Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20954/15.1T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: PROCURAÇÃO
CONTRATO DE MANDATO
ADVOGADO
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
ABUSO DE PODERES DE REPRESENTAÇÃO
INEFICÁCIA DO NEGÓCIO
ESCRITURA PÚBLICA
PARTILHA DA HERANÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
DEPOIMENTO DE PARTE
PERÍCIA
DOCUMENTO PARTICULAR
Data do Acordão: 07/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Os depoimentos de parte e de testemunhas, os relatórios periciais e os documentos particulares estão sujeitos ao princípio da livre apreciação do julgador.

II. De acordo com o disposto no artigo 682.º, n.º 2, do CPC, no recurso de revista, não é consentido ao STJ alterar a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do art. 674.º, do mesmo corpo de normas.

II. Do art. 662.º, n.os 1 e 2, als. a) e b), do CPC, decorre que o TR tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.

IV. O poder de representação encontra-se quase sempre coligado com uma relação subjacente, designadamente com o mandato.

V. Na ausência de poder de representação, a atuação do (putativo) representante não se afigura suscetível de afetar a esfera jurídica de outra pessoa (art. 268.º, n.º 1, do CC).

VI. A atuação do representante, ainda formalmente dentro da sua legitimação mas merecendo um juízo negativo quanto ao seu licere por se colocar fora dos termos da relação subjacente, continua a vincular o representado.

VII. Em ordem à tutela do terceiro, apenas o abuso de representação dele conhecido ou que ele devia conhecer (no momento da celebração do negócio) acarreta a ineficácia do negócio representativo.

VIII. O mandato, na sua configuração clássica, é sempre no interesse do mandante, mantendo-se este interesse ainda que se verifique também a existência de interesse de terceiro ou do mandatário.

IX. Enquanto o contrato de mandato regula as relações internas entre mandante e mandatário, a procuração releva na relação externa entre mandatário-representante e terceiro.

X. A tutela do interesse creditório do mandante perante o incumprimento do mandatário é assegurada pelos mecanismos previstos no direito das obrigações e dos contratos em geral, assim como por aqueles estabelecidos na disciplina especial do contrato de mandato.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,



I – Relatório

1. AA intentou a presente ação declarativa constitutiva, sob a forma de processo comum, contra BB, CC, DD (Mãe de EE, cônjuge falecido da Autora), FF (irmã de EE) e GG (irmã de EE), pedindo que:

a) seja declarado e reconhecido que a procuração e o seu termo de autenticação a favor do 1.º Réu, efetuados no domicílio profissional da 2.ª Ré, a 26 de janeiro de 2015, são documentos falsos;

b) seja declarada a ineficácia da escritura de partilha hereditária dos bens de EE, celebrada a 5 de março de 2015, no Cartório Notarial do Dr. HH, entre o 1.º Réu e a 3.ª Ré;

c) seja declarada a ineficácia da escritura de partilhas hereditária dos bens de II, celebrada a 5 de março de 2015, no Cartório Notarial do Dr. HH, entre o 1.º Réu e as 3.ª, 4ª e 5ª Rés;

d) seja declarada a ineficácia da escritura de retificação de partilha hereditária dos bens de II, celebrada a 12 de março de 2015, no Cartório Notarial do Dr. HH, entre o 1.º Réu e as 3.ª, 4ª e 5ª Rés;

e) seja declarada a ineficácia contrato promessa de partilha hereditária datado de 12 de março de 2015, celebrado entre o 1.º Réu e as 3.ª, 4.ª e 5.ª Rés.

2. Alega, em síntese, que tais escrituras e contrato-promessa foram celebrados entre as 3.ª, 4.ª e 5.ª Rés e o 1.º Réu (em representação da Autora) sem que a Autora tivesse dado instruções ao último para celebrar os respetivos negócios jurídicos e que o termo de autenticação em causa nos autos é falso, pois que a Autora nunca se deslocou ao escritório da 2.ª Ré para a realização de qualquer reconhecimento de assinatura.

3. Os Réus, devidamente citados, contestaram, defendendo-se por impugnação e peticionando, o 1.º Réu e a 2.º Ré, a condenação da Autora como litigante de má fé no pagamento de “multa de uma indenização” no montante de € 10.000,00.

4. Devidamente notificada, a Autora respondeu ao pedido de condenação como litigante de má fé, pugnando pela sua improcedência e peticionando a condenação do 1.º Réu e da 2.º Ré como litigantes de má fé, no pagamento de multa e de indemnização no valor de € 25.000,00 (o 1.º Réu) e de €10.000,00 (a 2.ª Ré). 

5. Procedeu-se ao saneamento dos autos.

6. Realizou-se audiência de julgamento.

7. Foi proferida sentença que julgou a presente acção procedente e, consequentemente:

- declarou que o termo de autenticação da procuração a favor do Réu BB, realizado no domicílio profissional da Ré CC, a 26 de Janeiro de 2015, é falso;

- declarou a ineficácia, perante a Autora AA, da escritura de partilha hereditária dos bens de EE, celebrada a 5 de Março de 2015, no Cartório Notarial do Dr. HH, entre o 1.º Réu e a 3.ª Ré;

- declarou a ineficácia da escritura de partilhas hereditária dos bens de II, celebrada a 5 de Março de 2015, no Cartório Notarial do Dr. HH, entre o 1.º Réu e as 3.ª, 4ª e 5ª Rés;

- declarou a ineficácia, perante a Autora, da escritura de retificação de partilha hereditária dos bens de II, celebrada a 12 de Março de 2015, no Cartório Notarial do Dr. HH, entre o 1.º Réu e as 3.ª, 4ª e 5ª Rés;

- declarou a ineficácia, perante a Autora, do contrato promessa de partilha hereditária datado de 12 de Março de 2015, celebrado entre o 1.º Réu e as 3.ª, 4.ª e 5.ª Rés;

- condenou o 1.º Réu e a 2.º Ré como litigantes de má fé em multa, que fixou em 30 (trinta) UCs para o 1.º Réu e em 25 (vinte e cinco) UCs para a 2.ª Ré, e no pagamento de uma indemnização à Autora;

- absolveu a Autora do pedido de condenação por litigância de má fé formulado pelo 1.º Réu e pela 2.º Ré.(cf. fls. 357 a 374).

8. Os Réus BB, DD, FF e GG interpuseram recurso de apelação.

9. A Autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.

10. Por acórdão de 4 de fevereiro de 2020, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedentes as apelações apresentadas pelos Réus BB, DD, FF e GG, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se os mesmos do pedido. Tal revogação da decisão recorrida beneficiará ainda a Ré CC (não recorrente) nos termos do artigo 634º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Civil, sendo deste modo a mesma absolvida da condenação por litigância de má fé.

Custas pela apelada.

11. Não conformada, a Autora interpôs recurso de revista, apresentando as seguintes Conclusões:

I) Muito bem andou tal decisão do Juízo Central Cível de ..., a qual não merece qualquer reparo.

II) Pelo contrário, Fez uma errada apreciação das provas e consequente aplicação do direito o Tribunal a quo.

III) Quanto aos pontos L) a Q) dos factos provados, estes resultam provados face aos elementos probatórios que de seguida se passarão a enunciar.

IV) Ora, como facilmente se constata pela leitura dos relatórios periciais de fls. 272-276 e 309-310v juntos aos autos, resulta claro que a assinatura aposta como sendo da Recorrente no termo de autenticação em causa nos autos não é da mesma.

V) Pode ler-se no relatório pericial à letra e assinatura da Recorrente que a assinatura aposta no documento em causa (termo de autenticação) não pertence à Autora, ora Recorrente .

VI) Nessa senda o facto M) que estabelece "A autora não participou nem esteve presente no ato referido em F), alegadamente ocorrido no dia 26.1.2015, pelas 17.11 horas, no domicílio profissional do V e2° réu, sito na Ave. ..., em ...; resulta provado, não merecendo a decisão do Tribunal a quo, qualquer correção.

