Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1829/16.3T8VRL.G1.S1
Nº Convencional: 7º SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
VELOCÍPEDE
SEGURO AUTOMÓVEL
SEGURO OBRIGATÓRIO
ISENÇÃO
INSTITUTO DE SEGUROS DE PORTUGAL
PARECER
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS.
DIREITO ESTRADAL – RESPONSABILIDADE / GARANTIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL / OBRIGAÇÃO DE SEGURO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 405.º.
CÓDIGO DA ESTADA (CEST): - ARTIGO 150.º, N.º 1.
DL N.º 291/2007, DE 21-08: - ARTIGO 4.º, N.º 1.
Sumário :
O Fundo de Garantia Automóvel não está obrigado à regularização dos sinistros causados por velocípedes sem motor.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. — RELATÓRIO


1. AA propôs a presente acção de processo comum contra BB e mulher, CC, na qualidade de legais representantes do menor DD, e contra o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo:

    I. — que se reconheça e declare que o acidente descrito se ficou a dever única e exclusivamente à culpa do condutor do velocípede;

  II. — que se condenem solidariamente os Réus a pagar à Autora:

    a) A quantia de € 159.855,88, a título de indemnização pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais por ela sofridos em consequência do acidente; 

  b) Juros legais contados desde a data de citação até integral pagamento.


  2. Alegou, em síntese,

   I. — que no dia 21 de Fevereiro de 2016, houve um acidente de viação em que foram intervenientes o ciclomotor de passageiros com a matrícula ...-CS-..., propriedade de EE, no qual a Autora seguia como passageira, e o velocípede de três rodas, sem motor e matrícula, conduzido por DD, menor à data do acidente; II. — que DD, condutor do velocípede de três rodas, conduzia em circunstâncias tais que lhe fazem imputar a culpa na ocorrência do acidente; III. — que, em consequência do acidente, a Autora sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.


  2. Os Réus contestaram defendendo-se por impugnação.


  3. O Réu DD defendeu-se ainda por excepção, arguindo a sua ilegitimidade, e requereu a condenação da Autora como litigante de má-fé.


 4. Foi proferido despacho saneador, por que se julgou improcedente a excepção de ilegitimidade do Réu DD.


 5. Foi proferida sentença, por que se julgou parcialmente procedente o pedido.

 

 6. O dispositivo da sentença era do seguinte teor:


“…Por tudo o exposto:

a) Declaro que o acidente descrito se ficou a dever, única e exclusivamente, à culpa do condutor do velocípede.

b) Julgo parcialmente procedente o pedido formulado pela autora AA contra o réu DD e o Fundo de Garantia Automóvel e, consequentemente, condeno os réus, solidariamente, a pagarem à autora a quantia global de € 18.555,00 (…), a título de ressarcimento pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do acidente em discussão nos autos, quantia acrescida de juros, à taxa legal, a contar desde a citação da ré.

c) Absolvo os réus da parte restante do pedido.

d) Julgo improcedente o pedido de condenação da autora por litigância de má-fé.

e) Custas da ação a cargo do autor e dos réus na proporção do decaimento.

f) Registe e notifique.”


  7. Inconformado, o Réu Fundo de Garantia Automóvel interpôs recurso de apelação.


  8. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:


1. Salvo o devido respeito que é muito e merecido, não andou bem o Tribunal a quo ao condenar solidariamente com o Réu DD o aqui Apelante FGA.

2. Alega a A. que a responsabilidade pela ocorrência do sinistro pertence ao condutor do velocípede, aqui 1º R., tendo o FGA sido demandado nos presentes autos, uma vez que o velocípede não se encontrava seguro.

3. A aqui Recorrida, não tem legitimidade material ou substantiva para demandar nos presentes autos o FGA, juntamente com o condutor do velocípede.

4. A Recorrida não tem o direito de pedir a condenação solidária do Recorrente FGA, junto com o Réu condutor do velocípede, ao pagamento de uma indemnização pelos danos sofridos em acidente de viação.

5. Ao sinistro em discussão nos presentes autos não se aplicam as normas do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, no DL nº 291/2007 de 21 de agosto.

6. No referido DL nº 291/2007 de 21 de agosto, estão previstas as atribuições do Fundo de Garantia Automóvel.

7. O R. FGA não responde pelos danos causados por veículo que não esteja sujeito a seguro obrigatório de responsabilidade civil, nos termos do artigo 48º do DL 291/2007, de 21/08 (…)

8. Não assiste à Recorrida legitimidade substantiva para demandar o FGA, invocando normas do DL nº 291/2007 de 21 de agosto, que apenas tem aplicabilidade aos casos em que existe uma sujeição ao seguro obrigatório.

9. O Apelante FGA invoca a ilegitimidade substantiva da Recorrida, na esteira do disposto no supra citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo nº 143148/13.OYIPRT.L1 -2, de 19 de fevereiro de 2015, que refere que “I – Assim, a circunstância de não haver sido suscitada por qualquer das partes a questão da legitimidade processual da A., ou de, tendo sido impugnados os factos alegados na petição inicial, não haver sido nominada a ilegitimidade substantiva daquela, não obsta a que o tribunal conheça desta última, sem que tal redunde na prolação de decisão surpresa.”

10. Decidiu o Tribunal a quo fixar a quantia de € 15.000,00 para indemnização dos danos sofridos pela lesada, contudo, o Recorrente não perfilha do mesmo entendimento.

11. A inevitável comparação com a jurisprudência recente, mostra-se decisiva para aferir da correção da verba fixada à Recorrida pelo Tribunal a quo, designadamente, por referência ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 99/12.7TCGMR.G1.S1, 2ª secção, de 19 de fevereiro de 2015.

12. Atento o Acórdão supra citado e as lesões que a quantia de € 20.000,00, ora fixada, visou compensar, sempre se dirá que os € 15.000,00 apurados pelo Tribunal a quo se mostram sobredimensionados, atentos os padrões da jurisprudência e os concretos danos em questão.

13. Sempre se dirá que na hora de quantificar os danos e atribuir os montantes indemnizatórios, a sentença de primeira instância aplicou critérios e quantias demasiado elevados, exagerados, desproporcionais e severos, que não correspondem, em modesta opinião, aos factos dados como provados, nem a critérios equitativos, reais e objetivos.

