Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
078783
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: VENDA JUDICIAL
NOTIFICAÇÃO
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ1993092900070783
Data do Acordão: 09/29/1993
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Referência de Publicação: DR IS 1993/11/24, PÁG. 6530 A 6535
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
A notificação a que se refere o n.º 2 do artigo 882.º do Código de Processo Civil deve incluir a indicação do dia, hora e local da venda por arrematação em hasta pública e tem de repetir-se caso haja adiamento ou realização de segunda ou terceira praças
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA recorreu para o pleno deste Tribunal com fundamento em oposição entre os Acórdãos deste mesmo Tribunal de 1 de Março de 1990, proferido no processo n.º 78782, da 1.ª Secção, e de 16 de Junho de 1970, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 198, a pp. 101 e seguintes.
Reconhecida a existência da alegada oposição, o recurso prosseguiu.
Nas suas alegações os recorrentes pedem que se revogue o acórdão recorrido e se lavre assento em que se fixe que «o artigo 882.º, n.º 2, do Código de Processo Civil apenas determina a notificação do despacho que ordena a venda e respectiva modalidade, não obrigando a notificar dia, hora e local das praças, nem ao exequente, nem ao executado, nem aos credores reclamantes com garantia real».

O recorrido sustena que deve firmar-se assento no sentido de que «exequente e credores reclamantes munidos de garantia real têm iguais direitos, devendo por isso ser notificados do dia, hora e local da arrematação para as hastas públicas que sejam ordenadas».
O Exmo. Magistrado do Ministério Público pronuncia-se pela revogação do acórdão impugnado e pela solução do conflito de jurisprudência através de assento, para o qual propõe o seguinte texto:
O artigo 882.º, n.º 2, do Código de Processo Civil apenas determina a notificação do despacho que ordena a venda e respectiva modalidade, não obrigando a notificação do dia, hora e local das vendas ao exequente, executado e credores com garantia sobre os bens a vender.
Cumpre decidir.
O tribunal pleno não está vinculado à decisão preliminar da secção, como expressamente dispõe o n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil.

Há, pois, que reexaminar a questão, com o fim de decidir se se verificam os pressupostos que condicionam o conhecimento do objecto do recurso.
Fazendo esse reexame, concluímos que são idênticas as situações de facto apreciadas nos dois acórdãos que se dizem em oposição, pois em ambos se versou a questão fundamental de saber se é obrigatória a notificação aos credores com garantia real sobre os bens a vender em hasta pública dos despachos que adiam a primeira praça ou marcam a segunda praça.
Efectivamente, no acórdão fundamento a situação era esta: em inventário facultativo foi deliberado proceder à venda de bens da herança, por arrematação em hasta pública, para pagamento de dívidas vencidas e aprovadas.
A primeira praça foi marcada para certo dia, mas veio a ser adiada para data posterior e os bens foram então vendidos.
Credores com hipotecas inscritas sobre os prédios arrematados requereram a anulação das vendas com fundamento na falta de notificação do despacho que adiou a arrematação, vindo este Supremo Tribunal a decidir que, neste caso, não havia que notificar aos credores o novo dia e hora da arrematação e manteve as vendas.
No acórdão recorrido o caso que se discutiu foi o seguinte: em execução para pagamento de quantia certa foi arrematada em hasta pública (segunda praça) fracção autónoma oportunamente penhorada.
Um credor, titular de crédito verificado por sentença, com garantia real sobre aquela fracção, arguiu a nulidade de não ter sido notificado do despacho que ordenou a segunda praça e requereu a anulação da venda.
Este Tribunal decidiu pela necessidade dessa notificação, tendo anulado a venda.
Vê-se, pois, ao contrário do sustentado no douto voto de vencido, a fls. 39 e 39 v.º que foi exactamente igual a questão fundamental decidida.
Por outro lado, não houve, durante o intervalo de publicação dos dois acórdãos, qualquer modificação legislativa a interferir, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
Os dois arestos foram proferidos em processos diferentes e presume-se o trânsito em julgado do acórdão anterior.
É assim de reconhecer a oposição entre os mencionados acórdãos, proferidos no domínio da mesma legislação (Código de Processo Civil) relativamente à mesma questão fundamental de direito, pelo que se considera justificado o recurso para o tribunal pleno, passando a conhecer-se do seu objecto.
Ora, vejamos.
Segundo o artigo 882.º do Código de Processo Civil, com base no qual foram proferidos os acórdãos em oposição:

1 - A venda dos bens penhorados pode ser judicial ou extrajudicial.
2 - O despacho que ordene a venda é notificado ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender.

