Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20/21.1SFPRT.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - Justifica-se a pena de 7 anos e 4 meses de prisão aplicada a condenado por crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 19/93, que já registava dois antecedentes criminais pela prática de crimes de idêntica natureza, e que durante oito meses praticou a atividade ilícita, tendo sido apreendidos no processo 102 quilogramas de cannabis e 104,006 gramas de cocaína.

II - Da norma que prevê o regime especial de perda de bens (art. 35.º, n.º 1, do DL n.º 15/93), face ao regime geral do CP (art. 109.º do CP),  não resulta a perda sem mais de qualquer objeto que tenha servido para a prática do crime independentemente das circunstâncias dessa utilização, pois seria inconstitucional a privação automática de direitos independentemente de um concreto juízo de ponderação das circunstâncias do caso e das características do objecto em causa, devendo apelar-se a critérios de causalidade e proporcionalidade.

III - Justifica-se a perda a favor do Estado do veículo automóvel do arguido, utilizado nas deslocações de aquisição, transporte e transação de estupefacientes, demonstrado que ficou que sem essa utilização a dimensão da atividade ilícita ficaria comprometida, e sendo ainda a perda proporcional à extensão do tráfico efectuado, resultando claro que “o malefício correspondente à perda representa uma medida justa e proporcional à gravidade do crime”.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 20/21.1SFPRT.S1, do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Criminal - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi proferido acórdão a decidir condenar, entre outros, o arguido AA, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21, n.º 1, do Dec. Lei 15/93, na pena de 7 (sete) anos e 4 (quatro) meses de prisão; como autor de um crime de detenção ilegal de arma do art. 86.º, n.º 1, als. c) e d), da Lei 5/2006, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de 8 (oito) anos de prisão; declarar perdidos a favor do Estado os produtos estupefacientes apreendidos, as armas, munições e carregadores; os demais objetos apreendidos, incluindo telemóveis; as quantias monetárias apreendidas; o veículo automóvel com a matrícula ..-..-NV.

Inconformado com o decidido, interpôs o arguido AA recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“Da Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

1 - A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, consubstancia-se no facto do tribunal dar como provado que o arguido vendeu produtos estupefacientes, designadamente cannabis e cocaína em quantidades e por preços não apurados, no período compreendido entre janeiro a agosto de 2021, sendo resultantes dessa vendas os montantes pecuniários que lhe foram apreendidos, sem que em concreto tenha dado como assente, qualquer acto de venda por parte do recorrente ou do co-arguido BB.

Isto é, da matéria apurada não é possível estabelecer uma correspondência entre actos concretos de venda e montantes obtidos daquela actividade com aqueles que foram apreendidos. Não indagou de forma concreta, quando, a quem, como, onde, porque preço vendeu este tipo de substâncias. O cotejo da factualidade dada como provada, permite aferir uma única situação, de troca de produtos estupefacientes, haxixe por canabis, a descrita no dia 13 de Abril de 2021, onde não existe qualquer entrega de dinheiro.

2 - No caso concreto, o arguido na contestação apresentada, articulou que a sua actividade ilícita ocorreu no período compreendido entre abril a agosto de 2021.

A relação com o co-arguido BB, seu sobrinho, subsume-se ao dia da detenção e aos factos descritos no ponto 30 da pronúncia.

Durante o período em que esteve a ser rotinado e investigado, quer através de RDE, quer a através da intercepção dos telefones que lhe eram imputados, nunca foi contactado no sentido de adquirir ou proceder à venda de estupefacientes.

Apresenta inserção profissional, desenvolvendo à data dos factos, actividade laboral nos estabelecimentos comerciais que detinha em conjunto com a sua companheira, efectuando descontos para a Segurança social.

Obtinha rendimento da venda de cães, uma vez que, tinha criação e retirava rendimentos da sua participação em jogos Online.

3 - O tribunal dá como provado que o arguido desenvolvia actividade laboral regular à data dos factos, actividade que a companheira mantém, ainda que em local diverso, e lhe permite auferir um valor superior a 2000 (dois mil euros mensais).

Consta a fls 158 do apenso do GRA que o arguido apresentou rendimentos de trabalho, entre 2016 a 2020, no montante de 64.916,30 ( sessenta e quatro mil, novecentos e dezasseis euros e trinta cêntimos. Não tendo sido apurada a existência de qualquer vantagem patrimonial proveniente da actividade criminosa.

A pedido da defesa, em sede de audiência de julgamento, foi ao abrigo do artigo 340 do C.P.P, solicitado que se oficiasse ao Novo Banco, os extratos bancários, no período compreendido entre 06-01-21 a 30-08-21, no sentido de comprovar os rendimentos obtidos através da participação em jogos online. A sua pretensão foi deferida, tendo a referida documentação sido junta aos autos, a 28 de Outubro de 2022, onde estão descriminadas várias transferências de depósitos de jogos. Esta factualidade tinha sido articulada em sede de contestação.

4 - O tribunal não estabelece um nexo de causalidade entre as quantias que lhe foram apreendidas e actos concretos de venda de produtos estupefacientes, nomeadamente, identificação de consumidores, datas e locais de venda.

Não apurou o valor de aquisição e de venda dos referidos produtos.

5 - Sustentar que tais montantes porque elevados resultam da venda de canábis e cocaína, sem qualquer concretização dessas transações é claramente insuficiente para considerar como demonstrado que mesmos são resultantes de vendas realizadas.

Tanto mais que, tal como resulta dos elementos probatórios elencados, constantes dos autos e trazidos à colação pela defesa, o arguido apresentava outras fontes de rendimento lícitas, quer provenientes do trabalho, quer da participação em jogos on line.

6 - Ocorre assim um vício decisório - de Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no nº 2 al a) do art 410.º do C.P.P.

7 - Pode tal vício ser sanado com a obliteração da factualidade dada como provada no concerne à origem das quantias monetárias apreendidas, o que necessariamente teria reflexos na determinação da medida da pena a aplicar.

8 - Se se verificar ser impossível, deve ser reenviado para novo julgamento, atento o disposto no art 426 do C.P.P.

Da Nulidade do Acórdão ( arts 374 nº 2 e 379 nº 1 al a) e c) do C.P.P.

9 - Nos termos das disposições conjugadas nos arts 124, 368 nº 2, 374 nº 2 e 379, al a) e c), todos do C.P.P, é nula a sentença (ou o acórdão) que não contiver as menções citadas no nº 2 do art.374 do C.P.P.

10 - Em tais normativos exige-se uma enumeração discriminada e especificada dos factos provados e não provados, articulados na acusação, na contestação ou resultantes da decisão da causa.

11 - Tal justifica-se pela razão de tais factos, se devidamente articulados, poderem influenciar quer as penas, quer a sua medida.

12 - No caso dos autos, o arguido apresentou contestação escrita. O tribunal pronunciou-se sobre o seu teor nos seguintes termos:

“Os arguidos contestaram, dizendo não ter praticado os factos tal qual estão descritos na acusação e suscitando ainda o arguido AA a proibição da prova referente aos dados conservados pelas operadoras enviados ao processo. Juntaram rol de testemunhas. “

13 - Entende o recorrente que o tribunal não pronunciou sobre matéria vertida na contestação apresentada pelo arguido, nomeadamente sobre os pontos 3, 6, 10 e 11, transcritos no ponto 5 do item B da motivação de recurso que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

Não se pronunciou sobre a documentação solicitada em sede de audiência de julgamento a 18-10-22 cfr referencia citius ...29, pretensão que foi deferida, cfr referencia citius ...27 e documentos que foram juntos a 28-10-2022, cfr ...29, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, bem como a transcrição do valor, data e descritivo constantes no ponto 9 do item B, da motivação de recurso, elementos probatórios relacionados com a matéria articulada no ponto 11 da contestação.

14 - A omissão de pronúncia quanto à factualidade descrita nos pontos 3, 6, 10 e 11 da contestação e a ponderação da documentação supra indicada, contende directamente com a factualidade dada como provada atinente à proveniência das quantias que foram apreendidas ao recorrente.

15 - Na verdade, pretendeu o arguido em sede de contestação demonstrar que no período em que lhe era imputada a actividade delituosa, obtinha rendimentos lícitos provenientes do trabalho, da criação e venda de cães e da sua participação em jogos online. Com vista a explicar a origem da totalidade ou de parte das quantias que lhe foram apreendidas.

16 - Por uma questão de honestidade intelectual, admite o recorrente, no que concerne aos rendimentos obtidos com a venda dos cães, não logrou fazer prova dos montantes obtidos, desde logo, porque não identificou a quem, como e por quanto vendeu os referidos animais. Todavia, no tange aos rendimentos provenientes do trabalho e os obtidos pela via do jogo, estão documentados nos autos, quer através da declaração de rendimentos apresentada em sede de administração fiscal, constante a fls 158 do anexo A do GRA, quer através dos extratos bancários do Novo Banco já identificados, e que perfazem a quantia global de € 18 998,00.

17 - O tribunal não se pronunciou sobre a factualidade supra indicada, articulada na contestação, não ponderou a documentação junta aos autos, designadamente a informação atinente aos rendimentos do trabalho auferidos pelo arguido, constantes a fls 158 do anexo do GRA e os extratos bancários, onde estão descriminados transferências provenientes da obtenção de prémios de jogo, no período em que deu como assente que o arguido praticou a actividade delituosa.

18 - Porém, entendeu dar como provado, que todas as quantias apreendidas ao arguido eram provenientes das vendas de canabis e cocaína, no período compreendido entre janeiro e agosto de 2021.

19 - Face às exigências legais cabia ao tribunal, dar como provado ou não provado tal factualidade, uma vez que, a mesma era essencial à defesa do arguido, à descoberta da verdade material, e em concreto à demonstração da origem lícita da totalidade ou de parte das quantias que lhe foram apreendidas, que necessariamente teria reflexos na medida da pena a aplicar.

20 - Tal omissão de pronúncia ,"... nos termos das combinadas disposições nos arts 368 nº 2, 374 nº 1al d), nº 2 e 379 nº 1 al a) e c) do C.P.P e 410 nº 2 al a) do C.P.P, com a consequência expressamente prevista no nº 1 do art.122 do referenciado Diploma Processual Penal..., nos termos dos arts 426 e 436, ainda do C.P.P..."obriga ao reenvio do processo para a realização de novo julgamento, abrangendo esta questão em concreto, a efectuar pelo Tribunal de categoria e composição idênticas ás do Tribunal recorrido.

21 - Violou-se o disposto nos arts 374 nº 1, nº 2, 379 nº 1 al a) e c) e 97 n º 5, todos do C.P.P e 205 da CRP.

Medida da Pena e Cúmulo jurídico

22 - A determinação da medida da pena parte do postulado de que as finalidades de aplicação das penas são, em primeiro lugar, a tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, constituindo a medida da culpa o limite inultrapassável da medida da pena.

23 - Na determinação concreta da medida da pena, o julgador atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (art. 71º do C.P.), ou seja, as circunstâncias do complexo integral do facto que relevam para a prevenção e para a culpa.

24 - Ponderada a globalidade da matéria factual provada, a medida da pena encontrada para o arguido é excessiva.

25 - As razões que fundamentam a posição ora assumida, encontram-se vertidas na motivação do recurso ora interposto, Item C- pontos 4 a 10, que se dão por reproduzidas para os efeitos legais.

26 - Fundamenta a razão da sua discordância enunciando o conjunto de circunstâncias mitigadoras do grau de ilicitude dos factos e da culpa a que o tribunal, no modesto entendimento do recorrente, não atendeu:

a) O curto período de tempo da actividade ilícita de janeiro a agosto de 2021, obtendo concretização nos factos descritos a13 de Abril, 8 e 15 de Agosto de 2021. Factos que ocorrem numa zona geográfica delimitada.

b) A ausência de pessoas identificadas como adquirente.

c) O tipo de droga apreendida em maior quantidade, cannabis com um reduzido grau de pureza.

d) Não se ter apurado, quantidades vendidas e preços de aquisição e venda.

e) Das condições pessoais, assumem particular relevo, o apoio familiar que dispõe, por parte da companheira e família alargada conjugados com os hábitos de trabalho adoptados durante o seu percurso de vida, que lhe permitiram criar o seu posto de trabalho, apresentado um projecto de vida estruturado, factor essencial à sua reintegração social, após a sua restituição à liberdade.

f) À data da sua detenção a companheira encontrava-se grávida, tendo atualmente uma filha com 6 meses de idade. O nascimento da sua filha, estando o arguido detido e nessa medida privado do contacto com a mesma e impedido de acompanhar o seu crescimento, assumiu um papel decisivo para alteração do seu comportamento e do modo de estar na vida e em sociedade.

g) O afastamento voluntário do consumo de estupefacientes, factor potenciador dos seus comportamentos desadequados, adição que mantinha desde os 9/10 anos de idade.

h) Reconhece a ilicitude do seu comportamento e tem consciência da sua gravidade.

i) Assumiu uma postura colaborante, autorizando a busca realizada no seu domicílio, facto que permitiu a apreensão de droga, dinheiro, uma arma e demais objectos constantes do auto de apreensão. Confessou parcialmente os factos pelos quais vinha pronunciado

j) No E.P, adoptou uma conduta conforme ao ordenamento normativo vigente, integrando as atividades designadas.

l) No meio de residência do arguido, não se detetaram sentimentos de receio ou animosidade relativamente a AA .

