Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B2198
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: DIREITO AO REPOUSO
CONSTITUIÇÃO
CONFLITO DE DIREITOS
Nº do Documento: SJ200709130021987
Data do Acordão: 09/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
1. O repouso e o sossego que cada pessoa necessita de desfrutar no seu lar para se retemperar do desgaste físico e anímico que a vida no seu dia a dia provoca no ser humano é algo de essencial a uma vida saudável, equilibrada e física e mentalmente sadia.
O direito ao repouso, ao sossego e ao sono são uma emanação da consagração constitucional do direito à integridade física e moral da pessoa humana e a um ambiente de vida sadio, constituindo, por isso, direitos de personalidade e com assento constitucional entre os Direitos e Deveres Fundamentais.

2. A nossa lei fundamental concede uma maior protecção jurídica a estes direitos do que aos direitos de índole económica, social e cultural, havendo entre eles uma ordem decrescente de valoração.
E na lei ordinária existe um dispositivo que expressamente manda dar prevalência, em caso de conflito de direitos, àquele que for considerado superior –nº 2 do art. 335º C.Civil.

3. Ainda que durante o período diurno o nível de ruído induzido pela actividade desenvolvida no estabelecimento da ré continue a ser elevado, esse ruído de fundo, por força da actividade associada a todo o bulício citadino diário, esbate-se bastante, estando a pessoa humana habituada a conviver com outros níveis sonoros durante o dia.
Nesta medida e numa perspectiva de razoabilidade e de consideração dos direitos em causa, afigura-se que a laboração do estabelecimento da ré já não deve cessar quando não colida com aqueles direitos, de natureza superior.
A limitação do horário de funcionamento do estabelecimento constitui uma medida eficaz e adequada para defesa dos direitos dos autores e permite compatibilizar o conjunto dos direitos em jogo.
Tem-se como adequada a medida de limitar o fecho do estabelecimento ao horário nocturno, entre as 22 h e as 7 h, tal como demarcado no Regulamento Geral do Ruído (aprovado pelo Dec-Lei 292/00, de 14 Novembro, então em vigor), coincidente com o período em que as pessoas habitualmente repousam e dormem, assim recuperando física e psiquicamente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório


"AA" e mulher BB, intentaram a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra Empresa-A, pedindo que seja condenada a:
- encerrar imediatamente o seu estabelecimento comercial de fabrico e venda de pão;
- pagar-lhes a quantia global de 26.000,00 € pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por eles sofridos, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento; e
- pagar ainda a quantia mensal de 300,00 € à autora mulher e de 250,00 € ao autor marido, enquanto se mantiver em funcionamento o estabelecimento, acrescidas de juros desde o final do mês respectivo até integral pagamento.

Fundamentam, sinteticamente, esta sua pretensão no facto da ré manter em laboração o seu estabelecimento de indústria de panificação e de venda dos respectivos produtos sem as necessárias condições de insonorização, o que se reflecte na sua habitação situada mesmo por cima desse estabelecimento, afectando-os no seu sistema nervoso, no seu descanso e viver diários, com reflexos na sua capacidade de trabalho.
Com base nos incómodos que esta situação lhes acarreta encontram o montante peticionado.

Contestou a ré para, no essencial, alegar que todos os ruídos que poderiam repercutir-se na casa dos autores foram suprimidos, deixando de aí se fazerem sentir as consequências nefastas por si invocadas como provenientes do seu estabelecimento.

Replicaram os autores para defenderem que, não obstante as medidas tomadas pela ré, a incomodidade provocada pelos níveis de ruído emanados do estabelecimento se mantêm.

