Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3452/15.0T8VIS-D.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: USUCAPIÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
FARMÁCIA
PROPRIEDADE
ABUSO DO DIREITO
BOA FÉ
CONHECIMENTO OFICIOSO
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 04/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / POSSE / CARACTERES DA POSSE / USUCAPIÃO / USUCAPIÃO DE IMÓVEIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / NECESSIDADE DO PEDIDO E DA CONTRADIÇÃO.
DIREITO FALIMENTAR – RECURSOS.
Doutrina:
-Antunes Varela, Direito da Família, 1987, p. 376;
-Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3.ª Edição, p. 128;
-Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, p. 626 e 635 ; Lições de Direitos Reais, 4.ª Edição p. 276;
-Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3.ª Edição, p. 322 e 323;
-José Alberto González, Direitos Reais, 5.ª Edição, p. 126;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, anotação ao artigo 1292.º;
-Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Volume I, 10.ª Edição, p. 196;
-Menezes Cordeiro, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3.ª Edição, p. 130 e 131 ; Tratado de Direito Civil, Parte Geral, Volume I, Tomo IV, p. 373;
-Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, p. 283;
-Vaz Serra, RLJ, Ano 112, p. 132.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1262.º E 1297.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 3.º, N.º 3.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 14.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 14-11-2014, PROCESSO N.º 1444/08, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Pese embora a parte interessada não tenha invocado expressamente a usucapião, se articulou os factos a ela conducentes é porque quer, até prova em contrário, aproveitar-se dos efeitos dela. Logo, tudo se passa como se tivesse feito uma invocação expressa.

II - Para efeitos de publicidade da posse, interessados são aquelas pessoas que são diretamente afetadas pelos atos de posse do novo possuidor, e essas pessoas serão normalmente o anterior possuidor ou o titular do direito.

III - Age com abuso do direito aquele (adquirente real) que, tendo adquirido de forma encapotada uma farmácia (por não ser farmacêutico), mas que, conluiado com outra pessoa (adquirente aparente), pretendeu que constasse da escritura de trespasse como adquirente essa pessoa (por ser farmacêutico), vem exigir da massa falida do adquirente aparente a restituição da farmácia, quando, ao longo de décadas, permitiu que tudo funcionasse na aparência como se fosse este este último o proprietário, em decorrência do que contraiu dívidas e foi declarado insolvente.

IV - O exercício do direito à restituição nestas circunstâncias apresenta-se ilegítimo, por se traduzir num exercício que excede ostensivamente os limites impostos pela boa-fé, não se coadunando com um comportamento próprio de pessoas de bem e honestas, que agem com correção e lealdade, respeitando as razoáveis expetativas dos credores que interagiram negocialmente com a farmácia na aparência desta ser um ativo do seu devedor (o insolvente) e, como tal, suscetível de responder pelas dívidas da farmácia.

V - A lei não especifica qual a sanção ou consequência inerente ao exercício abusivo do direito, limitando-se a qualificá-lo como ilegítimo. A sanção ou consequência terá que ser encontrada caso a caso, mas sempre de modo a neutralizar eficazmente a antijuricidade desse exercício.

VI - No caso, a neutralização só pode ser feita pela não restituição da farmácia aos donos (procedência de exceção material perentória), mantendo-se esta afeta aos fins da insolvência.

VII - O abuso do direito é de conhecimento oficioso, inclusivamente em sede de recurso de revista.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA e mulher BB, demandaram, por apenso aos autos de insolvência de CC e mulher DD (correntes pela Comarca de Viseu, Viseu - Inst. Central - Sec. Comércio - J1) e mediante o processo especial de restituição de bens a que se refere o art. 141º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os Insolventes CC e mulher DD, a respetiva Massa Insolvente e os Credores da Massa Insolvente, peticionando a condenação dos Réus a reconhecerem que o negócio de trespasse da farmácia a que aludem é nulo por simulação e que os Autores são os donos e legítimos possuidores do inerente estabelecimento, decretando-se a separação e a restituição do mesmo aos Autores.

Alegaram para o efeito, em síntese, que foi apreendido para a massa insolvente o estabelecimento de farmácia a que se reportam (“EE”).

Ocorre, porém, que tal estabelecimento é propriedade dos Autores, e não dos Insolventes.

Efetivamente, o Insolvente (que era farmacêutico) figurou no ato de trespasse da farmácia como adquirente da farmácia por mero favor aos Autores (sendo que é irmão do Autor), porém tal resultou de um acordo simulatório que visou iludir as exigências da lei da época (que impedia que fosse proprietário de uma farmácia quem não fosse farmacêutico). O propósito foi, na realidade, trespassar o dito estabelecimento aos Autores (que não eram farmacêuticos).

Quem pagou a farmácia foram os Autores.

A farmácia foi gerida inicialmente pelo Autor, e depois pelo Insolvente, porém sempre no interesse dos Autores.

O Insolvente funcionou apenas como adquirente formal e como possuidor em nome dos Autores, sempre tendo reconhecido os Autores como proprietários do estabelecimento, prestando-lhes contas regularmente e entregando-lhes os proventos da atividade que levava a cabo.

Sucede que, face a alteração legislativa que deixou de obrigar à qualidade de farmacêutico para se ser proprietário de farmácia, os Autores interpelaram o Insolvente para que procedesse à “regularização” da Farmácia, mas este recusou-se a efetuar a transferência do estabelecimento para os seus donos, razão pela qual tal bem se manteve na sua detenção e, decretada que foi a insolvência, acabou apreendido para a Massa Insolvente.