27 - Não olvidamos a quantidade de produto estupefaciente apreendida e os seus antecedentes criminais, tal como se aduziu, em relação à quantidade elevada de produto estupefaciente, haveria que atender, que o grosso do estupefaciente é canabis, droga leve, apresentando um grau de pureza reduzido, em relação às condenações sofridas, duas notas, a primeira que os crimes foram cometidos há mais de 7 anos, a segunda que ocorrem num contexto de consumo de estupefacientes, que o mesmo apresentava desde os 9/10 anos de idade. Comportamento aditivo que cessou com a detenção no presente processo.

28 - A pena é o reflexo da conjugação da concreta medida da culpa e das atuais exigências de prevenção; e na sua (boa) determinação, o julgador atende a todas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, porque relacionadas com a pessoa e carácter do agente, deponham contra ou a seu favor.

Pese embora as razões de prevenção geral sejam elevadas, atento à natureza do crime e às consequências nefastas que provoca, para os consumidores, familiares e sociedade em geral, as mesmas não podem ser superiores às razões de prevenção especial que o caso impõe.

E, face às razões indicadas nos pontos 26 e 27 das conclusões, as mesmas estão claramente mitigadas.

29 - Face aos critérios legais (arts. 40º, 70º e 71º do C.P) o recorrente deveria ser punido atento as razões aduzidas na motivação do recurso ora interposto, em pena não superior a 6 anos de prisão.

30 - A decisão recorrida violou, nessa parte, os arts. 70º e 71.º do C. P.

31 - O arguido foi condenado pelo crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo art. 86, n.º 1, al. c), da lei 5/2006, de 23/2, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão. Atento à moldura penal, a mesma não permite recurso para o STJ

32 - Nos termos do disposto no art 77 nº 1 e 2 do C.P, deverá ser fixada uma pena única de prisão.

Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, atento as razões aduzidas nos pontos 26 e 27 das conclusões, não poderá considera-se que o arguido apresenta uma tendência para a prática do crime de tráfico.

Na verdade, as condenações anteriores ocorreram há já vários anos e num contexto de adição do próprio arguido. Ademais, após as referidas condenações o mesmo assumiu um comportamento normativo, apresentando integração familiar e profissional.

Acresce ainda que não tinha antecedentes criminais pela prática do crime de detenção de arma proibida, sendo esta apreendida na sequência da autorização por si formalizada

Arma que estava guardada, nunca foi utilizada, não se tendo apurado, qualquer relação entre a sua detenção e o crime de tráfico de estupefacientes.

33 - Considerando a letra e a ratio dos preceitos legais aplicáveis (arts. 70º e 71º e 77 do C.P) , o recorrente deveria ser punido, atento as razões aduzidas na motivação do recurso ora interposto, em medida não superior a 6 anos e 8 meses de prisão.

34 - Desta feita, a decisão recorrida violou, nessa parte, os arts. 70º, 71º e 72 do C. P.

Sem prescindir

35 - Ainda que se entenda, manter a pena fixada pela prática dos crimes p.p no art 21 do D.L 15/93 de 22-01, o arguido entende ser excessiva a pena única que lhe foi fixada em 8 anos de prisão.

36 - As razões que aponta para a mesma ser reduzida, são as indicadas nos pontos 22 e 23 da motivação de recurso Item C, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

37 - Em cúmulo deveria o recorrente deveria ser punido, em medida não superior a 7 anos e 6 meses de prisão.

Da perda do veículo automóvel de matrícula ..-..-NV, marca “Peugeot”

38 - O tribunal entendeu declarar perdido ao favor do Estado, o veículo automóvel de matrícula ..-..-NV , marca “Peugeot”, de cor branca , porquanto foi utilizada na prática da actividade ilícita

39 - O arguido não se conforma com a decisão, pelas razões aduzidas nos pontos 1 a 12 do Item C- que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

40 - Sumariamente sustenta a sua posição nos seguintes termos:

40.1 - A declaração de perda de objectos utilizados na prática do crime de tráfico de estupefacientes não é automática, estando sujeita a critérios de causalidade e proporcionalidade.

40.2 – Não se apurou que a viatura fosse adquirida com proventos da actividade ilícita.

40.3 - Isto é, condução da viatura terá facilitado a deslocação, tornando-a também mais cómoda, todavia discordamos que tal viatura seja instrumento do crime, e que exista uma relação de causalidade entre a sua utilização e a prática do crime, como foi considerado pelo tribunal a quo.

41 - O princípio da proporcionalidade obsta à declaração de perdimento com referência a tal veículo, visto que “a prática da infracção” não foi “especificamente conformada pela utilização do objecto”, de modo que a execução do facto “teria sido essencialmente diferente, na modalidade objectiva que esteja em causa, sem a utilização ou a intervenção do objecto

42 - Em conformidade, deverá o acórdão recorrido ser revogado na parte em que declarou perdido a favor do Estado o veículo automóvel de matrícula ..-..-NV marca “Peugeot”, apreendido ao arguido, o qual lhe deverá ser entregue.

43 - Violou-se o disposto nos artigos 109, nº1 do C.P., art 35º D.L. n.º 15/93, 18 nº 2 e 62.º da C.R.P..”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“1. O recurso ora apresentada pelo arguido AA visa colocar em crise o douto acórdão que o condenou pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes e de detenção de arma proibida, estribando tal pretensão na alegada verificação do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, sendo ainda apontada a existência de uma nulidade traduzida numa pretensa omissão de pronúncia, ao que se soma a censura dirigida à dosimetria penal fixada, que reputa de excessiva e, ainda, à suposta injustificação da declaração de perda a favor do estado de uma viatura automóvel utilizada na prática criminosa;

2. Comecemos por afirmar ser patente não se verificar o suposto vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, vício esse que só existiria se a factualidade dada como provada não permitisse, por insuficiência, uma decisão de direito ou seja, quando dos factos provados não pudessem logicamente ser extraídas as ilações do Tribunal Recorrido;

3. Analisando o veredicto condenatório e conjugando o seu texto com as regras da experiência comum, não se detecta qualquer «lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito» - vício que jamais deverá ser confundido com uma insuficiência da prova para a decisão de facto proferida;

4. Saliente-se que foi dado como provado que «com excepção do montante de €30,00 apreendido ao arguido BB, as demais quantias em dinheiro apreendidas constituem proventos da actividade criminosa levada a cabo nos termos acima descritos», pelo que não se compreende o que verdadeiramente pretenda agora o recorrente ao apontar existir insuficiência da matéria de facto para a decisão;

5. O ora recorrente afirma que se verificaria o erro vício por si invocado quando o Tribunal conclui serem as quantias monetárias que lhe foram apreendidas na sua residência provenientes da actividade de tráfico a que aquele se dedicou no período entre Janeiro e Agosto de 2021, sem que todavia haja apurado um qualquer seu concreto acto de venda a um qualquer concreto comprador numa determinada data e local e por um concreto montante;

6. Em rigor, nem é exacto que não haja sido apurado nenhum acto de entrega de estupefacientes por parte do arguido, desde logo porque, além do mais, se demonstrou provado que pelas 20h21 do dia 15 de Agosto de 2021, na sua residência fez o AA uma entrega de («2 (dois) sacos pretos de grandes dimensões e volumosos contendo produto) estupefaciente ao co-arguido BB, ao qual, quando imediatamente interceptado, foi apreendido, além do mais, dentro desses sacos, cannabis (folhas/sumidades) com o peso liquido de 10075,000gr, com um grau de pureza 5,5%, (THC) correspondente 11082 a doses individuais;

7. As regras da experiência e da normalidade sempre conduzem à conclusão de que a “mudança de mãos” de tais quantidades de produto estupefaciente não se opera a título de liberalidade, nem uma tal actividade, com inegáveis riscos e com vultuosos “investimentos”, é desenvolvida sem fins lucrativos…

8. Sobre a inferência sobre a proveniência das muito significativas quantias em dinheiro vivo aprendidas na residência do arguido e a sua origem na actividade de tráfico por aquele desenvolvida, o tribunal encontrou ainda apoio na ausência de uma convincente ou razoável explicação que apontasse para origem diversa, explicação essa que não foi de forma minimamente consistente ou credível apresentada pelo arguido - em relação a quem aliás foi também detectada uma diferença entre o património revelado ou apurado e aquele que resulta da declarada actividade lícita;

9. Em suma: inexiste, de todo, o erro vício apontado pelo ora recorrente;

10. Pretende ainda o ora recorrente que o tribunal a quo não se teria pronunciado quanto a parte da factualidade por si vertida na contestação que apresentara e com o que pretendera evidenciar ter ele rendimentos de origem lícita, quer da sua actividade de venda de cães, quer da sua participação em jogos on line;

11. Ora, há que atentar que o tribunal – esclarecendo apenas relevar a questão da proveniência das quantias em dinheiro apreendidas na residência do arguido (e já não os montantes que se encontravam depositados nas contas bancárias ou por si ali movimentadas) - fez constar no elenco da matéria de facto provada que «(com excepção do montante de 30€ apreendido ao arguido BB), as demais quantias em dinheiro apreendidas constituem proventos da actividade criminosa levada a cabo», o que desde logo é incompatível e, desse modo, exclui que essas mesmas quantias (isto é, as que foram apreendidas ao aqui recorrente na sua residência) sejam produto de actividades lícitas como o trabalho ou o jogo.

12. Isto visto, não há senão que concluir não se verificar qualquer omissão de apreciação ou de tomada de posição sobre a factualidade em causa (que havia sido vertida na contestação apresentada), inexistindo, pois, a alegada omissão de pronúncia;

13. No douto acórdão recorrido foram de forma exaustiva apuradas todas os factos e circunstâncias relevantes para a determinação concreta da pena, em conformidade com o disposto nos artigos 40.º; 70.º e 71.º, e 75.º e 76.º, todos do Código Penal.

14. Mostra-se terem sido devidamente ponderados o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, a intensidade do dolo com que actuou, as elevadas exigências de prevenção geral que área de criminalidade se fazem sentir, bem como as acentuadas exigências de prevenção especial do ora recorrente AA, que contava já à data dos factos com duas condenações por crimes de tráfico de estupefaciente e que voltou a praticar um tal delito ainda que num quadro de vida algo mais do que confortável, onde carência alguma de ordem material se descortina;

15. Foi também essa sua revelada tendência para a criminalidade desta natureza que fundamentou a graduação da pena única em 8 anos de prisão, o que de igual modo se nos apresenta como justo, adequado e necessário, não merecendo, pois, qualquer censura tal dosimetria penal;

16. Igualmente merece concordância a decisão de perda a favor do Estado da viatura de passageiros Peugeot ..-..-NV, que estava registada a favor do arguido AA e foi por este utilizada na prática do crime de tráfico de estupefacientes por si perfectibilizado: tal perda mostra-se proporcional à gravidade da conduta e à serventia que à mesma viatura foi dada, apresentando-se no acórdão recorrido adequadamente justificada;

17. Em suma, não padece o douto acórdão recorrido de qualquer anomalia, deficiência, erro ou vício, nomeadamente os apontados pelo recorrente, não sendo, pois, o mesmo merecedor de qualquer censura ou reparo, pelo que deverá ser mantido na íntegra.

Nestes termos, deve o presente recurso ser declarado totalmente improcedente, pelo que, confirmando, em consequência, o douto Acórdão recorrido, contribuirão Vossas Excelências, Colendos Conselheiros, para a realização do DIREITO.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer, referindo, em síntese:

“[…] O recorrente começa justamente por assacar ao acórdão o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal.

Na sua perspetiva, ao dar como provado que vendeu cannabis e cocaína entre janeiro e agosto de 2021, daí resultando os montantes pecuniários que lhe foram apreendidos, sem que em concreto desse como assente qualquer ato de venda realizado por si ou pelo seu comparticipante BB, e sem indagar quando, a quem, como, onde e por que preço vendeu as substâncias estupefacientes, o tribunal coletivo incorreu no assinalado vício: […]

[…] Pois bem, as significativas quantidades de drogas apreendidas ao recorrente AA e a BB – 102.435,719 gramas de cannabis, 132,703 gramas de cocaína e 5,170 gramas de MDMA [porque ambos atuaram em coautoria, «vale o princípio da imputação objetiva recíproca, segundo o qual a cada um dos comparticipantes é imputada a totalidade do facto típico, independentemente da concreta atividade que cada um dos comparticipantes haja realizado»] – mostram claramente que não estamos diante de pequenos e toscos dealers de rua.