Saneado o processo e fixados os factos que se consideraram assentes e os controvertidos, teve lugar, por fim, a audiência de discussão e julgamento.
Na sentença, subsequentemente proferida, foi a acção julgada parcialmente procedente e a ré condenada:
a) a não praticar qualquer tipo de laboração que não seja desenvolvida por máquinas automáticas nas suas instalações de fábrica de pão e pastelaria e nas suas instalações de estabelecimento de café/padaria/pastelaria, bem como a manter fechadas tais instalações a trabalhadores e público consumidor, tudo entre as 22 horas e as 7 horas;
b) a pagar 12.500,00 € a cada autor, verba a que acrescerão juros à taxa legal após o dia do trânsito em julgado da sentença;
c) a pagar sanção pecuniária compulsória a partir do dia do trânsito em julgado da sentença no montante diário de 33,20 €, verba que reverte na proporção de metade para o Estado e na proporção de um quarto para cada um dos autores, sendo devida em cada dia que laborar ou permitir a entrada de trabalhadores ou público consumidor nas suas instalações entre as 22 e as 7 horas.

Inconformados quanto ao assim decidido, apelaram autores e ré, tendo o Tribunal da Relação do Porto julgado improcedente o recurso dos autores e parcialmente procedente o da ré e, consequentemente, revogado o segmento da sentença que a condenara ao pagamento da sanção pecuniária compulsória e a condicionar a não laboração temporária determinada na al. a) à execução de obras de insonorização que eliminem totalmente a produção de ruído na fracção dos autores acima dos níveis permitidos por lei.

De novo irresignados, recorrem agora de revista para este Tribunal, fazendo-o subordinadamente a ré, pugnando aqueles pela procedência total da acção e insurgindo-se esta quanto ao valor da indemnização arbitrada pelos danos não patrimoniais e quanto à proibição temporária de funcionamento da secção de venda do estabelecimento.

Contra-alegaram os recorridos em defesa da improcedência dos recursos interpostos.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir

II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, com que rematam as suas alegações, o inconformismo dos recorrentes radica, em síntese, no seguinte:

autores

1- A proibição de laboração da recorrida entre as 22h e as 07h nos termos decididos no acórdão recorrido não assegura eficazmente a defesa do direito à integridade física e moral dos recorrentes.

2- No caso dos autos, apenas o encerramento imediato, até que sejam efectuadas obras de insonorização e isolamento no estabelecimento que salvaguardem o cumprimento dos limites legais de incomodidade, garantiriam quer a eficaz protecção dos direitos dos recorrentes quer a repressão eficaz da violação da legalidade por parte da recorrida.

3- Ao não se decretar tal medida está-se a violar, além do disposto nos art.°s 70° do CC e 25° e 202º da CRP.

4- Ao não se condenar a recorrida nos danos futuros violou-se o disposto no art. 564°, n° 2, do CC, já que tais danos são previsíveis.

5- Ao não decidir a partir de quando são devidos os juros, o acórdão recorrido cometeu omissão de pronúncia prevista no art.° 668°, n.1, al. d)C.Pr.Civil.

6- A apelação dos recorrentes nunca poderia ter sido julgada improcedente na totalidade já que deu total provimento à 2ª das conclusões da sua alegação.



1- Por estarem excessivamente avaliados, devem ser fixados em não mais de metade do montante encontrado os valores atribuídos pelas instâncias a título de danos não patrimoniais.

2- Não se tendo provado que do funcionamento do estabelecimento comercial no rés do chão resultava agravamento do ruído excessivo produzido com o funcionamento na cave do estabelecimento industrial de panificação não se justifica a proibição de funcionamento daquele estabelecimento comercial após a hora da sua abertura normal -06 horas até às 07 horas-, como foi decidido.


B- Face ao teor das conclusões formuladas, delimitativas do âmbito do recurso, as questões controvertidas a dilucidar reconduzem-se essencialmente às seguintes:

autores
- nulidade do acórdão por omissão de pronúncia;
- encerramento imediato do estabelecimento;
- indemnização pelos danos futuros.


- quantificação dos danos não patrimoniais;
- proibição temporária de funcionamento da actividade exclusivamente comercial.

