Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5429/11.6YYPRT-C.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: ARRENDATÁRIO
FIADOR
FIANÇA
ÂMBITO
LIBERDADE CONTRATUAL
Data do Acordão: 03/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / ARRENDAMENTO URBANO.
Doutrina:
- Gravato de Morais, “Fiador do Locatário”, na Scientia Iuridica, nº 309º, pp. 97 e segs..
- Januário Gomes, “Fiança do arrendatário face ao NRAU”, em Estudos em Honra do Prof. Oliveira Ascensão, vol. II, pp. 976, 979, 980 e 988.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, 655.º, N.º2.
NRAU: - ARTIGO 59.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 23-4-1990, BMJ, 396º/388
-DE 12-10-2006, PROCESSO N.º 1783/06, SUM. AC., WWW.STJ.PT
-DE 12-11-2009, WWW.DGSI.PT
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
-DE 19-12-2006, 20-1-2011, DE 12-7-2007, DE 20-1-2005 E DE 7-12-2005, TODOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT.
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 19-2-2002 E DE 3-4-2006, ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 30-3-2009 E DE 26-4-2005, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :

1. Apesar de o art. 655º, nº 2, do CC, ter sido revogado pelo NRAU, o regime relativo à fiança do arrendatário nele previsto continua a aplicar-se às declarações de fiança anteriormente prestadas, designadamente quanto à duração da garantia.

2. Condicionando tal preceito a extensão da fiança para além do período de 5 anos posterior ao da primeira renovação do contrato de arrendamento à fixação do número de períodos de renovação, tal regime prevalece sobre a cláusula segundo a qual a fiança abarcaria as “obrigações emergentes do contrato de arrendamento quer pelo seu período inicial, quer pelas suas renovações”, mantendo-se “mesmo após o decurso do prazo de 5 anos sobre a 1ª renovação”.

3. Atento o condicionalismo previsto no art. 655º, nº 2, do CC, tal cláusula nem define o número de períodos de renovação do contrato de arrendamento em que a fiança se manteria, nem pode ser considerada como “nova convenção” susceptível de alargar o período de duração da responsabilidade do fiador.

A.G.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. MARIA … e E. …deduziram oposição à execução que lhes foi movida por I. pedindo a extinção da execução ou, pelo menos, a redução da quantia exequenda.

Alegaram que a fiança que prestaram à sociedade arrendatária está extinta desde 1-6-09, por força do art. 655º, nº 2, do CC, que na data estava em vigor. Além disso, não se mostram devidos os montantes respeitantes à penalização de 50% do valor das rendas relativas aos meses de Julho de 2009 a Janeiro de 2011.Por outro lado, a não entrega do locado pela executada, após a resolução contratual, fez incorrer a arrendatária em responsabilidade extracontratual, não abarcando a fiança a indemnização correspondente ao dobro das rendas.

A exequente contestou, alegando que os oponentes prestaram fiança a favor da exequente, tendo querido obrigar-se não apenas pelo período inicial mas também por todas as renovações, incluindo aquelas que viessem a ocorrer após o decurso do prazo de 5 anos sobre a 1ª renovação. Alegou ainda que a fiança abarca as obrigações do arrendatário até efectiva entrega do locado e que o art. 655º do CC não é aplicável no presente caso, por ter sido revogado.

Foi proferida sentença que julgou procedente a oposição e extinta a execução quanto aos oponentes, mas a Relação, no âmbito do recurso de apelação interposto pela exequente, determinou o seu prosseguimento relativamente às rendas em singelo devidas desde Junho de 2009 até à entrega do locado.

Os oponentes vieram interpor recurso de revista no qual se suscitam as seguintes questões:

a) Apurar se, apesar de o NRAU ter revogado o art. 655º do CC, o regime que consta do nº 2 ainda continua a aplicar-se às declarações de fiança do arrendatário que anteriormente foram subscritas;

b)Decidir se, por via de tal preceito, a responsabilidade dos fiadores recorrentes apenas abarca as obrigações contratuais limitadas ao período de 5 anos depois da 1ª renovação, isto é, até 1-6-08, sobrepondo-se à cláusula da fiança que se estendia para além desse período;

c)Apreciar, eventualmente, se, em razão da indeterminabilidade temporal da fiança, esta é nula e se a responsabilidade dos fiadores é limitada às rendas propriamente ditas ou se abarca também os quantitativos que, a título de indemnização, sejam devidos ao senhorio depois de declarada a resolução do contrato, até à entrega do locado, nos termos do art. 1045º, nº 1, do CC.