Contestaram a Massa Insolvente e os Insolventes, concluindo pela improcedência da ação.

Disseram estes últimos, em síntese, que a alegada simulação inexistiu, sendo que a farmácia foi adquirida pelo Insolvente para si, embora com a ajuda do irmão, o Autor. Este limitou-se a financiar (emprestando dinheiro) tal aquisição.

Porém, no início de 2008 o Insolvente deixou de efetuar pagamentos aos Autores por entender que o empréstimo estava já pago.

Acrescentaram que o estabelecimento sempre foi explorado e feito prosperar pelos Réus.

Disse a Massa Insolvente que o estabelecimento pertence aos Insolventes e não aos Autores, razão pela qual foi bem apreendida para os fins da insolvência.

Seguindo o processo seus termos, veio, a final, a ser proferida sentença onde se decidiu:

«- Declarar os Autores donos e legítimos possuidores do estabelecimento comercial de farmácia, composto pelo alvará de farmácia emitido pelo “GG” com o nº ..., titulado pela “EE”, sita na Av. Dr. ..., nº …., ....

- Decretar a separação e restituição do estabelecimento comercial denominado “EE” aos Autores.».

Inconformados com o assim decidido, apelaram a Ré Massa Insolvente e a Credora FF, S.A..

Fizeram-no com êxito, pois que a Relação de Coimbra revogou a sentença recorrida e absolveu os Réus dos pedidos.

É agora a vez de os Autores manifestarem a sua insatisfação, pedindo revista.

Da respetiva alegação extraem os Recorrentes as seguintes conclusões:

1ª. O acórdão recorrido, ao ter revogado a decisão proferida em primeira instância, procedeu a uma errónea interpretação e aplicação da lei.

2ª. Contrariamente ao decidido, os AA. Recorrentes são donos e legítimos possuidores do estabelecimento comercial de farmácia, composto por alvará emitido pelo “GG” com o nº ..., titulado pela “EE”, sita na Av. Dr. ..., nº … ..., por a haverem adquirido por usucapião. Na verdade,

3a. Os AA. Recorrentes alegaram e provaram os atos materiais de posse que praticaram sobre o estabelecimento (eles próprios diretamente ou por intermédio do insolvente CC), atos de posse que foram praticados de boa-fé, de forma pública e pacífica, ao longo de mais de vinte anos, assim adquirindo o direito de propriedade por usucapião.

4a. Ao contrário do que inculca o douto acórdão recorrido, os AA. Recorrentes, apesar de não terem usado a fórmula sacramental “na falta de outro título, adquiriram por usucapião”, a verdade é que de modo claro e inequívoco, invocaram tal modo de aquisição originária.

5a. Como é jurisprudência pacífica, não existem fórmulas sacramentais ou requisitos protocolares insubstituíveis, nem tem que seguir-se um padrão rígido, pois tanto na jurisprudência como na doutrina, se entende pacificamente a admissibilidade da alegação ou invocação implícita da usucapião.

6ª. A esse propósito, ninguém pode olvidar os ensinamentos dos insignes Mestres Antunes Varela e Pires de Lima (obra citada) “se os factos conducentes à usucapião forem articulados no processo pelo interessado, é porque este quer com toda a certeza (até prova em contrário) aproveitar-se dos efeitos dela, ao menos subsidiariamente” (sic) (entendimento que é seguido na jurisprudência citada). Assim,

7a. Considerando os factos materiais de posse, as características desta, a duração da mesma, abundantemente provados, é manifesto que os AA. Recorrentes invocaram a aquisição originária da propriedade da farmácia, pese embora não se tenham referido expressamente ao instituto da usucapião.

8a. Contrariamente ao doutamente decidido, também ressalta à evidência a publicidade da posse dos AA. Recorrentes, pois ao contrário do que inculca o douto acórdão, para que a posse seja pública não é necessário que ela seja conhecida de toda a gente, mas que ela seja exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados.

9a. Resulta dos factos provados que a posse era conhecida do insolvente CC e mulher, pelos familiares e até pelos colegas da zona onde se localiza a farmácia, não podendo, por isso, a posse deixar de ser tida como pública, ao contrário do decidido no douto acórdão recorrido.

10ª. Ainda e sempre com o respeito devido, carece de sentido e fundamento o vertido no douto acórdão recorrido quando aí se consigna que a farmácia está sujeita a registo e que o existente não beneficia os ora recorrentes.

11ª. Na verdade, resulta da factualidade provada que o início da posse dos AA. sobre a farmácia ocorre com a celebração do contrato de trespasse, em 22/03/1982, pelo que a presunção de propriedade derivada do registo do alvará da farmácia a favor do insolvente CC não pode prevalecer sobre a posse daqueles que conduziu à usucapião, atenta a sua anterioridade a tal registo.

12a. Considerando a factualidade dada como provada, é manifesto que os AA. adquiriram o direito de propriedade sobre a farmácia por usucapião.