III. Fundamentação

A- Os factos

No acórdão recorrido deram-se como assentes os seguintes factos:

1- Os autores são donos e legítimos proprietários da fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao 1° andar esquerdo e garagem número dez do prédio urbano sito na Rua de São Bento da Batalha, constituído em regime de propriedade horizontal, inscrito na matriz urbana sob o artigo 4511° e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n° 01349/270794.

2- Tal fracção encontra-se registada a favor dos autores pela inscrição G 1, fracção que eles habitam.

3- A ré é uma sociedade comercial que se dedica à indústria de panificação, explorando, pelo menos, um estabelecimento comercial e a sua sede situa-se na cave e rés do chão, que correspondem à fracção “B”, do mesmo prédio onde habitam os autores.

4- A parte da indústria de panificação situa-se na cave do prédio e no rés-do-chão funciona o estabelecimento comercial.

5- Este estabelecimento situa-se imediatamente por debaixo da residência dos autores.

6- A ré, na indústria de panificação, utiliza, pelo menos, um forno, uma batedeira, uma amassadeira e um frigorífico, todos instalados na cave.

7- E no estabelecimento comercial tem, pelo menos, um exaustor e um moinho de café.

8- A autora exerce a profissão de ama de crianças de tenra idade na sua residência.

9- O autor exerce a profissão de funcionário administrativo na Câmara Municipal de Santo Tirso.

10- Ambos trabalham durante o período diurno.

11- A ré instalou a indústria de panificação no local a que se alude em 3 no primeiro semestre de 1996.

12- Para além das máquinas a que se alude em 6 e 7, a ré ainda utiliza uma câmara frigorífica inserida no balcão de atendimento ao público, ao nível do rés do chão, câmara essa que, tal como a câmara frigorífica da cave, identificada na alínea 4 como frigorífico, está associada a seis compressores de frio, com exaustor, instalados em recinto separado da cave, utilizando também uma divisora de massa de pão, tudo equipamentos industriais.

13- Na cave, a ré tem instalados os seis compressores de frio, associados a um exaustor, num armazém, funcionando os compressores de forma alternada, mas sempre com, pelo menos, um em funcionamento.

14- A ré inicia a sua laboração pelas 4 horas da madrugada, sendo que em épocas festivas chega a trabalhar toda a noite.

15- Desde as 4 horas as máquinas amassadeira, divisora de pão e batedeira são ligadas, gerando quer essas máquinas, quer outros trabalhos de maneio de outros objectos por um padeiro e por um pasteleiro, ruídos e vibrações que acordam os autores e os impedem de retomar o sono e o seu descanso.

16- Desde as 4 horas em diante, o ruído sentido no quarto de dormir dos autores tem a média corrigida de 30,2 decibéis A, ao passo que na sala da sua casa a média corrigida é de 29,8 decibéis A, com excesso, respectivamente, de 9,1 decibéis A e 8,7 decibéis A em relação ao ruído que se ouviria nas mesmas divisões até às sete horas se nas instalações da ré não se executassem trabalhos na cave e no rés do chão.

17- Na média corrigida de ruído de 30,2 decibéis A e 29,8 decibéis A supra referida estão englobados ruídos impulsivos e tonais gerados pelo maneio de tabuleiros, pás e outros objectos usados pelo padeiro e pasteleiro.

18- Desde as 4 horas executam-se tarefas de enfornamento e desenfornamento de pão e bolos.

19- Às 6 horas abre ao público o estabelecimento da ré situado no rés do chão, estabelecimento de café e de venda de pão e bolos, o qual gera ruídos diferentes dos que são gerados na cave mas, ainda assim, englobados na média corrigida de 30,2 e 29,8 decibéis A referida em 16.

20- Em ocasiões raras o alarme contra intrusão da fracção da ré funcionou durante horas sem motivo aparente, isso de noite e antes das 4 horas, só sendo desligado a essa hora.

21- Em consequência directa e necessária dos ruídos e vibrações produzidos no estabelecimento, os autores vêem-se impossibilitados, pelo menos, desde há cerca de 6 anos, de dormir, descansar e recuperar as forças essenciais a mais um dia de trabalho, o que lhes provoca dores de cabeça, cansaço, tonturas e insónias constantes, afectando o seu sistema nervoso e provocando-lhes perturbações do foro psico-emocional e neurovegetativo.