Por esse motivo, o facto de não se terem provado quaisquer atos de venda direta aos consumidores não obsta à conclusão de que a quantia de 27.315 euros que lhe foi apreendida advém dessa atividade ilícita, para mais quando a sua maior parte (27.055 euros) se encontrava acondicionada no interior de uma mochila juntamente com cocaína, cannabis e MDMA: […]

[…] Alega o recorrente que o acórdão é nulo nos termos dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, por não se ter pronunciado relativamente a todos os factos da sua contestação nem sobre os extratos da sua conta bancária relativos ao período compreendido entre janeiro e agosto de 2021 solicitados no decurso do julgamento:

«13 - Entende o recorrente que o tribunal não pronunciou sobre matéria vertida na contestação apresentada pelo arguido, nomeadamente sobre os pontos 3, 6, 10 e 11, transcritos no ponto 5 do item B da motivação de recurso que aqui se dão por integralmente reproduzidos. […]

[…] o acórdão recorrido, em sede de fundamentação de facto, começou justamente por advertir que não iria aproveitar a factualidade de natureza conclusiva, nomeadamente, que (v. a nota de rodapé 1): […]

[…] Os relatórios de vigilância a que se alude no ponto 6 da contestação foram utilizados para formar a convicção do tribunal: […]

[…] O mesmo se diga das comunicações telefónicas que, de resto, até serviram para ilibar o recorrente da atividade de tráfico desenvolvida nos anos de 2019 e 2020 por que se encontrava pronunciado: […]

[…] Relativamente à alegação de que o conluio entre o recorrente e o seu sobrinho, o coarguido BB, limitou-se ao dia 15 de agosto de 2021, o tribunal deu como provado, adversamente, que essa comparticipação ocorreu desde meados de abril de 2021: […]

[…] No mais, o acórdão recorrido caracteriza cabalmente a situação pessoal do recorrente, particularmente no que respeita à atividade profissional lícita que desenvolvia paralelamente com a de tráfico de estupefacientes: […]

[…] Relativamente à documentação bancária, não é verdade que o tribunal coletivo a tivesse arredado das suas cogitações. Não lhe deu foi a relevância que o recorrente entende que a mesma merece como, aliás, se pode ler na continuação do segmento de fundamentação já citado a propósito do numerário apreendido: […]

[…] À vista do exposto, fica, assim, refutada a ideia de que o tribunal coletivo ignorou ou não tomou posição sobre quaisquer meios de prova ou sobre factos da contestação do recorrente. […]

[…] Se porventura este entende que algum dos mencionados elementos de prova foram mal valorados, devia ter optado por impugnar a matéria de facto nos termos amplos prescritos no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal. […]

[…] O recorrente insurge-se ainda contra a medida da pena do crime de tráfico de estupefacientes e contra a medida da pena única. […]

[…] o crime de tráfico de estupefacientes integra a categoria de criminalidade altamente organizada (artigo 1.º, alínea m), do Código de Processo Penal) e que, relativamente aos fins ou motivos que o determinaram, o recorrente atuou com cupidez, o que torna a sua conduta mais censurável porquanto, conforme ficou assente e o próprio o reconhece, exercia uma atividade profissional legítima que lhe propiciava uma situação financeira equilibrada. […]

[…] A favor do recorrente, com repercussão nas exigências de prevenção especial, militam as invocadas circunstâncias relativas ao suporte familiar de que beneficia, à conduta disciplinada e participativa que vem mantendo na prisão e à atitude introspetiva positiva.

Neste cenário, predominando as circunstâncias agravantes, nomeadamente, as relacionadas com as quantidades e diversidade dos estupefacientes apreendidos, com os proventos gerados pelo tráfico e com os antecedentes criminais que o recorrente regista, relativamente às de pendor atenuante, afigura-se que a pena de 7 anos e 4 meses de prisão, numa moldura penal cujos limites mínimo e máximo são de 4 anos e de 12 anos de prisão, respetivamente, ajusta-se aos critérios emergentes dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, respeita o limite inultrapassável da culpa e responde equilibradamente às exigências de prevenção que se verificam em concreto. […]”

[…] O recorrente atuou com dolo direto nos dois ilícitos.

As necessidades de prevenção geral, face à pluralidade e natureza dos assinalados bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras, são acentuadas em ambos os crimes.

O recorrente, conforme referido, foi condenado, por decisão transitada em 4 de novembro de 2011, pela prática, em 15 de outubro de 2009, de um crime de tráfico de menor gravidade numa pena de 12 meses de prisão, substituída por 360 horas de trabalho comunitário, e foi condenado, por decisão transitada em 28 de dezembro de 2015, pela prática, em 23 de outubro de 2014, de um segundo crime de tráfico de menor gravidade na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na execução por igual período de tempo, revelando, assim, sintomas de propensão para a prática de crimes de tráfico.

Na ponderação deste conjunto de fatores, cremos, fundadamente, que a pena conjunta de 8 anos de prisão, situada na primeira metade da moldura abstrata do cúmulo (que vai de 7 anos e 4 meses de prisão a 9 anos de prisão), amolda-se aos critérios estabelecidos nos artigos 71.º e 77.º, n.º 1, do Código Penal.

[…] In casu ficou assente que o veículo em questão foi utilizado para as deslocações do recorrente em ordem à aquisição, transporte e transação dos estupefacientes. […]

Afigura-se, por outro lado, indiscutível que, primus, sem essa utilização a dimensão da atividade ilícita, no mínimo, ficaria comprometida (recorde-se novamente que foram apreendidas cerca de 102 quilogramas de cannabis ao recorrente e ao seu comparsa), secundus, que diante da gravidade objetiva dos factos, medida quer pela quantidade e variedade dos estupefacientes traficados quer pelos proventos que os mesmos geraram (e que, não fora a intervenção policial de 15 de agosto de 2021, continuariam a gerar), a sua perda não é, de todo, desproporcionada.

Encontra-se, por isso, plenamente justificada a perda a favor do Estado do veículo […]”

Cumprido o art. 417.º, n.º 2 do CPP, o recorrente deu por reproduzido o teor da sua motivação de recurso.

O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. A matéria de facto provada, na parte que ora releva, tem o seguinte teor:

“Com relevância para a decisão e com exclusão da matéria de facto de natureza conclusiva , provaram-se os seguintes factos:

Pelo menos no período compreendido entre janeiro e 18 de agosto de 2021 o arguido AA dedicou-se à compra de produto estupefaciente, nomeadamente cannabis e cocaína em quantidades e por preços não apurados, com o objetivo de venda a terceiros na área de ... e ... junto dos consumidores de tais produtos, deles recebendo em contrapartida, quantias em dinheiro.

Desde data não concretamente apurada, mas não anterior a abril do ano de 2021, e até ao dia 18 agosto desse ano o arguido BB, em conjugação de esforços com o arguido AA deteve produto estupefaciente, nomeadamente cannabis e cocaína, com o objetivo de venda a terceiros na área de ... e ... junto dos consumidores de tais produtos, deles recebendo em contrapartida, quantias em dinheiro.

Desde data não concretamente apurada, mas não anterior a abril do ano de 2021, e junho até ao dia 18 de agosto de 2021 o arguido CC dedicou-se à detenção e venda de produto estupefaciente, nomeadamente cannabis, recebendo contrapartida monetária.

O arguido AA guardava o produto estupefaciente na sua residência e no estabelecimento W..., sito na Rua Antero ..., n.º 128 ....

O referido estabelecimento comercial (W...) é explorado por DD, utilizadora do n.º ...47, companheira do arguido AA, e gerido pelo arguido.

Na execução da atividade criminosa, no dia 13 de abril de 2021, entre as 14h56 e as 15h25, o arguido AA, usando o veiculo de matricula ..-..-NV, encontrou-se com outro indivíduo que circulava com o veículo de matricula ..-AU-.., na Rua ..., no ..., tendo o primeiro retirado da mala do seu veículo 1(um) saco de desporto, de cores preto e vermelho, contendo haxixe em quantidade não concretamente apurada, que entregou a outro indivíduo, que, por seu turno, entregou a AA 7 (sete) embalagens, mais concretamente sacos de plástico fechados por vácuo, que continham cannabis sativa (liamba) em quantidades concretamente não apuradas.

No dia 15 de abril de 2021, pelas 11h45m, o arguido CC e o mesmo indivíduo com quem o arguido AA se encontrou no dia 13 de Abril, deslocando-se no veiculo de matrícula ..-FD-O5, circularam até ao entroncamento da Rua Maria ... com a Rua Álvaro ..., ambas na cidade ..., onde, o segundo saiu do carro do lugar o passageiro e, transportando nas costas uma mochila, deslocou-se ao imóvel sito no 40 da Rua Maria ..., ..., onde entrou pela garagem do edifício, após acionar comando a distância do portão; momentos depois e de igual modo, o arguido CC, que ocupava o lugar de condutor do veículo, transportando uma caixa nas mãos, igualmente se deslocou para o interior da identificada garagem.

Por volta das 11h55m o arguido e outro indivíduo saíram da garagem transportando o último a mochila às costas e 1 (um) saco de viagem de cor preto e vermelho, contendo estupefaciente da natureza do que foi apreendido aos arguidos e o arguido CC também 1 (uma) mochila e 1 (um) saco na mão igualmente contendo estupefaciente da natureza do que foi apreendido aos arguidos, ausentando-se do local no referido veículo.

No dia 8 de agosto de 2021 o arguido AA deslocou-se do sul no veículo de matrícula ..-..-NV, tendo regressado ao estabelecimento comercial W..., sito na Rua Antero ..., n.º 128, ..., pelas 13h48 desse dia.

Neste local, o arguido retirou do interior do porta-bagagem do veículo automóvel de matrícula ..-..-NV, 1 (um) saco de desporto contendo produto estupefaciente da natureza do que foi apreendido em quantidade não apurada, que ocultou no interior das instalações do estabelecimento comercial W....

E no dia 15 de agosto de 2021 o arguido AA, que se encontrava ausente da sua residência desde hora não apurada mas anterior às 20h00, usando o veículo de matrícula ..-..-NV, regressou à Praceta ..., em ..., n.º 16, ..., ..., pelas 20h02m.

Pelas 20h16m, chegou a este local o arguido BB a conduzir o veículo de matrícula ..-LT-.., o qual transpôs os portões da habitação do arguido AA e estacionou no pátio, onde, pelas 20h21m, o arguido AA guardou na mala daquele veículo 2 (dois) sacos pretos de grandes dimensões e volumosos contendo produto estupefaciente.

Imediatamente após sair de casa do arguido AA, o arguido BB foi intercetado pelas autoridades policiais a conduzir a viatura de matricula ..-LT-.., ainda na Praceta ..., ..., ..., e tinha na sua posse, no interior do carro, sua propriedade:

Dentro de sacos:

- cannabis (folhas/sumidades) com o peso liquido de 10075,000gr, com um grau de pureza 5,5%, (THC) correspondente 11082 a doses individuais;

- certificado de matricula do veículo ..-LT-..;

- um telemóvel de marca HUAWEI, modelo RNE-L21de, com IMEI ...04;

- a quantia monetária de €30,00 (trinta euros) em notas e moedas do Banco Central Europeu;

- 2 (dois) cartões banco CTT em nome de BB;

Na mesma data, após autorização de busca domiciliária por parte do arguido BB, este tinha na sua residência sita na Rua da ..., n.º 36, ..., 36, ... ..., sua propriedade:

No quarto:

- cannabis (folhas/sumidades) com o peso liquido de 4990,000gr, com um grau de pureza 1,6%, (THC) correspondente 1596 doses individuais;

- cocaína (cloridrato), com o peso bruto de 28,697gr, com um grau de pureza de 61,9%, o que daria para preparar 87 doses individuais.

- 1 (uma) arma de fogo transformada, pistola semi automática, com carregador e com capacidade para funcionar como arma de fogo, de calibre 6.35m Browing, da marca Tanfóglio, modelo GT28, sem número de serie, guardada numa bolsa de cor preta;

- 1 (um) carregador com 5 (cinco) munições;

- 1 (uma) balança digital de cor preta, sem marca;

No mesmo dia, na residência do arguido AA sita na Praceta ..., ..., ..., ..., após autorização de busca domiciliária por parte do arguido, foi localizado e apreendido na posse deste, sua propriedade:

No sótão da habitação, no interior de uma mochila:

- 1 (uma) arma de fogo curta (revólver) de calibre .32mm S&W Long, marca Smith & Wesson, modelo Top Break 32 No 1 ½ Safety, municiado com 3 (três) munições;

- 1 (uma) embalagem com cocaína com o peso bruto de 104,006gr, com grau de pureza 43,7%, correspondente a 226 doses individuais;

- cannabis (resina), com o peso liquido de 5,719gr, com grau de pureza 26,6% (THC) a que corresponde 30 doses individuais;

- 1 (uma) embalagem contendo comprimidos MDMA, com o peso liquido de 5,170gr, com grau de pureza 19,9%, correspondente a 10 doses individuais;

- a quantia monetária de €27.055,00 (vinte e sete mil e cinquenta e cinco euros) em notas e moedas do Banco Central Europeu;

Na sala, atrás do sofá

- 2 (duas) embalagens em plástico contendo cannabis (folhas/sumidades), com o peso liquido de 4720,000g, com grau de pureza 7,1% (THC), correspondente a 6702 doses individuais;

Na sala, em cima a mesa

- 1 (uma) balança digital, de cor preta;

- 1 (um) telemóvel de marca Samsung Galaxy A51 5G, com o IMEI ...44, contendo cartão da operadora WTF com ICCID ...85 e um cartão micro SD de 64GB;

- 1 (um) telemóvel de marca Xiomi, modelo M2006C3MNG, com o IMEI ...78, cartão da operadora WTF com ICCID ...87;

- 1 (um) telemóvel de marca Samsung Duos, com o IMEI ...33, cartão da operadora WTF com ICCID ...285 e um cartão micro SD de 64GB;

- 1 (um) cartão multibanco emitido pela instituição bancaria denominada Novo Banco, com o n.º ...98;

- 1 (um) cartão multibanco emitido pela instituição bancária denominada Inter Banco, com o n.º ...23;

- 1 (uma) navalha com cabo preto com as inscrições Amazona, com 9cms de lâmina;

- 1 (um) navalha com cabo em madeira, com 14,5cms de lâmina;

Na dispensa

- 4 (quatro) sacos com cannabis (folhas/sumidades), com o peso liquido de 18950,000g, com grau de pureza 3,7% (THC), correspondente a 14023 doses individuais; na cozinha, na gaveta do móvel;