Como bem se diz no acórdão recorrido, o Código de Processo Civil de 1939 limitava-se a prescrever na segunda parte do corpo do seu artigo 882.º que a venda podia ser judicial ou extrajudicial. Com a revisão feita em 1961, o mesmo preceito alargou o seu campo de aplicação, impondo que o despacho determinativo da venda fosse notificado ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender. O relator do projecto de revisão da acção executiva (conselheiro Lopes Cardoso) justificou este alargamento com o objectivo de «dar satisfação ao preceituado pelo § único do Decreto n.º 33276, de 24 de Novembro de 1943, ao mesmo tempo ampliado e generalizado» (cf. Manual da Acção Executiva, edição da INCM, 1987, p. 564).
De facto, o artigo 4.º e § 1.º do Decreto-Lei n.º 33276, expressamente mantidos em vigor pelo artigo 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 693/70, e pelo artigo 161.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 694/70, ambos de 31 de Dezembro, e até há pouco vigentes, estabelecem:
Nos processos em que a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência ou alguma das suas instituições anexas sejam exequentes ou reclamantes, o agente do Ministério Público, logo que designado o dia para a arrematação ou decidida a venda por meio de propostas em carta fechada ou por via de negociação particular, comunicará o facto à administração da Caixa, remetendo-lhe uma relação dos bens a pracear ou a vender, donde conste, quanto a cada um dos bens, o encargo que o agrava, o valor por que será posto em praça ou o preço mínimo que houver sido fixado para a negociação particular.
Tratando-se de prédios, apontar-se-á ainda na relação o número da descrição na Conservatória e o artigo da inscrição na matriz, se o processo para tanto fornecer elementos.
§ 1.º Serão notificados ao agente do Ministério Público, no prazo máximo de vinte e quatro horas, os despachos que, nos processos visados pelo artigo, designem dia para a arrematação ou decidam sobre a venda por meio de propostas em carta fechada ou por via de negociação particular.
Com a adopção deste regime, através da reforma de 1961, teve-se em vista tornar menos desigual a posição do credor Estado, ou entidades equiparadas, da do credor comum e por isso se julgou não existir motivo relevante para excluir a notificação do exequente, executado e credores reclamantes quando se designa a venda.
No acórdão fundamento, para se justificar a omissão de notificação das circunstâncias de tempo e lugar da venda, invoca-se uma das modalidades desta, ou seja, a venda por negociação particular em que se torna materialmente impossível fixar aquelas indicações no respectivo despacho.
É certo que na venda por negociação particular não é materialmente possível fixar, através de prévio despacho que a ordene, as circunstâncias de tempo e lugar, mas não pode deduzir-se daí que fica satisfeito o disposto no n.º 2 do artigo 822.º do Código de Processo Civil, desde que seja notificada a venda dos bens com a indicação da respectiva modalidade, sem qualquer outra indicação.
Na verdade, tendo-se querido ampliar e generalizar todas as formas de venda o sistema preconizado no artigo 4.º, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 33276, como nos elucida o autor do projecto de revisão do processo executivo (Sr. Conselheiro L... C...), a bem pouco se reduziria essa ampliação! ...
Repare-se em que até para a venda por propostas em carta fechada houve necessidade de alterar o artigo 893.º do Código de Processo Civil possibilitando a todos - exequente, executado e credores - a assistência à abertura das propostas, o que só se torna exequível se previamente foram, para tanto, notificados.
No Acórdão de 16 de Junho de 1970 argumenta-se ainda com o disposto nos artigos 892.º, n.º 1, e 902.º, n.º 3, ambos do Código citado, o primeiro a prescrever que os titulares do direito de preferência na alienação dos bens «são notificados do dia e hora da arrematação ou do dia e hora da entrega dos bens ao proponente», e o segundo, depois de tratar da publicidade da segunda praça, a dispor que «não se repete a notificação dos preferentes», afirmando de seguida:
Se a diversa redacção dos artigos 882.º, n.º 2, e 892.º, n.º 1, torna bem claro que num caso se manda e no outro se não manda notificar o dia e hora da arrematação, o disposto no artigo 902.º, n.º 3, evidencia que até os preferentes, apesar do regime especial de que beneficiam, têm de contar apenas consigo, com a sua atenção e a sua vigilância, após a primeira praça.
Salvo o devido respeito, não é assim.
Efectivamente, as razões que levaram o legislador a não incluir a expressão «dia e hora» no n.º 2 do artigo 822.º parecerem claras: por um lado, não é possível cindir em dois o despacho determinativo da arrematação em hasta pública (primeiro, dizer a modalidade da venda e, depois, indicar o dia, hora e local onde se realiza), pois, como salienta o Exmo. Conselheiro E... C... G... no voto de vencido no acórdão fundamento, é através dos despachos que fixam a data das hastas públicas que se ordenam as vendas e, por outro lado, esta disposição está incluída na subsecção V, divisão I, que trata das «modalidades da venda», havendo algumas em que não é materialmente possível fixar dia e hora (todas as extrajudiciais, ao que parece).