22- Estado este que se vem agravando e que obriga os autores a terem de tomar, há já algum tempo, medicação específica, nomeadamente soníferos, anti depressivos, etc, no que têm despendido uma quantia mensal média de 50,70 € para o autor e 59,80 € para a autora, situação esta que lhes afecta a capacidade de trabalho, na medida em que os tornou facilmente irritáveis, nervosos, com dificuldades de relacionamento com os outros, bem como diminuição da sua capacidade de concentração.

23- O que é particularmente grave par a autora, atendendo a que, enquanto ama, tem a seu cargo crianças, o que lhe exige especiais cuidados.

24- Nenhuma das máquinas que produzem vibrações está, actualmente, encostada a qualquer parede.

25- Tanto a cave como o rés-do-chão têm tectos construídos por placas de betão pré-esforçado e existem duas placas antes do l ° andar.

26- O pavimento da cave assenta directamente na terra, é compacto, não estando suspenso nem apoiado, pelo que não tem qualquer caixa de ressonância.

27- A ré contactou a “Empresa-B.” para proceder ao estudo e análise da situação e efectuar as obras e alterações que fossem adequadas.

28- Nesse estudo foram detectadas as fontes possíveis da poluição sonora, constatando-se que seriam diferentes para a sala dos autores e para o quarto destes.

29- Um anuário de frio panorâmico foi desactivado.

30- A envolver os seis compressores de frio referidos em 13, a ré colocou absorvente de som em tecto e paredes sitas muito próximo desses compressores, tal como septos paralelos que absorvem som, estes na abertura de ventilação que se situa muito próxima dos compressores e que os liga, com a ajuda de um exaustor, ao exterior do prédio, estrutura que atenua, de forma substancial, o ruído dessa fonte que sai para o exterior do prédio.

31- A amassadeira e divisora da massa de pão têm apoios elásticos que atenuam a propagação de vibrações e ruídos pelo chão.

32- O prédio onde se situa a habitação dos autores e em que a ré exerce a sua actividade está localizado à margem de uma rua que dá acesso a várias empresas industriais, tendo duas ou três dessas empresas funcionamento nocturno.

33- Na rua citada passam de noite e de madrugada pessoas a pé, de motorizada e veículos, bem como raros camiões.

34- As pessoas e veículos que passam na rua produzem ruído que se integra no ruído de fundo que foi ponderado em 16, ruído específico aquele que tem natureza impulsiva, mas que só raramente estabelece incómodo para os autores.
B- O direito

1. nulidade do acórdão

1.1- Sustentam os autores/recorrentes que o acórdão recorrido não se pronunciou e não fixou o momento a partir do qual são devidos os juros moratórios relativamente à quantia arbitrada a título de indemnização, limitando-se a decidir que não podem ser devidos desde a citação.
Só uma leitura menos atenta do acórdão pode levar a concluir que houve omissão de pronúncia sobre esta questão.
Apreciando a questão do momento temporal a partir do qual os juros eram devidos, ancorou-se o acórdão recorrido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 9 de Maio de 2002 para concluir que os juros não se poderiam reportar ao momento da citação já que, na sentença, se referiu expressamente que a indemnização arbitrada se reportava a esse momento e, assim, negar razão à pretensão dos recorrentes que pretendiam reportar esse momento à data da citação.
E ao negar-lhes razão nesta questão, manteve o decidido na 1ª instância, como, aliás, expressamente se consignou na parte dispositiva – manter a sentença recorrida quanto à condenação da Ré a pagar, a título de indemnização, a quantia de € 12.500,00 a cada um dos Autores e respectivos juros-, com os juros a serem devidos a partir da trânsito em julgado da sentença.