2. Para a apreciação das questões são relevantes os seguintes factos:

- Em 31-5-02 a exequente deu de arrendamento à sociedade S …– Investimentos Hoteleiros, S.A., um prédio urbano, para o exercício da actividade comercial, pelo prazo de um ano, com início no dia 1/6/02, renovável por iguais e sucessivos períodos de tempo;

- No referido contrato foi inserida uma cláusula mediante a qual os ora oponentes e outros fiadores assumiam a responsabilidade solidária pelo cumprimento de todas as obrigações emergentes do contrato de arrendamento, quer pelo seu período inicial, quer pelas suas renovações, fiança que se manteria não obstante as alterações de rendas e mesmo após o decurso do prazo de 5 anos sobre a 1ªrenovação; a fiança prestada duraria enquanto a 2ª outorgante (a locadora) não restituísse o prédio arrendado, livre e desembaraçado de pessoas e coisas, em perfeitas condições de conservação, e passível de pronta ocupação e uso, após vistoria e aceitação pela primeira outorgante.

- Por notificação judicial avulsa operada em 26/1/11, a exequente locadora procedeu à comunicação da resolução do referido contrato de arrendamento, tendo por base a falta do pagamento das rendas devidas por período superior a 3 meses;

- Subsequentemente instaurou a presente execução com vista ao pagamento das seguintes quantias, num total de € 139.210,06:

- € 39.634,24 – penalização de 50% do valor das rendas vencidas entre 1/6/09 e 1/9/10, e relativas aos meses compreendidos entre Julho/2009 e Outubro/2010, a título de indemnização por mora;

- € 48.292,80 – rendas vencidas e não pagas entre 1/10/10 e 1/7/11, e relativas aos meses de Novembro/2010, Dezembro/2010, Janeiro/2011, Fevereiro/2011, Março/2011, Abril/2011, Maio/2011, Junho/2011, Julho/2011 e Agosto/2011;

- € 48.292,80 – penalização de 50% do valor das rendas vencidas e não pagas entre 1/10/10 e 1/7/11, relativas aos meses de Novembro/2010, Dezembro/2010, Janeiro/2011, Fevereiro/2011, Março/2011, Abril/2011, Maio/2011, Junho/2011, Julho/2011 e Agosto/2011, e a título de indemnização por mora;

- € 2.382,85 – juros de mora, calculados sobre o capital de € 60.451,36 peticionado na notificação judicial avulsa dada à execução e

- € 607,37 – juros de mora computados sobre todas as rendas vencidas e não pagas até à data da apresentação do requerimento inicial do processo de execução.

3.A cláusula de fiança segundo a qual os oponentes assumiram o cumprimento de todas as obrigações emergentes do contrato de arrendamento relativas ao período inicial e sua renovações, mesmo após o decurso do prazo de 5 anos sobre a 1ª renovação foi convencionada numa ocasião em que ainda estava em vigor o art. 655º do CC, cujo nº 2 previa que, “obrigando-se o fiador relativamente aos períodos de renovação, sem limitar o número destes, a fiança extingue-se, na falta de nova convenção, logo que … decorra o prazo de 5 anos sobre o início da primeira renovação”.

Consideram os recorrentes que tal cláusula colide com este preceito, o qual deve prevalecer, considerando-se extinta a responsabilidade emergente da fiança em 1-6-08 (5 anos depois da 1ª renovação anual que ocorreu em 1-6-03).

4. A primeira observação que deve ser feita, com interesse para a matéria em litígio, é que, apesar da revogação do art. 655º do CC pelo NRAU, o preceituado no nº 2 continua a aplicar-se aos contratos de arrendamento anteriormente outorgados, em função do que se dispõe no art. 59º, nº 1, do NRAU, em conjugação com o disposto no art. 12º do CC.