14. Assim, ponderando as variáveis mais influentes, como natureza e gravidade da ofensa sofrida, o grau de incapacidade de 1 ponto, as dores e o período de recuperação, conclui-se que os montantes adequados ao caso concreto se situam nos € 5 000,00, valor consideravelmente inferior ao que foi arbitrado.

15. Pelo que a quantia fixada pelo Tribunal peca por excesso, devendo ser reduzida para o montante mais razoável de 5 000,00 €, por ser o valor digno, justo e adequado como compensação por via do dano não patrimonial sofrido.

16. O aqui Recorrente FGA, foi condenado a liquidar todas as indemnizações acrescidas de juros desde a data da citação, contudo, nas indemnizações que só foram liquidadas na data da sentença, e que regem para futuro, os juros apenas devem ser contados desde a data da decisão. É o caso da compensação pelo dano moral ou não patrimonial e do dano futuro.

17. Os juros relativamente ao valor da indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais, devem ser contabilizados desde a data da decisão, do mesmo entendimento perfilha o Acórdão do STJ de 23 de novembro de 2010, (disponível em www.dgsi.pt), ao referir que “Quanto aos danos de natureza não patrimonial, seguramente, que a sua compensação foi equacionada de forma atualizada (…), resultando num injustificado cúmulo a contagem de juros de mora, a partir da citação, porquanto a obrigação pecuniária em causa cobre todo o dano verificado”.

18. O valor da indemnização a título de danos não patrimoniais apenas se tornou líquida no momento em que foi proferida a douta sentença da 1ª Instância. Pelo que, só a partir desse momento deve ser condenada no pagamento de juros.

19. Entendimento que se estende ao dano futuro, conforme resulta do Acórdão da Relação de Coimbra, processo nº 875/05, 1ª secção cível, de 27 de março de 2011, que dispõe que “E estarão sempre nesse plano a indemnização pelos danos morais e dos danos futuros, em que necessariamente os valores fixados se reportam à data da decisão. Nestes danos seria até incompreensível que o cálculo se reportasse a um momento anterior à decisão.”

20. Deverá ser revogado o douto entendimento da 1ª Instância, e os juros sobre as indemnizações pelos danos futuros e pelos danos morais deverão ser contados, unicamente, a partir da data da prolação da sentença.

21. Ao julgar de modo diferente daquele que é defendido nestas alegações de recurso, fez o Tribunal recorrido uma menos correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto.

Atento tudo quanto exposto, requer-se a V. Exas. que se dignem julgar totalmente procedente o recurso apresentado pelo Apelante […]”


 9. A Autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.


  10. O Tribunal da Relação de Guimarães julgou procedente o recurso e absolveu o Réu Fundo de Garantia Automóvel do pedido.


  11. Inconformada, a Autora interpôs recurso de revista.


  12. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:


1. - O acórdão recorrido foi no sentido de julgar procedente a excepção de Ilegitimidade substantiva alegada pelo recorrente, FGA, determinando que o mesmo não é responsável solidário pela indemnização devida à recorrente pelos danos sofridos no acidente que tem como único e exclusivo responsável o condutor de um velocípede sem motor.

2 - Na base do decidido está o entendimento de que:


“Ora, tratando-se de um veículo que não está sujeito ao seguro obrigatório de responsabilidade civil, ao sinistro em discussão nos autos não se aplicam as normas do Regime Jurídico do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, consagradas no DL nº 291/2007 de 21 de agosto, pelo que o R não é responsável (como garante) pela reparação do acidente em questão”.


3 – No nosso discernir, foi incorrectamente julgada pelo acórdão recorrido a alteração da sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância quanto à responsabilidade solidária do co-R, FGA.

4 – A nosso ver ressalta expressamente do preâmbulo do D.L. nº 291/2007, de 21/08, a responsabilização do FGA pelas indemnizações decorrentes de acidentes causados por veículos que estão isentos da obrigação de seguro, como é o caso dos velocípedes.

5. - É com base nos vetores expressamente enfatizados no seu preâmbulo que o D. L. n.º 291/2007, de 21 de Agosto, define o âmbito de intervenção e as atribuições do FGA – Cfr. Arts. 47º, nº 1 e 48º, nº 1, al. c);

6. — Sendo que, nos termos do disposto no n.º 1, al. c), do art. 48.º do DL n.º 291/2007 o FGA satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados por veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ainda que com estacionamento habitual no estrangeiro — sublinhado nosso;

Com efeito,

8 - O aumento sem controlo do parque automóvel e o volume crescente dos acidentes de viação criaram a cons-ciência de que os riscos estradais são, cada vez mais, um problema social, que respeita a toda a colectividade e não apenas um problema a dirimir nas relações lesante-lesado - cfr., neste sentido, Sinde Monteiro, Revista de Direito e Economia, Ano IV, 2, pág. 332

9 - Daí que os Estados procurem, fora dos esquemas tradicionais da responsabilidade individual, encontrar formas de ressarcimento dos danos resultantes dessa fonte de perigos que é a circulação rodoviária, criando o seguro obrigatório e outras formas de assegurar o ressarcimento dos danos, como é justamente o caso dos fundos de garantia.

10 - O FGA desempenha um papel de repartição colectiva do risco de circulação automóvel, dando protecção às vítimas de acidentes, as quais, de outro modo, ficariam sem qualquer indemnização, por falhar aqui totalmente o binómio da responsabilidade individual: - lesante/lesado (cfr. Sinde Monteiro, "Reparação de Danos em Acidentes de Trânsito", Coimbra, págs. 50-51).

11 - Por outro lado, os velocípedes são considerados pelo CE como verdadeiros veículos de circulação terrestre, sendo os seus condutores titulares de direitos e sujeitos a obrigações emergentes das regras daquele diploma. Na verdade, as regras do CE são igualmente aplicáveis tanto aos condutores de veículos automóveis como aos condutores de veículos velocípedes.

12 - De notar que o artigo 112º do CE identifica o velocípede como veículo, incluindo-o na «Classificação de veículos» adiantada pelo Titulo IV, Capitulo I.

13 - Acresce, ainda, que, o artigo 104º, alínea d) do CE equipara ao trânsito de peões a circulação com trotinetas, patins ou outros meios de circulação análogos sem motor (como o serão os triciclos infantis), não os classificando como veículos para efeitos de aplicação das normas do CE, mas antes como meros meios de circulação. Assim, as trotinetes, patins e outros meios de circulação análogos não são considerados veículos.