Pronunciou-se o acórdão recorrido expressamente sobre esta questão controvertida e fixou o momento a partir do qual os juros eram devidos.
Não enferma, por isso, do vício de omissão de pronúncia que lhe é assacado.

1.2- Defendem ainda os recorrentes, no campo puramente processual, que o acórdão recorrido não poderia ter julgado totalmente improcedente a apelação porquanto até sustentaram, nas alegações de recurso, que a sanção pecuniária compulsória, porque não reclamada, não poderia ter sido arbitrada, solução que o acórdão acolheu.
Os recorrentes não extraem qualquer conclusão deste proceder, pelo que a simples alegação desta situação processual se apresenta inócua.
Depois, quem verdadeiramente atacou este segmento da sentença da 1ª instância foi a ré/recorrente, única afectada com o teor dessa decisão. E foi esta oposição, deduzida por quem tinha ficado vencido e, como tal, com legitimidade para o efeito, que levou à revogação desse segmento decisório.
Mas o que os recorrentes pretendiam era ver substituída a sanção pecuniária compulsória por uma indemnização mensal enquanto se mantivesse em laboração o estabelecimento, pretensão que não obteve acolhimento.
Logo, o recurso interposto improcedeu totalmente, como devia.


2. encerramento imediato do estabelecimento

No acórdão recorrido condenou-se a ré a não desenvolver qualquer tipo de laboração que não seja desenvolvida por máquinas automáticas nas suas instalações de fábrica de pão e pastelaria e nas suas instalações de estabelecimento de café/padaria/pastelaria … bem como a manter fechadas tais instalações a trabalhadores e público consumidor, entre as 22 e as 7 horas, enquanto não executar obras de insonorização que eliminem totalmente a produção de ruído na fracção dos Autores acima dos níveis permitidos por lei.
Sustentam, porém, os autores/recorrentes que esta proibição de laboração temporária não defende eficazmente o seu direito à integridade física e moral, o que só se alcançará com o encerramento imediato do estabelecimento até que as obras de insonorização e isolamento lhes garantam esses direitos fundamentais.

A Constituição da República, dando acolhimento e em consonância com o preceituado na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 24º) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 8º), determina que a integridade moral e física das pessoas é inviolável (art. 25º, nº 1) e que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado (art. 66º, nº 1).
Também, por sua vez, o nº 1 do art. 70º C.Civil preconiza que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua integridade física ou moral.
O repouso e o sossego que cada pessoa necessita de desfrutar no seu lar para se retemperar do desgaste físico e anímico que a vida no seu dia a dia provoca no ser humano é algo de essencial a uma vida saudável, equilibrada e física e mentalmente sadia.
O direito ao repouso, ao sossego e ao sono são uma emanação da consagração constitucional do direito à integridade física e moral da pessoa humana e a um ambiente de vida sadio, constituindo, por isso, direitos de personalidade e com assento constitucional entre os Direitos e Deveres Fundamentais.
E a nossa lei fundamental concede uma maior protecção jurídica a estes direitos do que aos direitos de índole económica, social e cultural, havendo entre eles uma ordem decrescente de valoração.
Como se afirma no ac. do S.T.J., de 98/10/22 (1), a personalidade humana é, verdadeiramente, a estrutura base dos direitos do homem, já que é sobre ela que assentam todos os demais direitos, nomeadamente os de natureza e carácter diferente. Daí que em caso de conflito entre estes direitos de base e outros prevaleçam aqueles que, hierarquicamente, são superiores por serem de espécie dominante.
Na lei ordinária existe um dispositivo que expressamente manda dar prevalência, em caso de conflito de direitos, àquele que for considerado superior - nº 2 do art. 335º C.Civil.