- 1 (uma) faca de cozinha com cabo em madeira, com cerca de 8,5cms de lâmina;

Na cozinha, dentro de um móvel

- 10 (dez) caixas contendo cada uma, 2 (dois) rolos de sacos plásticos, totalizando 20 (vinte) rolos; - 2 (duas) máquinas de vácuo / selagem de sacos plásticos;

O arguido AA tinha ainda na sua posse, sua propriedade:

- cannabis (resina), com o peso bruto de 1310,000gr, com grau de pureza 20,9% (THC) a que corresponde 5354 doses individuais;

- cannabis (resina), com o peso bruto 880,000gr, com grau de pureza 14,2% (THC) a que corresponde 2453 doses individuais;

- cannabis (resina), com o peso bruto de 1680,000gr, com grau de pureza 3,8% (THC) a que corresponde 1255 doses individuais;

- cannabis (resina), com o peso bruto de 430,000gr, com grau de pureza 8,6% (THC) a que corresponde 725 doses individuais;

- cannabis (resina), com o peso bruto de 1725,000gr, com grau de pureza 20,0% (THC) a que corresponde 6769 doses individuais;

- a quantia monetária €260,00 (duzentos e sessenta euros) em notas e moedas do Banco Central Europeu;

- 1 (um) cartão multibanco emitido pela instituição bancária denominada Santander, com o n.º ...94 em nome de DD;

- 1 (um) cartão multibanco emitido pela instituição bancária denominada Santander, com o n.º ...90 em nome de AA;

- 1 (um) cartão multibanco emitido pela instituição bancária denominada Santander, com o n.º ...01 em nome de AA;

- 1 (um) cartão multibanco emitido pela instituição bancária denominada Novo Banco, com o n.º ...95 em nome de AA;

- 1 (um) cartão multibanco emitido pela instituição bancária denominada Inter, com o n.º ...02 em nome de AA;

No estabelecimento comercial de loja de animais denominado W..., sito na Rua Antero ..., 128, ... ..., gerido pelo arguido AA, no mesmo dia, por baixo de uma estante junto à montra, foi encontrado e apreendido, pertença daquele:

- 1 (um) saco desportivo de cor azul com a inscrição Sport, com cannabis (folhas/sumidades), com o peso líquido de 5895,000g, com grau de pureza 0,3% (THC), correspondente a 353 doses individuais; - 3 (três) sacos desportivos, 2 (dois) de cor azul e 1 (um) de cor preto, com cannabis (resina), com o peso liquido de 51775,000g, com grau de pureza 17,2% (THC), correspondente a 171815 doses individuais;

No dia 18 de agosto de 2021, na residência sita na Rua João ..., ..., n.º 271, 1 L, ..., ..., propriedade do arguido CC foi localizado e apreendido:

- Na dispensa da cozinha e garagem:

- cannabis (resina), com um peso bruto de 192,230g, com grau de pureza 17,4% (THC), a que corresponde 637 doses individuais;

- 2 (duas) embalagens contendo cannabis (folhas/sumidades), com o peso bruto 2115,000g, com um grau de pureza 8,6% (THC), suficiente para prepara 3448 doses individuais;

- cannabis (resina), com o peso bruto de 480,639g, com um grau de pureza de 23,1% (THC) a corresponde 2177 doses individuais;

- 3 (três) embalagens em plástico, com cannabis (folhas/sumidades), com o peso bruto de 1065,000g, com grau de pureza 11,3% (THC), correspondente a 2274 doses individuais;

- cannabis (resina), com o peso bruto de 10,073g, com um grau de pureza de 23,6% (THC) a corresponde 45 doses individuais;

- no quarto, no interior de uma gaveta da mesinha de cabeceira, a quantia monetária de € 4.440,00 (quatro mil quatrocentos e quarenta euros) em notas e moedas do Banco Central Europeu;

- no chão do hall de entrada no interior de uma mochila, a quantia monetária €451,70 (quatrocentos e cinquenta e um euros e setenta cêntimos) em notas e moedas do Banco Central Europeu;

Em cima de um móvel da entrada:

- 1 (um) telemóvel de marca Vodafone de cor branco e preto com o IMEI ...20;

- 1 (um) telemóvel da marca Samsung de cor preta com os IMEIs ...68/50 e ...64/50;

- Ao arguido CC foi ainda apreendido o veículo ligeiro de passageiros da marca BMW, modelo Série 1, matrícula ..-FD-.., e respetivo documento único, o qual estava estacionado no lugar de garagem.

No dia 18 de agosto de 2021, no interior da garagem fechada sita na Rua Maria ..., n.º 40, ..., arrendada desde 01.12.2019 em nome de EE, irmão de FF, sendo fiador GG, garagem essa utilizada exclusivamente por este, foi localizado e apreendido o veículo ligeiro de passageiros da marca Volkswagen, modelo Touran, matrícula ..-..-XS.

No interior do veículo de matrícula ..-..-XS encontrava-se:

- comprimidos MDMA, com o peso líquido de 3,502g, com grau de pureza 22,7%, a corresponde 7 doses individuais;

- cannabis (resina), com o peso bruto de 1945,000g, (haxixe), com grau de pureza 14,1% (THC) a correspondente 5406 doses individuais;

- cannabis (folhas/sumidades), com o peso bruto 18285,000g com grau de pureza 6,0% (THC), correspondente a 20071 doses individuais;

A cannabis (folhas/sumidades) que os arguidos BB, CC e AA detinham apresentava composição química semelhante.

A cannabis (resina) que os arguidos CC e AA detinham apresentava composição química semelhante.

Com exceção do montante de €30,00 apreendido ao arguido BB, as demais quantias em dinheiro apreendidas constituem proventos da atividade criminosa levada a cabo nos termos acima descritos.

Os instrumentos apreendidos eram utilizados pelos arguidos para o corte e doseamento do produto estupefaciente e os veículos automóveis referidos para procederem às deslocações para aquisição e transação de produto estupefaciente.

No desenvolvimento da descrita atividade, os arguidos utilizavam telemóveis, quer para falar entre si, quer para falarem com outros indivíduos, designadamente aqueles a quem adquiriam os produtos estupefacientes e com aqueles a quem os forneciam, e muitas das ocasiões através das redes sociais, tais como aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas, chamadas de voz e vídeo instaladas em telemóveis de entre as quais wikr me e instagram, instalados em telemóveis, com recurso aos quais combinavam as aquisições e transportes do produto estupefaciente, muitas vezes após visualizarem fotografias ou vídeos do produto a adquirir.

Com as descritas condutas, associadas a produtos estupefacientes, atuaram os arguidos AA e BB de comum acordo e em conjugação de esforços e intentos desde data não concretamente apurado do ano de 2021.

Todos os arguidos conheciam a natureza e efeitos das substâncias que detinham e que eram destinadas, mediante contrapartidas económicas, a ser cedidas a terceiros.

Todos os arguidos sabiam que não lhes era lícito receber, comprar, por à venda, vender, possuir, deter, adquirir, guardar, transportar, distribuir ou ceder cannabis, fora de autorização legal, substâncias cuja natureza estupefaciente e características psicotrópicas que eram destinadas à venda a terceiros, após preparação para o efeito e, não obstante, agiram da forma descrita.

Os arguidos AA e BB bem sabiam que não podiam deter, usar ou trazer consigo as referidas armas de fogo e munições, pois não eram detentores de qualquer licença de uso e porte ou autorização no domicílio daquelas armas e munições, emitida por entidade policial competente.

Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. […]”

Factos relativos às condições de vida e antecedentes criminais dos arguidos:

O processo de crescimento/desenvolvimento de AA decorreu no seio do seu núcleo familiar de origem, sendo o mais novo dos 3 irmãos, descrevendo a dinâmica familiar de forma positiva e marcada por laços de afetividade entre os diferentes elementos que constituíam o agregado.

Ao nível económico não foram referenciadas especiais dificuldades, com os proventos auferidos pelos progenitores, que estiveram sempre laboralmente ativos.

O arguido integrou o sistema de ensino aos cinco anos de idade, registando um percurso caracterizado por duas retenções, devido ao pouco empenho e desinteresse, que se traduziam em absentismo, privilegiando o convívio com o grupo de pares.

Nesta sequência abandonou a sua frequência escolar, concluindo com 14 anos de idade o 6º ano de escolaridade.

AA refere ter ficado cerca de um ano sem desenvolver qualquer tipo de atividade, lúdica ou laboral, estruturada, tendo aos 15 anos iniciado funções como empregado de mesa, na Confeitaria ..., no ..., onde permaneceu cerca de 3 anos.

Posteriormente, exerceu atividade de pasteleiro, por períodos distintos e para diferentes entidades patronais, com estabelecimentos comerciais localizados, quer na cidade ..., quer em zonas limítrofes.

Ao longo dos anos e, em paralelo, muitas das vezes, com o exercício da atividade laboral como pasteleiro, colaborava, sem qualquer vínculo contratual, com um seu conhecido, na montagem de palcos para espetáculos.

O arguido iniciou o consumo de substâncias estupefacientes, haxixe, por volta dos 9/10 anos de idade, em contexto do seu grupo de pares, em meio escolar, que foi mantendo ao longo dos anos, por considerar que os mesmos não interferiam na sua vida.

Em 2009 tem o seu primeiro contacto com o Sistema da Justiça, registando posterior contacto em 2014, ambos pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, tendo executado medidas na comunidade.

Em 2010 estabeleceu relacionamento afetivo, com a atual companheira, de quem tem uma descendente com 6 meses de idade.

Segundo o arguido nos últimos seis anos explorava com a companheira duas lojas de animais, uma no ... e a segunda em ... e faziam ainda criação de cães de raça.

Na sequência dos factos que deram origem ao presente processo, as duas lojas de animais encerraram, tendo a companheira aberto uma nova loja, em ... (W...).

À data dos factos no presente processo, o arguido residia com a companheira (32 anos, comerciante) e um filho desta de 14 anos de idade, sendo a dinâmica familiar descrita de forma positiva.

À data da sua detenção a companheira encontrava-se grávida, tendo atualmente uma filha com 6 meses de idade.

Este agregado reside em moradia própria, com recurso a empréstimo bancário há cerca de dois anos, de tipologia 4, descrita com adequadas condições de habitabilidade.

O imóvel encontra-se situado em zona periurbana da cidade ..., sita Praceta .../18-Vilar de ..., onde não se verificam problemáticas de exclusão social e criminal relevantes.

A situação económica do agregado é capaz de fazer face às despesas do núcleo familiar, sendo a subsistência assegurada pelo valor auferido pela companheira, cerca de 2000 (dois mil) euros mensais e do abono de família para crianças e jovens, no valor de 97 euros mensais.

Como despesas têm a prestação do empréstimo habitação, no valor de 550 euros mensais, da renda da loja de animais, no valor de 280 euros mensais, do fornecimento de eletricidade, no valor de 60 euros, da água no valor de 40 euros e do pacote de televisão e internet, no valor de 45 euros mensais.

Em meio prisional, o arguido adota uma conduta conforme ao ordenamento normativo vigente, integrando as atividades designadas, tendo abandonado o consumo de estupefacientes desde a sua detenção.

AA como projeto de vida, após saída em liberdade, perspetiva reintegrar o negócio da companheira e alargar o mesmo, nomeadamente adquirindo espaço próprio para a criação de cães de raça, assim como afastar-se do grupo de pares, conotados com condutas antissociais.

Na articulação com a Técnica de Educação/Gestora de Caso do Estabelecimento Prisional, foi ainda referido que aquando da entrada no Estabelecimento Prisional o recluso encontrava-se com níveis de ansiedade elevados, face à situação em que se encontra, uma vez que tinha dificuldade em permanecer longos períodos de tempo confinado à cela, encontrando-se a fazer medicação diária para o efeito.

A companheira manifesta total apoio ao arguido, em qualquer circunstância, situação extensiva à restante família, bem como expressa vontade em acolhê-lo na casa de morada da família.

No meio de residência do arguido, não se detetaram sentimentos de receio ou animosidade relativamente a AA.

Em termos sociais não se verificam constrangimentos concretos de rejeição a uma eventual inserção do arguido na habitação, uma vez que a maioria dos residentes desconhecem a sua atual situação.

AA deu entrada no E.P. instalado junto à Polícia Judiciária ... em 02 de setembro de 2021, na situação de prisão preventiva, à ordem do presente processo, adotando em meio prisional uma conduta conforme ao ordenamento normativo vigente.

Os impactos mais evidentes da sua situação jurídico-penal são o facto de se confrontar pela primeira vez com a situação de reclusão e o afastamento da família, principalmente porque no decurso da reclusão nasceu a sua primeira filha.

Relativamente aos factos pelos quais está acusado nos presentes autos, o arguido verbaliza consciência da sua gravidade, apreensão face ao seu desfecho e preocupação relativamente às consequências que daqui lhe podem advir.

O presente processo não teve, até ao momento, qualquer repercussão negativa ao nível do apoio familiar, beneficiando do suporte da companheira e segundo refere família alargada.

O processo de desenvolvimento psicossocial de BB decorreu junto do agregado de origem.

Os progenitores têm filhos de outras relações, não sendo o arguido próximo dos irmãos. O ambiente familiar foi caraterizado como estável verificando-se sentimentos de entreajuda numa convivência funcional, no entanto os progenitores divorciaram-se aos 18 anos do arguido.

Frequentou o sistema de ensino, até aos 16 anos de idade, concluindo o 3º ciclo através de um curso de dupla certificação de eletricidade de baixa e média tensão.