Por outro lado, como se acentua no acórdão recorrido, a razão que levou a dispensar a notificação dos titulares de direitos de preferência quando se trate de segunda praça é outra. Como diz Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. II, p. 342:
Se os preferentes forem notificados pessoalmente e não se apresentarem no acto da praça ou da entrega dos bens ao proponente, a fim de exercerem nesse acto o seu direito de preferência, a consequência é a seguinte: perdem o direito. Ficam, portanto, inibidos de o exercer posteriormente, quer no processo de execução, dado o caso de a primeira praça ficar deserta e haver segunda praça ou venda por propostas ou por negociação particular, quer mediante proposição de acção de preferência.
E acrescenta o mesmo professor:
Notificado pessoalmente o titular do direito de preferência, se ele não comparece no momento próprio para exercer o seu direito, o facto não comporta outra interpretação razoável que não seja esta: não quer preferir, renuncia a exercer o direito de preferência.

Assim, aparece como lógica a disposição do artigo 902.º, n.º 3, ao dispensar a repetição das notificações aos preferentes em caso de segunda praça, pois é inadmissível notificar alguém para exercer um direito já perdido.
Simplesmente, esta é apenas uma das situações possíveis: a de os notificados para o exercício do direito de preferência não comparecerem ao acto. Nesse caso, sim, poderá eventualmente concluir-se que a sua não comparência traduz renúncia ao exercício do direito e que, por via disso, a notificação para a segunda praça ou a do adiamento da primeira seriam perfeitamente inúteis.
Mas os preferentes podem ter comparecido (e esta é outra das situações possíveis) e, se assim for, logo terão conhecimento do despacho do juiz (adiando a praça ou designando dia para a segunda), nos termos do preceituado no artigo 901.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pelo que também a sua notificação seria perfeitamente injustificada.
Seja como for, uma coisa é certa: não há disposição que dispense a notificação do exequente, executado e credores reclamantes, caso se proceda a segunda praça, podendo até usar-se para defesa da sua necessidade o argumento a contrario sensu extraído do n.º 3 do artigo 902.º, não distante da consabida falibilidade deste tipo de argumento.
Com efeito, se a lei dispensa a notificação dos preferentes (princípio excepcional, insusceptível de interpretação extensiva, segundo cremos), então a regra geral, aplicável aos demais casos, será a da notificação.
Para além de quanto vem referido, acrescentaremos ainda o seguinte: conforme estabelece o artigo 229.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, devem ser notificados, sem necessidade de ordem expressa, as sentenças e os despachos que a lei mande notificar e todos os que possam causar prejuízo às partes.
Ora, é indiscutível, cremos, que o despacho que adia a realização de uma «praça» como o que designa dia e hora para arrematação em hasta pública, em segunda ou terceira praça, de bens penhorados em processo de execução podem causar prejuízo às partes (exequente, executado e credores), quer pela possível degradação do preço da venda, se não for desenvolvida qualquer actividade em defesa da praça com vista à sua valorização, quer até pela não consumação da venda por esse meio.
Por ser assim, tais despachos hão-de ser notificados a todos os intervenientes no processo executivo (exequente, executado e credores) por imperativo do citado artigo 229.º, n.º 2, segunda parte, do Código de Processo Civil.
O acórdão recorrido, considerando que não foi notificado ao ali recorrente (credor com garantia real sobre o bem vendido) o despacho que designou dia e hora para arrematação em hasta pública, em segunda praça, do prédio penhorado, teve por verificada a infracção do artigo 201.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e anulou a venda.
Frente ao que atrás ficou exposto, entendemos que decidiu bem.
Assim, mantém-se a decisão do acórdão recorrido e, nos termos do artigo 768.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, formula-se o assento seguinte:

A notificação a que se refere o n.º 2 do artigo 882.º do Código de Processo Civil deve incluir a indicação do dia, hora e local da venda por arrematação em hasta pública e tem de repetir-se caso haja adiamento ou realização de segunda ou terceira praças.
Custas pelo recorrente.


Lisboa, 29 de Setembro de 1993.

Eduardo Martins - Costa Raposo - Martins da Costa - Pais de Sousa - Gusmão de Medeiros - Araújo Ribeiro - Mateus da Silva - Sá Couto - Costa Pereira - Dias Simão - Sousa Guedes - José Magalhães - Mora do Vale - Santos Monteiro - Coelho Ventura - Ramos dos Santos - Guerra Pires - Dionísio de Pinho - Alves Ribeiro - Ferreira da Silva - Zeferino Faria - Carlos Caldas - Faria de Sousa - Pereira Cardigos - Chichorro Rodrigues - Sá Ferreira - Silva Cancela - Teixeira do Carmo - Calixto Pires - Folque Gouveia - Machado Soares - Cardona Ferreira - Amado Gomes - Correia de Sousa - Cura Mariano - Sousa Macedo - Lopes de Melo - Ferreira Vidigal - Ferreira Dias - Pinto Bastos - Figueiredo de Sousa - Miguel Montenegro - Martins da Fonseca - Mário Noronha - Fernando Fabião - César Marques - Sampaio da Silva - Roger Lopes - Ramiro Vidigal - Silva Reis - Sá Nogueira [vencido. Quando há lugar a uma segunda praça, numa venda judicial, não há que proceder à notificação aos credores do despacho que designa o dia e hora em que a mesma se irá realizar, por não ser aplicável a esta situação o comando do artigo 882.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que determina que «o despacho que ordene a venda é notificado ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender».
Com efeito, resulta dos dispositivos legais (artigos 890.º, 892.º e 902.º do Código de Processo Civil) que a venda em hasta pública é um acto judicial complexo que se desdobra em diversas fases - marcação da primeira praça, eventual realização ou não realização desta; escolha da nova modalidade, oficiosamente ou a requerimento de interessados, ou designação de segunda praça, caso a primeira fique deserta; repetição deste segundo formalismo, no caso de a segunda praça ficar igualmente deserta.
Quando haja lugar à efectivação de uma segunda praça, dispõe a lei que o formalismo é especialmente reduzido, pois a notícia da sua realização é dada por um único edital, afixado com a antecedência mínima de cinco dias e por um único anúncio, publicado com igual antecedência, ao mesmo tempo que a afixação do edital é feita apenas na porta do prédio urbano, se a venda respeitar a este tipo de bem, ou na do edifício onde deve realizar-se a arrematação (artigo 902.º).
E, significativamente, o n.º 3 do mesmo artigo estatui que se não repete a notificação aos preferentes.
Sobre esta matéria parece-me bem significativa a história do instituto «venda judicial» em que se inserem os artigos invocados:
Pelo regime que vigorava, com alterações, desde o século XVII (Resolução de 6 de Março de 1662, Lei de 20 de Junho de 1774, §§ 17.º, 21.º a 24.º e 27.º a 29.º, e Alvarás de 6 de Julho de 1807 e de 21 de Janeiro de 1809), diversos bens a vender em hasta pública em execuções da Fazenda seriam forçadamente adjudicados a certos credores («pessoas de cabedais»), de acordo com regras fixadas pela lei, quando não houvesse lançadores voluntários na primeira praça.
Contra esta situação, considerada injusta, reagiu o Código de Processo Civil de 1876, como ensinou Dias Ferreira (Código de Processo Civil Annotado, Tipografia Lisbonense, t. II, 1888, a pp. 348 e seguintes).