No caso vertente, temos, que devido ao funcionamento das máquinas utilizadas no fabrico de pão e pastelaria no estabelecimento da ré, bem como ao maneio de outros objectos relacionados com esta actividade, a habitação dos autores passou a ficar sujeita a ruídos e vibrações que os acordam e impedem de retomar o sono e o normal descanso. Desde meados de 1996 que os autores não conseguem dormir e repousar normalmente. Não retemperam energias, vivem num estado de perturbação físico e mental constante, com alterações do foro psico-emocional e neurovegetativo, tendo de se socorrer de medicação específica.
É um facto, aliás não contestado pelas partes, que o seu direito à integridade física, ao repouso e ao sono, imprescindível à recuperação fisiológica de todo o ser humano para se poder ter uma vida saudável e equilibrada, está posto em causa pela actuação da ré.

Mas esta perturbação física e mental está factualmente assente que apenas decorre da laboração do estabelecimento da ré durante o período nocturno, sendo, aliás, a esse período que se reportam fundamentalmente as queixas dos autores, nele ancorando o estado de mal estar que os vem afectando.
Ainda que durante o período diurno o nível de ruído induzido pela actividade desenvolvida no estabelecimento da ré continue a ser elevado, esse ruído de fundo, por força da actividade associada a todo o bulício citadino diário, esbate-se bastante, estando a pessoa humana habituada a conviver com outros níveis sonoros durante o dia.

Nesta medida e numa perspectiva de razoabilidade e de consideração dos direitos em causa, afigura-se que a laboração do estabelecimento da ré já não deve cessar quando não colida com aqueles direitos, de natureza superior, dos autores. Como afirma Capelo e Sousa (2), mesmo o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses.
A limitação do horário de funcionamento do estabelecimento constitui uma medida eficaz e adequada para defesa dos direitos dos autores e permite compatibilizar o conjunto dos direitos em jogo.
Limitando o fecho ao horário nocturno, entre as 22 h e as 7 h, tal como demarcado no Regulamento Geral do Ruído (aprovado pelo Dec-Lei 292/00, de 14 Novembro, então em vigor), coincidente com o período em que as pessoas habitualmente repousam e dormem, assim recuperando física e psiquicamente, tem-se como adequada a medida adoptada no acórdão recorrido.


3. indemnização pelos danos futuros

Reclamam os autores/recorrentes a atribuição de indemnização por danos futuros, a partir da sentença de 1ª instância e enquanto perdurar a laboração do estabelecimento em termos de os afectar no seu direito ao repouso.

O direito à indemnização abrange não só os danos causados (prejuízos sofridos e benefícios deixados de auferir) como os danos futuros, desde que previsíveis - art. 564º C.Civil.
Mas os danos futuros passíveis de ressarcimento terão de ser previsíveis com segurança bastante e assumir um grau de certeza que os equipare ao dano certo, não podendo ser contemplados os meramente hipotéticos.

Na situação em apreço, entendeu-se que a proibição de laboração nocturna do estabelecimento da ré era suficiente para assegurar a defesa dos direitos dos autores e, como tal, decretou-se essa medida.
A partir de então e enquanto não executar as obras de insonorização necessárias à eliminação do ruído que afecta a fracção dos autores, está vedado à ré continuar a laborar durante esse período.
Ora e como bem se observa no acórdão recorrido, só se a ré violar essa determinação é que poderá incorrer em responsabilidade para com os autores pelos danos daí decorrentes. Mas esta é uma situação meramente hipotética que, por isso mesmo, não assume virtualidade para poder ser contemplada como dano futuro e, como tal, passível de indemnização.

4. quantificação dos danos não patrimoniais

A ré/recorrente não põe em causa a obrigação de indemnizar os autores por todos os incómodos que a sua actuação lhes provocou. Apenas questiona o montante arbitrado a esse título.

Efectivamente, os autores vêem-se impossibilitados, desde há cerca de 6 anos, de dormir e descansar convenientemente e recuperar das suas actividades diárias. E esta situação tem-lhes provocado dores de cabeça, cansaço, tonturas e insónias constantes, afectando o seu sistema nervoso e provocando-lhes perturbações do foro psico-emocional e neurovegetativo. E este estado tem-se agravado, tornando-os dependentes de medicação específica, nomeadamente soníferos e anti-depressivos, afectando-lhes a capacidade de trabalho por os tornar facilmente irritáveis, nervosos, com dificuldades de relacionamento com os outros, bem como diminuição da sua capacidade de concentração.
Este factualismo, além de evidenciar os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, consubstancia indubitavelmente uma lesão e lesão grave de bens imateriais dos autores, juridicamente tutelados.
Precisamente por assumirem uma especial gravidade, nos termos do nº 1 do art. 496º C.Civil justificam a concessão de uma satisfação de natureza pecuniária.