Não prosseguiu os estudos por se considerar desmotivado.

Nesta idade começou a ajudar numa empresa de montagem de palcos para espetáculos e aos 18 mudou-se para a ... onde esteve 2 anos como operário fabril.

Desde 2009 até ao presente trabalha na empresa A... – peças de automóveis, onde o seu contrato está suspenso a aguardar a definição da situação jurídica.

A nível afetivo, vive em união de facto com HH há cerca de 5 anos, o casal tem uma descendente que completará 4 anos de idade em novembro.

A dinâmica relacional foi positivamente referenciada.

(…)

O arguido AA sofreu as seguintes condenações:

No processo 132/09...., pela prática em 15/10/2009 de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, por decisão de 4/11/2011, transitada em julgado em 5/12/2011, a condenação na pena de 12 meses de prisão substituída por 360 horas de trabalho comunitário.

No processo 43/14...., pela prática em 23/10/2014 de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, por decisão de 25/11/2015, transitada em julgado em 28/12/2015, a condenação na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa na execução por idêntico período.”


2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), as questões a apreciar respeitam a (a) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.º, n.º 2, al. a) do CPP); (b) nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, als. a) e c), do CPP); (c) medida da pena parcelar do crime de tráfico de estupefacientes e medida da pena única (arts. 40.º, 70.º, 71.º e 77.º do CPP); (d) declaração de perda do veículo automóvel ..-..-NV (art. 35.º do DL n.º 15/93).


2.(a) Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.º, n.º 2, al. a) do CPP)

O recorrente começa por arguir o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a) do CPP.  Para tanto, sustenta que o tribunal deu como provado que o arguido vendeu produtos estupefacientes, designadamente cannabis e cocaína em quantidades e por preços não apurados, no período compreendido entre janeiro a agosto de 2021, sendo resultantes dessa vendas os montantes pecuniários que lhe foram apreendidos, sem que em concreto tenha dado como assente, qualquer acto de venda por parte do recorrente (ou do co-arguido BB); e que sustentar que tais montantes porque elevados resultam da venda de canábis e cocaína, sem concretização dessas transações, é claramente insuficiente para considerar como demonstrado que os mesmos são resultantes de vendas realizadas. Tanto mais que, sempre na sua alegação, o arguido apresentava outras fontes de rendimento lícitas, provenientes do trabalho e da participação em jogos on line.

Em suma, a decisão sob recurso padeceria de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por o tribunal não ter indagado, de forma concreta, quando, a quem, como, onde, por que preço vendeu os produtos estupefacientes, inexistindo um nexo de causalidade entre as quantias que lhe foram apreendidas e actos concretos de venda.

Da argumentação desenvolvida resulta logo que a invocação do vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP se mostra materialmente injustificada. E não ocorre o vício expressamente invocado, nem nenhum outro, como seja o erro notório na apreciação da prova. Este vício da sentença/acórdão, apesar de não directamente nomeado pelo arguido, pode estar de algum modo indirectamente aludido nalguns excertos da argumentação desenvolvida na motivação do recurso, e (também) por isso a sindicância do recurso abrangê-lo-á.

Como resulta da literalidade da norma e como tem vindo a ser pacificamente entendido desde sempre pela jurisprudência, os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP são os que se detectam no próprio texto da decisão, “por si só ou conjugado com as regras da experiência comum”.

Assim, em caso de vício, o leitor retira da análise do texto, sem recurso a outros elementos do processo, a detecção de qualquer uma das três anomalias previstas na norma: a insuficiência da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, e o erro notório na apreciação da prova.

Antes de passar à análise do vício concretamente invocado, e atenta a falta de clareza e alguma confusão na invocação,  lembra-se que, desde logo, o recorrente não procedeu a impugnação da matéria de facto. Não foi sua opção recorrer para a Relação, tendo preferido interpor recurso directo para o Supremo, necessariamente restrito a matéria de direito e ao conhecimento dos vícios do art. 410.º, nº 2, do CPP (art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP). Assim, na ausência de detecção do vício invocado, ou de outro de que sempre cumpriria conhecer oficiosamente, esta matéria de facto é de considerar definitivamente estabilizada.

Consigna-se também, e apesar de não expressamente invocado, repete-se, que um erro notório na apreciação da prova teria de consistir em considerar-se provado no acórdão algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador de regras da experiência comum. “Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74).

Se os enunciados descritos no acórdão como “factos provados” ou como “factos não provados” decorrem da motivação da matéria de facto da mesma decisão, se esta descreve um processo de formação de convicção que não revela erros de raciocínio evidentes, se a livre convicção se mostra explicada no acórdão segundo regras de lógica, de ciência e de experiência corrente, e ainda em obediência aos princípios processuais e regras legais de prova, não é possível vislumbrar (e declarar) tal erro, no acórdão. Nestes casos, restará ao tribunal ad quem decidir que o acórdão não enferma de vício de texto e confirmar a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo. É o que sucede no presente caso, mormente no que respeita à ligação ao tráfico de estupefacientes das quantias em dinheiro apreendidas ao arguido, como se concretizará.

Já o vício invocado, da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito e existe sempre que o tribunal deixa de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa.

Por último, a contradição insanável da fundamentação e da fundamentação e decisão é o vício que ocorre quando a fundamentação da decisão recorrida aponta no sentido de decisão oposta à tomada, ou no sentido da colisão entre os fundamentos invocados, sendo uma incompatibilidade inultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a matéria de facto e a decisão, existindo como que uma colisão.

Passando então à análise do acórdão, mormente na medida da impugnação que dele é feita, resulta da matéria de facto provada que o recorrente detinha na sua posse, na residência e no estabelecimento explorado pela companheira e por si gerido, elevadíssimas quantidades de produto estupefaciente (104,006gr, 5,719gr, 5,170gr, 4.720,000gr, 18.950,000gr, 1.310,000gr, 880,000gr, 1.680,000gr, 430,000gr, 1.725,000gr, 5.895,000gr, 51.775,000gr) de natureza diversa (cocaína, cannabis (resina), MDMA, cannabis (folhas/sumidades).

Foi igualmente dado como provado que detinha na sua posse elevadas quantias monetárias, nomeadamente o montante de € 27.315,00, sendo certo que grande parte deste valor se encontrava acondicionado no interior de uma mochila juntamente com a cocaína, cannabis e MDMA.

Foi dado como provado que o recorrente entregou e recebeu em, pelo menos, três datas distintas, a saber, 13-04-2021 (entregou e recebeu), 08-08-2021 (entregou), 15-08-2021 (entregou), produto estupefaciente a terceiros e de terceiros, coarguidos com quem desenvolvia a sua atividade.

A tudo acresce terem sido apreendidos ao recorrente, também na sua residência, diversos objetos conotados com a atividade de tráfico, próprios para estabelecer contactos com os coarguidos, bem como com os adquirentes e fornecedores do estupefaciente (diversos telemóveis – quanto maior a diversidade, maior a dificuldade de deteção); para o doseamento, acondicionamento e embalamento do produto estupefaciente, bem como para o seu transporte (balança digital, caixas de rolos de sacos plásticos, máquinas de vácuo/selagem de sacos plásticos, sacos de desporto e mochilas), factos igualmente provados.

E sobre esta matéria de facto pode ler-se no acórdão, na respectiva motivação:

“[…] Também as quantidades e dinheiro apreendidos nas residências e estabelecimento comercial do arguido AA e o material encontrado, associados às deslocações e movimentações (pelos menos as que se detetaram entre em abril e agosto permitem concluir, diversamente do que disse, que efetivamente o arguido AA se deslocava para aquisição de produto estupefaciente (que guardava na sua residência e estabelecimento) para venda e entregava a BB (como também se constatou no dia 15 de agosto, mas também em momento anterior não concretamente determinado, atento o que já se encontrava na residência deste). […]

[…] As quantias monetárias apreendidas aos arguidos AA e CC, por seu turno, não podem deixar de considerar como provenientes da atividade de tráfico a que se estavam a dedicar. Desde logo tratam-se de montantes elevados, não sendo a explicação fornecida por cada um dos dois arguidos para ter tais montantes em casa credível (o arguido AA disse que a quantia se destinava a obras na loja e o arguido CC que a mesma se destinava à compra de um veículo automóvel) – à luz das regras da experiência comum, nada justifica que se possua na residência montantes tão elevados como os que foram apreendidos. […] De resto, os arguidos não podiam deixar de saber que tais montantes seriam com muita probabilidade associados à atividade que sabiam desenvolver, não sendo crível que estivessem dispostos a perdê-la em função desse risco, caso fossem, como vieram a ser, descobertos (não sendo a simples exibição de um orçamento suficiente para concluir em sentido contrário) […]”

De tudo resulta que da factualidade provada, retirada da prova produzida (de acordo com o texto do acórdão, na explicação racional e lógica, ali patente no exame crítico das provas), não se extrai conclusão diversa daquela a que o tribunal recorrido chegou, nem se vislumbra que tenham ficado por apurar factos que fossem necessários à decisão e/ou que devessem ter determinado uma decisão de direito distinta.

Pelo contrário, o quadro factual apurado leva a concluir que o arguido recorrente não era um mero detentor de estupefaciente para o pequeno consumo, ou um simples traficante de rua. Era sim um elemento relevante na cadeia do tráfico, de quantidades já expressivas de estupefacientes (mormente tendo em conta o tipo “simples” do art. 21.º, por que foi condenado, e não o tipo agravado do art. 24.º), com uma intervenção activa no processo, designadamente estabelecendo contactos com compradores, vendedores e fornecedores, entregando e recebendo produto estupefaciente e, naturalmente, também o respetivo preço.

Resultou ainda provado que o recorrente actuava de forma consertada com os demais co-arguidos a quem foram, igualmente, apreendidas elevadas quantidades de estupefacientes, em algumas situações, após terem sido por si entregues, valendo, a este propósito, como refere o Senhor Procurador Geral-Adjunto, “o princípio da imputação objectiva recíproca, segundo o qual a cada um dos comparticipantes é imputada a totalidade do facto típico, independentemente da concreta actividade que cada um dos comparticipantes haja realizado”.

E, por tudo, é coerente e consentâneo com as regras de experiência e com os padrões de normalidade, a conclusão de que a quantia monetária apreendida ao recorrente provinha desta atividade que sabia ser ilícita. Que outra razão teria o recorrente para guardar a € 27.315,00 conjuntamente com cocaína, cannabis e MDMA, no interior de uma mochila que se encontrava no sótão da sua habitação? Efectivamente, além de pretender manter escondida tal quantia, tal como o estupefaciente, corria o risco, como se nota no acórdão, de que tal montante, sendo detectado, pudesse vir a ser conotado com a referida actividade. O que não tendo correspondência com a realidade, consubstanciaria uma opção ilógica e inverosímil para qualquer pessoa medianamente diligente.

Ademais, é despiciendo e desprovido de sentido, tal como refere o Senhor Procurador da República junto do Tribunal Recorrido, aceitar ou admitir que a entrega de estupefacientes nas quantidades que foram detetadas ocorra de forma gratuita. É, pois, seguro e correcto o juízo formulado acerca da origem ilícita das quantias monetárias apreendidas.

Pelo exposto, e compulsado todo o acórdão recorrido, não se vislumbra o vício arguido em recurso, do art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP. Inexiste insuficiência da matéria de facto para a decisão, pois a factualidade dada como provada (e não provada), que não apresenta qualquer lacuna ou imprecisão, se afigura suficiente e adequada para fundamentar a solução de direito encontrada.

Em suma, a sindicância do texto do acórdão recorrido não permite a detecção de nenhum dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP: não se vislumbra que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito;  não se vislumbra que se tenha deixado de investigar toda factualidade com relevo para essa decisão; não se detectam incompatibilidades entre factos provados ou entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação e a decisão; não se detecta na decisão recorrida qualquer falha ostensiva na análise da prova que pudesse abalar a decisão sobre a matéria de facto.


2.(b) Da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, als. a) e c), do CPP)

O recorrente argumenta que o acórdão recorrido é nulo, nos termos do disposto nos arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, als. a) e c), do CPP, porquanto não se teria pronunciado sobre matéria vertida na contestação apresentada pelo arguido, nomeadamente sobre os pontos 3, 6, 10 e 11, nem sobre a documentação solicitada em sede de audiência de julgamento a 18-10-22, que veio a ser junta aos autos.

Como se refere no Código de Processo Penal Comentado pelos Senhores Juízes Conselheiros do STJ, a omissão de pronúncia ocorre “quando o tribunal viola os seus poderes de cognição”. “A nulidade por omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – art. 608.º., n.º 2 do CPC, aplicável ex vi art. 4.º do CPP. Evidentemente que há que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o citado n.º 2, do art. 608.º do CPP. “A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide pois sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe a tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou o problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão.” (António Henriques Gaspar e Outros, Almedina, 2021, p. 1157)

Fazendo a transposição para a temática da “matéria de facto”, a detecção duma omissão de pronúncia pressuporia uma ausência de factualidade que, tendo integrado o objecto do processo, tendo sido matéria de discussão em julgamento e devendo ser objecto de conhecimento, estivesse fora do “acórdão de facto” e impedisse por isso uma correcta decisão de direito. O que, a suceder, poderia configurar vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP, concretamente, o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Sucede que nenhuma das apodadas omissões obedece a este duplo enquadramento (estar fora do “acórdão de facto” e por isso impedir a correcta decisão de direito).