VII) Quanto à Procuração objeto do referido termo de autenticação, através da leitura à mesma resulta que o Recorrente BB não estava mandatado para celebrar as escrituras e o contrato-promessa em causa nos autos à revelia da concordância da Recorrente , como bem observou o Tribunal a quo.

VIII) Assim, atento o teor da procuração, não restam dúvidas de que o Recorrente BB não estava mandatado para negociar quaisquer partilhas a seu bel prazer, à revelia da Autora, ora Recorrente

IX) Pelo que, atenta a prova documental produzida nos autos, resultam provados os factos L), M), N), O), P) e Q).

X) Ademais, tais factos resultam ainda amplamente provados pela análise ao e-mail junto aos autos de fls. 13-15.

XI) Na verdade, através da leitura do mesmo podemos concluir que a Recorrente não havia dado poderes ao Recorrido BB para celebrar escrituras de partilhas nos termos em que o foram, uma vez que, através do mesmo, recusa uma proposta de partilhas que lhe seria mais vantajosa!

XII) Em acréscimo, o Tribunal a quo louvou-se ainda nas declarações de parte prestadas pelas partes, nomeadamente nas declarações de parte prestadas pelo 1.° e 2.a RR das quais lhe foi permitido inferir que, na verdade, o termo de autenticação em crise não foi assinado pela Recorrente

XIII) Os depoimentos do Recorrido BB e da 2.3 RR. revelaram-se incongruentes e inverosímeis.

XIV) Deve ainda referir-se que o termo de autenticação em causa para além de falso não foi registado validamente no site da Ordem.

XV) De acordo com a Portaria n.o 657-B/2006, de 29 de Junho de 2006 que estabelece a regulamentação do registo informático dos actos praticados pelas câmaras de comércio e indústria, advogados e solicitadores, a validade dos referidos actos depende de registo em sistema informático no prazo de 48 horas.

XVI) Ora, no termo de autenticação lavrado pela 2.a RR, verificamos que o mesmo apenas foi registados mais de 72 horas depois, sendo que, confrontada em sede de Julgamento, não conseguiu dar uma explicação plausível para este disparidade.

XVII) Sendo que, o termo de autenticação sempre seria inválido por incumprimento da portaria retro identificada.

XVIII) Isto é, todos estes factos provam que o termo de autenticação em crise se encontra inquinado e ferido de várias ilegalidades - sendo que a maior destas é o facto da Recorrida CC ter autenticado um documento sem a presença da alegada declarante, sem o mesmo lhe ter sido lido e explicado, ao contrário do que ficou lavrado no termo, conforme resultou provado no âmbito destes autos.

XIX) Sendo que, atenta tal prova produzida nos autos, não poderia ter sido outra a conclusão do Douto Tribunal, que não dar como provados todos os factos L) a Q) - e os demais factos considerados provados.

XX) Assim, repete-se que toda a matéria dada como provada for correctamente avaliada pelo Tribunal de l.a Instancia.

XXI) Ademais, refere o Tribunal a quo que "Qualquer táxi, a meio da tarde, consegue transportar um passageiro de ... (sic) à Avenida ..., no centro de …., em 20 a 30 minutos... "

XXII) Concordamos em absoluto com o Tribunal a quo, i.e., que a Recorrente poderia ter sido de facto transportada de ... a Av. ... sendo que tal percurso demoraria, no mínimo, 20 minutos,

XXIII) No entanto, conforme resulta da documentação junta aos autos e da prova testemunhal produzida, a Autora, ora Recorrente, no dia 26.11.2015 encontrava-se em ... às 17:14, no estabelecimento comercial ....

XXIV)     Assim, a Recorrente teria que se ter deslocado da Av. ..., onde foi efetuada a autenticação do documento às 17hll e ter chegado ao estabelecimento comercial ... em ..., e estar já a pagar, no período de 3 minutos - e não nos 20, 30 minutos que o Tribunal da Relação refere desconsiderando a prova carreada nos autos.

XXV)      Assim, conforme se supra expôs, foram vários os elementos probatórios dos quais o Tribunal a quo lançou mão para poder concluir que os factos L) a Q) são verdadeiros.

XXVI) Deve ainda acrescentar-se que não se pode concordar com a fundamentação do Tribunal a quo quando refere que a ora Recorrente é, na verdade, a responsável por ter sido ludibriada pelo seu então mandatário e que apenas se deve queixar de si própria "(...) ao outorgar uma procuração com um conjunto de poderes de representação tão amplo e decisivo ao advogado que livre e voluntariamente escolheu e em quem confiava, e ao não ter atempadamente evitado a subsistência e o prosseguimento dessa relação contratual de mandato"

XXVII) Acrescentando ainda que,

" Não há o menor indício de que a A. AA, pessoa adulta, não tivesse consciência do âmbito e alcance da procuração que confessadamente - conferiu ao seu advogado.

Se não atentou nisso, deveria tê-lo feito, pensando designadamente no interesse de terceiros que confiariam nos poderes especiais atribuídos ao seu representante."

XXVIII) Ora, tal fundamentação, salvo o devido respeito, parece-nos que está a

parabenizar o infrator, advogado em quem a Recorrida confiava plenamente quando em 2014 assinou a procuração, e a punir a vítima, absolutamente leiga em questões jurídicas.

XXIX) Não podemos concordar nunca com esta linha de raciocínio, muito menos quando estamos perante uma relação de confiança entre cliente e advogado, sendo que este último tem a obrigação, profissional, deontológica, ética e moral de defender os interesses da sua cliente e de a proteger - tudo o inverso do que fez o Recorrido BB.

XXX) Sendo que, atenta tal prova produzida nos autos, não poderia ter sido outra a conclusão do Douto Tribunal, que não dar como provados todos os factos L) a Q) - e os demais factos considerados provados.

XXXI) Ora, os termos do disposto no n.° 2 do art.° 372.° do Código Civil:

"O documento é falso, quando nele se atesta como tendo sido objecto da percepção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer acto que na realidade o não foi."

XXXII) Ademais, ao abrigo do disposto no art.° 268.° do Código Civil, sob a epígrafe Representação sem poderes:

" 1. 0 negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.

2. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro.

3. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito. "

XXXIII) Ora, o contrato promessa datado de 12 de Março de 2015 e todas as escrituras celebradas pelos Recorridos foram celebradas pelo Recorrido BB em nome da Recorrente fazendo uso de uma procuração falsa,

XXXIV) Tendo a mesma sido alvo de uma autenticação pela Recorrida CC tendo esta atestado facto que na realidade não se verificou, tal como ficou demonstrado.

XXXV) Nessa medida, dúvidas não restam que estamos perante um documento falso, e consequentemente nulo, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 372.°, n.° 2, 280.° e 289.° do CC.

XXXVI) Assim, como a Recorrente não emitiu a declaração negocial expressa na procuração todos as escrituras celebradas são ineficazes, pelo que, no que diz respeito à Recorrente tudo se passa como se estas nunca tivessem tido lugar.

XXXVII) Nessa senda permitimo-nos a citar o Douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 3-10-2013, subsumível ao presente caso:

'A procuração outorgando poderes de representação ao 1° réu é falsa, nos termos do art. 372°, n° 2, CC, não fazendo prova, por consequência, dos factos que refere terem sido praticados pelo notário; Além disso, como a autora não emitiu a declaração negocial expressa na procuração — atribuição de poderes de representação ao 1 ° réu — esta é ineficaz em relação à recorrida por força da apontada falsidade;

Dado que, atendendo ainda à falsidade da procuração, o Réu não dispõe de quaisquer poderes de representação da autora, o substabelecimento que outorgou ao 2° réu em 251' 1/Õ7 (fls 49/51) é de igual modo ineficaz em relação à recorrida, nos termos do art. 264° CC;

Ainda relativamente à autora, a venda realizada pelo 2o réu com base no substabelecimento dos poderes de procuração falsa é ineficaz não tendo ela que demonstrar a nulidade do negócio porque tudo se passa, no que lhe diz respeito, como se este nunca tivesse existido;

A ineficácia resulta expressamente do disposto no art. 268°, no 1, CC, nos termos do qual "o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado*';" - cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.° 76690/07.6TBALM.L1.S1', datado de 03.10.2013, relatado pelo Exmo. Senhor Juíz Conselheiro NUNO CAMEIRA.