O n.° 3 do citado artigo 496.° manda fixar o montante da indemnização por danos não patrimoniais de forma equitativa, ponderadas as circunstâncias mencionadas no art. 494º do mesmo diploma.
A sua apreciação deve ter em consideração a extensão e gravidade dos prejuízos, bem como o grau de culpabilidade do responsável, sua situação económica e do lesado e demais circunstâncias do caso.
Como escreveu Vaz Serra (3), a satisfação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, visto não ser um equivalente do dano, tratando-se antes de atribuir ao lesado uma satisfação ou compensação que não é susceptível de equivalente. É, assim, razoável que no seu cálculo se tenham em atenção, além da natureza e intensidade do dano causado, as outras circunstâncias do caso concreto que a equidade aconselha sejam tomadas em consideração e, em especial, a situação patrimonial das partes e o grau de culpa do lesante.

Nas instâncias fixou-se essa indemnização em 10.000,00 € para cada um dos autores.
Contra este montante insurge-se a ré, sustentando que a natureza dos danos sofridos pela lesada, bem como os padrões jurisprudencialmente adoptados impõem que a sua quantificação não exceda metade desse montante.

As consequências advindas para os autores da actuação da ré são, sem dúvida, muito gravosas.
Basta atentar que, há cerca de seis anos, não conseguem repousar convenientemente, vendo o sono constantemente interrompido, com perturbações graves a nível do sistema nervoso e reflexos no relacionamento social, estando dependentes de medicação para ultrapassar este estado depressivo.
Considerando tudo isso e a natureza do acto ilícito praticado pela ré, bem como os padrões jurisprudencialmente adoptados, temos como equilibrada e equitativa a indemnização de 10.000,00 € arbitrada como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos autores.

5. proibição de funcionamento da secção comercial do estabelecimento

A ré/recorrente vem argumentar que não há justificação para decretar a proibição de funcionamento da parte comercial do estabelecimento antes das 7 h, porquanto o funcionamento dessa secção não traz qualquer acréscimo de ruído que agrave a situação já verificada com a laboração da parte industrial.

Respeitante a esta questão ficou assente que o estabelecimento de café e de venda de pão e bolos situado no rés do chão gera ruídos diferentes dos que são gerados na cave mas, ainda assim, englobados na média corrigida de 30,2 e 29,8 decibéis A, os quais excedem em 9,1 decibéis A e 8,7 decibéis A o ruído que se ouviria até às sete horas se nas instalações da ré não se executassem trabalhos na cave e no rés do chão.
Daqui decorre que também a parte comercial do estabelecimento é fonte autónoma de ruído, ruído esse que se repercute, em termos elevados, na casa dos autores, assim contribuindo para toda aquela vivência negativa por que eles passaram.
A permitir-se a laboração deste estabelecimento, situado imediatamente por baixo da casa dos autores, antes das 7 h, ou seja, ainda durante o período nocturno, seria criar as mesmas condições que lhes provocaram todas aquelas sequelas nefastas que sofreram.
Carece, por isso, de total fundamento esta pretensão da recorrente.

IV. Decisão

Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em negar as revistas.

Custas pelos recorrentes, em relação ao respectivo recurso.

Lisboa, 13 de Setembro de 2007

Alberto Sobrinho
Maria dos Prazeres Beleza
Salvador da Costa
---------------------------------------------------

(1) in B.M.J., 480º-417
(2) in O Direito Geral de Personalidade, pág. 549
(3) in R.L.J., Ano 113º, pág. 104