13a. Ao decidir de modo diverso, o douto acórdão recorrido incorreu em erro de interpretação e aplicação dos art°s. 1251.°, 1259.°, nº 1, 1260º nºs 1 e 2 (ex-vi do art. 350.°, nº 2), 1262.°, 1287.°, 1252.°, nº 2, 1296.°, 1298.°, al. b), todos do Código Civil, os quais deverão ser interpretados no sentido que melhor consta da motivação deste recurso que aqui se dá por integralmente reproduzida por razões de economia. Sem prescindir,

14a. A douta decisão recorrida ao julgar improcedente a ação e ordenar que o estabelecimento “EE” deve manter-se na massa insolvente ignora em absoluto a factualidade dada como provada e incorre em erro de interpretação e aplicação dos art°s. 334.° do C.C. e 46.° e 141.°, nº 1, als. a) e c) do CIRE. Com efeito,

15a. Apesar de os factos provados, de forma abundante, evidenciarem que os insolventes sempre reconheceram os AA./recorrentes como exclusivos donos e legítimos possuidores da farmácia e que o insolvente CC, apesar de ter figurado na escritura de trespasse formalmente como adquirente (pelas razões constantes da factualidade provada) sempre foi um possuidor precário, gerindo e administrando a farmácia no interesse daqueles, mesmo assim a massa insolvente permite-se pedir que o bem se mantenha na massa, apesar de o mesmo nunca ter feito parte do acervo ativo do património dos insolventes.

16a. A massa insolvente (em substituição dos insolventes), ao adotar tal conduta, atua em claro abuso de direito, uma vez que tal pretensão excede clamorosamente os limites da boa-fé, sendo, por isso, ilegítima, por manifestamente abusiva. Ora,

17a. O douto acórdão recorrido, ao ordenar a manutenção da farmácia na massa in­solvente, dá assim guarida à pretensão (ilegítima e) ilegal desta massa, por consubstanciar um frontal desrespeito do art. 334.° do C.C .. Por outro lado,

18a.- Estando evidenciado à saciedade que os AA. são donos e legítimos possuidores da farmácia e que o insolvente CC foi apenas um possuidor precário (em nome e no interesse daqueles) jamais o douto acórdão podia ter ordenado a manutenção do referido bem na massa insolvente, violando tal decisão o disposto nos art°s. 46.° e 141.°, nº 1, als. a) e c), do CIRE.

                                                           +

A Ré Massa Insolvente contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

Mais suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

Da questão prévia da inadmissibilidade do recurso:

Segundo a contra-alegante Massa Insolvente, aplicar-se-ia ao caso o nº 1 do art. 14º do CIRE, de sorte que o acórdão da Relação seria definitivo.

Consequentemente, o presente recurso não seria admissível.

Mas não é assim.

Estamos perante uma ação (de restituição de bens a seus donos) que, conquanto corra por apenso ao processo de insolvência, não se confunde com este nem com os embargos opostos à sentença de declaração da insolvência. E apenas para estes procedimentos rege o nº 1 do art. 14º do CIRE, como resulta da respetiva letra e do seu confronto com o nº 2 da mesma norma. Já não para aqueles casos, como é precisamente o presente, em que se está perante uma ação declarativa autónoma, apenas com a particularidade de correr por apenso ao processo de insolvência.

É este o entendimento que tem sido adotado neste Supremo Tribunal (v., por todos, o acórdão de 14.11.2014, processo nº 1444/08, disponível em www.dgsi.pt) e que, de resto, está doutrinariamente apoiado (assim, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª ed., p. 128).

Julga-se pois improcedente a questão prévia, cumprindo conhecer do recurso.

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

São questões a conhecer:

- A propriedade dos Autores sobre a farmácia;

- A restituição da farmácia aos Autores.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes, após as modificações feitas operar pelo tribunal recorrido:

1. No dia 14 de Agosto de 2015 a senhora administradora de insolvência procedeu ao arrolamento e apreensão de bens, sendo que, sob a “Verba nº 11” encontra-se apreendido “o estabelecimento comercial de farmácia composto por alvará de farmácia emitido pelo GG com o nº ..., titulado pela EE, situada na Avª. Dr. ..., nº … ...”.

2. Nos primeiros meses do ano de 1982 os ora Autores (por intermédio do pai do Autor marido) estabeleceram negociações tendentes à aquisição, por trespasse, da “EE”, sita em ....

3. A referida Farmácia era propriedade de HH, entretanto falecido.

4. A aludida Farmácia tinha a denominação “EE”, com o alvará nº …, e (aquando das negociações) encontrava-se instalada no rés-do-chão do prédio sito na Rua Dr. …, em ....

5. Aquando das negociações e da celebração do negócio de trepasse, no que tange à “Propriedade de Farmácia”, vigorava a Lei nº 2125, de 20 de Março de 1965 e Dec.-Lei nº 48547, de 27 de Agosto de 1968.

6. Nenhum dos ora Autores era licenciado em farmácia.

7. In albis

8. O devedor ora insolvente – CC – é irmão do Autor AA, e em 1982 já era já licenciado em farmácia e encontrava-se devidamente inscrito na Ordem dos Farmacêuticos, sendo titular da cédula profissional nº 965-C, emitida em 16 de Março de 1982 pela referida Ordem.

9. O devedor ora insolvente preenchia todos os requisitos formais legalmente fixados para poder figurar como titular de uma farmácia.

10. Os Autores, por não disporem das condições legalmente fixadas (licenciatura em farmácia e inscrição na Ordem dos Farmacêuticos) que lhes permitissem figurar como titulares da Farmácia que pretendiam adquirir, acordaram com o devedor ora insolvente, CC, em que este figurasse formalmente como adquirente e proprietário da Farmácia.

11. O devedor ora insolvente, Dr. CC, anuiu ao pedido dos Autores em figurar no contrato, formalmente, como adquirente da Farmácia.

12. HH, na qualidade de vendedor, e o devedor ora insolvente CC s, no dia 22 de Março de 1982 outorgaram, no cartório notarial de ... [1], a escritura de trespasse de fls. 44/vº. a fls. 45/vº. do Livro 268-A, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida.