Ou seja,

14 - A intervenção legislativa não se reduziu à regulamentação da circulação de veículos de circulação terrestre a motor, mas antes, abrangeu os veículos que, pela sua relevância, o legislador considerou e sujeitou às normas de circulação na estrada. Entre os veículos abrangidos pelas regras de circulação encontram-se os velocípedes.

15. -  A lei trata igualmente bicicletas e veículos com motor, como veículos de circulação terrestre.

16 - Do teor do D.L. n.º 291/2007, de 21 de Agosto, impõe-se a obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil apenas aos responsáveis por veículos terrestres a motor para cuja condução seja necessário um título específico.

17 - Embora os velocípedes também sejam veículos de circulação terrestre, os seus responsáveis ficam excluídos da obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil, pelo facto de o velocípede não ter motor e por não ser exigido para a sua condução um título específico.

18 – Mas os velocípedes, enquanto veículos que comportam certos riscos de circulação, ainda que mais reduzidos que os veículos automóveis, encontram-se abrangidos pela previsão do art. 503º, n.º 1 do CC.

19 – Todavia e porque os danos provocados pelo ciclista não se encontram cobertos por um seguro de responsabilidade civil por dele estar isento, neste caso, e nos termos do aresto que ora se impugna, o lesado com direito a indemnização, como é o caso sub judice, não beneficiará de uma proteção garantida pelo seguro de responsabilidade civil, nem pelo FGA, ficando à mercê da capacidade financeira do responsável pelo acidente e detentor do velocípede.

20 - Ora, salvo o devido respeito por opinião diferente, parece-nos que tal decisão por não acolher na lei a obrigatoriedade de seguro leva-nos a situações díspares e tremendamente injustas, uma vez que alguns lesados ficam completamente desprotegidos relativamente a outros.

21 - Como pensa a recorrente e no acompanhamento dos ensinamentos do Professor Sinde Monteiro acima aludidos, foi para evitar situações em que o lesante não tendo capacidade financeira para ressarcir os danos aos lesados, como é o caso em apreço, que foi constituído o FGA para, nos termos das suas atribuições, desempenhar um papel de repartição coletiva do risco de circulação automóvel, atribuindo-lhe a lei uma “obrigação social” de garantia desses danos, dando, por isso mesmo, proteção às vitimas de acidentes, as quais, doutro modo, ficariam sem qualquer indemnização por o lesante padecer de capacidade financeira.

22 – Por outro lado e a prevalecer a decisão proferida no aresto em crise, poder-se-ia questionar se, do entendimento esboçado, não resulta, porém, violação do princípio constitucional da igualdade - cfr. artigo 13º da CRP.

23 - Uma vez que a ser assim, está-se a permitir que o lesado com direito a indemnização com base numa responsabilidade pelo risco de circulação de um velocípede usufrua de uma proteção mais fraca do que aquela que vigora para os lesados em virtude da circulação de outro qualquer veículo de circulação terrestre,

24 - Estando-se, desta forma, a criar situações díspares e tremendamente injustas, uma vez que alguns lesados ficam completamente desprotegidos relativamente a outros.

25 - Como escreve Sinde Monteiro, trata-se de um caso em que a própria colectividade assume o peso dos danos, dando cobertura a uma indemnização que, de outra sorte, não poderia ser feita valer. "Aqui a intervenção da garantia colectiva, isto é, do particular mecanismo de reparação colectiva que o fundo de garantia constitui, desempenha um papel de complemento colectivo da responsabilidade individual que falha, tendo carácter semiautónomo em relação às regras da responsabilidade civil" - cfr. Revista de Direito e Economia, Ano IV, 2, pág. 343.

26 – Conforme supra exposto e face ao quadro legal vigente na nossa ordem jurídica, parece-nos resultar claro a interpretação de que é da responsabilidade do FGA garantir a satisfação das indemnizações decorrentes dos acidentes rodoviários e originados por veículos cujo responsável pela circulação está isenta da obrigação de seguro.

27 – Devendo, por isso mesmo, determinar-se que, face à isenção legal de obrigação de seguro por parte dos velocípedes, existe uma solidariedade entre FGA e o responsável civil perante o lesado, sem prejuízo de eventual direito de regresso que o FGA possa exercer sobre esse responsável civil (cfr. artigos 48º, nº 2 e 54º da DL 291/2007).

28 - Por tudo o que ficou dito sobre o regime jurídico do FGA, e a propósito da situação em apreço, é, no nosso modesto discernimento, bem esclarecedor, por um lado, da especificidade objectiva desta situação, e, por outro, dos desígnios de justiça e de solidariedade social que estão ínsitos ao referido regime, bem como da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, bem realçada, até, pelo mecanismo da sub-rogação do FGA nos direitos do lesado.

29 – Depois destas conclusões e de todo o seu alcance, é lícito afirmar que o tribunal recorrido não possuía elementos de direito consistentes e válidos à luz do direito vigente para julgar pela absolvição do FGA do pedido.

30 – Assim não se tendo entendido, temos certo que o acórdão recorrido não terá feito a melhor e mais correcta interpretação e aplicação ao caso sub judice das pertinentes disposições legais, nomeadamente, os arts. 47º e 48º, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, art. 13º da CRP, arts. 112º e 104º do CE e art. 503º, nº 1, do CC.

Nestes termos e nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Ex.as, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o d. acórdão recorrido, substituindo-o por outro que condene o recorrido, FGA, solidariamente a pagar à recorrente a indemnização equitativamente arbitrada pelo tribunal de 1ª Instância, porque apenas assim se cumprirá a lei, realizando-se o direito e fazendo-se a desejada JUSTIÇA.


  13. O Réu Fundo de Garantia Automóvel contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade e, subsidiariamente, pela improcedência do recurso.


  14. Finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:


1. A Autora, devidamente notificada da douta sentença proferida, dela não interpôs recurso para o Tribunal da Relação.

2. Tendo-se com a mesma conformado, ou seja, aceitou a redução do valor que havia peticionado inicialmente, para a quantia de € 18.555,00 fixada em sede de sentença.

3. O R. FGA, aqui Recorrido, não se conformando com a Sentença interpôs recurso da mesma junto do Tribunal da Relação de Guimarães, pugnando, em primeiro lugar, pela verificação da exceção de ilegitimidade substantiva e posteriormente, para o caso de o Tribunal não julgar a exceção procedente, requereu a diminuição dos valores arbitrados a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, para a quantia de € 5.000,00.