Na verdade, todos os factos relevantes para a decisão, de acordo com as soluções de direito que em julgamento se perspectivaram e se deviam ter perspectivado, encontram-se na matéria de facto do acórdão.

Estão ali, sendo certo que não têm de estar necessariamente descritos como inicialmente se encontravam nas peças processuais de onde provieram, não exactamente pela mesma ordem ou pelas mesmas palavras. Mas é de considerar que todo o episódio de vida, incluindo o relatado com interesse na contestação,  integra os factos provados e os não provados do acórdão. Ou seja, os enunciados fácticos agora discriminados pelo recorrente podem não se encontrar descritos qua tale no acórdão, mas daí não resulta que, em concreto, a decisão recorrida esteja ferida de nulidade por omissão de pronúncia.

Na redacção dos factos, o tribunal de julgamento não está amarrado à redacção dos factos da acusação e da contestação,  não tem de se pronunciar sobre todos eles se não relevarem para a decisão de direito, como se “facto articulado” fosse sinónimo de “facto relevante para a decisão de direito”.

Há uma fronteira dentro da qual os poderes de cognição do juiz de julgamento se podem sempre movimentar, definindo até que ponto o julgador pode alterar a redacção da acusação (e demais articulados processuais), em cumprimento do princípio da investigação e em obediência a uma verdade material que cumpre procurar alcançar, sem contender com o princípio da vinculação temática, por um lado, e sem incorrer em excesso ou em omissão de pronúncia, pelo outro. A situação apresentada no recurso não configura uma “nulidade por omissão de pronúncia” e do recurso (da motivação e das conclusões) nada resulta que permita identificar essa apodada omissão. Senão, reveja-se o acórdão no confronto da argumentação do recorrente.

Considera o arguido que a decisão recorrida não se pronunciou sobre os seguintes factos constantes da contestação:

“ponto 3- Em relação ao arguido BB, seu sobrinho, a sua actuação subsume-se ao dia da detenção e aos factos descritos no ponto 30 da pronúncia.

ponto 6- Durante o período em que esteve a ser rotinado e investigado, quer através de RDE, quer a através da intercepção dos telefones que lhe eram imputados, nunca foi contactado no sentido de adquirir ou proceder à venda de estupefacientes.

Pelo que, os factos descritos nos pontos 18, 19 da pronúncia, constituem meras presunções.

ponto 10- O arguido apresenta inserção profissional, desenvolvia actividade laboral nos estabelecimentos comerciais que detinha em conjunto com a sua companheira, efectuando descontos para a Segurança social.

ponto 11- Obtinha rendimento da venda de cães, uma vez que, tinha criação. Ademais, retirava rendimentos da sua participação em jogos Online, conforme documentos que protesta juntar, e que atento ao volume, terão que ser juntos em papel.”

Considera, igualmente que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre o teor dos documentos (extratos bancários), cuja junção requereu, em audiência, para prova do ponto 11. e que veio a ser deferida.

Não lhe assiste razão.

Na verdade, não se vislumbra em que medida se invoca a nulidade prevista na al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPP. Efectivamente, face às considerações supra, após análise do acórdão recorrido, constata-se que o tribunal a quo cumpre as exigências legais de fundamentação, elencando os factos provados e não provados, indicando os meios de prova e a razão por que tais meios de prova foram elucidativos para decidir como se decidiu, não se antevendo qualquer falta de fundamentação.

Por outro lado, também se constata que o mesmo se pronunciou sobre todas as questões que foram submetidas à sua apreciação e que devia conhecer e que o fez com completude, inexistindo, igualmente, qualquer omissão de pronúncia que permita invocar a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.

Desde logo, relativamente aos pontos 3. e 6. da contestação importa esclarecer que os mesmos não consubstanciam verdadeiros factos novos, mas tão só a negação daqueles descritos na pronúncia, com base na interpretação que o recorrente faz dos elementos probatórios que foram analisados e considerados na decisão recorrida. Aliás, a referência a que os factos 18. e 19. da pronúncia, constituem meras presunções (parte final do ponto 6.) integra uma conclusão que nada tem de factual.

Refere no ponto 3. que, em relação ao sobrinho, a sua actuação resume-se ao dia da detenção (factos descritos no ponto 30. da pronúncia), e no ponto 6., que não resultou dos RDEs ou das interceções telefónicas que tivesse sido contactado no sentido de adquirir ou proceder à venda de estupefacientes.

Ora, a decisão recorrida não deixou de se pronunciar sobre o ponto 3. da contestação, não obstante, decidiu em sentido divergente daquele apontado pelo recorrente. E, quando assim é, não se impõe ao tribunal que dê como provado o facto descrito na acusação ou na pronúncia e como não provado o seu contrário, ainda que tal conste da contestação do arguido .

Veja-se que foi dado como provado que:

“Desde data não concretamente apurada, mas não anterior a abril do ano de 2021, e até ao dia 18 agosto desse ano o arguido BB, em conjugação de esforços com o arguido AA deteve produto estupefaciente, nomeadamente cannabis e cocaína, com o objetivo de venda a terceiros na área de ... e ... junto dos consumidores de tais produtos, deles recebendo em contrapartida, quantias em dinheiro.” e que “Com as descritas condutas, associadas a produtos estupefacientes, atuaram os arguidos AA e BB de comum acordo e em conjugação de esforços e intentos desde data não concretamente apurado do ano de 2021.”

E resulta da fundamentação de facto constante da decisão recorrida que:

“Também as quantidades e dinheiro apreendidos nas residências e estabelecimento comercial do arguido AA e o material encontrado, associados às deslocações e movimentações (pelos menos as que se detetaram entre em abril e agosto permitem concluir, diversamente do que disse, que efetivamente o arguido AA se deslocava para aquisição de produto estupefaciente (que guardava na sua residência e estabelecimento) para venda e entregava a BB (como também se constatou no dia 15 de agosto, mas também em momento anterior não concretamente determinado, atento o que já se encontrava na residência deste).

 A quantidade de produto estupefaciente e a balança existente na casa do arguido BB são também, contrariamente ao que disse, demonstrativos de que este arguido detinha não só o produto estupefaciente, como o destinava à venda. Não se mostrou credível a justificação apresentada pelo arguido para ter consigo a balança (de que tinha praticado culturismo e que a balança se destinava ao peso dos pós) – a balança encontrava-se no quarto (local onde não é habitual guardar-se balanças, a não ser que o produto a pesar também aí se encontre, como se encontrava (só que não era pó para o culturismo, mas cannabis e cocaína).

(…) Também os instrumentos, como o próprio arguido AA assumiu, não podem deixar de ser associados à atividade que por eles vinha a ser desenvolvida – sendo certo que a referência do arguido BB à prática de culturismo não se mostrou, como se disse já, bastante para concluir que a balança de precisão que lhe foi encontrada havia sido adquirida para esse fim.”

Ou seja, daqui se infere que o tribunal recorrido considerou ter prova suficiente e segura de que os arguidos praticaram os factos, de forma consertada e em conjugação de esforços, numa actuação que se perpetuou no tempo e que não se resumiu à ocorrência do dia da detenção. 

Assim sendo, inexiste qualquer omissão de pronúncia por parte do Tribunal sobre a matéria vertida na contestação no que a este ponto 3. se refere. Também não se vislumbra qualquer falta de fundamentação relativamente à questão da comparticipação do recorrente e de BB. O que se detecta é uma discordância do recorrente quanto ao modo como o tribunal apreciou a prova e quanto ao resultado dessa apreciação, pois que, em vez de dar como não provado tal actuação consertada, decidiu-se pelo seu contrário. Tal decisão assenta, porém, em diversa e extensa prova que o Tribunal elencou e discutiu em sede de fundamentação e que não lhe permitia extrair conclusão diversa.

O mesmo se diga relativamente ao ponto 6. da contestação. A este propósito, refira-se que o tribunal recorrido faz menção, na decisão de facto, que apenas se deram como provados os factos com relevância para a decisão e com exclusão da matéria de facto de natureza conclusiva, designadamente, o item 18. da pronúncia (cf. nota de rodapé 1 do acórdão recorrido).

Por outro lado, constata-se da decisão recorrida que, quer o teor dos RDEs, quer o teor das interceções telefónicas, foram elementos probatórios considerados e analisados em sede de fundamentação da matéria de facto e dos mesmos foram extraídas consequências. Senão atente-se na fundamentação de facto:

“Conjugadamente, consideraram-se os relatórios de vigilância constantes do Anexo 1: 1. De fls. 2 a 3, consta Relatório de Vigilâncias e Seguimentos, datado de 13 abril de 2021;

2. De fls. 6 a 13, consta Relatório de Vigilâncias e Seguimentos, datado de 15 abril de 2021 (e fls. 400 e ss dos autos);

3. De fls. 14 e 15 (e fls. 207 e ss dos autos), consta Relatório de Vigilâncias e Seguimentos, datado de 08 agosto de 2021; e

4. De fls. 16 a 22, consta Relatório de Vigilâncias e Seguimentos, datado de 15 agosto de 2021 (e fls. 229 e ss, 410 e ss).

Nestes relatórios, conjugados com os depoimentos das testemunhas agentes que neles estiveram presentes e os confirmaram, descrevem-se os comportamentos dos arguidos em cada uma das datas das vigilâncias efetuadas, o que permitiu apurar o comportamento de cada um dos arguidos nas diferentes datas indicadas na acusação.

(…) Por fim, são as próprias vigilâncias que são demonstrativas de que os veículos conduzidos pelos arguidos eram por si utilizados na prática da atividade descrita.

(…) As mensagens escritas de fls. 1220 a 1259 que se conciliam com a restante prova acima considerada e dão consistência aos factos que se consideraram provados tratam-se de mensagens atuais, contemporâneas dos factos e existentes em outro telemóvel periciado que não naqueles de onde foi obtida informação da NOS referidos pelo arguido. No mais, importará dizer que as informações prestadas pelas operadoras referentes as conversações telefónicas e geo-localizações através das antenas mencionadas nos relatórios de vigilância foram obtidas em tempo real, não versando dados conservados (entendendo-se, por isso, não ser situação abrangida pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 269/2022).”

Desta enunciação resulta à evidência que tais elementos foram considerados e devidamente ponderados pelo tribunal recorrido para chegar à decisão de facto vertida no acórdão, tendo-se, inclusivamente, dado como não provados factos, porquanto da análise desses elementos de prova impunha-se tal decisão:

“No que respeita à actividade do arguido AA anterior ao ano de 2021, considerou-se a mesma como não provada em função da ausência de prova bastante nesse sentido. Na verdade, o arguido AA negou-a e relativamente a ela existe apenas o teor do relatório pericial constante de fls. 1113 e ss. (relatório Forense n.º 2409GEP2021-196RF242). Ora, tal relatório só por si não se mostra bastante nesta parte – sendo certo que, designadamente as mensagens de fls. 1130, se mostram indiciadoras da possível existência de uma atividade ligada ao tráfico de estupefacientes nessa altura, o certo é que se tratam de mensagens isoladas trocadas sem substanciação de quaisquer comportamentos referentes a esse período que emprestem consistência a uma atividade concreta organizada e continua desde 2019 até ao período admitido pelo arguido. Quanto a este exame pericial e à questão prévia relativamente a ele suscitada importará dizer ainda que os números de telefone e informações obtidos através de informações prestadas pela NOS a que o arguido AA se refere no seu requerimento não tiveram qualquer resultado útil na perícia que tivesse vindo a ser utilizado como prova – como se vê do relatório pericial (artigos 4.1, 5.1 e 6.1), desses telemóveis nenhuma informação relevante foi considerada.

(…) A co-autoria entre o arguido CC e os outros dois arguidos também se não demonstrou, sendo certo que os arguidos a negaram – sendo certo que em nenhuma vigilância se vêem os arguidos juntos e que a circunstância de o estupefaciente que ambos detinham ter composição semelhante não basta para se concluir pela existência de um acordo e atuação conjunta.”

Em conclusão, também no que a este ponto 6. da contestação se refere, nenhum reparo há a fazer ao acórdão recorrido.

Relativamente aos pontos 10. e 11. da contestação, mais uma vez, terá de improceder o vício alegado. Tais factos foram devidamente considerados na matéria de facto provada, e na medida em que relevavam para a decisão de direito:

“(…) o arguido nos últimos seis anos explorava com a companheira duas lojas de animais, uma no ... e a segunda em ... e faziam ainda criação de cães de raça. (…) A situação económica do agregado é capaz de fazer face às despesas do núcleo familiar, sendo a subsistência assegurada pelo valor auferido pela companheira, cerca de 2000 (dois mil) euros mensais e do abono de família para crianças e jovens, no valor de 97 euros mensais. Como despesas têm a prestação do empréstimo habitação, no valor de 550 euros mensais, da renda da loja de animais, no valor de 280 euros mensais, do fornecimento de eletricidade, no valor de 60 euros, da água no valor de 40 euros e do pacote de televisão e internet, no valor de 45 euros mensais.”.

Estes factos dados como provados espelham a situação económica e laboral do recorrente à data dos factos e em nada colidem com os itens 10. e 11. da contestação.

Por outro lado, os extratos bancários que vieram a ser juntos em audiência também foram devidamente valorados. Contudo, a conclusão a que chegou o tribunal é, mais uma vez, diversa daquela que pretendia o recorrente.