Esta é, aliás, a solução também defendida por Januário Gomes, em “Fiança do arrendatário face ao NRAU”, em Estudos em Honra do Prof. Oliveira Ascensão, vol. II, págs. 976, 979 e 988, onde refere que, “apesar de formalmente revogado, o regime do art. 655º continuará a ter aplicação às situações constituídas na sua vigência”, uma vez que “a apreciação do risco fidejussório deve ser aferida em função do momento genético da constituição da fiança” (pág. 980).

Sendo a fiança constituída ao abrigo de um regime legal que regulava o âmbito da responsabilidade, se acaso se vier a concluir que aquele preceito legal se sobrepunha à referida cláusula, restringindo aquela responsabilidade, tal prevalência deve ainda ser considerada, malgrado a sua posterior revogação.

Por conseguinte, para delimitar o âmbito da responsabilidade dos oponentes fiadores não podemos atender apenas à aludida cláusula, antes devemos conjugá-la com o que, na data da outorga do contrato, dispunha o art. 655º, nº 2, do CC, acerca da amplitude da fiança.

Procede, assim, nesta parte, a alegação dos fiadores recorrentes.

3.Mas qual o regime que emergia do revogado art. 655º, nº 2, do CC?

Trata-se de uma questão cuja resposta não é evidente, como bem o revela a descrição da polémica que em seu redor se gerou e que vem descrita e ilustrada no referido estudo de Januário Gomes.

Tal polémica era transversal na doutrina e na jurisprudência, suscitada pela redacção do preceito que levantava objectivas dúvidas de interpretação.

Defendiam uns a sua natureza puramente supletiva, de tal modo que seria legítimo às partes estabelecer um regime inteiramente autónomo sem limites temporais definidos quanto à amplitude da fiança.

Outros, ao invés, advogavam que, apesar de ser legítimo convencionar a vinculação do fiador para além do período de 5 anos posterior à 1ª renovação do contrato, tal vinculação deveria submeter-se ao condicionamento previsto em tal preceito. Neste contexto, a perduração da fiança para além do período de 5 anos depois da 1ª renovação do contrato exigiria ou a indicação precisa na declaração inicial do “número de renovações” (ou, ao menos, a indicação do “período contratual” abarcado) ou a outorga de “nova convenção” de fiança.

4. Na encruzilhada de decisões, argumentos e opiniões é esta a solução que nos parece mais ajustada, por melhor corresponder ao texto legal, ao historial do preceito e à sua razão de ser, apontando para a necessidade de se fixar o número de renovações contratuais a que o fiador se vinculava, sob pena de a fiança se extinguir decorrido o prazo de 5 anos a contar a 1ª renovação.

Tal solução colhia e ainda colhe maior aceitação a nível jurisprudencial, revelada mais recentemente no Ac. do STJ, de 12-11-09 (www.dgsi.pt), no qual se assumiu a sobreposição do regime limitador do nº 2 do art. 655º do CC a uma declaração em que o fiador se responsabilizara “pelas obrigações da arrendatária durante o prazo do presente contrato e suas prorrogações”, solução que já fora enunciada anteriormente nos Acs. do STJ, de 23-4-90 (BMJ, 396º/388) e de 12-10-06, na Revista 1783/06, Sum. Ac., www.stj.pt.

Constatando-se que a matéria do arrendamento (e da fiança do arrendatário) era essencialmente abordada no âmbito dos recursos de apelação, também era e é nesse mesmo sentido a jurisprudência maioritária das Relações, como bem o revelam os Acs. da Rel. de Lisboa, de 20-1-11, de 12-7-07 (este relatado pelo agora Cons. Salazar Casanova), de 20-1-05 e de 7-12-05, e os Acs. da Rel. do Porto, de 19-2-02, e de 3-4-06, e todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Ademais, era esta também a tese defendida por Januário Gomes, na cit. obra, págs. 979 e segs., com larga argumentação e ilustração doutrinal e jurisprudencial.