4. A A., aqui Recorrente, ao não interpor recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães da douta sentença proferida pelo Tribunal de Ia Instância, aceitou os valores fixados na mesma.

5. A A. em sede de contra-alegações de recurso juntas aos autos requer que se mantenha a decisão proferida em sede de sentença.

6. A A. aceitou o valor atribuído pelo Tribunal de Ia Instância a título de indemnização, o que deve passar a valer para efeitos do valor da ação e do recurso.

7. Pelo que, não tendo sido interposto recurso pela A. para o tribunal da Relação e a A. aceite o valor de € 18.555.00 pelos danos alegadamente sofridos, não é admissível o presente recurso interposto pela Autora para o Supremo Tribunal de Justiça.

8. Mais: no recurso ora interposto junto do Supremo Tribunal de Justiça, a A. pede a condenação solidaria do FGA. ao pagamento da indemnização arbitrada por sentença pelo tribunal de 1.ª Instância.

9. Caso venha a ser admitido o recurso interposto pela A., sempre se dirá que o valor arbitrado a título de indemnização pelos danos não patrimoniais é manifestamente exagerado, atendendo aos danos concretamente invocados, pelo que, deverá ser reduzido para a quantia de € 5.000.00. conforme o FGA já havia invocado em sede de alegações de recurso junto do Tribunal da Relação.

10. Assim sendo, atendendo ao valor recorrido, o mesmo não é passível de recurso junto do Supremo Tribunal de Justiça, devido ao valor da alçada da 3a Instância, nos termos do artigo 44° da Lei da Organização do Sistema Judiciário e artigo 629° do CPC.

11. Assim sendo, deverá ser desentranhado o recurso interposto pela A., aqui Recorrente, por legalmente inadmissível, o que se requer para os devidos efeitos legais.

12. Sem prescindir, para o caso do supra exposto não merecer acolhimento o que não se concede nem concebe, sempre se dirá o que se segue.

13. Alega a Recorrente que não se verifica a exceção de ilegitimidade substantiva invocada nos autos, pelo que deverá o FGA se condenado, solidariamente, a proceder ao pagamento dos valores devidos a título de ressarcimento dos danos.

14. Sucede que, a Recorrente incorre em erro e faz uma incorreta interpretação das normas constantes do Decreto-Lei n° 291/2007 de 21/08.

15. A aqui Recorrente, não tem legitimidade material ou substantiva para demandar nos presentes autos o FGA, juntamente com o condutor do velocípede.

16. De acordo com o disposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n° 143148/13.0YIPRT.L1-2, de 19 de fevereiro de 2015, “I.- Uma coisa é a legitimidade processual, constituindo um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do Réu da instância. Outra, a legitimidade substancial ou substantiva, que tem que ver com a efetividade da tal relação material, interessando já ao mérito da causa. “

17. Ao sinistro em discussão nos presentes autos não se aplicam as normas do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel no DL n° 291/2007 de 21 de agosto.

18. A lesada, aqui Recorrente, não poderá invocar a responsabilidade do FGA, com fundamento no artigo art. 47° do DL n° 291/2007, de 21 de agosto, na medida em que, sendo o veículo alegadamente responsável pelo acidente um velocípede, não tem aplicação o referido DL, assim como, também não integra as atribuições do FGA, que apenas garante a indemnização em caso de acidente causado por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório.

19. Como referiu e bem o acórdão de que se recorre, "não estando os velocípedes (sem motor) sujeitos à obrigação de segurar, e não se colocando quanto a eles a questão da sua isenção, o Fundo não está obrigado á regularização dos sinistros causados por tais veículos. Ou seja, fora os casos especiais expressamente previsto na lei (de isenção da obrigação de segurar), que não têm aplicação ao caso dos autos, a regra é a de que o FGA apenas intervém nos casos em que sobre o responsável pelo acidente existe a obrigação de segurar — de celebrar um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e não o faz (ou é desconhecido)”.

20. Mais esclarece o Tribunal da Relação que "é um facto que a obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel não incide sobre todos os veículos, mas apenas sobre os "veículos terrestres a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques" (n°l do artigo 4odo Decreto-Lei n° 291/2007, de 21 de Agosto e n° 1 do artigo 150" o Código da Estrada).

Ora, os velocípedes, não sendo veículos a motor, não estão ab initio sujeitos à obrigação de seguro. E não estando sujeitos ab initio a esse dever, não se coloca sequer quanto a eles a questão da sua isenção ou não do seguro. “

21. Não assiste à Recorrida legitimidade substantiva para demandar o FGA, invocando normas do DL n° 291/2007 de 21 de agosto, que apenas tem aplicabilidade aos casos em que existe uma sujeição ao seguro obrigatório.

22. Uma vez que, segundo entendimento do Tribunal da Relação "não havendo obrigação de segurar, o responsável pela indemnização arbitrada à lesada é apenas o responsável civil, como causador do acidente que a vitimou“.

23. Vem o Apelante FGA invocar a ilegitimidade substantiva da Recorrida, na esteira do disposto no supra citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n° 143148/13.0YIPRT.L1 -2, de 19 de fevereiro de 2015, que refere que "I - Assim, a circunstância de não haver sido suscitada por qualquer das partes a questão da legitimidade processual da A., ou de, tendo sido impugnados os factos alegados na petição inicial, não haver sido nominada a ilegitimidade substantiva daquela, não obsta a que o tribunal conheça desta última, sem que tal redunde na prolação de decisão surpresa. “

24. Mais se invoca que não se verifica qualquer violação do princípio constitucional da igualdade, previsto no artigo 13° da CRP.

25. Sem prescindir, para o caso do supra exposto não merecer acolhimento, o que não se concede nem concebe, sempre se dirá o que segue.

26. Decidiu o Tribunal de 1a Instância fixar a quantia de € 15.000,00 para indemnização dos danos sofridos pela lesada, contudo, o Recorrente não perfilha do mesmo entendimento.

27. A inevitável comparação com a jurisprudência recente, mostra-se decisiva para aferir da correção da verba fixada à Autora pelo Tribunal de Ia Instância, designadamente, por referência ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n° 99/12.7TCGMR.G1 .SI, 2a secção, de 19 de fevereiro de 2015.