13. HH e mulher II declararam trespassar ao primeiro Réu, CC, a “EE” de que eram donos e legítimos possuidores, pelo preço aí referido, que declararam ter recebido do aí trespassário.

14. O Réu CC pretendeu adquirir a referida Farmácia, mas para ser dominada pelo seu irmão Autor, como dono.

15. O insolvente não pagou qualquer quantia por conta do preço.

16. O pagamento do preço (pela transmissão da Farmácia) não foi efetuado pelo insolvente, mas pelos ora Autores.

17. O ora insolvente aceitou, por mero favor aos seus irmãos e cunhada, figurar no contrato de trespasse como adquirente da Farmácia, uma vez que preenchia os requisitos legalmente fixados na Lei para tal aquisição.

18. A divergência entre a vontade real e a vontade declarada na escritura pelo Réu CC, foi a “solução” ou o “expediente” encontrado por este e pelo seu irmão, ora Autor para contornarem as limitações impostas pela Lei nº 2125 quanto à transmissibilidade da Farmácia para este último.

19. Ao outorgar na escritura pública de trespasse na qualidade de adquirente, o Réu CC, mediante prévio acordo com os Autores, pretendeu contornar as “limitações” legais e, desse modo, “enganar” as entidades (Direcção-Geral de Saúde) que emitiam os alvarás e controlavam a titularidade do direito de propriedade sobre a Farmácia.

20. O Réu CC pretendia adquirir a farmácia, mas para ser dominada pelo seu irmão Autor, como dono.

21. In albis

22. O Insolvente, após a escritura de trespasse, sempre reconheceu os Autores como donos e legítimos possuidores da Farmácia.

23. O trespassante HH veio a falecer em 20 de Junho de 1982, tendo-lhe sobrevivido como únicos e universais herdeiros a sua mulher – II – e os dois filhos do casal – JJ e KK.

24. In albis

25. Não obstante haver sido consignado na escritura que havia sido paga a totalidade do preço, parte dele foi pago posteriormente à celebração da escritura.

26. Em 01 de Março de 1983 o Autor entregou a II a quantia de Esc.: 375.000$00 (trezentos e setenta e cinco mil escudos), ficando em dívida quantia idêntica à entregue, a qual foi paga em datas posteriores (em 11/07/1983: 100.000$00; em 29/10/1983: 100.000$00; em 13/07/1984: o remanescente), tendo as declarações de recebimento sido assinadas pela falecida II e por um dos filhos (KK e/ou JJ).

27. Nos dois primeiros anos após a aquisição da Farmácia, ou seja, até 1984, o Autor trabalhou na Farmácia que adquirira, gerindo-a e administrando-a.

28. Era o Autor que geria e controlava a Farmácia, pagando a fornecedores bem como as demais despesas da mesma, abrangendo os salários dos trabalhadores (incluindo o do ora insolvente) e recebendo os valores decorrentes das vendas, após o que decidiu voltar para os Estados Unidos.

29. Decorridos dois anos após a aquisição da Farmácia o Autor decidiu voltar para os Estados Unidos.

30. A partir do final de 1984 / início de 1985, o Insolvente passou, no interesse dos Autores, a gerir a Farmácia, mas ao longo dos anos em que desempenhou as funções de diretor técnico, sempre reconheceu o irmão e cunhada, os ora Autores, como dono da mesma, informando-os da situação financeira, das despesas, procedendo a depósitos periódicos dos valores que dizia corresponderem à totalidade dos lucros obtidos na Farmácia.

31. De modo expresso e inequívoco o insolvente reconhecia os Autores como donos da Farmácia, tratando-os como tal.

32. Em 1989, a Farmácia, que se encontrava a funcionar num prédio arrendado, foi “deslocalizada” do local em que se encontrava instalada, para uma fração autónoma que o Autor veio a adquirir.

33. Os Autores são donos e legítimos possuidores da fração “E” do Bloco “A” do prédio em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória sob o nº 383 da freguesia e concelho de ....

34. É nesta fração, pertença dos Autores que se encontra instalada a “EE”.

35. O insolvente procedia ao pagamento a fornecedores, fazia encomendas, controlava e geria o “stock”, pagava os salários aos demais empregados da Farmácia retirando o seu próprio vencimento, efetuava o pagamento dos impostos, e disso dava conta aos Autores através das cartas que lhes remetia.

36. O insolvente comunicava aos Autores os depósitos que ia fazendo e que, no dizer daquele, correspondiam aos lucros líquidos da Farmácia.

37. Em 20 de Março de 1996 o insolvente pediu aos Autores sociedade na Farmácia.

38. Os ora AA. jamais “deram” sociedade ao insolvente, como nunca lhe alienaram, nem este lhes adquiriu, o que quer que fosse, e por isso nunca lhes entregou/pagou um cêntimo que fosse.

39. O insolvente considera, tal como os familiares que com eles privam, que a Farmácia é propriedade exclusiva dos Autores.

40. Em face da alteração legislativa que permitia aos Autores serem proprietários de uma Farmácia, estes interpelaram pessoalmente e através do seu mandatário o insolvente para que procedesse à “regularização” da Farmácia.

41. De modo surpreendente, o insolvente recusou-se a efetuar a “transferência formal” da Farmácia, que sempre reconheceu ser propriedade dos ora Autores.