Por este Código, instituiu-se a obrigatoriedade da efectivação de segunda e de terceira praças, quando não houvesse lançadores nas anteriores ou quando não houvesse requerimento de qualquer credor graduado para lhe serem ajudicados os bens pelo valor pelo qual os bens iam à praça, e determinou-se que entre a primeira e a segunda praças, tal como entre esta e a terceira, mediariam sempre sete dias, pelo menos, prazo este que havia sido adoptado em virtude de, fora de Lisboa e do Porto (e no Funchal, depois da Carta de Lei de 16 de Julho de 1885), as arrematações judiciais terem obrigatoriamente lugar aos domingos ou em dias santificados (tal como ocorria na primitiva redacção do Código de Processo de 1939), e para qualquer das segunda e terceira praças não se notificavam os preferentes, uma vez que estes tinham já sido citados para assistirem à primeira praça (artigos 841.º, 842.º, 848.º e 867.º e seguintes).
A mudança do prazo entre as praças passou a ser de seis dias, pelo menos (cf. o nº 1 do artigo 902.º do Código actual), e tal alteração foi motivada unicamente pela circunstância de terem surgido dúvidas sobre se o prazo anterior, de sete dias, permitia ou não a prática uniforme de se marcar a segunda praça para o domingo seguinte àquele em que se realizara a primeira.
Ao mesmo tempo, a eliminação da obrigatoriedade de realização da praça ao domingo ou em dia feriado, resultante da reforma processual de 1961, foi motivada apenas pelo facto de se ter reconhecido que, por um lado, se justificava que as pessoas que prestam serviço nos tribunais também tivessem direito a um dia de descanso semanal, como os restantes cidadãos, e que, por outro, o desenvolvimento dos meios de comunicação e a evolução das mentalidades já operados permitiam que as praças pudessem ser conhecidas e acompanhadas por número suficiente de pessoas, se se não realizassem aos domingos e dias equiparados, com a vantagem adicional de se poderem cumprir imediatamente diversas formalidades de carácter económico (depósito de parte do preço na instituição bancária adequada, etc.).
A ideia fundamental, no entanto, continuou a ser a mesma: a venda judicial é um acto de natureza complexa - sempre com a intervenção do juiz - que se desdobra por várias fases sucessivas, algumas das quais só podem surgir se se verificarem determinados requisitos, mas em cujo desenvolvimento se não perde o carácter unificante de toda a actuação do tribunal.
Foi o reconhecimento desta realidade que esteve subjacente ao Acórdão deste Supremo de 16 de Junho de 1970, no Boletim, n.º 198, p. 101, que serve de fundamento ao presente pedido de formulação de assento, quando nele se escreveu:
[...] a inovação do citado artigo 822.º, n.º 2, relativamente ao Código de 1939, não teve por finalidade dar qualquer relevo a dia, hora e local da arrematação, mandando notificar de tais circunstâncias as partes na acção executiva e os credores com garantia sobre os bens.
Outro foi o objectivo visado com o aditamento.
Efectivamente, o n.º 2 do artigo 882.º teve por fonte o artigo 4.º do Decreto n.º 33276, de 24 de Novembro de 1943, e com esta disposição queria-se somente pôr de sobreaviso ou «alertar» o Ministério Público, como representante da Caixa Geral de Depósitos, para as vendas a realizar nas execuções em que a Caixa fosse exequente ou apenas credora, devendo notar-se que a única referência a data da venda, feita no § 1.º do citado artigo 4.º, foi pura e simplesmente eliminada do texto incluído no Código de Processo Civil, talvez porque a simples «notificação da venda», por si, realizava o sobreaviso ou o alerta procurados.