28. Atento o Acórdão supra citado e as lesões que a quantia de € 20.000,00, ora fixada, visou compensar, sempre se dirá que os € 15.000,00 apurados pelo Tribunal de Ia Instância se mostram sobredimensionados, atentos os padrões da jurisprudência e os concretos danos em questão.

29. Sempre se dirá que na hora de quantificar os danos e atribuir os montantes indemnizatórios, a sentença de primeira instância aplicou critérios e quantias demasiado elevados, exagerados, desproporcionais e severos, que não correspondem, em modesta opinião, aos factos dados como provados, nem a critérios equitativos, reais e objetivos.

30. Assim, ponderando as variáveis mais influentes, como natureza e gravidade da ofensa sorrida, o grau de incapacidade de 1 ponto, as dores e o período de recuperação, conclui-se que os montantes adequados ao caso concreto se situam nos € 5 000,00, valor consideravelmente inferior ao que foi arbitrado.

31. Pelo que a quantia fixada pelo Tribunal peca por excesso, devendo ser reduzida para o montante mais razoável de 5 000,00 €. por ser o valor digno, justo e adequado como compensação por via do dano não patrimonial sofrido.

32. O aqui Recorrido FGA, foi condenado a liquidar todas as indemnizações acrescidas de juros desde a data da citação, contudo, nas indemnizações que só foram liquidadas na data da sentença, e que regem para futuro, os juros apenas devem ser contados desde a data da decisão. E o caso da compensação pelo dano moral ou não patrimonial e do dano futuro.

33. Os juros relativamente ao valor da indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais, devem ser contabilizados desde a data da decisão, do mesmo entendimento perfilha o Acórdão do STJ de 23 de novembro de 2010, (disponível em www.dgsi.pt), ao referir que "Quanto aos danos de natureza não patrimonial, seguramente, que a sua compensação foi equacionada de forma atualizada (,..), resultando num injustificado cúmulo a contagem de juros de mora, a partir da citação, porquanto a obrigação pecuniária em causa cobre todo o dano verificado “.

34. O valor da indemnização a título de danos não patrimoniais apenas se tornou líquida no momento em que foi proferida a douta sentença da Ia Instância. Pelo que, só a partir desse momento deve ser condenada no pagamento de juros.

35. Entendimento que se estende ao dano futuro, conforme resulta do Acórdão da Relação de Coimbra, processo n° 875/05, Ia secção cível, de 27 de março de 2011, que dispõe que "E estarão sempre nesse plano a indemnização pelos danos morais e dos danos futuros, em que necessariamente os valores fixados se reportam à data da decisão. Nestes danos seria até incompreensível que o cálculo se reportasse a um momento anterior à decisão. “

36. Deverá ser revogado o douto entendimento da 1.ª Instância, e os juros sobre as indemnizações pelos danos futuros e pelos danos morais deverão ser contados, unicamente, a partir da data da prolação da sentença.

Por tudo o exposto, deverá o mui distinto Supremo Tribunal de Justiça julgar improcedente o Recurso de Revista interposto pela Autora, aqui Recorrente, mantendo-se o decidido no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, por fazer uma correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto.

38. Ao julgar de acordo com o defendido nestas contra-alegações de recurso, fará o digníssimo Supremo Tribunal de Justiça uma mais correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto.

Termos em que, declarando improcedente o presente recurso, com todas as legais consequências, farão V.a Exas.a a costumada e boa JUSTIÇA.

 

  15. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

  16. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), a questão a decidir, in casu, é a seguinte: — se o Fundo de Garantia Automóvel deve satisfazer as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários causados por velocípedes sem motor.


II. — FUNDAMENTAÇÃO


   OS FACTOS


 17. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:

1. No dia 21 de Fevereiro de 2016, cerca das 14.37 horas, na Av. …, freguesia de …, …, ocorreu um acidente de viação.

2. Na altura estava bom tempo e o piso encontrava-se seco.

3. No local do acidente, a via é de linha curva para a esquerda atento o sentido de marcha do ciclomotor e tem boa visibilidade. 

4. A faixa de rodagem é constituída por pavimento asfaltado, em bom estado de conservação.

5. A faixa de rodagem, no local do acidente, tem 9,10 m de largura.

6. E dispõe de duas hemi-faixas de rodagem e dois sentidos de marcha, delimitados por traço contínuo ao eixo da via, que, à data do acidente, se encontrava desfigurado.

7. Foram intervenientes neste acidente:

— O ciclomotor de passageiros, com a matrícula ...-CS-...;

— E o velocípede de três rodas sem motor e matrícula.

8. O ciclomotor “CS” era conduzido por EE e é propriedade sua.

9. A Autora seguia como passageira, do ciclomotor.

10. O velocípede sem motor e matrícula era conduzido por DD e é propriedade sua.

11. À data do acidente o condutor do velocípede sem motor, DD, tinha 16 anos de idade.

12. O ciclomotor “CS” circulava pela sua hemi-faixa direita, dentro da sua mão de trânsito, no sentido da Av. … para a Rua …, em …, e dirigia-se para a sua residência sita em … .

13. Quando o ciclomotor se encontrava a circular junto ao posto de vendas da Adega Cooperativa de …, na aludida Av. …, o condutor do velocípede sem motor e matrícula, circulava em sentido contrário, na mesma via de trânsito do ciclomotor.

14. Quando, súbita e inopinadamente, o condutor do velocípede fez um peão e foi embater com a roda de trás do lado direito do velocípede na roda da frente do ciclomotor “CS”.

15. Cortando, desta forma, a linha de marcha do veículo “CS”, onde circulava a Autora.

16. Em consequência do embate, o ciclomotor desequilibrou-se, tendo a Autora caído sobre o asfalto da via, para o lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha.

17. E ficado com a perna esquerda debaixo do ciclomotor.

18. À hora relatada, havia pouco trânsito.

19. E o condutor do ciclomotor conduzia o seu veículo, imprimindo uma velocidade que não ultrapassava os 30 Km/hora.

20. A Autora, logo após o acidente, foi assistida pelo INEM onde recebeu os primeiros cuidados clínicos.

21. Porém, e atenta a gravidade das lesões da Autora (traumatismo no pé e tornozelo esquerdo do qual resultou fratura no maléolo peronial), foi imediatamente, transportada para o Centro Hospitalar de … e …, EPE.