XXXVIII) Face à sua proximidade com o caso em análise, somos ainda a citar o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que reza assim:

"6. Essa situação de desconformidade, entre o conteúdo das procurações e a realidade, é causa de falsidade, na modalidade de falsidade intelectual, nos termos do art. 372." do C Civil. Pois que ali se atesta como tendo sido praticados pela entidade responsável actos — leitura e explicação de cada procuração que, na realidade, não o foram. 7. A falsidade das procurações é cansa da sua nulidade, nos termos dos art. 280. ° e 289. ° do C Civil. Não carecendo de maior justificação a afirmação de que estamos perante negócios jurídicos concluídos manifestamente contra a lei. 8. Sendo as procurações nulas, nunca produziram quaisquer efeitos, designadamente não conferiram ao réu poderes para outorgar, em representação da autora, a escritura de compra e venda do Cerrado. Ou seja, o réu HH outorgou essa escritura de compra e venda no uso de poderes de representação que, efectivamente, não tinha. O que, nos termos do art. 268.0 do C. Civil, é causa de ineficácia desse negócio em relação à autora, salva a hipótese de ratificação, hipótese que se mostra excluída.

9. Devendo, pois, concluir-se que o questionado contrato de compra e venda é ineficaz em relação à autora." -destaque nosso - fr. Acórdão do Tribunal Relação de Lisboa, Proc. n.° 761/1998.L1.-2, datado de 29.01.2015, relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador FARINHA ALVES

XXXIX) Face ao exposto, dúvidas não restam que devem as escrituras celebradas ser declaradas ineficazes em relação à Recorrente uma vez que estas foram celebradas através de Procuração nula.

XL) Concluindo, repete-se que toda a matéria dada como provada foi correctamente avaliada pelo Tribunal de 1." instância, sendo que a impugnação efetuada pelos Recorridos para o Tribunal da Relação apenas mais uma tentativa de obstar a que seja feita justiça e que, surpreendentemente teve sucesso.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, REQUER-SE JUNTO DO DOUTO TRIBUNAL QUE JULGUE POR PROCEDENTE A APELAÇÃO, CONFIRMANDO A SENTENÇA PROFERIDA EM SEDE DE 1.ª INSTÂNCIA, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, FAZENDO-SE, ASSIM, JUSTIÇA.”

12. DD, FF e GG apresentaram contra-alegações com as seguintes Conclusões:

“I - Vem a Recorrente fundar o presente Recurso de Revista em alegado Erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais por parte do doutro Tribunal da Relação.

II - Não assiste qualquer razão à Recorrente, não merecendo o Acordão recorrido qualquer censura, sendo o presente Recurso legalmente inadmissível e desprovido

de fundamento.

III - Estatui o n.º 4 do Artigo 662º do Código de Processo Civil que: Das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

IV - Dispõe o artigo 674º n.º 3 do Código de Processo Civil que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

V - Do teor destes normativos resulta claramente que a regra, no que toca às decisões da Relação sobre a matéria de facto, é a de que o Supremo não pode alterar essa decisão.

VI - A Recorrente não invoca a violação de qualquer disposição legal, que justifique a excepção à regra supra enunciada,

VII - Sendo que os factos em crise, bem como os depoimentos e o relatório pericial à letra e assinatura da Recorrente estão sujeitos ao princípio da livre apreciação do julgador, pelo que não violou o douto Acordão recorrido qualquer disposição em matéria de prova.


II – Questões a decidir

Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, estão em causa as seguintes questões:

- se o Supremo Tribunal de Justiça pode apreciar a alegada errada apreciação das provas e consequente aplicação do direito o Tribunal a quo”;

- se o Réu BB (advogado) tinha ou não poder de representação para celebrar, em nome da Autora, as escrituras de partilha dos bens da herança de II e de EE, assim como de retificação da escritura de partilha dos bens da herança de II e do contrato promessa de partilha e, por conseguinte, se estes atos são ou não eficazes em relação à Autora.


III – Fundamentação

A) De Facto

Foram considerados como provados, depois das alterações introduzidas pelo Tribunal de Relação de Lisboa, os seguintes factos:

A) Em … de Julho de 1999, a A. AA contraiu matrimónio com EE, do qual não resultou qualquer filho;

B) Durante a vigência do casamento acima referido, em … de Novembro de 2006, faleceu II, pai de EE;

C) Posteriormente, em … de Janeiro de 2013 veio a falecer EE, no estado de casado com a A;

D) No momento da morte de EE, filho de II, a herança deste último encontrava-se aberta e ainda por partilhar;

E) Com data aposta de 18 de Março de 2014, a Autora AA outorgou a Procuração junta a fls. 50 v, cujo teor se dá por reproduzido, nos termos da qual confere ao Réu BB “os mais amplos poderes forenses em direito permitidos, e quinda os especiais para confessar, desistir e transigir nos processos em que intervenha bem como para a representar em inventário ou partilha extrajudiciais por óbito de II e de EE (…) proceder à respetiva partilha, pagar ou receber tornas, dar ou aceitar quitações (…) ”;

F) No dia 26 de Janeiro de 2015, a Ré CC outorgou o “Termo e Autenticação” junto a fls. 50, cujo teor se dá por reproduzido, nos termos do qual declara que a Autora compareceu perante a primeira, tendo a autora dito “Que para fins de autenticação, me apresentou o documento em anexo, que é uma Procuração [descrita em 5] declarando-me que a leu e assinou e que a mesma exprime a sua vontade”;

G) No dia 5 de Março de 2015, em Cartório Notarial, foi outorgada a escritura de “Partilha Hereditária” junta a fls. 23 v a 27 v, cujo teor se dá por reproduzido, em que foram intervenientes o Réu BB, na qualidade de procurador da Autora, e DD, aí se procedendo à partilha de bens integrantes da herança de EE;

H) No dia 5 de Março de 2015, no Cartório Notarial do Dr. HH, foi outorgada a escritura de “Partilha Hereditária” junta a fls. 31 v a 35 v, cujo teor se dá por reproduzido, em que foram intervenientes o Réu BB, na qualidade de procurador da Autora, e DD, FF e GG, aí se procedendo à partilha de bens integrantes da herança de II;

I) No dia 12 de Março de 2015, no Cartório Notarial do Dr. HH, foi outorgada a escritura de “Retificação de Partilha Hereditária” junta a fls. 43 v a 48, cujo teor se dá por reproduzido, em que foram intervenientes o Réu BB, na qualidade de procurador da Autora, e DD, FF e GG, aí se procedendo à partilha de outros bens integrantes da herança de II;

J) Com data de 12 de Março de 2015, foi subscrito o “Contrato Promessa de Partilhas” junto a fls. 39.40, cujo teor se dá por reproduzido, constando do mesmo assinaturas imputadas à Autora e à 3ª a 5º Rés, manuscritas sobre a menção impressa dos respetivos nomes;

K) No dia 24 de Março de 2015, em Cartório Notarial em ..., a Autora outorgou um instrumento denominado “Revogação de Procuração” junto a fls. 16, cujo teor se dá por reproduzido, nos termos do qual declarou que “revoga a procuração conferida ao advogado BB”;

L) A Autora nunca deu ao Réu BB indicações para este celebrar as escrituras referidas em G) a I);

O) O acordo referido em J) foi negociado pelo 1º réu ao abrigo dos poderes conferidos para tal pela Autora, mas sem atender à vontade manifestada por este no seu e-mail de 14 de Janeiro de 2015, como o Réu BB bem sabia;

P) A autora sofreu um acidente em … de Março de 1991 de que resultaram, como sequelas permanentes, cicatrizes, cubitus valgus, limitação acentuada do punho direito, mão em garra com rigidez de D1 e D2 e diminuição de força muscular do membro superior direito, pelo que, escrevendo com a mão direita, tais sequelas desencadeiam a alteração irreversível da escrita;

Q) O 1.º R tem consciência de que a Autora não deu o seu consentimento para a conclusão das escrituras de partilhas referidas em G) a I) após ter concordado com os valores e a composição dos quinhões e que a Autora nem sequer lhe deu indicações para celebrar tais escrituras e o “Contrato Promessa de Partilhas” referido em J).