Essa a posição que hoje, «notificados do despacho que ordene a venda», ao abrigo do citado artigo 882.º, n.º 2, devem tomar exequente, executado e credores quanto aos ulteriores termos relativos ao acto ordenado.
Todos têm de estar atentos e de ser diligentes, e só assim poderão conhecer datas e locais das vendas e evitar prejuízos que o descobrimento de tais factos pode acarretar - e isso, repete-se, porque a lei não manda notificar despachos que fixem aquelas datas e locais.
Todo este regime indica que, por um lado, o legislador entendeu que a venda judicial é, como referi, um só acto judicial complexo que, embora com diferentes fases, não perde essa natureza unitária por as comportar, e que, por outro, o mesmo legislador considerou que as exigências da rapidez e continuidade dos diversos actos que o compõem implicam a redução dos correspondentes formalismos ao mínimo indispensável, dentro da ideia de que, por se tratar de um acto único, se bem que complexo, se não justifica a repetição de diligências relativas a pessoas a quem foi dado o adequado conhecimento da actuação do tribunal logo no início do mencionado acto.
Disto resulta que, na graduação dos valores - garantias da defesa dos direitos dos titulares de um direito de preferência, através do conhecimento das circunstâncias essenciais da venda, e unificação dos actos judiciais respeitantes a uma determinada modalidade da transmissão forçada de bens do devedor relapso -, o legislador deu prevalência a este último e considerou que o primeiro ficava adequadamente protegido com a notificação dos credores para a primeira praça, com indicação, quanto a esta, da data, hora e local da sua realização.
Para além disso, e por outro lado, deverá concluir-se que os credores graduados são, em certa medida, também preferentes, e, nessa medida, a sua notificação dos elementos da segunda praça não acarreta qualquer nulidade.
Como se referiu, o n.º 2 do artigo 882.º do Código de Processo impõe o dever de notificar o despacho que ordene a venda ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender.
Significa isto que tais credores são sempre, e apenas, aqueles que gozam de um dado direito de preferência no pagamento dos seus créditos quanto à transmissão dos bens que são praceados, quer ele resulte de terem a seu favor uma hipoteca, uma penhora, ou um privilégio creditório (artigos 865.º do mesmo Código e 686.º, 822.º e 733.º do Código Civil).
A lei diz-nos que estes credores têm o direito de serem pagos dos seus créditos pelo produto dos bens sobre os quais gozam do direito real (penhora, hipoteca, privilégio creditório) de que beneficiam, preferencialmente em relação a outros credores, e de, na adjudicação dos bens, estarem dispensados do depósito do preço correspondente ao valor do seu crédito, relativamente aos restantes credores que se encontrem graduados abaixo de si.
Verificam-se, assim, as adequadas características do direito de preferência (direito privilegiante de alguém, respeitante a uma coisa, por força do qual o respectivo titular pode tomar uma atitude de aquisição de bem real de terceiro que beneficia o seu património, em detrimento de outrem) que permitem considerar os credores privilegiados e graduados, em processo executivo, como titulares de um verdadeiro direito de preferência quanto à alienação dos bens sobre os quais têm garantia real.
Eles são, assim, credores preferentes, que, embora dotados de um especial estatuto de preferência, não deixam, mesmo assim, de ter essa qualidade. Como tais, encontram-se abrangidos pelo preceito expresso do mencionado n.º 3 do artigo 902.º, o que implica não haver lugar à sua notificação para a segunda praça.
Assim, as considerações que em contrário se possam tecer serão muito válidas de jure condendo, mas perfeitamente ininvocáveis à luz do direito vigente, dado o comando imperativo do n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil.
Daí que entenda, à luz dos preceitos indicados, que o assento devia ser proferido no sentido de que «o despacho que marca o dia, hora, e local para uma segunda praça na venda judicial não tem que ser notificado aos credores com garantia sobre os bens a vender»].

Declaração de voto
Os assentos (artigo 2.º do Código Civil) reconduzem-se a actos de natureza normativa, traduzindo verdadeiras normas jurídicas legislativas, revestidas de eficácia impositiva universal (cf. Castanheira Neves, O Instituto dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, pp. 292 e seguintes, e «Assento», in Polis, I, p. 419; Gomes Canotilho, Revista de Legislação e Jurisprudência, 124.º, p. 131).