Efectivamente, na fundamentação de facto consignou-se a irrelevância daqueles extractos, explicando-se a razão de tal desiderato:

“As quantias monetárias apreendidas aos arguidos AA e CC, por seu turno, não podem deixar de considerar como provenientes da atividade de tráfico a que se estavam a dedicar. Desde logo tratam-se de montantes elevados, não sendo a explicação fornecida por cada um dos dois arguidos para ter tais montantes em casa credível (o arguido AA disse que a quantia se destinava a obras na loja e o arguido CC que a mesma se destinava à compra de um veículo automóvel) – à luz das regras da experiência comum, nada justifica que se possua na residência montantes tão elevados como os que foram apreendidos. (acabando neste contexto por ser irrelevante a determinação da proveniência do dinheiro que se encontrava depositado no banco e as movimentações efetuadas, posto que o que está em causa é o montante que se encontrava em dinheiro na residência). De resto, os arguidos não podiam deixar de saber que tais montantes seriam com muita probabilidade associados à atividade que sabiam desenvolver, não sendo crível que estivessem dispostos a perdê-la em função desse risco, caso fossem, como vieram a ser, descobertos (não sendo a simples exibição de um orçamento suficiente para concluir em sentido contrário).”

De facto, não estava em causa o montante depositado na instituição bancária ou as movimentações ali efetuadas. Além disso, os extractos bancários, desacompanhados de qualquer outra prova, não permitem infirmar a conclusão a que o tribunal recorrido chegou relativamente ao montante apreendido na habitação do recorrente.

Em suma, a posição assumida pelo recorrente revela a mera discordância quanto ao modo de valoração das provas e ao juízo resultante dessa mesma valoração, bem como da respetiva fundamentação, não traduzindo uma omissão de pronúncia. Não é pelo facto de não coincidir com a perspetiva do recorrente, que a decisão enferma de omissão de pronúncia ou falta de fundamentação sobre os termos e consequências da valoração dessas mesmas provas. Inexiste, pois, qualquer nulidade nos termos invocados.

O tribunal recorrido decidiu, orientando a sua valoração das provas de acordo com os critérios legais, como demonstra ao longo da sua motivação, tendo fundamentado a decisão, atento o disposto no art. 127.º, do CPP. Fê-lo de forma detalhada (indicou a prova testemunhal, documental e pericial que avaliou e valorou, de forma conjugada), apontando as razões por que conferiu credibilidade aos depoimentos e esclarecimentos prestados, numa exaustiva exposição e apreciação crítica da prova, e de onde resultam suficientemente claras as razões que o levaram a decidir da forma que deixou consignada.

Em face desse exame crítico da prova - rigoroso e pormenorizado – e que foi devidamente escalpelizado num texto lógico e congruente, de forma consistente e suficiente, no qual o tribunal recorrido explicou os motivos pelos quais se convenceu de que os factos haviam decorrido tal como foram dados por provados, forçoso é concluir que cumpriu os requisitos de fundamentação como lhe competia, não se verificando nulidade por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, als. a) e c), ambos do CPP.


2.(c) Da medida da pena parcelar do crime de tráfico de estupefacientes e da medida da pena única (arts. 40.º, 70.º, 71.º e 77.º do CPP)

O recorrente foi condenado como autor, em concurso efectivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, na pena de 7 anos e 4 meses de prisão, e de 1 crime de detenção ilegal de arma, do art. 86.º, n.º 1, als. c) e d), da Lei n.º 5/2006, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão. Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 8 anos de prisão.

Começa por considerar excessiva a medida da pena aplicada pelo crime de tráfico de estupefacientes, porquanto o tribunal recorrido não atendeu às circunstâncias mitigadoras do grau de ilicitude dos factos e da culpa, pugnando pela aplicação de uma de prisão não superior a 6 anos.

Argumenta, no essencial, que o tribunal não atentou devidamente no curto período de tempo da actividade ilícita, de janeiro a agosto de 2021, obtendo concretização nos factos descritos a 13 de Abril, 8 e 15 de Agosto de 2021, factos que ocorrem numa zona geográfica delimitada; na ausência de pessoas identificadas como adquirentes; no tipo de droga apreendida em maior quantidade, cannabis com um reduzido grau de pureza; no não apuramento de quantidades vendidas e preços de aquisição e venda; nas condições pessoais do arguido, assumindo relevo o apoio familiar, os hábitos de trabalho,  a criação do próprio posto de trabalho, o nascimento da filha, actualmente com 6 meses de idade, o afastamento do consumo de estupefacientes, que mantinha desde os 9/10 anos de idade, a atitude colaborante com o sistema de justiça. Relativamente aos antecedentes criminais, argumenta que os crimes anteriores foram cometidos há mais de sete anos, ocorrendo o segundo num contexto de consumo de estupefacientes, comportamento aditivo que cessou com a detenção actual.

Por tudo, conclui o recorrente que, por este crime, deveria ser aplicada pena não superior a 6 anos de prisão.

Já quanto ao crime de detenção de arma proibida, é de considerar que houve conformação com a condenação, uma vez que inexistiu impugnação (impugnação que podia ter sido feita, conforme jurisprudência fixada no AFJ do STJ n.º 5/2017).

Por último, e no pressuposto da procedência do recurso sobre a pena parcelar impugnada, o recorrente peticionou a redução da pena única para 7 anos e 6 meses.

O Ministério Público, na resposta e no parecer, pronunciou-se fundamentadamente no sentido da confirmação das penas.

O acórdão recorrido justificou a pena parcelar impugnada nos seguintes termos:

“[…] O crime de tráfico de estupefacientes é abstratamente punível com pena de prisão de 4 a 12 anos.

Na determinação da medida da pena deverão ser atendidas todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham favor do agente ou contra ele, de harmonia com os critérios contidos no art. 71.º do Código Penal.

No caso é de considerar que ambos os arguidos agiram na modalidade mais grave do dolo – dolo direto.

A forma de atuação é a descrita nos factos provados: detenção, embalagem, transporte e venda, no período considerado.

Ao arguido AA foram apreendidas 87.370,719 grms de cannabis (resina e folhas/sumidades) com um grau de pureza 0,3% e 26,6%, 104,006 grms de cocaína com um grau de pureza de 43,7% e uma embalagem contendo comprimidos MDMA com o peso líquido de 5,170 e com um grau de pureza de 19,9%. […]

[…] As exigências de prevenção geral são elevadas nesta área de criminalidade, quer pela frequência do ilícito, quer pelas consequências a ele associadas, quer pelos reflexos que tem na comunidade.

As exigências de prevenção especial divergem relativamente a cada um dos arguidos. São acentuadas quanto ao arguido AA que, apesar de ter um percurso de vida relativamente adequado, desde cedo contactou com o mundo da toxicodependência, contando já com duas condenações por tráfico de estupefaciente. São menos relevantes quanto aos dois arguidos que, não tendo condenações anteriores, têm um percurso pessoal e profissional regular, conforme demonstrado nos factos provados.

Reputa-se, assim, adequada no caso e tendo em consideração as diferentes exigências de prevenção especial, aplicar:

- ao arguido AA: a pena de sete anos e quatro meses de prisão”.

Antecipa-se que o acórdão recorrido não merece censura, sendo a pena parcelar impugnada de confirmar.

Desde logo, no que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, o Supremo tem reafirmado que o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, não se tratando nunca de um re-julgamento da causa. Ou seja, o Supremo intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções no processo aplicativo da pena desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem na determinação da sanção. E não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de 1.ª instância.

O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de julgamento enquanto componente individual do acto de julgar, e a sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, direccionada  para o (des)respeito de princípios gerais, de operações de determinação impostas por lei, desconsideração de factores de medida da pena, “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197).

Dentro da margem de actuação assim definida, olhando o acórdão recorrido, mormente o excerto transcrito, constata-se que nele se observaram as exigências formais de fundamentação em matéria de pena - as exigências de facto, selecionando-se e discorrendo-se sobre os factos que relevavam na determinação da sanção, e as exigências de direito, enunciando correctamente o quadro legal aplicável – e, materialmente, chegou-se a uma medida de pena compreensivelmente justificada.

Na verdade, o grau de ilicitude é elevado, considerando a quantidade e qualidade do estupefaciente, assim como a motivação do ganho (o recorrente detinha 87.370,719 gr de cannabis (resina e folhas/sumidades) com um grau de pureza 0,3% e 26,6%, 104,006 gr de cocaína com um grau de pureza de 43,7%; e uma embalagem contendo comprimidos MDMA com o peso líquido de 5,170 gr e com um grau de pureza de 19,9%) – volumes muito significativos geradores de avultados lucros atento o potencial número de consumidores que iria atingir.

A modalidade do dolo, directo, sendo, contudo, de atender, como factor mitigante, à circunstância de ser consumidor de estupefacientes à data dos factos.

O modo de execução que não revela grande preparação técnica ou organização logística, pois o recorrente desenvolvia a atividade com relativa simplicidade, utilizava a sua residência e estabelecimento comercial para acondicionamento, preparação e detenção do estupefaciente (mediante a utilização de balança digital, sacos plásticos e máquina de vácuo/selagem de sacos plásticos que mantinha na sua habitação), o seu veículo e sacos de desporto para o seu transporte, bem como telemóveis para estabelecer os contactos com os demais coarguidos, vendedores, fornecedores e consumidores.

A gravidade das consequências, que se considera mediana atento o lapso de tempo em que se dedicou à atividade de tráfico (cerca de 8 meses).

Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, sendo certo que a atuação do recorrente tem lugar num contexto de vida ‘desafogado’, pois estava inserido profissionalmente, não se tendo apurado particulares dificuldades financeiras. Tal como alude o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto no seu parecer “o recorrente actuou com cupidez o que torna a sua conduta mais censurável porquanto, conforme ficou assente e o próprio o reconhece, exercia uma actividade profissional legítima que lhe propiciava uma situação financeira equilibrada”.

As condições pessoais do agente e a sua situação económica, sendo factor mitigante a circunstância de ter suporte familiar (pese embora tal apoio familiar não tenha contribuído para afastar o arguido da atividade criminosa) e uma conduta em meio prisional isenta de reparos (revelando atitude participativa e introspectiva).

A conduta anterior e posterior ao facto, militando a seu favor o facto de ser à data e desde tenra idade consumidor de estupefacientes, dependência que abandonou desde a detenção, após entrar em meio prisional. Relevam igualmente os seus antecedentes criminais, enquanto conduta anterior, denunciadora de falta de preparação para manter uma conduta lícita.


No que respeita à culpa do recorrente, encarada como reflexo da ilicitude dos factos, a mesma é consideravelmente elevada, tendo em atenção que não poderia de forma alguma desconhecer a gravidade da sua conduta, atendendo, em particular, à sua condição de consumidor e, por outro lado, ao facto de ter sido já condenado por ilícito de igual natureza, por duas vezes.

Por tudo, a pena de 7 anos e 4 meses de prisão  responde adequadamente às concretas exigências de prevenção geral e especial, revela-se necessária ao cumprimento das suas finalidades, e não pode dizer-se que exceda o limite da culpa do condenado.

Na verdade, no pensamento de Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005), bem como no de Anabela Rodrigues (A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995), para citar a doutrina mais representativa, acolhida na jurisprudência dos tribunais, a pena prossegue finalidades exclusivamente preventivas.

“Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral I, Coimbra Editora, 2004, p.81).

A prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, não podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, tendo a culpa como limite.

Partindo das finalidades e dos princípios enunciados, constata-se que se seguiram no acórdão os passos legais de ponderação, identificando correctamente as exigências de prevenção geral e especial. E atendendo às circunstâncias a que o tribunal atendeu, do modo como se deixou detalhado e já aqui analisado, circunstâncias que incluíram as destacadas pelos recorrentes, embora em leitura não forçosamente coincidente, é de reconhecer que a penas aplicada não excedeu o necessário a assegurar as finalidades da punição, mostrando-se proporcionada e contida no limite da culpa do arguido.

Culpa entendida como “censurabilidade do comportamento humano, por o culpado ter actuado contra o dever quando podia ter actuado «de outra maneira», isto é, de acordo com o dever” (Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa e Direito Penal, 1995, p. 244), devendo o agente ser censurado pela personalidade revelada no facto, pelos aspectos desvaliosos da sua personalidade contrários ao direito e revelados nesse facto.

E a personalidade do arguido, revelada nos factos, apresenta-se acentuadamente desvaliosa, como se disse já. Desde logo tendo em conta que, após duas condenações anteriores pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes (de menor gravidade), em que fora dada ao arguido a oportunidade de ressocialização em liberdade, este não só voltou a delinquir, reiterando na agressão ao mesmo bem jurídico, como aumentou expressivamente o grau dessa agressão.  

De tudo resulta que as exigências de prevenção especial acabam por convergir com exigências de prevenção geral elevadíssimas.

No que respeita a estas (exigências de prevenção geral), e como se pode ler, entre muitos, no acórdão do STJ de 05-02-2016 (Rel. Manuel Matos), o “STJ tem sublinhado que na fixação da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve-se atender a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade”.

No último Relatório Europeu sobre Drogas, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (Relatório de 2021), em sede de “Infrações à legislação em matéria de droga” pode designadamente ler-se: “As infrações relacionadas com drogas aumentam, sendo predominante a posse e a oferta de canábis. (…) a predominância da canábis nas infrações relacionadas com a oferta e a posse reflita a posição de liderança desta droga entre as substâncias ilícitas, também atesta a sua importância política. (…) Em 2019, foram comunicadas cerca de 1,5 milhões de infrações relacionadas com drogas na União Europeia, o que representa um aumento de um quarto (24%) desde 2009. A maioria destas infrações (82% ou 1,2 milhões) dizia respeito à utilização ou posse para uso pessoal. Com cerca de 617 000 infrações comunicadas em 2019, a canábis representou três quartos dos crimes conhecidos de consumo ou posse desta droga. (…) A canábis domina, com cerca de 101000 infrações comunicadas em 2019, representando 57% das infrações relacionadas com a oferta.”