22. Naquele Hospital foram-lhe diagnosticadas as seguintes lesões e submetida aos tratamentos constantes na informação clínica e a seguir descriminados:

— Sofreu traumatismo no pé e tornozelo esquerdo do qual resultou fratura no maléolo peronial; 

— Iniciou tratamento conservador com imobilização gessada;

— Retirou mobilização gessada em 30/03/2016;

— Iniciou mobilização articular e carga parcial a progredir;

— Teve alta a 04/05/2016 com fratura consolidada e orientada para continuação da recuperação em Companhia de Seguros.

23. Após a alta médica, em 04/05/2016, regressou a sua casa, sem que lhe tivessem proporcionado a sua recuperação física mediante prescrição de sessões de fisioterapia.

24. A Autora sujeitou-se a todas as consultas, tratamentos e cumpriu todas as prescrições médicas.

25. A Autora sempre trabalhou na agricultura como jornaleira.

26. E na altura do acidente, a Autora auferia, por jorna, a quantia de 30,00 € (trinta euros).

27. Devido às sequelas de que ficou a padecer e às limitações de locomoção durante todo o período em que ficou engessada e que teve de andar com canadianas, a Autora viu-se obrigada a contratar uma terceira pessoa.

28. Para cuidar de si e lhe confecionar as refeições e demais utilidades domésticas.

29. O que fez com que a Autora de pessoa absolutamente autónoma passasse a depender de terceira pessoa durante todo aquele período.

30. A mulher contratada pela Autora esteve ao seu serviço ininterruptamente, sete dias por semana, desde as 8:30 horas até às 12:00 horas e depois regressava às 19:00 horas até às 20:00 horas.

31. A essa mulher que a Autora contratou, pagou-lhe 100,00 € por semana.

32. Tendo a Autora despendido pela sua assistência durante o período que medeia a data do acidente até 19/06/2016 (17 semanas), a quantia de 1.700,00 € (mil e setecentos euros).

33. Tanto na altura do acidente como nas horas seguintes, a Autora sofreu dores, tendo a perícia médica fixado um quantum doloris de 3 pontos numa escala crescente de sete pontos.

34. Dores, essas, associadas a um enorme desconforto e angústia que se mantiveram durante toda a sua permanência no estabelecimento hospitalar por onde passou.

35. A que se junta o desconforto de ter de andar engessada até ao joelho.

36. E de ter de andar com canadianas para se poder movimentar.

37. Não podendo dar à sua família a atenção, o apoio e acompanhamento que queria dar, uma vez que o seu agregado familiar, é de fracos recursos financeiros.

38. Bem como, durante todo o período até à data da alta médica, não se pôde deslocar e movimentar livremente.

39. Tudo isto a entristece e lhe causa desgosto.

40. A Autora era uma pessoa viva, alegre e bem-disposta.

41. A Autora, à data do acidente, era pessoa robusta e dinâmica, gozando de boa saúde e sem qualquer defeito físico.

42. Com uma grande alegria de viver e constante boa disposição. 

43. Em resultado da limitação física, a Autora passou a ter de desenvolver um maior esforço físico.

44. A Autora tinha, à data do acidente, 49 anos de idade.

45. A Autora receia, ainda, que as lesões se agravem com o passar dos anos.

46. A Autora, à data do acidente, trabalhava na agricultura como jornaleira, auferindo, 30,00 €/dia.

47. A autora ficou afetada de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de um (1) ponto, sendo as sequelas compatíveis com a sua atividade habitual, embora impliquem esforços suplementares.

48. A Autora sempre executou na agricultura, trabalhos que exigem grande esforço e desgaste físico e apenas possui como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade.

49. A Autora, pretendendo retomar a sua atividade de jornaleira e de, consequentemente, obter rendimentos para o seu sustento e do seu agregado familiar, e com a finalidade de aproveitar a época das vindimas no Douro, foi trabalhar para uma quinta a fim de carregar e transportar as uvas, como sempre fez.

50. O veículo onde a autora era transportada tinha seguro válido e eficaz na Companhia de Seguros FF, para quem o proprietário do ciclomotor tinha a sua responsabilidade transferida através da apólice nº 90….1.

51. O ciclomotor acabou por se imobilizar na mesma hemi-faixa de rodagem, por onde circulava.

52. Não só do lado direito da via por onde circulava o ciclomotor, mas também do lado esquerdo, estavam veículos parados”. 


 18. Em contrapartida, o acórdão recorrido deu como não provados os factos seguintes:


“— O condutor do velocípede entrou em derrapagem.

— Decorridos que estão cerca de oito meses após o acidente, a Autora está e continuará afetada por limitações funcionais definitivas que muito a limitam para o exercício das atividades ao seu alcance e que habitualmente exercia.

— A Autora, com o presente acidente, deixou de poder prestar o seu trabalho na forma habitual, de Segunda-feira a Sábado – 06 dias por semana —, deixando de perceber os rendimentos que o mesmo lhe proporcionava.

— Devido ao facto de não lhe ter sido proporcionado a sua recuperação mediante a prescrição de sessões de fisioterapia, a Autora, até à data da instauração da presente ação — 02/11/2016 —, devido às dores de que padece, não pode, ainda, retomar o seu trabalho habitual de jornaleira.

— A Autora, desde o dia 22 de Fevereiro até à data de entrada da presente ação (02 de Novembro de 2016) – 218 dias -, deixou de ganhar a quantia de 6.540,00 € (seis mil e quinhentos e quarenta euros) (30,00 €/dia x 218 dias = 6.540,00 €).

— A Autora sentiu um autêntico pavor ao ver-se ferida.

— Durante todo o período até à data da alta médica, não pode conviver com os seus amigos.

— Por outro lado, o problema físico sofrido pela Autora implica consequências ao nível psíquico e na sua maneira de ser. 

— Revelando-se, ao contrário do que antes acontecia, frequentemente sorumbática, triste e amargurada.

— Por outro lado, ao aperceber-se que o embate era inevitável, a Autora sentiu medo das consequências que resultariam para a sua integridade física.

— Em consequência do acidente, viu-se transformada numa pessoa fisicamente diminuída, triste e amargurada.

— Em resultado da limitação física, a Autora passou a ter de desenvolver um maior esforço mental para superar a dor, ficando limitada no seu trabalho, pelo cansaço e sofrimento que daí decorre.

— Além disso, a Autora ainda vive em constante sofrimento provocado pelas fortes dores que sentiu e continua a sentir.

— Tanto por essas dores, como pelos tratamentos que teve de fazer, a Autora vive sujeita a grandes limitações.