Ora, a função legislativa não compete aos tribunais (artigo 205.º da Constituição da República).
De contrário, o múnus judicial, ao ser chamado, através dos assentos, a exercer tal actividade, assumiria um carácter que está em aberta contradição com o sentido que lhe deverá corresponder no sistema político do Estado de direito dos nossos dias, baseado no princípio democrático da separação de funções, constitucionalmente consagrado no artigo 114.º, n.º 1:
Os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição. [Cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., pp. 700 e seguintes.]
Como decidiu a Comissão Constitucional, «haverá inconstitucionalidade - por violação da norma do artigo 114.º, n.º 1, ou do princípio constitucional da divisão e repartição de funções entre os diferentes órgãos de soberaria - sempre que um órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro diferente órgão» (cf. Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 8.º, 1980, p. 212).
Tal competência cabe à Assembleia da República e ao Governo (cf. os artigos 164.º e 201.º da Constituição da República Portuguesa).
E este será, supomos, o entendimento do Tribunal Constitucional.
Na verdade, ao declarar, como tem acontecido, a inconstitucionalidade de assentos, partiu da sua natureza normativa, como tudo decorre, designadamente, dos artigos 225.º, 277.º e 281.º da Constituição.

É nesta linha de entendimento que deve situar-se a correcta interpretação do artigo 115.º, n.º 5, da lei fundamental:
Nenhuma lei pode criar outra categoria de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
A doutrina mais autorizada é no sentido de que os assentos devem ser qualificados como lei interpretativa (cf. as indicações feitas no Código Civil Anotado, de A. Neto e H. Martins, 6.ª ed., p. 26).
Em oposição ao que vem de ser dito, não pode invocar-se o artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da Constituição.
É que este normativo, na lógica do sistema constitucional, e no panorama legislativo actual, só pode referir-se à declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, dos regulamentos administrativos (artigo 66.º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos).
Em consequência, não votei o presente assento. - Ferreira da Silva.

Declaração de voto
1 - Tempos atrás, concretamente em diversos acórdãos da Relação de Évora em que intervim como relator, e por referência ao artigo 115.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP), pronunciei-me pela inconstitucionalidade orgânica de determinados assentos (todos eles posteriores à entrada em vigor da primeira revisão constitucional, e todos eles incidentes sobre normas contidas em leis em sentido formal (as quais, hoje, e como é sabido, são as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais).

Agora, repensada a questão, passei a sustentar posição diametralmente oposta.
Ao subscrever, no Supremo Tribunal de Justiça, o presente assento, tenho, pois, por pertinente explicar, ainda que brevemente, as razões desta mudança de atitude.

2 - Sem curar de fazer uma longa e minuciosa digressão histórica, observarei liminarmente que o instituto dos assentos tem, por trás de si, e no nosso direito, uma tradição multissecular:
a) Ainda no reinado de D. Afonso Henriques, surgiram as façanhas, nas quais a doutrina vê o mais remoto antecedente do actual instituto dos assentos;
b) Mais tarde, surgiram os assentos da Casa da Suplicação, aos quais as Ordenações Manuelinas conferiram, em certas circunstâncias, valor vinculativo de carácter genérico;
c) Na sequência das Ordenações Filipinas, vieram a poder lavrar assentos, para além da Casa da Suplicação, a Casa da Relação do Porto e as Relações Ultramarinas de Goa, da Baía e do Rio;
d) Procurando corrigir esta pulverização orgânica de uma competência que, logicamente, devia caber a um único órgão jurisdicional, a Lei da Boa Razão (Lei de 18 de Agosto de 1769) estipulou, então, que só valeriam os assentos da Casa da Suplicação ou os das Relações que ela confirmasse;
e) Na sequência da Revolução de 1820, o instituto dos assentos, e durante cerca de um século, foi posto à margem (com ressalva de um curto período, em que, restaurado o absolutismo sob a égide de D. Miguel, a Casa da Suplicação voltou a tirar assentos);
f) Só em 1926, e depois de uma tentativa gorada, durante o consulado sidonista, de ressuscitação do instituto dos assentos, o Decreto n.º 12353, integrado na reforma do processo civil de 1926-1932, e fazendo reviver esse instituto jurídico que vinha dos primórdios da nacionalidade, criou um recurso para o pleno do Supremo Tribunal de Justiça, destinado à uniformização de jurisprudência;
g) Este regime foi depois introduzido no Código de Processo Civil de 1876, ao tempo vigente, pelo Decreto n.º 21287, de 26 de Maio de 1932, que alterou o artigo 1176.º desse mesmo Código;
h) Mais tarde, o instituto dos assentos transitou, sucessivamente, para os Códigos de Processo Civil de 1939 e de 1961;
i) O Código Civil de 1966 estipulou, por fim, que, nos casos declarados na lei, podiam os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral.
Desta breve resenha histórica - que se baseou, fundamentalmente, na obra Em Torno do Regime dos Assentos em Processo Civil, de Helena Cristina Costa Tomás - resulta que, tradicionalmente, no nosso direito, o poder de emitir assentos por parte de tribunais superiores era conceptualmente concebido como poder próprio da função jurisdicional [cf. ainda, e a este propósito, para o Supremo Tribunal Administrativo, que, entretanto, perdeu o poder de tirar assentos, os artigos 195.º a 197.º do Código de Processo do Trabalho de 1963 e, para o Tribunal de Contas, que ainda conserva esse poder, o artigo 6.º, n.º 9, do Decreto-Lei n.º 22257, de 25 de Fevereiro de 1933 e, hoje, o artigo 24.º, alínea g), da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro].
3 - Não importa averiguar se à prescrição de assentos, e em termos materiais, será de atribuir a natureza de função jurisdicional, ou antes a natureza de função legislativa. Interessa apenas assinalar que, em termos formais, essa particular competência, tradicionalmente atribuída, no nosso direito, aos tribunais superiores, tem sido perspectivada, desde sempre, ao nível normativo, como uma componente da função jurisdicional.
Nestas circunstâncias, tem-se por óbvio que o poder constituinte originário, ao aprovar a CRP, acolheu, no artigo 206.º, o conceito pré-constitucional de função jurisdicional. De facto, ao estipular-se aí que, na administração da justiça, incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados, nenhuma ressalva, e a este respeito, então se instituiu (aliás, e a esse tempo, sublinhe-se, nenhuma outra norma do texto constitucional era susceptível de ser interpretada como apontando para a abolição do instituto dos assentos). Antes, em tal conceptualização - a constante do artigo 206.º da CRP, texto primitivo - se apontava claramente para uma das vertentes básicas da ideia de direito, para a vertente da segurança, vertente essa que os assentos, através da uniformização da jurisprudência, necessariamente garantiam; e, deste modo, no exercício da função jurisdicional, os tribunais superiores, embora por via genérica, continuaram a dirimir (para o futuro) conflitos de interesses públicos e privados.
4 - A definição da função jurisdicional, constante do artigo 206.º da CRP, texto originário, manteve-se ao longo das revisões constitucionais subsequentes, sendo transferida, no entanto, a partir da segunda revisão, para o n.º 2 do artigo 205.º Muito particularmente, é de notar que ela subsistiu, mesmo quando, na primeira revisão, e através da Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, o poder constituinte derivado veio a dar nova redacção ao artigo 115.º da CRP.
Nestes termos, duas ilações de imediato se impõem:
1.ª O n.º 5 do actual artigo 115.º da CRP, ao prescrever que nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos, estabeleceu uma regra que, pela generalidade das suas determinações, e considerada só por si, proscreveria o instituto dos assentos, e quanto às leis em sentido formal, da ordem jurídica portuguesa;

2.ª Todavia, e parelhamente, o poder constituinte derivado, ao manter, naquela primeira revisão da CRP, e no artigo 206.º, a definição da função jurisdicional que vinha do texto originário da CRP, e com a dimensão significativa anteriormente referida, estabeleceu, do mesmo passo, uma excepção àquela mesma regra do artigo 115.º, n.º 5, da CRP, que, aliás, e de qualquer modo, nunca proibiria a emissão de assentos sobre normas regulamentares.
Daí, a constitucionalidade dos assentos incidentes sobre normas constantes de leis em sentido formal (quanto à constitucionalidade dos assentos incidentes sobre normas de regulamentos, nem é de pôr o problema: o artigo 115.º, n.º 5, da CRP, na sua dimensão proibitiva, não contempla evidentemente tal situação).
5 - Por estas razões, sinteticamente explanadas, passei, assim, a entender que o instituto dos assentos não era, em qualquer dimensão, constitucionalmente insolvente. - Raul Mateus.