5. Na verdade, a possibilidade de fundar na declaração inicial de fiança a responsabilidade do fiador para além de tal período apenas ganha sentido, sem contradizer o preceito, se nessa declaração se previsse o número de renovações tidas em vista ou se existisse uma nova declaração de fiança que traduzisse a reafirmação da responsabilidade do fiador, depois de feita a avaliação do risco emergente da prestação da garantia a favor do arrendatário.

Já se disse que a resposta a tal questão não era uniforme, nem na jurisprudência, nem na doutrina, tendo optado pela solução inversa o Ac. da Rel. de Lisboa, de 19-12-06 e os Acs. da Rel. do Porto, 30-3-09 e de 26-4-05 (todos em www.dgsi.pt).

Tese que foi secundada por Gravato de Morais segundo o qual o art. 655º, nº 2, do CC, tinha carácter inteiramente supletivo, sendo possível a ampliação do prazo da fiança a partir de uma declaração, como a dos autos, em que expressamente se admitiu que a responsabilidade exceda o período máximo previsto por aquele preceito (em “Fiador do Locatário”, na Scientia Iuridica, nº 309º, págs. 97 e segs.).

Cremos, porém, que, pondo o acento tónico na sua natureza inteiramente supletiva, gerar-se-ia uma contradição intrínseca na interpretação do preceito ao admitir-se que uma declaração de fiança sem aquelas especificações pudesse vincular o fiador para além do limite temporal de risco previsto. Então, de que serviria fazer depender a persistência da fiança da existência de uma convenção que “limitasse o número” de períodos de renovação ou da outorga de uma “nova convenção”?

Além disso, contra o defendido por Gravato de Morais, não cremos que o preceito legitime que logo na declaração inicial as partes prevejam a extensão temporal a fiança sem aquela limitação, nem sequer que uma declaração inicial com esse teor possa equivaler a uma “nova convenção” de fiança.

6.Repercutindo a posição adoptada no caso concreto:

De acordo com o teor do clausulado, a fiança cobriria as obrigações emergentes do contrato de arrendamento, quer pelo seu período inicial, quer pelas suas renovações e manter-se-ia mesmo após o decurso do prazo de 5 anos sobre a primeira renovação.

Esta declaração não se apresentava tão vaga como uma outra que, por exemplo, se tivesse limitado a prescrever a responsabilidade do fiador “pelas obrigações da arrendatária durante o prazo do presente contrato e suas prorrogações” (como no Ac. do STJ, de 12-11-09), “a responsabilidade do fiador enquanto perdurasse o contrato”ou “a responsabilidade do fiador nos mesmos termos do arrendatário”.

Todavia, continua a falhar nos pressupostos normativos correspondentes à expressa previsão de um determinado número de renovações ou de um período de duração. E, por outro lado, também não pode corresponder a uma “nova convenção”, isto é, a um novo compromisso assumido pelos fiadores no sentido da persistência da garantia para além do período que o legislador considerou ajustado, na falta daquela fixação objectiva de um termo para a fiança.

Enfim, tal declaração não satisfazia as exigências legais constantes do art. 655º, nº 2, do CC, destinadas a evitar a sua extinção no final do 5º ano posterior ao início da 1ª renovação, em 1-6-03, devendo por isso considerar-se extinta a partir de 1-6-08.

Ora, uma vez que na acção executiva visa o cumprimento coercivo de obrigações da arrendatária reportadas ao período posterior a 1-6-09 (quanto à indemnização de 50%) e ao período posterior a 1-10-10 (rendas e indemnização), a responsabilidade assumida pelos recorrentes fiadores já não é susceptível de abarcar qualquer dessas quantias.

7. Com a resposta à duas primeiras questões ficam prejudicadas as demais questões em redor da indeterminabilidade da fiança e da delimitação da fiança ao período contratual até à resolução do contrato de arrendamento que claramente se apresentam com natureza subsidiária relativamente à que foi apreciada.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando o acórdão da Relação, de modo que passa a subsistir a decisão da 1ª instância que julgou extinta a execução relativamente aos ora oponentes.

Custas na revista e nas instâncias a cargo da exequente.

Notifique.

Lisboa, 6-3-14


Abrantes Geraldes

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva