mas apenas alguns”.

De igual forma, o pedido de identificação do n.º de telefone e/ou do IMEI às Operadoras de telecomunicações para execução de interceções telefónicas, são perfeitamente válidos porque se tratam (como se diz no ac. do STJ de 6.09.2022) “de elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os respetivos registo e fornecimento à autoridade judiciária competente, ao abrigo dos arts. 187º, 189º e 269º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal, não importam desproporcionalidade ou desadequação face ao fim em vista, nem a afetação do direito fundamental à autodeterminação informativa.”

Com efeito, ocorrendo a recolha desta particular prova que questionam em tempo real e para o futuro (como sucede quando, no âmbito de interceções telefónicas judicialmente autorizadas, o JI também autoriza a localização celular dos telemóveis, o registo trace-back e a respetiva faturação detalhada), não se verifica a situação aludida no ac. do TC 268/2022, que se reporta a dados anteriores armazenados, conservados e arquivados nos sistemas informáticos das operadoras, que é regulado pela Lei n.º 32/2008.[6]

Por isso, incorrem em confusão/erro os recorrentes, quando pretendem aplicar neste caso o ac. do TC 268/2022, visto que nestes autos a prova recolhida foi em tempo real e para futuro, como aconteceu no âmbito de interceções telefónicas judicialmente autorizadas, nos termos dos arts. 187.º a 190.º do CPP, cujas normas não foram declaradas inconstitucionais.[7]

Também, como já acima foi dito, as fotografias, mandados de buscas e apreensões efetuadas foram autorizadas pela autoridade judiciária competente, não sendo provas obtidas nulas.

Portanto, uma vez que neste caso concreto o acórdão condenatório, que se pretendia rever, não aplicou normas que tivessem sido declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, no ac. do TC n.º 268/2022, conclui-se que as mesmas não serviram de fundamento à condenação da decisão a rever e, por isso, não se verifica o fundamento invocado previsto no art. 449.º, n.º 1, al. f), do CPP.

Mas, ainda que assim não fosse, também teria de improceder o presente recurso de revisão.

Com efeito, tendo em vista o citado art. 282.º, n.º 3, da CRP e conferindo as normas que o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais, verificamos que estas não são de natureza penal, nem tão pouco podem ser consideradas normas de natureza processual penal e, nem sequer têm natureza substantiva (isto é, não podem ser consideradas normas de natureza penal, nem normas de natureza processual penal e, muito menos de cariz material), como foi bem explicado no acima citado ac. do STJ de 6.09.2022 (para cuja fundamentação se remete e aqui se dá por reproduzida), não afetando os meios de obtenção de prova obtidos de acordo com a lei do processo penal, nem tão pouco os direitos fundamentais dos arguidos.

Assim sendo, face ao disposto no art. 282.º, n.º 3, da CRP, inexiste razão para que a declaração de inconstitucionalidade contida no acórdão do TC n.º 268/2022 fizesse alguma exceção ao caso julgado, pelo que fica ressalvado o caso julgado.

Por isso, permanecem ressalvados os casos julgados, como aqui sucede (o acórdão que condenou os recorrentes estava já transitado, quando foi publicado o acórdão do TC n.º 268/2022 invocado).

Daí que, mesmo nesta análise feita subsidiariamente, sempre prevalecia a segurança do caso julgado do acórdão condenatório dos recorrentes, não podendo ser deferida a pretendida revisão com base no acórdão do TC n.º 268/2022 invocado.

De esclarecer, ainda, para que não restem dúvidas, que também o ac. do TJUE de 8.04.2014 não preenche sequer o fundamento do art. 449.º, n.º 1, al. g), do CPP, desde logo porque não se trata de sentença vinculativa para o Estado português.

Em conclusão: não se verificando os pressupostos da revisão da sentença requerida pelos recorrentes nesta providência, improcede o respetivo recurso extraordinário, apresentado conjuntamente, sendo certo que, pelos motivos indicados, não foram violadas as normas legais invocadas.


III Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar a revisão pedida pelos condenados AA, BB e D..., Lda.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um deles em 4 (quatro) UC`s.

                                                    *

Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria, pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente desta Secção Criminal.

                                                    *

Supremo Tribunal de Justiça, 04.05.2023


Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Pedro Branquinho Dias (Juiz Conselheiro Adjunto)

Teresa Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro Presidente)

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[1] Sic Acórdão do STJ de 06-09-2022, proferido no Proc. n.º 4243/17.0T9PRT-K.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Sumário acessível em www.stj.pt/Jurisprudencia/Acordãos/Sumários de Acórdãos/Criminal-Ano de 2023 (Janeiro).
[3] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo: Lisboa, 1994, p. 359, acrescentando o seguinte: “Há, porém, certos casos em que o vício assume tal gravidade que faz com que a lei entenda ser insuportável a manutenção da decisão. O princípio da justiça exige que a verificação de determinadas circunstâncias anormais permita sacrificar a segurança e a intangibilidade do caso julgado exprime, quando dessas circunstâncias puder resultar um prejuízo maior do que aquele que resulta da preterição do caso julgado, o que é praticamente sensível no domínio penal em que as ficções de segurança dificilmente se acomodam ao sacrifício de valores morais essenciais.”
[4] Artigo 282.º (Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade) da CRP
1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.
2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infração de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última.
3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido. (negrito e sublinhado nosso)
4. Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excecional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n.ºs 1 e 2.
[5] Ac. STJ de 6.09.2022, proferido no processo n.º 4243/17.0T9PRT-K.S1 (relatora Teresa Almeida).
[6] Esta tem sido a jurisprudência praticamente uniforme do STJ. Cf. o mais recente ac. de 13.04.2023 (Lopes da Mota) e variada jurisprudência aí citada.
[7] Aliás, como bem assinala a Srª Juiz da 1ª instância na informação que prestou: “A obtenção da informação do inicio e fim da chamada e hora da mesma e quem foi o número emissor e o número recetor são dados obtidos em tempo real, quando o arguido CC estava a ser escutado, pelo que aquelas interceções telefónicas (sessões) estão autorizadas a coberto de base legal válida e com cobertura constitucional, inexistindo qualquer prova proibida, nos termos do art. 126.º, n.ºs 1 a 3 do CPP. Veja-se neste sentido, Acórdão do STJ 10-01-2023, proferido no Proc. n.º 731/09.0GBMTS-J.S1 - 3.ª Secção “III -As interceções telefónicas, por sua vez, não respeitam a dados de tráfego relativos a comunicações pretéritas, armazenados nos termos da Lei n.º 32/2008, de 17-07, mas a comunicações captadas em tempo real. IV - Mantiveram-se intactas, na sua validade constitucional, as normas do CPP e da Lei do Cibercrime que regulam, respetivamente, as interceções telefónicas e a pesquisa e apreensão de dados eletrónicos armazenados em sistemas (no caso, dispositivos).”