42. Perante a recusa dos insolventes em efetuarem a transferência formal, as relações com os Autores deterioraram-se e a partir de 2008 o insolvente marido deixou de informar os Autores sobre a gestão da Farmácia; assim como deixou de depositar na sua conta bancária os lucros líquidos que deveria depositar, como fez desde 1984 (ano em que passou a gerir e a administrar a Farmácia) até 2008.

43. A recusa do(s) insolvente(s) em “transferir” formalmente a Farmácia para os Autores com todos os seus pertences e haveres, levou a que estes tenham intentado contra aquele(s), em 2009, a ação de processo ordinário que, sob o Processo nº 51/09.0TBSCD, correu termos na Comarca de Viseu – Santa Comba Dão – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1.

44. Foram sempre os Autores que, com os proveitos obtidos, suportaram as despesas com a remuneração dos empregados, incluindo a do insolvente, encargos com a Segurança Social, fiscais, aquisição de produtos, benfeitorias, etc…

45. Os Autores não conheciam o trespassante HH, até porque à data viviam e trabalhavam nos Estados Unidos.

46. Foi o pai de Autor e Réu que entregou o cheque de pagamento de parte do preço do trespasse ao trespassante no dia da escritura.

De direito

Quanto à matéria das conclusões 4ª a 7ª:

Nestas conclusões os Recorrentes insurgem-se contra as dúvidas constantes do acórdão recorrido (“… não nos parece que os Autores tenham invocado a usucapião, nem sequer implicitamente…”) relativamente à invocação da usucapião.

É verdade que os Autores não invocaram expressamente a usucapião, sendo que esta não opera automaticamente, antes terá que ser invocada para ser feita valer.

Mas menos verdade não é que alegaram factos de posse e domínio que se coadunam com tal figura.

Concordantemente, o essencial do seu petitório está finalisticamente dirigido ao reconhecimento da sua condição de donos do estabelecimento de farmácia em causa desde sempre (entenda-se: desde o trespasse de 1982), e de que a restituição pretendida é consequência.

Nesta medida, vale aqui o ensinamento de Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, III, anotação ao art. 1292º): “se os factos conducentes à usucapião forem articulados no processo pelo interessado, é porque este quer com toda a certeza (até prova em contrário) aproveitar-se dos efeitos dela, ao menos subsidiariamente.

Observe-se, de resto, que a exigência legal (que emerge dos art.s 1287º, 1288º, 1292º e 303º e 305º do CCivil) da necessidade da invocação da usucapião tem por pressuposto o princípio de que ninguém pode ser forçado a adquirir o que não quer, pelo contrário as aquisições devem ser voluntárias (v. Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, p. 283). Ora, não suscita dúvidas que o que os Autores querem é precisamente o reconhecimento da sua aquisição da propriedade sobre o dito estabelecimento, de sorte que tudo se passa como se tivesse sido feita uma invocação expressa da usucapião. Se essa invocação é ou não procedente, isso já é outro assunto.

Procede pois o que se sustenta nas conclusões em destaque.

Quanto à matéria das conclusões 8ª a 11ª:

Nestas conclusões os Recorrentes insurgem-se contra o acórdão recorrido aí onde entendeu não revestir a posse dos Autores a necessária publicidade em ordem ao início do prazo da usucapião.

Vejamos:

Regem para o caso os art.s 1297º e 1262º do CCivil.

A segunda destas normas estabelece que posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados.

A primeira estabelece que se a posse tiver sido tomada ocultamente os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que a posse se torne pública.

Não especifica a lei quem são os interessados cuja cognoscibilidade da posse é relevante para os fins do citado art. 1262º.

Porém, afigura-se óbvio que os interessados só podem ser aquelas pessoas que são diretamente afetadas pelos atos de posse do novo possuidor, e essas pessoas são o anterior possuidor ou o titular do direito (que são os que perdem o domínio de facto).

Portanto, é no confronto destas pessoas que se define a natureza pública ou oculta da posse.

Não pode ser visto como interessado todo e qualquer terceiro que faça parte do círculo social (público em geral) em que o domínio se exerce, ainda que possa vir a ser afetado virtual e reflexamente pelas vicissitudes da posse (como seria o caso de um credor ou de outros terceiros a quem não conviesse a constituição de uma nova posse).

Durval Ferreira (Posse e Usucapião, 3ª ed., p. 322 e 323) move-se dentro desta perspetiva quando significa que «(…) para efeitos do artigo 1262, o que se está é a definir uma característica dessa adquirida relação de senhorio empírico em função (relativa) de se proteger o anterior possuidor, ou o titular do direito, contra tal posse. E aqui, apenas lhes sendo oponível uma posse adquirida, se tal posse se exerce de modo a poder ser deles conhecida. (…) [O] conceito de posse pública, para efeitos do artigo 1262º, como caracter da posse, é um conceito relativo quer face aos interessados, quer face à função específica da protecção. Sendo aqueles o anterior possuidor (à imagem da nova posse; ou à imagem de uma posse mais ampla) ou o titular do direito, a cuja imagem se possui (ou titular dum direito mais amplo), E, a posse, nessa função específica, é pública se se exerce “de modo a poder ser conhecida” por eles (…).»

Também não deixa de ser útil citar aqui José Alberto González (Direitos Reais, 5ª ed., p. 126), quando observa que «Afigura-se mais acertado (…) considerar a publicidade a que o (…) artigo 1263º/a) se reporta como um requisito de eficácia da posse adquirida diante daquele que, contra a sua vontade, perdeu o domínio de facto (…). Ou seja: se a posse não puder ser conhecida pelos interessados afetados, os prazos (…) da usucapião (…) não correm enquanto ela não se tornar pública. (…) A posse não se apresenta inevitavelmente (…) como um facto público. Por isso ela não implica necessariamente publicidade, nem, quando a traz, envolve publicidade[2] categórica.»