— Pois quando a Autora faz uma caminhada mais prolongada, para além das dores que sente, o pé acidentado incha-lhe.

— Devido às sequelas com que ficou a padecer, a Autora viu a sua capacidade de ganho diminuída uma vez que já não consegue andar e carregar sem que sinta dor no pé acidentado.

— A Autora, à data do acidente, trabalhava na agricultura como jornaleira, auferindo, mensalmente, a retribuição de 720,00 € (setecentos e vinte euros) (30,00 €/dia x 6 dias = 180,00 € x 4 semanas = 720,00 €). 

— Não obstante as consultas e tratamentos a que se sujeitou, a Autora vai ficar com sequelas permanentes e definitivas, limitativas quanto às suas opções de trabalho, uma vez que devido às dores que sente no pé esquerdo, não pode executar as tarefas que impliquem esforço físico.

— Tais sequelas, de que está afetada a Autora, constituem, neste momento, numa incapacidade total para o trabalho agrícola habitual que a mesma sempre executou.

— O que faz com que a Autora se sinta completamente incapacitada e impossibilitada para exercer a labuta que toda a vida executou.

— Face às parcas habilitações literárias e à crise acentuada de emprego que se vive no nosso país, torna-se muito difícil conseguir obter um emprego capaz de lhe proporcionar os rendimentos necessários para o seu sustento.

— A Autora viu-se impossibilitada de poder carregar uvas devido às dores fortes no pé acidentado que a apoquentam quando faz esforço físico.

— Vendo-se obrigada a desistir e a vir embora daquela Quinta logo no 1º dia em que pretendia recomeçar a trabalhar.

— Deixando, por isso mesmo, de perceber os rendimentos da atividade que sempre exerceu ao longo da sua vida.

— O réu DD, nenhuma intervenção teve no presente acidente, sendo apenas e tão só testemunha presencial do mesmo.

— No acidente de viação em causa apenas foi interveniente o ciclomotor de matrícula ...-CS-....

— Quer antes, durante e depois da eclosão do acidente, o Réu DD, manteve-se sempre parado junto ao passeio existente do lado direito da via, atento o sentido de marcha do ciclomotor, atrás de veículos que lá se encontravam parados.

— Ao descrever a curva à esquerda existente no local do acidente, e sem que nada o fizesse prever, o condutor do identificado ciclomotor, perdeu o controlo do veículo que tripulava.

— Tendo-se desequilibrado e despistado, caindo sobre o asfalto e consequentemente embatido ligeiramente na roda do triciclo, pertencente ao DD, que se encontrava parado junto ao passeio ali existente e atrás dos veículos que estavam, também, parados nas mesmas circunstâncias, atento o sentido de marcha do ciclomotor.

— Logo que ocorreu o acidente, todos os veículos automóveis parados na via, rapidamente foram retirados do local pelos seus condutores, antes da chegada ao local das Autoridades (GNR) e do INEM.

— O condutor do ciclomotor não se coibiu de imprimir ao veículo que conduzia, uma velocidade muito superior ao que era permitido.

— Já que o veículo ...-CS-..., circulava a uma velocidade de pelo menos 60/70km/horários.

— O DD encontrava-se parado junto ao passeio, em nada interferindo com a circulação do trânsito que se fazia sentir naquele dia, hora e local, até mesmo considerando a largura da faixa de rodagem no local”.


   O DIREITO


   19. Os factos provados sob os n.ºs 7 a 16 dão-nos conta de que o acidente foi causado por um velocípede sem motor. O art. 150.º do Código da Estrada e o art. 4.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, constituem na obrigação de seguro o proprietário, o possuidor e/ou o detentor de veículo a motor [1] ou de veículo terrestre a motor [2] — sujeito passivo da obrigação de seguro é só a pessoa, ainda que seja toda a pessoa, “que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico” [3].  Como o acidente haja sido causado por um velocípede sem motor, o problema é, em substância, um problema da interpretação do art. 48.º, n.º 1, alínea c), do do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.


  20. O texto do art. 48.º, n.º 1, alínea c), diz que o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados por veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo. O problema da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel é, em substância, um problema de interpretação da fórmula veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo do art. 48º, n.º 1, alínea c).

   O conceito de veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo deverá abranger o velocípede sem motor? O facto de o art. 48.º, n.º 1, alínea c), dizer que o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados por veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo deverá significar que o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados por velocípede sem motor?

    A Autora, agora Recorrente, argumenta que sim, apoiando-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 291/2007 — e, em especial, em dois segmentos do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 291/2007.

  Em primeiro lugar, apoia-se no segmento em que se diz que “[o] vector do aumento da protecção dos lesados de acidentes de viação assegurada pelo sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, adiante designado por sistema SORCA, enforma diversas matérias ao nível de ambos os pilares do sistema (o pilar-seguro obrigatório e o pilar-FGA)” e, em segundo lugar, no segmento em que se diz que, entre as matérias ao nível do segundo pilar centradas no aumento da protecção dos lesados, está “a responsabilização do FGA pelas indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários causados por veículos cujos responsáveis pela circulação estão isentos da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo”.

  O Réu, agora Recorrido, argumenta que não, apoiando-se sobretudo na relação entre o texto do art. 4.º e o texto do art. 48.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007.


  21. O Instituto de Seguros de Portugal e, desde 2015, a Autoridade de Supervisão de Seguros e de Fundos de Pensões emite (tem emitido) entendimentos / pareceres sobre matérias relativas à actividade seguradora e de mediação de seguros e de fundos de pensões, por que pretende promover a aplicação convergente de preceitos legais e regulamentares e a consolidação da disciplina do mercado. Entre os entendimentos / pareceres do (então) Instituto de Seguros de Portugal encontra-se o seguinte:


“A obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel não incide sobre todos os veículos, mas só sobre os ‘veículos terrestres a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques’ (n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto e n.º 1 do artigo 150.º do Código da Estrada).

Os velocípedes, não sendo veículos a motor, não estão ab initio sujeitos à obrigação de seguro. Não estando sujeitos ab initio, não se coloca a questão da sua isenção ou não do seguro.

Face ao exposto, o Fundo de Garantia Automóvel não está obrigado à regularização dos sinistros causados por tais veículos, não lhes sendo aplicável o previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 48.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 (esta previsão refere-se tão-só ao caso das máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula)” [4].


