Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
222/18.8T8CSC.L2.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Sumário :
I- Não há “fundamentação essencialmente diferente” quando, no fundamental, o juízo normativo e valorativo da Relação se manteve dentro do enfoque jurídico da decisão recorrida, sem significativa autonomia dogmática

II- A “fundamentação essencialmente diferente” que releva para efeito de admissibilidade da revista não consiste numa qualquer disparidade entre as decisões em confronto, antes se exigindo que essa diferença seja essencial.

Decisão Texto Integral:

Revista n.º 222/18.8T8CSC.L2.S1


MBM/JG/RP


Acordam, em conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA propôs ação declarativa sob a forma de processo comum contra HELIPORTUGAL - Trabalhos e Transporte Aéreo, Representações, Importação e Exportação, S.A., pedindo que o tribunal reconheça a existência de um contrato de trabalho celebrado entre o A. e a R. em 01.05.2013.


Em consequência, pediu a condenação desta a pagar lhe: a) A quantia de 53.828,77 €, a título de subsídios de férias e de Natal e respetivos proporcionais vencidos, acrescida dos que se vencerem até à cessação do contrato de trabalho; b) Juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.


2. A R. contestou, negando a existência de um contrato de trabalho com o A., afirmando que este é trabalhador da empresa Helimalta Limited, com quem a R. celebrou um contrato de prestação de serviços.


3. A ação foi julgada procedente na 1.ª Instância.


4. Interposto recurso pela R. para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), foi proferida decisão singular, julgando improcedente a apelação.


5. Tendo sido objeto de reclamação para a conferência, esta decisão foi confirmada.


6. Inconformada, a R. interpôs a presente revista.


7. O A. contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade do recurso, por alegada existência de dupla conforme, e, subsidiariamente, pelo seu improvimento.


8. Entendendo que, efetivamente, a revista é inadmissível, por a Relação ter confirmado, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, o relator proferiu despacho de não conhecimento do objeto do recuso.


9. O recorrente veio reclamar para a conferência, dizendo essencialmente:


- Por despacho datado de ... de ... de 2022, veio o STJ notificar as partes para se pronunciarem quanto à impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso.


- Por despacho datado de ... de ... de 2023 foi reproduzido o conteúdo do despacho proferido em d......., antes de qualquer pronúncia das partes, alterando somente a conclusão.


- As decisões fundam-se na aplicação de institutos e figuras substancialmente diferentes, que comportam diferentes requisitos e pressupostos.


- A fraude à lei jamais foi objeto de discussão nos autos pelas partes.


- A fraude à lei tem como efeito jurídico a nulidade do negócio tido como fraudulento, sendo esta consequência distinta da que decorre da aplicação da presunção de laboralidade e das regras do Código do Trabalho.


- Enquanto a fraude à lei gira em torno de uma vertente negativa de destruição de efeitos jurídicos de um ou vários negócios que se creem fraudulentos e artificiais, as regras respeitantes à presunção de laboralidade reconhecem uma realidade jurídica distinta, criam uma nova realidade jurídica, comportando, nesta medida, uma vertente positiva que inexiste da primeira das referidas figuras.


- Na concreta situação vertida nos autos o que se verifica existir é uma resolução jurídica distinta, com pressupostos próprios, que se propõe a dar resposta a um mesmo enquadramento fáctico sem, contudo, apresentar quaisquer semelhanças do ponto de vista da discussão jurídica e raciocínio lógico em matéria de aplicação do direito.


10. A parte contrária não respondeu.


Cumpre decidir.


II.


11. É a seguinte a fundamentação do despacho reclamado:


8. “Ambas as instâncias reconheceram a existência de um contrato de trabalho celebrado entre as partes e condenaram a R. a pagar ao A. as quantias peticionadas.


(…) [V]erifica-se uma situação de “dupla conforme”, sendo que a solução jurídica prevalecente na Relação não é essencialmente diferente daquela que foi adotada na sentença apelada – cfr. art. 671º, nº 3, do CPC.


Com efeito:


9. O essencial, em termos de fundamentação, é que ambas as instâncias concluíram que a relação contratual em causa se estabeleceu – realmente – entre o A. e a R. (e não com a empresa Helimalta Limited – cfr. supra nº 2).


Mais tendo ambas considerado que o contrato celebrado se trata de um contrato de trabalho.


10. A 1ª instância considerou que a HELIMALTA LIMITED era apenas uma “sociedade veículo” da ré HELIPORTUGAL, S.A., parqueada em Malta, sendo ambas efetivamente controladas pela mesma pessoa, o presidente do conselho de administração da ré, argumentando-se ainda que: “nenhuma prova foi feita acerca da efetiva subordinação jurídica do autor à referida HELIMALTA LIMITED”; “Após a celebração do mencionado “Contract of Employment” a única ligação que se deteta entre a HELIMALTA LIMITED e o autor é a circunstância de o vencimento do autor ser proveniente de uma conta em nome daquela (pelo menos até Janeiro de 2017, tendo a partir de então passado a ser pago diretamente pela ré), e de o nome da mesma constar dos recibos de vencimento”; “Nada nos autos permite concluir que a atividade do autor é prestada sob a autoridade e direção da HELIMALTA LIMITED, ou seja, que a mesma decorra sob as ordens, orientações e fiscalização da HELIMALTA LIMITED – pelo contrário, tais poderes pertencem à ré”.


11. A Relação lançou mão de um argumentário parcialmente diverso, mas não essencialmente diverso: para chegar à mesma conclusão fundamental, considerou ter a R agido em fraude à lei”.


Em ambas as decisões se revela, no fundo, uma mesma preocupação e o mesmo pressuposto lógico-racional.


Nas palavras da 1ª instância: sendo “premente à tutela dos credores, em termos gerais, o recurso a institutos como, v.g., a desconsideração da personalidade jurídica, face a novas realidades (de que a utilização de empresas Offshore para deslocalização/ocultação de bens é o exemplo paradigmático), no caso do direito laboral a necessidade de tutela dos direitos dos trabalhadores torna ainda mais evidentes tais preocupações”.


Agora no dizer da Relação, a mesma ideia nuclear:


“Tudo indica (…) que nos achamos face a uma falsa situação de externalização de serviços, perante um outsourcing forjado e só existente no papel dos contratos (se os houve verdadeiramente), importando retirar daí as devidas e necessárias consequências jurídicas.


(…)


A R.(…), ao intercalar ou intermediar com a Helimalta, Limited, a sua relação jurídico-profissional com o A., fê-lo com o propósito de usufruir da sua força de trabalho sem os inerentes deveres da relação de trabalho subordinada que daí decorriam, tendo para o efeito utilizado a autonomia jurídica e a interposição formal das referidas pessoas coletivas como expediente fraudulento (como uma “máscara”) para contornar tais obrigações de índole laboral, que não pretendia assumir”.


(…)”


12. Em ambas as instâncias, foi considerado que o A. era sujeito de uma relação jurídica laboral, conclusão que, logo à partida, não suscitava qualquer dúvida.


A própria ré nunca o contestou nos autos, sustentando antes, num plano totalmente diverso, que o autor nunca foi seu funcionário, mas sim da HELIMALTA LIMITED.


Porém, quer a 1ª instância, quer a Relação, desconsideraram a personalidade jurídica da HELIMALTA LIMITED e concluíram que a R. era a efetiva empregadora do A.


É patente que o cerne das suas linhas argumentativas é essencialmente o mesmo (a desconsideração da personalidade jurídica da referida empresa), sendo indiferente (e irrelevante) afirmar que “a HELIMALTA LIMITED era apenas uma “sociedade veículo” da ré HELIPORTUGAL, S.A., parqueada em Malta, sendo ambas efetivamente controladas pela mesma pessoa” (palavras da 1ª instância), ou, como considerou a Relação, que a R agiu em “fraude à lei”.


No fundamental, o juízo normativo e valorativo da Relação manteve-se dentro do enfoque jurídico da decisão recorrida, sem significativa autonomia dogmática, sendo certo que a “fundamentação essencialmente diferente” que releva para efeito de admissibilidade da revista não consiste numa qualquer disparidade entre as decisões em confronto, antes se exigindo que essa diferença seja essencial (ou seja, um enquadramento jurídico claramente diverso e diferenciado).


Em suma, a Relação confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, pelo que não é admissível a revista, nos termos dos arts. 671.º, n.º 3, e 652.º, n.º 1, b), do CPC.


III.


13. Nestes termos, indeferindo a presente reclamação para a conferência, acorda-se em confirmar o despacho proferido pelo relator.


Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.


Lisboa, 08 de março de 2023


Mário Belo Morgado (Relator)


Júlio Manuel Vieira Gomes


Ramalho Pinto