Ora, a matéria de facto que está provada mostra claramente que, embora na sequência de um trato ilícito e clandestino (v. pontos 5, 6, 8, 9, 10, 11, 17, 18 e 19 da factualidade provada), os Autores foram os verdadeiros compradores da farmácia e que dela se tornaram desde logo e sempre possuidores e donos, não passando o Insolvente de um mero detentor do estabelecimento, agindo simplesmente no interesse dos Autores (v. pontos 14, 16, 20, 22, 27, 28, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39 e 44 da mesma factualidade).

Porém, embora se tenha tratado de uma posse exercida essencialmente de modo oculto (com exceção, de certa forma, dos dois primeiros anos) relativamente ao público em geral (círculo social onde a posse se localizou), não é adequado falar-se, nos termos e para os efeitos em causa, em posse tomada ocultamente. Desde que a tomada de posse dos Autores não se imiscuiu na esfera jurídica do anterior proprietário e possuidor da farmácia (que, trespassando o estabelecimento, abriu voluntariamente mão da respetiva posse e propriedade, que passaram para o trespassário, v. art. 1263º, alínea b) do CCivil), cremos que o único interessado de que se poderia falar para efeitos de publicidade seria, no limite, o ora Insolvente. Mas, no confronto deste, que foi parte e desde sempre figurante no trato clandestino sobre a propriedade e posse do estabelecimento, a posse dos Autores não podia ser mais pública, nada tendo tido jamais de oculta.

Sendo assim, como é, então a posse dos Autores não representa, para os fins ora em causa (caráter público ou oculto da posse), qualquer posse oculta ou clandestina (o que foi clandestino foi o acordo estabelecido entre Autores e Insolvente, o que é coisa bem diferente).

Pois que embora tal posse tenha nascido de um trato ilícito e escondido das pessoas em geral (a começar pelo Estado, entidade que se pretendeu iludir), não implicou atos de posse da coisa contra qualquer interessado, que é como quem diz, contra o anterior possuidor e titular do estabelecimento ou contra o Réu Insolvente. Relativamente a este, repete-se, a posse dos Autores era inteiramente conhecida, precisamente porque participou no referido trato e procurou a situação de facto (situação possessória dos Autores) que foi criada.

Donde, afigura-se-nos que o acórdão recorrido carece de razão jurídica quando sustenta que “tendo o Réu servido como titular aparente, estando o Autor como dono oculto, enquanto se mantiver assim, o mesmo não pode invocar a usucapião e não se inicia o prazo desta”.

O acórdão recorrido reporta-se ainda às implicações da publicidade inerente ao registo, sob a singela afirmação de que “Vejamos que o estabelecimento de farmácia está sujeito a registo e que o realizado não beneficia os Autores”.

É verdade que o exercício da atividade de estabelecimento de farmácia (rectius, a sua abertura ao público) está dependente da emissão de um alvará, que começa logo por proporcionar alguma publicidade quanto à propriedade do estabelecimento (concordantemente com esta ideia, ensina-nos Marcello Caetano - Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10ª ed., p. 196 - que “o alvará é um documento firmado pela autoridade competente pelo qual esta faz saber a quem dele tome conhecimento a existência de certo direito constituído em proveito de determinada pessoa”). Era assim no domínio da Lei nº 2125 e do DL nº 48547, e é agora no domínio do DL nº 307/2007, que, na sua atual versão, impõe, relativamente a cada farmácia, um registo organizado e mantido pelo GG, I.P., abrangente nomeadamente da respetiva propriedade, e cujos dados estão disponibilizados por meios eletrónicos para consulta pública.

É também verdade que o alvará (averbamento) da farmácia em causa está emitido - e consequentemente registado - em nome do Réu Insolvente.

Contudo, nada disto põe em causa a publicidade de que estamos a falar (publicidade da posse), precisamente porque esta é averiguada no confronto dos interessados (anterior possuidor ou titular do direito), assunto que nada tem a ver ou é prejudicado pelo registo ou pelos fins visados pela publicidade registral.

Quanto à matéria das conclusões 1ª, 2ª, 3ª, 12ª e 13ª:

Sustentam aqui os Recorrentes que a ação deve proceder, por isso que a farmácia em causa lhes pertence. Dizem que adquiriram a respetiva propriedade por usucapião.

Ultrapassando a questão de saber se o estabelecimento é suscetível de posse e se esta pode conduzir à aquisição por usucapião - temática juridicamente controversa mas cuja apreciação não faz parte do objeto do presente recurso -, diremos que a factualidade provada mostra à evidência que desde 22 de Março de 1982 que os Autores estão na posse do estabelecimento, à imagem do direito de propriedade.

Desde então foram os Autores os reais senhorios do corpus possessório propriamente dito (o poder de facto sobre o estabelecimento, ainda que exercido através do Réu Insolvente), sempre agindo com o chamado animus possidendi. Aliás, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (nº 2 do art. 1252º do CCivil). Como aponta Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais, 4ª ed., p. 276), “havendo corpus, em princípio há posse, salvo quando o possuidor revele uma vontade segundo a qual ele age sem animus possidendi. É este elemento negativo que desvaloriza ou descaracteriza o corpus”.

Trata-se de posse não titulada, mas de boa-fé (os factos provados levam à ilisão da presunção legal - art. 1260º, nº 2 do CCivil - de má-fé decorrente da não titulação do ato de trespasse relativamente à pessoa dos Autores) e pacífica.

Dado que o estabelecimento terá de ser havido como como coisa móvel (v. Antunes Varela, Direito da Família, 1987, p. 376), segue-se que os Autores adquiriram a farmácia por usucapião dez anos depois de terem iniciado a sua posse, ou seja, em 22 de Março de 1992 (art. 1298º, alínea b) do CCivil).

São pois os Autores os donos da farmácia. E não os Réus Insolventes.

Em breve nota, é de observar que o registo da propriedade da farmácia a favor do Réu Insolvente carece de relevância em ordem a prejudicar ou pôr em causa a propriedade adquirida pelos Autores por usucapião. Efetivamente, a usucapião é uma forma originária de aquisição do direito real de gozo, abstraindo por completo de anteriores vicissitudes ou incidências físicas ou jurídicas, incluindo as registrais, sobre a coisa usucapida. Como nos diz Menezes Cordeiro (A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª ed.., pp. 130 e 131), “A usucapião é uma forma originária de aquisição dos direitos. Assim, quando opere, cessam todos os encargos que antes oneravam a coisa (…). Desta natureza auto-suficiente da usucapião resultam consequências importantes. Assim, a usucapião sobrepõe-se ao registo (…), constituindo, por isso, a base do nosso ordenamento dominial”.

Quanto à matéria das conclusões 14ª, 15ª, 16ª e 17ª:

Nestas conclusões os Recorrentes dizem que a Ré Massa Insolvente age com abuso de direito ao pretender, contra os factos provados, que o estabelecimento deve ser mantido afeto aos fins da insolvência.

Mas carecem de razão.

A Ré Massa Insolvente representa os interesses dos credores, garante a satisfação dos créditos.

Nada se surpreende na sua defesa que integre o conceito de má-fé, por ofensa ao vetor de sentido contrário, a boa-fé. A Ré Massa Insolvente limitou-se a defender o seu ponto de vista factual e jurídico quanto à propriedade da farmácia (ponto de vista esse, aliás, que se compreende, pois que fundado na aparência das coisas), e daqui que não existe o mínimo comportamento abusivo da sua parte.

Improcedem pois as conclusões em destaque.

Do abuso do direito por parte dos Autores

Como acima demonstrado, os Autores têm que ser havidos como proprietários da farmácia em causa.

Questão diversa é saber se o exercício desse seu direito de propriedade pode ser atuado de modo a produzir os seus efeitos, o que é dizer, de modo a que a farmácia seja excluída da massa insolvente e lhes seja restituída.

E, quanto a nós, não pode.

E não pode porquê?

Porque se está perante um exercício abusivo do direito à restituição, por excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé.

De acordo com o art. 334º do CCivil, é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé.

Está aqui em causa a boa-fé objetiva, sendo atendíveis os critérios que, no plano das relações intersubjetivas, estabelecem regras de conduta. Como é pacificamente aceite (assim, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, p. 626), o exercício conforme à boa-fé envolve um comportamento próprio de pessoas de bem e honestas, que agem com correção e lealdade, respeitando as razoáveis expetativas dos outros e a confiança que esses outros depositam na atuação alheia.

Entre outros efeitos, visa tal normativo a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente, aqui em ordem a obstar a que quem viola normas jurídicas se possa depois prevalecer dessa violação, capitalizando à sombra dela.

O abuso do direito constitui matéria de conhecimento oficioso (v. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Parte Geral, Volume I, Tomo IV, p. 373; Vaz Serra, RLJ ano 112, p. 132), inclusivamente em sede de recurso de revista, como é jurisprudência firmada. Efetivamente, trata-se sempre de uma questão de direito, que independe da invocação pelas partes. Embora não se desconheça que alguma doutrina propõe uma visão restritiva do âmbito desse conhecimento, de modo a excluir (ou excluir em parte) dele o excesso dos limites impostos pela boa-fé (v. Carvalho Fernandes, ob. cit., p. 635), afigura-se-nos que não há que distinguir. Está sempre em causa uma pura questão de direito, e quanto ao enquadramento jurídico da causa é o tribunal livre de decidir como entender ser devido (v. nº 3 do art. 5º do CPCivil).

Ora, percorrendo-se quer o que foi alegado pelos Autores na sua petição inicial quer a factualidade que está provada, vemos que a farmácia dos Autores foi por estes desde sempre colocada e mantida no circuito comercial e jurídico como sendo pertença do Réu Insolvente e, como tal, como coisa aparentemente integrante do património deste último.

O Réu Insolvente figurou, no confronto dos Autores, apenas como uma espécie de “instrumento” (permita-se o termo) ao serviço dos interesses destes, não passando por isso de mero intermediário (como tal se percecionando, como afirmado no artigo 64º da Petição inicial), e cujo interesse pessoal legítimo se resumia à retenção de um ordenado como “empregado” (artigo 48º da Petição inicial). Tudo isto está bem exposto, explicado e aceite pelos Autores na sua petição inicial, e está retratado na factualidade provada, sendo ocioso estar-se aqui com mais especificações de facto.

Temos assim que quiseram os Autores que, na aparência comercial e jurídica, tudo se passasse como se a farmácia pertencesse ao Réu Insolvente, como se fizesse parte do seu património, como se estivesse submetida ao giro comercial e jurídico tal como implementado por este. Porém, ao mesmo tempo, sempre se percecionaram como os donos da farmácia e verdadeiros interessados na sua exploração.