E no que respeita à cocaína, no mesmo Relatório pode ler-se também:

“As apreensões recorde de cocaína são um sinal preocupante de um potencial agravamento dos danos para a saúde. A cocaína continua a ser a segunda droga ilícita mais comummente consumida na Europa, e a procura dos consumidores faz dela uma parte lucrativa do comércio europeu de droga para os criminosos. O número recorde de 213 toneladas de droga apreendida em 2019 indica um aumento da oferta na União Europeia. A pureza da cocaína tem vindo a aumentar na última década e o número de pessoas que iniciam tratamento pela primeira vez aumentou nos últimos 5 anos. Estes e outros indicadores indicam um potencial aumento dos problemas relacionados com a cocaína.

Em 2019, os Estados-Membros da UE comunicaram 98 000 apreensões de cocaína, totalizando 213 toneladas (…) A pureza média da cocaína no mercado de retalho variou entre 31 e 91% na Europa, em 2019 (…) A pureza da cocaína tem vindo

a aumentar na última década e, em 2019, atingiu um nível 57% mais elevado do que o ano de referência de 2009 (…) A cocaína foi a substância mais frequentemente submetida para testagem aos serviços de controlo de drogas em 14 cidades europeias entre janeiro e junho de 2020. A pureza média das amostras de cocaína foi de 60% (69% no mesmo período de 2019), sendo que uma em cada três amostras continha 80% ou mais de cocaína. Na União Europeia, os inquéritos indicam que cerca de 2,2 milhões de jovens entre os 15 e os 34 anos (2,1% deste grupo etário) consumiram cocaína no último ano. (…) O número de consumidores de cocaína que iniciaram tratamento pela primeira vez aumentou em 17 países, entre 2014 e 2019, tendo 12 países comunicado um aumento no último ano. (…) A cocaína foi a segunda substância comunicada com mais frequência pelos hospitais Euro-DEN Plus em 2019, estando presente em 22% dos casos de intoxicações agudas relacionadas com droga.”

Em suma e para concluir, constata-se que se observaram, no acórdão, as exigências formais de fundamentação em matéria de pena - as exigências de facto, selecionando-se e discorrendo-se sobre todos os factos que relevam na determinação da sanção, e as exigências de direito, enunciando-se correctamente o quadro legal aplicável – e, materialmente, chegou-se a uma medida de pena compreensivelmente justificada, e ainda situada abaixo do ponto médio da moldura abstracta.

A pena parcelar aplicada  responde adequadamente às concretas exigências de prevenção geral e especial, mostra-se necessária e proporcional, não pode dizer-se, que exceda o limite da culpa do condenado. É, por tudo, de manter.

O mesmo se diga relativamente à pena única, injustificadamente considerada excessiva pelo recorrente. Pugna o mesmo pela aplicação, em cúmulo, de uma pena não superior a 7 anos e 6 meses.

A moldura abstrata da pena a aplicar em sede de cúmulo jurídico é de 7 anos e 4 meses de prisão a 9 anos de prisão, tendo sido aplicada a pena única de 8 anos de prisão, mais uma vez, abaixo do ponto médio da pena abstracta.

Para o efeito, no acórdão fundamentou-se da seguinte forma:

“Dispõe o art. 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal que “1- Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 2- A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”

Tal significa que, tendo sido aplicadas duas penas aos arguidos AA e BB, se deverá encontrar para cada um deles uma pena única.

Assim, relativamente a cada um dos arguidos a moldura será:

- AA: 7 anos e 4 meses a 9 anos de prisão;

- BB: 4 anos e 8 meses a 6 anos e 2 meses.

Tendo em consideração a personalidade dos arguidos manifestada nos factos e ainda a circunstância de o arguido AA ter já dois antecedentes criminais pela prática do mesmo crime de tráfico de estupefacientes, revelando por essa frequência tendência para a criminalidade desta natureza, enquanto esta conduta desviante surge para o arguido BB como episódica, entende-se ser adequadas e necessárias as seguintes penas:

- AA: 8 anos;

- BB: 5 anos de prisão.”

Na fixação da pena única, aditiva das penas correspondentes a todos os crimes concorrentes, o tribunal procede à reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77.º, n.º 1, do CP), o que exige uma especial fundamentação na sentença, a fixar “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 2005, p. 291). É certo que essa fundamentação foi extremamente sucinta no acórdão, mas ela não deixa de ali se encontrar.

A decisão sobre o cúmulo de penas pressupõe a prévia identificação do concurso efectivo de crimes e a fixação das correspondentes penas parcelares, de acordo com os critérios (legais e constitucionais) de determinação da pena. E a tal se procedeu ali correctamente.

Na fixação da pena única, aditiva das penas correspondentes aos dois crimes concorrentes, o tribunal procedeu a uma reavaliação, sucinta mas autónoma, dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77.º, n.º 1 do CP), procedendo a uma fundamentação também desta pena. Pena que se mostra fixada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 2005, p. 291).

Na avaliação do ilícito global perpetrado, ponderada a conexão e o tipo de conexão entre os factos concorrentes, e a sua relação com a personalidade do arguido, evidencia o conjunto dos factos – o grande facto - um ilícito global desvalioso no ponto já mensurado no acórdão.

Assim, militam a favor do arguido a inserção familiar (notando-se que não são conhecidos sentimentos de receio ou animosidade relativamente ao recorrente), a gravidade mediana dos factos (dado o lapso de tempo - cerca de 8 meses - em que a atividade ilícita teve lugar), a sua postura pós factos, já em meio prisional (a intervenção já ocorrida no âmbito dos presentes autos parece surgir como um fator de recuperação, na medida em que o arguido revela uma mudança de atitude positiva) e o facto de ter cessado os seus consumos (embora de significado limitado, também tende a apontar no sentido dessa recuperação).

Contudo, efectuando, como se impõe, a ponderação global das circunstâncias concernentes aos crimes em causa, ressalta o percurso de vida do recorrente (apesar de beneficiar de apoio familiar, tem um trajecto associado ao consumo de drogas desde cedo, o que estará na génese do seu envolvimento na prática de ilícitos), o comportamento anterior (o recorrente regista dois antecedentes criminais por prática de crime de idêntica natureza), a relação temporal existente entre os crimes praticados (foram praticados de forma contemporânea e interligada – a arma e munições estavam guardados conjuntamente com o produto estupefaciente), a gravidade da ilicitude das condutas (aferida pelas quantidades e qualidades de estupefacientes que detinha na sua residência e no estabelecimento comercial onde desenvolvia atividade profissional, bem como de avultadas quantias monetárias e, bem assim, de arma de fogo e respetivas munições), o número e natureza de crimes (dois de natureza diferenciada), a intensidade do dolo (directo, e por isso, mais gravoso), o acentuado grau de culpa, e as motivações que estiveram na base da sua actuação (exclusivamente monetária não se revelando nenhuma carência financeira), factores que acentuam a necessidade do juízo de censura, mostram exigências de prevenção especial, mas também de prevenção geral e reclamam, por isso, uma punição adequada.

O recorrente já tinha antecedentes criminais por prática de crimes da mesma natureza, quando, pela terceira vez, praticou os factos em causa nos autos, em idade adulta e com maturidade suficiente para actuar com perfeita consciência das consequências da sua conduta, sem que isso o tivesse demovido da prática delitual. Tais circunstâncias, revelam uma postura avessa ao direito e uma personalidade desajustada à comunidade em que se insere, denotando indiferença pelos bens jurídicos violados e propensão para o crime.

Por tudo, impõe-se reconhecer que a pena única de 8 anos de prisão é a adequada às exigências de prevenção geral e especial, e está contida no limite da culpa do arguido.


2.(d) Da declaração de perda do veículo automóvel (art. 35.º do DL n.º 15/93).

O recorrente impugna o acórdão na parte em declarou perdido a favor do Estado o veículo automóvel ..-..-NV, registado a seu favor, por considerar que o mesmo viola o art. 109.º do CP, o art. 35.º do DL n.º 15/93 de 22-01, e os arts. 18.º, n.º 2 e 62.º da CRP. Considera que a declaração de perda não é automática, estando sujeita a critérios de causalidade e proporcionalidade; que no caso não se mostram respeitados tais critérios; que a viatura terá facilitado a deslocação do arguido mas não integra instrumento do crime; que não existe relação de causalidade entre a sua utilização e a prática do crime; que não se apurou que a viatura tivesse sido adquirida com proventos da actividade ilícita.

O Ministério Público, mais uma vez justificadamente, pronunciou-se no sentido da confirmação da decisão.

No acórdão, fundamentou-se a decisão de declaração de perda do veículo nos seguintes termos:

“Quanto aos veículos automóveis:

Declara-se a perda a favor do Estado do veículo com a matrícula ..-..-NV, posto que, registado a favor do arguido AA, foi por ele utilizado na prática do crime de tráfico de estupefacientes – cfr. art. 35 da Lei 15/93, de 22/1.”


Constata-se que a perda do veículo foi declarada ao abrigo do citado art. 35.º, estando em causa este preceito legal e não o art. 109.º do CP.

Nos termos do art. 35.º, n.º 1, do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, “são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”.

Trata-se de uma norma especial relativamente ao regime previsto no Código penal, no art. 109.º do CP. Neste se determina que só pode haver perdimento a favor do Estado, dos objectos e/ou dos instrumentos de facto ilícito típico, quando estes pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

Constata-se a dualidade de regimes legais.

No caso de infracções relativas a tráfico de estupefacientes dispensa-se aquela ponderação acrescida do potencial perigo de utilização dos bens e objectos, o que não significa, porém, que nenhuma ponderação deva fazer-se. Da norma que prevê o regime especial não resulta sem mais a perda de qualquer objeto que tenha servido para a prática do crime independentemente das circunstâncias dessa utilização. Da jurisprudência do Tribunal Constitucional (acórdãos n.ºs 176/2000 e 202/2000)  retira-se precisamente que seria inconstitucional a privação automática de direitos independentemente da formulação de um concreto juízo jurisdicional de ponderação das circunstâncias do caso e das características do objecto em causa, devendo, para tanto, apelar-se a critérios de causalidade e proporcionalidade.

Resultando do art. 35.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93 que são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido para a prática de uma infração prevista no diploma, e tendo em conta a jurisprudência do TC no sentido do apelo a critérios de causalidade e proporcionalidade, a declaração de perda mostra-se realmente justificada face aos factos provados do acórdão. Justificada, repete-se, na interpretação de que a norma referida pressupõe uma ponderação concreta, que inclui um juízo sobre a essencialidade do objecto na prática da infracção, sobre a causalidade e a proporcionalidade.

Como bem refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto no parecer, foi dado como provado que o veículo ... foi utilizado para as deslocações do recorrente para aquisição, transporte e transação de produto estupefaciente em, pelo menos, duas datas distintas (13-04-2021 e 08-08-2021), sendo certo que, sem essa utilização, a dimensão da atividade ilícita ficaria comprometida. Foram apreendidos cerca de 102 quilogramas de cannabis ao recorrente e seu co-arguido, e que diante da gravidade objectiva dos factos, medida quer pela quantidade e variedade dos estupefacientes traficados quer pelos proventos que os mesmos geraram (e que, não fora a intervenção policial de 15 de agosto de 2021, continuariam a gerar), a sua perda não é desproporcionada.

Efectivamente, face às quantidades de estupefacientes apreendidas é possível antever que a sua atividade sem o veículo em causa não se tornaria apenas “menos confortável”, como alega, pois o transporte deste tipo de substâncias naquelas quantidades demandava-lhe a utilização de meio de transporte adequadamente discreto, sendo inviável, v. g., o transporte a pé.

O recorrente optou por esta forma de transporte e dissimulação do estupefaciente e não outra, certamente porque considerou ser a forma mais rápida, cómoda, discreta e eficiente para concretizar a sua atividade, características que assumem relevo nesta atividade. 

Assim, desta forma de actuar ressalta a essencialidade da utilização do veículo, o qual desenvolvia uma função instrumentalmente necessária ou essencialmente modeladora do modo de cometimento da infração, revestindo tal utilização o sentido funcionalmente relevante que é exigido para o preenchimento do pressuposto de que a lei faz depender a declaração de perda.

Acresce que face à gravidade objectiva do crime (recorde-se que o recorrente detinha 87.370,719 gr de cannabis com um grau de pureza 0,3% e 26,6%, 104,006 gr; de cocaína com um grau de pureza de 43,7%; e uma embalagem contendo comprimidos MDMA com o peso líquido de 5,170 gr e com um grau de pureza de 19,9%), não se vislumbra que a perda do veículo, independentemente do seu valor, possa ser considerada desproporcionada, sendo tal decisão, também nesta perspetiva, isenta de reparo.

Em suma, para além da essencialidade da utilização do veículo na prática da infracção, resulta claro que “o malefício correspondente à perda representa uma medida justa e proporcional à gravidade do crime” (Pedro Vaz Patto, Org. P. P. Albuquerque, José Branco, Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. 2, p. 531).


3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 7 UC’s – (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/9 e Tab. III RCP).


Lisboa, 28.06.2023


Ana Barata Brito, relatora

Maria Teresa Féria de Almeida, adjunta

Sénio Alves, adjunto