  22. Em termos em tudo semelhantes, o acórdão recorrido diz o seguinte:

 “… os velocípedes, não sendo veículos a motor, não estão ab initio sujeitos à obrigação de seguro. E não estando sujeitos ab initio a esse dever, não se coloca sequer quanto a eles a questão da sua isenção ou não do seguro”.


  23. Embora os entendimentos / pareceres do (então) Instituto de Seguros de Portugal não tenham (não possam ter) um acrescido valor formal — não tenham (não possam ter), p. ex., o valor formal de leis interpretativas —, têm (devem ter) um acrescido valor substancial decorrente da especialização e da institucionalização: em primeiro lugar, são entendimentos ou pareceres de órgãos especializados e, em segundo lugar, são entendimentos ou pareceres de órgãos institucionalizados, com funções de regulação e de supervisão da actividade seguradora.

    O acrescido valor substancial decorrente da especialização e da institucionalização sempre faria com que uma interpretação contrária ao entendimento ou ao parecer do (então) Instituto de Seguros de Portugal exigisse uma fundamentação / justificação especial.

   Ora, em concreto, os argumentos do acórdão recorrido, correspondentes aos fundamentos do entendimento ou parecer do Instituto de Seguros de Portugal, afiguram-se convincentes.

    O termo isenção designa o acto, ou o efeito do acto, por que alguém se dispensa ou se liberta de uma encargo, ou de uma obrigação [5]. O art. 48.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007 ao falar em isenção, sugere (i) que, se alguém é a priori sujeito passivo da obrigação de seguro, pode ser isento e (ii) que, se alguém não é a priori sujeito passivo da obrigação, não pode ser isento.

    Em consequência, há razões para sustentar que o art. 48.º, n.º 1, alínea c), deve aplicar-se exclusivamente aos acidentes originados pelos veículos a motor previstos no art. 4.º, n.º 2 — veículos dos caminhos de ferro e veículos agrícolas não sujeitos a matrícula.


  24. A Autora, agora Recorrente, alega que a fundamentação / justificação especial deve encontrar-se nos princípios e nos valores constitucionais — em especial, no princípio e valor da igualdade (art. 13.º da Constituição da República Portuguesa).


22. “… a prevalecer a decisão proferida no aresto em crise, poder-se-ia questionar se, do entendimento esboçado, não resulta, porém, violação do princípio constitucional da igualdade - cfr. artigo 13º da CRP.

23 - Uma vez que a ser assim, está-se a permitir que o lesado com direito a indemnização com base numa responsabilidade pelo risco de circulação de um velocípede usufrua de uma proteção mais fraca do que aquela que vigora para os lesados em virtude da circulação de outro qualquer veículo de circulação terrestre,

24 - Estando-se, desta forma, a criar situações díspares e tremendamente injustas, uma vez que alguns lesados ficam completamente desprotegidos relativamente a outros”.


 25. A alegada desigualdade decorreria em primeira linha de os veículos a motor estarem sujeitos e de os veículos sem motor não estarem sujeitos à obrigação de seguro.

  O princípio da igualdade exige um tratamento igual de situações iguais ou comparáveis; ora, os perigos causados pela circulação de veículos a motor são diferentes, tipicamente superiores, aos perigos causados pela circulação de veículos sem motor; logo, não há violação do princípio da igualdade, por não haver um tratamento desigual de situações comparáveis.

  Esclarecidas as razões por que não há violação do princípio da igualdade na circunstância de os responsáveis pela circulação de veículos sem motor não estarem sujeitos à obrigação de seguro, ficam esclarecidas as razões por que não há (não se considera que haja) violação do princípio da igualdade na circunstância de os danos decorrentes de acidentes causados por veículos sem motor não estarem cobertos pela responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel.

  Os limites da margem de apreciação do legislador não foram excedidos, não havendo razões para sustentar que a decisão de não socializar o risco dos acidentes causados por veículos sem motor seja arbitrária, manifestamente desproporcionada ou manifestamente errada.


   26. A conclusão harmoniza-se com o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7 de Novembro de 2013, proferido no processo n.º 801/12.7TVLSB.L1-6, e do Tribunal Central Administrativo Sul de 7 de Abril de 2016, proferido no processo n.º 05750/09.

    O Tribunal da Relação de Évora pronunciou-se sobre uma questão da inconstitucionalidade por omissão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil, por não abranger os veículos sem motor, e o Tribunal Central Administrativo Sul pronunciou-se uma questão da responsabilidade por omissão — por violação de um dever constitucional de legislar.

    O Tribunal da Relação de Évora considerando que não havia inconstitucionalidade [6] e o Tribunal Central Administrativo Sul, no sentido de que não havia responsabilidade:

“[ainda que seja] indiscutível que a circulação […] de velocípedes sem motor acresce um factor de risco à circulação rodoviária, não se detecta omissão do dever de legislar no sentido de obrigar [a] que os velocípedes sem motor que circulem na via pública possuam seguro que cubra o alegado risco de circulação, dado não existirem razões normativas decorrentes quer da Constituição da República Portuguesa, quer de qualquer instrumento normativo internacional reconhecido pelo Estado Português como vinculante na ordem jurídica nacional, que imponha ao Estado Português tal dever”.


 III. — DECISÃO


   Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

     Custas pela Recorrente AA.


Lisboa, 20 de Novembro de 2019


Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Olindo dos Santos Geraldes

________

[1] Expressão do art. 150.º, n.º 1, do Código da Estada.

[2] Expressão do art. 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto

[3] Cf. art. 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

[4] Consultado em: WWW: < https://www.asf.com.pt/NR/exeres/AA3E75A1-AAB6-4FA6-8BD6-BA8E2C44F6F3.htm >.

[5] Cf. Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário da língua portuguesa contemporânea, vol. II … G-Z, Verbo, Lisboa, 2001, págs. 2172.

[6] Explicando-o nos seguintes termos: “na solução legal escolhida, se optou por excluir do seguro obrigatório todos os veículos sem motor, visto, desde logo, o seu menor potencial de danosidade material, pessoal e social. Tal exclusão, mostrando-se, por um lado, compreensível/adequada face a esse menor potencial de danosidade, não impede, por outro lado, a realização de seguros facultativos, que cubram/garantam a responsabilidade civil perante a condução de velocípedes sem motor, matéria que fica ao abrigo do princípio da liberdade contratual (art.º 405.º do CCiv.)”.