Sendo assim, como é, todas as vicissitudes inerentes a esse giro comercial e jurídico devem ser vistas, nomeadamente no confronto dos credores (face às naturais expetativas que a aparência das coisas criava), como coenvolvendo os próprios Autores. E não como restritas ao Réu Insolvente.

Autores que, repete-se, foram os reais interessados nos negócios praticados pelo Réu Insolvente no que dizia respeito á farmácia. Para o bem (rendimento e valorização da farmácia) e para o mal (dívidas da farmácia), a farmácia dos Autores está ligada a essas vicissitudes, a que os próprios Autores deram azo. E isto desde o trespasse até ao momento em que o estabelecimento foi apreendido para a massa insolvente.

Tendo sido com esta aparência, criada também pelos Autores, que o giro comercial e jurídico da farmácia funcionou, é a todos os títulos intolerável, por violador do vetor da boa-fé, a pretensão dos Autores à exclusão da farmácia do processo insolvencial, como se nem a farmácia nem eles tivessem alguma coisa a ver com a emergência das dívidas que justificaram a insolvência. E a verdade é que se retira da sentença que decretou a insolvência que o passivo da insolvência (aliás de elevado montante - €2.290.699,00 - e não coberto pelo património registado em nome dos Insolventes) está correlacionado com a exploração desse estabelecimento.

Sendo assim, como é, o exercício do direito dos Autores à restituição da farmácia apresenta-se claramente ilegítimo, precisamente por se resolver num exercício que excede manifestamente (ostensivamente, grosseiramente, gritantemente) os limites impostos pela boa-fé. Objetivamente, a pretensão dos Autores ao afastamento da farmácia da insolvência não se coaduna com um comportamento próprio de pessoas de bem e honestas, que agem com correção e lealdade, respeitando as razoáveis expetativas dos credores que interagiram negocialmente com a farmácia como se esta fosse efetivamente um ativo do seu devedor (o Insolvente) e, como tal, suscetível de responder normalmente pelas dívidas da farmácia.

Razão tem, pois, a Recorrida Massa Insolvente, quando afirma na sua contra-alegação que é inaceitável a atitude dos Autores, que querem beneficiar do ativo mas a salvo de qualquer responsabilidade pelo passivo, como se este passivo nada tivesse a ver com a sua farmácia e com o procedimento ilícito e enganador que criaram intencionalmente e que foi mantido ao longo de décadas.

Resta acrescentar que nem o concurso ilícito do Réu Insolvente para a situação criada, nem a circunstância dos Autores terem intentado anteriormente (2009) ação autónoma tendente a obter dos Réus Insolventes a restituição da farmácia, alteram a bondade do que vem de ser dito. Nenhuma destas circunstâncias contende minimamente com o exercício abusivo do direito à restituição do estabelecimento por parte dos Autores. O comportamento ilícito do Réu Insolvente acresce aos dos Autores, não o substitui ou elimina, logo não tem qualquer rebate no assunto. E quanto à dita ação, basta dizer que foi travada apenas no confronto dos Réus Insolventes (e dos sucessores do falecido trespassante da farmácia), nada tendo a ver com a Massa Insolvente e com os interesses que esta prossegue.

A lei não especifica qual a sanção ou consequência inerente ao exercício abusivo do direito, limitando-se a qualificá-lo como ilegítimo. A sanção ou consequência terá que ser encontrada caso a caso, mas sempre de modo a neutralizar eficazmente a antijuricidade desse exercício.

No caso vertente é óbvio que a neutralização só pode ser feita pela não restituição do estabelecimento aos Autores (procedência de exceção material perentória), mantendo-se este afeto aos fins da insolvência (tudo, naturalmente, sem prejuízo de aos Autores - pois que donos do estabelecimento - vir a ser restituído o que eventualmente remanescer a esses fins).

Por último: na sequência da oportunidade que, nos termos do nº 3 do art. 3º do CPCivil, se deu às partes de pronúncia sobre o apontado exercício abusivo do direito, esforçaram-se longamente os Autores, com argumentos ou razões vários, por mostrar que inexiste esse exercício abusivo. Porém, atento o supra expendido, tais argumentos ou razões não são válidos e, como assim, não podem ser subscritos. Nada mais temos a acrescentar sobre o assunto, sendo ademais certo que, como sobredito, compete ao tribunal conhecer de questões e não de razões ou argumentos subjacentes às questões.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:

- Declaram os Autores donos e legítimos possuidores do estabelecimento de farmácia em causa. Nesta parte é revogado o acórdão recorrido e repristinada a sentença da 1ª instância;

- Julgam improcedente o pedido de restituição do estabelecimento aos Autores, que se manterá afeto aos fins da insolvência. Nesta parte é confirmado o acórdão recorrido.

Regime de custas:

Custas do presente recurso, bem como da instância recorrida e da 1ª instância, pelos Autores e pelos Réus Massa Insolvente e CC e mulher, na proporção de ½ para os primeiros (Autores) e de ½ para os segundos (Réus).

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Sumário:

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Lisboa, 17 de Abril de 2018

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Henrique Araújo

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[1] Existe aqui um lapso, embora totalmente irrelevante: o ato de trespasse foi realizado na casa de residência dos trespassantes, como consta da escritura que o formalizou.
[2] «Publicidade no sentido de cognoscibilidade pelo público em geral. Não, portanto, no sentido do artigo 1262º. É, por isso, concebível (embora dificilmente verificável) uma posse pública para efeitos do artigo 1262º que não seja cognoscível para o público em geral.»