 

Foram considerados como não provados os seguintes factos:

- “A autora não participou nem esteve presente no acto referido em F), alegadamente ocorrido no dia 26 de Janeiro de 2015, pelas 17.11 horas, no domicílio profissional do 1º e 2º réu, sito na Ave. ..., em ...” (anteriormente sob a al. M) dos factos provados);

-  “Apesar de ter aposto a sua assinatura na procuração referida em 5, a Autora fê-lo sem saber (não tendo essa intenção nem lhe foi lido e explicado) que através da procuração estava a conferir poderes ao 1º réu para celebrar as escrituras nos termos que celebrou sem obter a prévia concordância da autora, sendo convicção da Autora que estava a assinar uma procuração para que o 1º réu apenas negociasse em nome da Autora no âmbito dos processos de partilhas”) (anteriormente sob a  al. N) dos factos provados);

- “Os 1.º e 2.º RR têm perfeita consciência de que, ao contrário do que alegam nas contestações que apresentaram, a autora não participou nem esteve presente no ato referido em F), alegadamente ocorrido no dia 26 de Janeiro de 2015, pelas 17.11 horas, no domicílio profissional do 1º e 2º réu, sito na Av. ..., em ...”(anteriormente sob a letra R) dos factos provados).

B) De Direito

Alegada “errada apreciação das provas e consequente aplicação do direito o Tribunal a quo” (cf. conclusão II) e , consequentemente, errada fixação dos factos materiais por parte do Tribunal da Relação de Lisboa

1. A Autora/Recorrente AA afirma que “Quanto aos pontos L) a Q) dos factos provados, estes resultam provados face aos elementos probatórios que de seguida se passarão a enunciar” (cf. conclusão III).

2. Segundo o art. 662.º, n.º 4, do CPC, das decisões do Tribunal da Relação previstas nos n.os 1 e 2, do mesmo preceito, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

3. De acordo com o disposto no artigo 682.º, n.º 2, do CPC, no recurso de revista, não é consentido ao Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do art. 674.º, do mesmo corpo de normas.

4. Por seu turno, conforme o art. 674.º, n.º 3, do CPC, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

5. Assim, via de regra, ao Supremo Tribunal de Justiça está vedado alterar as decisões do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto.

6. Na medida em que a Autora/Recorrente AA não invoca a violação de qualquer disposição legal que justifique a exceção à regra supra enunciada, o recurso improcede nesta parte.

7. Com efeito, os depoimentos de parte e de testemunhas, o relatório pericial à letra e assinatura da Autora/Recorrente AA e vários dos documentos (v.g., talões multibanco) por si invocados estão sujeitos ao princípio da livre apreciação do julgador. O Tribunal da Relação de Lisboa não violou qualquer disposição em matéria de prova.

8. Constitui entendimento pacifico que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista a que compete aplicar o regime jurídico que considere adequado aos factos fixados pelas Instâncias (art. 674.º, n.º 1, do CPC), sendo a estas - designadamente ao Tribunal da Relação - que cabe apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo o Supremo Tribunal de Justiça, em geral, alterar a matéria de facto por elas fixada.

9. Assim,

II - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no n.º 3 do art. 674.º do CPC, isto é: quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova.

III - A revista, no que tange à decisão da matéria de facto, só pode ter por objecto, em termos genéricos, situações excepcionais, ou seja quando o tribunal recorrido tenha dado como provado determinado facto sem que se tenha realizado a prova que, segundo a Lei, seja indispensável para demonstrar a sua existência; o tribunal recorrido tenha desrespeitado as normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos no sistema jurídico; e ainda, quando o STJ entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada ou ocorram contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, caso específico do normativo inserto no art. 682.º, n.º 3, do CPC”[1].

10. Embora configurado processualmente no sentido da obtenção da confissão, foram reconhecidas ao depoimento de parte virtualidades probatórias irrecusáveis perante um sistema misto de valoração da prova em que a par de prova tarifada existem meios de prova sujeitos à livre apreciação. Assim, o depoimento de parte - no que exceder a confissão de factos desfavoráveis à mesma parte - constitui meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, nos termos do art. 361.º do CC.

11. Por seu turno, no que respeita à prova testemunhal, a respetiva força probatória é apreciada livremente pelo Tribunal, nos termos previstos no art. 396.º do CC, pelo que um eventual erro na apreciação desse meio de prova não é sindicável no recurso de revista. Não está em causa prova legal vinculada passível de ser sindicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, mas apenas situações de alegado erro na apreciação da prova por parte do Tribunal da Relação de Lisboa. O julgamento respeitante à demonstração, ou não, da materialidade controvertida com base em prova sujeita à livre apreciação do tribunal é da competência das Instâncias.

12. De acordo com o art. 389.º do CC, também a prova pericial se encontra sujeita ao princípio da livre apreciação, podendo o julgador valorá-la sem observância de qualquer critério legal pré-determinado.

13. De resto, a Autora/Recorrente AA menciona diversos documentos (v.g., talões multibanco), mas sem nunca concretizar, quanto a esses documentos, qualquer violação por parte do acórdão recorrido de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. Na verdade, o mero teor dos documentos em causa, sem que sejam conjugados com outros elementos de prova, não permite extrair as conclusões alcançadas pela Autora/Recorrente. Esta invoca erro na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido, algo que extravasa os poderes do Supremo Tribunal de Justiça em sede de recurso de revista.

14. No que respeita à procuração e respetivo termo de autenticação (art. 372.º, n.º 1, ex vi do art. 377.º do CC), a Autora/Recorrente não logrou provar a sua falsidade, demonstrando a existência de declarações daquilo que se não passou. Não ilidiu, por conseguinte, a sua força probatória plena quanto aos factos referidos como tendo sido praticados pela Ré CC.

15. Em suma, não houve in casu ofensa de disposição legal expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art. 674.º, n.º 3, do CPC).

16. Não pode, assim, a Autora/Recorrente AA obter aqui a pretendida alteração da matéria de facto, que se mantém.

17. Com efeito, é ao Tribunal da Relação que compete, em última instância, julgar de acordo com a sua livre convicção, formulando o seu próprio juízo de valoração das provas e devendo “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (art. 662.º, n.º 1, do CPC).

18. Os únicos limites à livre apreciação da prova encontram-se previstos no art. 607.º, n.º 5, do CPC, segundo o qual essa apreciação não abrange “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.

19. Não se tratando de nenhum caso da intervenção excecional – à luz do art. 674.º, n.º 3, do  CPC -, nem sendo caso de violação de lei adjetiva, está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o modo como o Tribunal da Relação apreciou a impugnação da matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação

20. A prova a que se refere a Autora/Recorrente estava, efetivamente, sujeita à livre apreciação pelo Tribunal da Relação de Lisboa. E estando em causa prova sujeita a livre apreciação, o juízo formulado pela Relação de Lisboa, no âmbito do disposto no art. 662.º. n.º 1, do CPC é definitivo, não podendo ser modificado pelo Supremo Tribunal de Justiça[2].

21. Sendo definitivo o juízo formulado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, não cabe no âmbito do recurso de revista, nem nos poderes do Supremo Tribunal de Justiça, analisar a apreciação que as Instâncias fizeram da prova sujeita ao princípio da livre apreciação.

(Des)respeito dos comandos consagrados no art. 662.º do CPC

1. A Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, que aprovou o novo Código de Processo Civil, reforçou os poderes do Tribunal da Relação em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Além de manter os poderes cassatórios, incrementou substancialmente os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, em vista da descoberta da verdade material

2. É precisamente o que resulta do art. 662.º do CPC. Dos n.os 1 e 2, als. a) e b), desse preceito, decorre com toda a clareza que o Tribunal da Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis. Assim, o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art. 607.º, n.º 5, do CPC, vale tanto para o Tribunal de 1.ª Instância como para o da Relação, quando este é chamado a reapreciar a decisão proferida por aquele sobre a matéria de facto (art. 607.º, n.º 5, ex vi do art. 663.º, n.º 2, do CPC).

3. Compete, por isso, ao Tribunal da Relação reapreciar todos os elementos de prova que tenham sido produzidos nos autos e decidir, de acordo com a sua própria convicção, a matéria de facto impugnada em sede de recurso de apelação, assim se assegurando o segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise.

4. Cabe-lhe julgar de acordo com a sua livre convicção, fazendo o seu próprio juízo de valoração das provas e devendo “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (art. 662.º, n.º 1, do CPC)

Representação sem poderes enquanto fundamento da ineficácia das escrituras de partilha, de retificação de escritura de partilha e do contrato promessa de partilha

1. Tal como refere o acórdão recorrido, a presente ação, na estratégia processual adotada pela Autora AA, assenta na seguinte causa de pedir (factos essenciais que suportam a pretensão deduzida): a Autora conferiu procuração com poderes especiais ao Réu BB para a representar, enquanto advogado, na partilha das heranças de EE (seu cônjuge falecido) e de II (seu sogro, falecido antes do filho EE, não havendo a sua herança sido partilhada). Esses poderes incluíam os de “confessar, desistir e transigir nos processos em que intervenha bem como para a representar em inventário ou partilha extrajudiciais por óbito de II e de EE (…) proceder à respetiva partilha, pagar ou receber tornas, dar ou aceitar quitações (…) “; essa procuração não dispensava o acatamento das instruções dadas pela Autora ao seu mandatário BB, que deveria respeitá-las escrupulosamente; em março de 2015, foram realizadas, por escritura, as referidas partilhas hereditárias, tendo sido ainda, no que respeita a um bem incluído no acervo hereditário, celebrado um contrato promessa de partilha; nesses atos, o Réu BB interveio em representação da Autora, utilizando, para o efeito, a procuração que lhe havia sido conferida a 18 de março de 2014; fê-lo, porém, contrariando as instruções que havia recebido da sua Constituinte AA; a 24 de março de 2015 – já após a prática daqueles atos e com base no seu conhecimento –, a Autora revogou a procuração que havia conferido ao Réu BB; em janeiro de 2015, os Réus BB e CC, advogados e colegas de escritório, forjaram uma autenticação da procuração que havia sido conferida pela Autora AA ao primeiro, imitando falsamente a assinatura da Autora; a Autora AA não se deslocou, nesse dia, ao escritório de advogados onde foi efetuada tal autenticação, ostentando falsamente a sua assinatura, e desconhece tal certificação.

2. No que respeita à fundamentação jurídica, a Autora AA invoca que:

- o contrato promessa de partilha e as escrituras de partilha foram celebrados com base num documento falso: i.e., a procuração supostamente assinada pela Autora e pretensamente autenticada;

- não tendo emitido tal declaração de vontade – aquela tendente à autenticação da procuração –, todos os atos praticados com base nela (i.e., num documento falsificado) são ineficazes em relação à Autora, tudo se passando “como se nunca tivessem tido lugar”.

3. Com base nestes argumentos, a Autora AA pediu a declaração de ineficácia daqueles negócios jurídicos em relação a si.

4. Das alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa na factualidade assente resulta que a Autora AA não logrou provar a falsidade da autenticação da procuração conferida ao Réu BB, seu advogado. Não se provou, concretamente, que a assinatura constante da referida procuração fosse forjada através de imitação, nem que os advogados BB e CC tenham adotado o estratagema descrito pela Autora a propósito do respetivo termo de autenticação.

5. Residindo a causa da pretendida ineficácia dos negócios jurídicos em que interveio o Réu BB exclusivamente na falsidade do documento utilizado para legitimar a prática, pelo mesmo Réu, desses mesmos atos em representação da Autora AA, a ausência da prova da falta de verdade na elaboração desse documento abala fatalmente a tese sustentada pela última.

6. Recorde-se que a causa de pedir subjacente ao pedido de ineficácia dos negócios celebrados não respeita ao incumprimento dos poderes forenses conferidos ao Réu BB, interveniente - como representante da Autora AA - nesses atos jurídicos. A Autora não radica a não produção em relação a si dos efeitos jurídicos dos negócios celebrados em seu nome no não acatamento das instruções por si transmitidas ao Réu BB, seu advogado.

7. Impõe-se, pois, concluir pela existência dos poderes especiais atribuídos pela Autora AA ao seu advogado BB para intervir, tal como efetivamente interveio, nesses negócios jurídicos.

8. Com efeito, a Autora AA concedeu poder de representação ao Réu BB que, assim, agere alieno nomine, manifestou que não agia pro domo sua.

9. O poder de representação delimita a possibilidade de a atuação do representante produzir efeitos diretos na esfera jurídica do representado. Se o agir em nome de outrem exprime a vontade de que o negócio não seja próprio, o poder (de representação) revela a intenção do principal de admitir o negócio representativo na respetiva esfera jurídica. Apenas a existência desse poder (de representação) justifica a vinculação de alguém a negócio em que não interveio[3].

10. O representado dispõe, tal como a Autora AA dispunha, de um poder de controlo do exercício do poder conferido ao representante, in casu, a BB. Efetivamente, a Autora podia ter feito cessar esse poder de representação – antes da celebração do contrato promessa de partilha e das escrituras de partilha, e não apenas depois -, revogando-o, de um lado e, de outro, podia ter atuado por si própria, provendo diretamente aos seus assuntos, praticando, ela mesma, os atos em apreço.

11. Com vista à harmonização material do instituto da representação com o princípio da autonomia privada, admite-se a adstrição do representante à realização do interesse do representado: i.e, aquele não pode usar o seu poder de representação ad nutum, arbitrariamente ou para satisfação de um interesse qualquer, em sua vantagem, devendo antes exercê-lo em ordem à realização de fins alheios. Na verdade, a funcionalização do poder de representação a fins alheios encontra-se consagrada em várias disposições legais (arts. 264.º, 265.º, n.º 3, 261.º e 269.º, do CC)[4]. No caso sub judice, não resulta da factualidade dada como provada pelo Tribunal da Relação de Lisboa que o Réu BB tenha exercido o poder de representação que lhe foi conferido arbitrariamente, para a realização de fins alheios.

12. O poder de representação encontra-se quase sempre coligado com uma relação subjacente ou de base, designadamente com o mandato, como sucede no caso em apreço. A concessão e o exercício subsequente desse poder só alcança o seu sentido se referido a essa relação interna (relação subjacente ou de base). Contudo, em certas circunstâncias, o surgimento como que autonomizado desse poder de representação tem fundamentalmente em vista a tutela do terceiro. Assim, a atuação do representante, ainda formalmente dentro da sua legitimação mas merecendo um juízo negativo quanto ao seu licere por se colocar fora dos termos da relação subjacente ou de base, continua a vincular o representado[5]. In casu, não decorre dos factos assentes pelo Tribunal da Relação de Lisboa que as Rés DD (Mãe de EE, cônjuge falecido da Autora), FF (irmã de EE) e GG (irmã de EE) estivessem de má fé.

13. Na representação voluntária afigura-se imprescindível que o representado tenha consentido que um outro sujeito o vincule juridicamente. Trata-se da legitimação desse outro sujeito para agir naqueles moldes. O ato de atribuição de poder de representação - a procuração - é um negócio unilateral que se distingue da relação jurídica com que está diretamente conexionado. Trata-se, pois, da eficácia em relação a terceiros da concessão de poderes, da ligação entre a procuração e o negócio representativo. O poder de representação outorgado tem uma extensão maior ou menor, dependendo da vontade manifestada pelo principal, designadamente, do ponto de vista do respetivo objeto, pois pode referir-se tão somente a um ato, a atos específicos, etc... Decisivo é o conteúdo da procuração devidamente interpretado ou integrado, havendo que recorrer às diretrizes hermenêuticas gerais (arts. 236.º e ss. do CC) [6]. No caso em apreço, não restam dúvidas sobre a extensão do poder de representação conferido ao Réu, sobre a sua legitimação para celebrar, em nome da Autora, o contrato promessa de partilha e as escrituras de partilha e de retificação, porquanto “a Autora AA outorgou a Procuração junta a fls. 50 v, cujo teor se dá por reproduzido, nos termos da qual confere ao Réu BB “os mais amplos poderes forenses em direito permitidos, e quinda os especiais para confessar, desistir e transigir nos processos em que intervenha bem como para a representar em inventário ou partilha extrajudiciais por óbito de II e de EE (…) proceder à respetiva partilha, pagar ou receber tornas, dar ou aceitar quitações (…) ”” (cf. facto provado sob a al. E)).

14. Por força do art. 265.º, n.º 1, do CC, via de regra, a lei distingue entre a relação interna ou subjacente e a relação externa, nomeadamente entre o mandato e a procuração. Porém, o destino da relação externa depende da relação interna ou subjacente, pois que a cessação da última implica a extinção da primeira. Conforme referido supra, em ordem à tutela da sua autonomia, o sujeito que concede a outrem poder de representação dispõe da faculdade de o revogar ou restringir, expressa ou tacitamente, obstando para o futuro (ex nunc) a que o representante o vincule. No caso sub judice, apenas depois da celebração das escrituras de partilha  (a 5 de março de 2015) e de retificação, assim como do contrato promessa de partilha (a 12 de março de 2015), é que a Autora AA revogou a procuração (a 24 de março de 2015) concedida ao Réu BB  (cf. factos provados sob as als. G), H, J)  e K)).

15. Acresce que o art. 266.º, n.º 1, do CC, exige, para serem invocável perante o terceiro, que a revogação (ou a modificação) da procuração lhe haja sido levada ao conhecimento por meios idóneo. Recai, portanto, sobre o dominus um ónus de notificação ou publicitação, em termos adequados, dos eventos extintivos (ou modificativos) do poder de representação. No caso de inobservância desse ónus, cabe ao dominus provar que o terceiro efetivamente conhecia a extinção (ou a modificação) do poder de representação.

16. Naturalmente que, na ausência de poder de representação, a atuação do (putativo) representante não se afigura suscetível de afetar a esfera jurídica de outra pessoa. A imputação própria da representação não tem lugar por inexistência de fundamento. Na verdade, o poder de representação pode nunca ter existido, a procuração pode ser inválida (nula ou anulada) ou ineficaz, o poder pode haver sido entretanto (i.e., antes da conclusão do negócio representativo) extinguido ou modificado, ou não cobrir parte do negócio representativo (falta parcial de poder ou excesso de representação)[7]. Todavia, nada disso se verifica no caso em apreço.

17. O art. 268.º, n.º 1, do CC, refere-se à ineficácia em sentido estrito. Dele parece igualmente decorrer que o negócio é ineficaz apenas perante o representado (apesar de dificilmente se conceber uma ineficácia relativa apenas operante perante uma das partes do negócio jurídico) [8].

18. No caso sub judice, pode afirmar-se que o Réu BB não é um falsus procurator, porquanto a Autora AA lhe concedeu poder de representação, aliás extenso, para a prática dos atos em que interveio – contrato promessa de partilha e escrituras de partilha e de retificação. Esse poder não foi extinguido (nem modificado) antes da conclusão dos negócios objeto do presente litígio, i.e., do contrato promessa de partilha e das escrituras de partilha e de retificação.

Abuso de representação

1. O art. 269.º do CC estabelece uma remissão intra-sistemática, dirigida à estatuição da norma do art. 268.º, do mesmo corpo de normas. Por conseguinte, ao abuso de representação estão associadas as consequências previstas para a representação sem poderes, porquanto o legislador, em lugar de regular diretamente a questão dos efeitos do abuso de representação, manda aplicar-lhe o preceito do art. 268.º do CC.

2. Contudo, em ordem à tutela do terceiro, apenas o abuso de representação dele conhecido ou que ele devia conhecer (no momento da celebração do negócio) acarreta a ineficácia do negócio representativo. A ponderação dos interesses em jogo explica a diversidade de regimes entre a representação sem poderes (ou o excesso de representação) e o abuso de representação. No cado de abuso, as expectativas da contraparte alicerçam-se em bases mais consistentes, porquanto o poder de representação existe formalmente e, no caso de representação sem poderes, a lei tem em conta que a falta de poderes é, muito frequentemente, constatada pela contraparte, ou, pelo menos, deveria sê-lo. Por seu turno, o terceiro, quando esteja de boa fé, goza já de tutela em determinadas situações (art. 266.º do CC). Por fim, na representação sem poderes incluem-se casos em que o representado não suscitou, de forma alguma, a atuação do representante[9].

3. No caso em apreço, não resulta da factualidade dada como provada pelo Tribunal da Relação de Lisboa que um eventual abuso de representação do Réu BB fosse conhecido das Rés DD (Mãe de EE, cônjuge falecido da Autora), FF (irmã de EE) e GG (irmã de EE), nem tão pouco que elas o deviam conhecer ao tempo da celebração do contrato promessa de partilha e das escrituras de partilha e de retificação. Não pode, por isso, falar-se em ineficácia dos negócios representativos concluídos pelo Réu BB em nome da Autora AA.

4. É verdade que nas situações de colusão, de concertação fraudulenta, em prejuízo do representado, entre o representante infiel e o terceiro, o negócio representativo pode ser considerado ferido de nulidade ex vi do art. 280.º, n.º 2, do CC[10]. No caso em apreço, não se provou, contudo, qualquer concertação ou conluio deste tipo entre o Réu BB e as Rés DD (Mãe de EE, cônjuge falecido da Autora), FF (irmã de EE) e GG (irmã de EE).

5. Dentro do abuso de representação, distingue-se entre atuações do representante contrárias ao fim em vista do qual o poder foi conferido, i.e., que não prosseguem os objetivos visados pelo dominus com a concessão de poder de representação (aqui cabendo a conclusão pelo representante de negócios anormais ou extravagantes); atuações contrárias a instruções ou vinculações internas onde o procurador se conduz ao arrepio de instruções para o exercício do poder ou mesmo de restrições deste não integradas no conteúdo da procuração; e atuações desleais, quando o representante utiliza ou aproveita os seus poderes para alcançar interesses próprios ou alheios ou, mais em geral, de modo contrário à boa fé. A existência de um dano constitui um indício importante mas, todavia, insuficiente para afirmar um abuso[11]. Pois que é necessário que o terceiro o conhecesse ou, pelo menos, devesse conhecer.

6. Reveste-se, por isso, nesta sede, de particular importância a delimitação do dever de conhecer do terceiro. A sua culpa há-de ser apreciada de maneira circunstanciada e levando em linha de conta que uma indagação da relação entre o representado e o representante só excecionalmente se terá por exigível, podendo, inclusivamente, ser entendida como uma intromissão indevida, e não conduzirá, muitas vezes, a resultados conclusivos. Tem de se permitir um certo grau de confiança da contraparte. Todavia, não deve a sua boa fé ser temerária, ignorando fortes indícios ou evidências de um comportamento em detrimento do dominus. Mas, via de regra, não se pode pedir ao terceiro que pondere a vontade hipotética ou presumível do representado, perguntando-se se este aprovaria ou não o ato em causa. Esse juízo compete primordialmente ao representante, não sendo normal ou sequer curial sobrepor-se uma outra apreciação à dele. Solução diferente só se adotará quando o comportamento do representante se plasme ictu oculi num prejuízo do dominus, ou nos casos em que haja o conhecimento certo de que ele nunca aceitaria o negócio. Aquilo que nas hipóteses em que o procurador se desvia dos termos da vinculação e das instruções internas tem todo o cabimento é a ideia de que ao terceiro, disso conhecedor, se há-de exigir redobrada atenção e maior ponderação, em vista de um eventual prejuízo do representado. A diligência requerida deve medir-se in abstrato e objetivamente. Perguntar-se-á se um parceiro negocial normal e correto, colocado naquelas circunstâncias, se teria apercebido do abuso. Uma relação especial ou muito próxima entre o terceiro e o representante indiciará o conhecimento ou o dever de conhecimento do abuso. Decisiva é a atitude do terceiro, e esta não é influenciada de modo algum pelo representante (tão pouco o interesse deste último está aqui em causa). Pode ainda invocar-se o facto de em nenhuma das situações em que a lei igualmente procede a uma ponderação dos interesses do representado e da contraparte interferir qualquer fator do género respeitante à pessoa do procurador – como se comprova na hipótese da representação sem poderes ou na questão da oponibilidade da extinção da procuração ao terceiro. A eventual culpa do procurador que abusou dos poderes, revelando-se em princípio irrelevante no que toca à (in)eficácia do negócio, pode ser considerada para outros efeitos. Naturalmente que o procurador responde perante o principal, segundo a relação interna ou subjacente (o que normalmente pressuporá culpa), se o negócio é eficaz (ou, mesmo não o sendo, se sobreveio algum prejuízo para este, por exemplo a perda de outra oportunidade)[12].

7. In casu, não resulta da factualidade assente pelo Tribunal da Relação de Lisboa que as Rés DD (Mãe de EE, cônjuge falecido da Autora), FF (irmã de EE) e GG (irmã de EE) houvessem fechado os olhos a fortes indícios ou evidências de um comportamento do Réu BB em detrimento do dominus AA. Também não resulta dessa factualidade que o comportamento do Réu BB redundasse, logo à primeira vista, em prejuízo para o dominus AA, e nem que as Rés DD, FF e GG tivessem o conhecimento certo de que o principal AA nunca aceitaria os negócios celebrados – i.e., o contrato promessa de partilha e as escrituras de partilha e de retificação. Não resulta, pois, provado, que as Rés DD, FF e GG tivessem conhecimento da inobservância, por parte do Réu BB, das concretas instruções internas, emitidas pela Autora AA e, por isso, não pode dizer-se ser-lhes exigível redobrada atenção e prudência em vista de um eventual prejuízo da última. Naturalmente que a diligência requerida se mediria in abstrato e objetivamente. Por outro lado, não se provou a existência de uma qualquer relação muito próxima relação entre elas e o Réu BB, suscetível de sugerir o conhecimento ou o dever de conhecimento do abuso por parte daquelas. Decisiva é, pois, a atitude dos terceiros – das Rés DD, FF e GG -, e esta não é influenciada, minime que seja, pelo representante (tão pouco o interesse deste último está aqui em causa) – o Réu BB. A eventual culpa deste, no caso de haver abusado do poder de representação que lhe foi outorgado pela Autora AA, afigura-se irrelevante no que respeita à (in)eficácia dos negócios representativos, podendo, todavia, ser considerada para outros efeitos. O representante responde, naturalmente, perante o representado, segundo a relação interna ou subjacente (o que normalmente pressuporá culpa), se o negócio é eficaz.

Mandato e procuração

1. O mandato é, no caso em apreço, a causa ou fundamento da procuração conferida pela Autora AA ao Réu BB.  Os efeitos jurídicos dos negócios jurídicos celebrados por este – contrato promessa de partilha e escrituras de partilha e de retificação - produziram-se direta e imediatamente na esfera jurídica da Autora AA, nos termos do art. 258.º do CC.

2. O mandatário não é titular dos interesses em causa nem destinatário dos efeitos dos negócios celebrados. Está em causa a prática de atos jurídicos por conta alheia. O mandato tem um regime jurídico estruturalmente concebido para regular a prática de atos jurídicos por conta alheia ou de outrem[13].  Diz-se que um negócio jurídico é praticado por conta de outrem sempre que os seus efeitos, ou parte deles, se devam projetar ou repercutir na esfera jurídica de pessoa que nele não intervém[14].

3. Elemento verdadeiramente característico do mandato é a obrigação de o mandatário realizar o ato objecto do mandato. Não é o mandato, em si mesmo, que proporciona ao mandante os resultados económicos que pretende alcançar; esses resultados obtêm-se através do(s) negócio(s) a cuja conclusão o mandatário se obriga.

4. O mandato, na sua configuração clássica, é sempre no interesse do mandante, mantendo-se este interesse ainda que se verifique também a existência de interesse de terceiro ou do mandatário. É esta a doutrina tradicional, que explica certos traços fundamentais do regime do mandato, v.g., a obrigação do mandatário de prestar contas ao mandante, a obrigação do mandante de reembolsar o mandatário das despesas feitas e de o indemnizar dos prejuízos sofridos com a execução do mandato, assim como a revogabilidade do mandato pelo mandante.

5. O sujeito com quem o mandatário celebra negócios em execução do mandato é terceiro em relação a este contrato. As Rés DD, FF e GG são, assim, alheias à relação contratual de mandato estabelecida entre a Autora AA e o Réu BB.

6. Para agir por conta de outrem afigura-se irrelevante que o mandatário aja em seu nome ou no do mandante. A circunstância de o mandatário agir por conta e em nome do mandante, ou apenas por conta do mandante, não modifica a relação de cooperação interna do mandato, relevando apenas em termos externos. Na hipótese de agir por conta e em nome do mandante, a conduta do mandatário comporta uma exteriorização imediata do agir por conta de outrem, imediatamente evidente nas relações jurídicas estabelecidas em execução do mandato.

7. A doutrina tem enfatizado a distinção entre mandato e procuração, considerando-os negócios distintos mas funcionalmente coligados.

8. O mandato com representação não se traduz num tipo contratual autónomo, porquanto existe apenas um tipo de mandato, vertido no art. 1157.º do CC, onde o elemento tipificador é constituído pela obrigação assumida pelo mandatário de praticar um ou mais atos jurídicos por conta do mandante. À noção fundamental de mandato junta-se a atribuição ao mandatário do poder para agir em nome do mandante: o mandatarius age também como procurator. Assim, a representação é algo que acresce ao mandato e que influencia os seus efeitos quanto ao modo de produção, mas não integra a estrutura do contrato. O poder de representação conferido ao mandatário não modifica o tipo contratual: o mandato não sofre qualquer alteração de caráter funcional quando o mandatário se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos em nome do mandante. Aja ou não em nome do mandante, o mandatário atua sempre por conta do mandante, tendo, pois, em vista a satisfação do seu interesse. A previsão contratual da atuação em nome do mandante, numa perspetiva interna, integra uma determinação convencional que o mandatário deverá observar na realização da sua prestação. Dos arts. 1157.º e 1178.º, n.º 2, do CC, resulta que o mandatário se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos não apenas por conta, mas também em nome do mandante, tendo legitimidade para o representar perante terceiros.

9. No mandato com representação, o dominus – o mandante – como que declara próprios os efeitos dos futuros atos jurídicos a praticar pelo mandatário, de um lado e, de outro, leva-se ao conhecimento do terceiro que o negócio por si concluído com o mandatário interessa ao mandante.

10. Enquanto o contrato de mandato regula as relações internas entre mandante e mandatário, a procuração releva na relação externa entre mandatário-representante e terceiro. Serve, certamente, para fundar a representação, porque a ela se deve fazer referência no âmbito das relações externas. Todavia, no domínio das relações internas, entre mandatário e mandante, a procuração não pode deixar de ser conforme ao conteúdo do mandato: o mandatário dever agir em nome do mandante e em conformidade com o encargo assumido.

11. Na análise das posições jurídicas decorrentes do mandato com representação, impõe-se distinguir entre o plano relacional interno - entre mandante e mandatário - e o plano relacional externo - entre mandante e terceiro. Deve levar-se em devida linha de conta que a atuação em nome do mandante, no exercício da atividade gestória desenvolvida pelo mandatário, cria uma relação jurídica direta entre mandante e terceiro. Agindo em nome do mandante, o mandatário não tem, via de regra, outro escopo senão o de ligar a esfera jurídica daquele à do terceiro: estabelecer uma relação direta (entre mandante e terceiro), relativamente à qual o próprio mandatário permanece estranho. Nesta medida, a atividade do mandatário caracteriza-se pela alienidade do interesse prosseguido e pela atuação em nome do mandante. Praticando o ato (ou atos) jurídico no interesse alheio e agindo em nome do mandante, cumpre a sua obrigação ex mandato e determina a verificação do fenómeno representativo. Deste modo, em virtude da contemplatio domini, os efeitos do negócio concluído com o terceiro produzem-se diretamente na esfera jurídica do mandante. No plano dos efeitos jurídicos, a atividade desenvolvida pelo mandatário, nos limites dos poderes que lhe foram conferidos, refere-se diretamente ao mandante, sendo os direitos por si adquiridos e as obrigações por si assumidas desde o momento da sua constituição.

12. Graças aos efeitos diretos da representação, o mandante torna-se imediatamente titular, perante os terceiros, das posições jurídicas adquiridas mediante a execução do mandato, não sendo necessário, no plano jurídico formal, o cumprimento, por parte do mandatário, de negócios de transferência para o mandante dos resultados da atividade gestória.

13. Sem summo rigore, no mandato com representação, o mandatário como que é parte de duas relações diferentes: da relação interna de mandato, estabelecida com o mandante, e da relação externa, estabelecida com o terceiro em consequência do desenvolvimento da atividade gestória. No que respeita à relação interna, a atribuição do poder de representação comporta uma modificação da relação de gestão no sentido de que existe uma determinação contratual que impõe ao mandatário agir em nome do mandante e não em nome próprio: a prática do ato jurídico pelo mandatário afeta diretamente a esfera jurídica do mandante.

14. Nesta sede, na valoração teleológica do mandato, deve, por conseguinte, atender-se ao interesse do mandante – a Autora AA - e ao risco que esta certamente representou quando conferiu o encargo ao mandatário – ao Réu BB -, nos moldes em que o fez.

15. Por seu turno, a tutela do interesse creditório do mandante – a Autora AA - perante o incumprimento do mandatário - o Réu BB - é assegurada pelos mecanismos previstos no direito das obrigações e dos contratos em geral, assim como por aqueles estabelecidos na disciplina especial do contrato de mandato. Com efeito, o mandatário – o Réu BB – não praticou os atos compreendidos no mandato segundo as instruções recebidas da mandante - a Autora AA. Afastou-se, pois, dessas instruções, em que gozasse da faculdade de delas se desviar ao abrigo do art. 1162.º do CC.

IV - Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto por AA, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela Autora/Recorrente.


Lisboa, 6 de julho de 2021.


Sumário: 1. Os depoimentos de parte e de testemunhas, os relatórios periciais e os documentos particulares estão sujeitos ao princípio da livre apreciação do julgador. 2. De acordo com o disposto no artigo 682.º, n.º 2, do CPC, no recurso de revista, não é consentido ao STJ alterar a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do art. 674.º, do mesmo corpo de normas. 3. Do art. 662.º, n.os 1 e 2, als. a) e b), do CPC, decorre que o TR tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis. 4. O poder de representação encontra-se quase sempre coligado com uma relação subjacente, designadamente com o mandato. 5. Na ausência de poder de representação, a atuação do (putativo) representante não se afigura suscetível de afetar a esfera jurídica de outra pessoa (art. 268.º, n.º 1, do CC). 5. A atuação do representante, ainda formalmente dentro da sua legitimação mas merecendo um juízo negativo quanto ao seu licere por se colocar fora dos termos da relação subjacente, continua a vincular o representado. 6. Em ordem à tutela do terceiro, apenas o abuso de representação dele conhecido ou que ele devia conhecer (no momento da celebração do negócio) acarreta a ineficácia do negócio representativo. 7. O mandato, na sua configuração clássica, é sempre no interesse do mandante, mantendo-se este interesse ainda que se verifique também a existência de interesse de terceiro ou do mandatário. 8. Enquanto o contrato de mandato regula as relações internas entre mandante e mandatário, a procuração releva na relação externa entre mandatário-representante e terceiro. 9. A tutela do interesse creditório do mandante perante o incumprimento do mandatário é assegurada pelos mecanismos previstos no direito das obrigações e dos contratos em geral, assim como por aqueles estabelecidos na disciplina especial do contrato de mandato.


Este acórdão obteve o voto de conformidade dos Excelentíssimos Senhores Conselheiros Adjuntos António Magalhães e Fernando Dias, a quem o respetivo projeto já havia sido apresentado, e que não o assinam por, em virtude das atuais circunstâncias de pandemia de covid-19, provocada pelo coronavírus Sars-Cov-2, não se encontrarem presentes (art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, que lhe foi aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1 de maio).

Maria João Vaz Tomé (relatora)

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[1] Cf, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de janeiro de 2019 (Ana Paula Boularot), proc. n.º 3696/16.T8VIS.C1.S1 – disponível para consulta in www.dgsi.pt.

[2] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/9/2018, proferido no processo n.º 33/12.4TVLSB-A.L1.S1 - disponível em www.dgsi.pt
[3] Cf. Raul Guichard/Catarina Brandão Proença/Ana Teresa Ribeiro, “Anotação ao Artigo 258.º”, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p.627.
[4] Cf. Raul Guichard/Catarina Brandão Proença/Ana Teresa Ribeiro, “Anotação ao Artigo 258.º”, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p.627.
[5] Cf. Raul Guichard/Catarina Brandão Proença/Ana Teresa Ribeiro, “Anotação ao Artigo 258.º”, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, pp.627-628.
[6] Cf. Raul Guichard/Catarina Brandão Proença/Ana Teresa Ribeiro, “Anotação ao Artigo 258.º”, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, pp.637-638.
[7] Cf. Raul Guichard/Catarina Brandão Proença/Ana Teresa Ribeiro, “Anotação ao Artigo 258.º”, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, pp.651-652.
[8] Cf. Raul Guichard/Catarina Brandão Proença/Ana Teresa Ribeiro, “Anotação ao Artigo 258.º”, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p.652.
[9] Cf. Raul Guichard/Catarina Brandão Proença/Ana Teresa Ribeiro, “Anotação ao Artigo 258.º”, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p.658.
[10] Cf. Raul Guichard/Catarina Brandão Proença/Ana Teresa Ribeiro, “Anotação ao Artigo 258.º”, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p.658.
[11] Cf. Raul Guichard/Catarina Brandão Proença/Ana Teresa Ribeiro, “Anotação ao Artigo 258.º”, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p.658.
 Conforme referem Fernando Andrade Pires de Lima/João de Matos Antunes Varela, Código Civil Anotado,” Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p.249, “Há abuso de poderes de representação quando o representante, actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram conferidos, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado. (...) Neste caso, só é aplicável o regime da ineficácia previsto no artigo anterior, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso, Em qualquer caso, o negócio considera-se validamente celebrado em nome do representado, sem prejuízo, claro da responsabilidade que pode incidir sobre o procurador”.
[12] Cf. Raul Guichard/Catarina Brandão Proença/Ana Teresa Ribeiro, “Anotação ao Artigo 258.º”, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, pp.658-659.
[13] Cf. Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Coimbra, Almedina, 2002, p.65.
[14] Cf. Fernando Pessoa Jorge, O Mandato sem Representação, Coimbra, Almedina, 2001, pp.192-193.