Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1663/15.8T8PDL-T.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENDA
CUMPRIMENTO
LOCADOR
INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
PAGAMENTO INDEVIDO
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCO)
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - As prestações mensais devidas pela locatária, a título de rendas por força do contrato de arrendamento havido com a sociedade locadora entretanto declarada insolvente, não podem ser classificadas como dívidas a esta, já que os pagamentos que as mesmas consubstanciam, resultam da correspectividade que traduz o gozo da coisa locada que lhe foi proporcionado pela insolvente, significando, assim, o cumprimento de uma obrigação de carácter sinalagmático, sendo que, como deflui do art. 109.º, n.º 1, do CIRE «A declaração de insolvência não suspende a execução de contrato de locação em que o insolvente seja o locador, (…)».
II - O n.º 7 do art. 81.º do CIRE onde se estipula que os pagamentos de dívidas à massa efectuados ao insolvente, após a declaração de insolvência só serão liberatórios se forem efectuados de boa fé, em data anterior à do registo da sentença, ou se se demonstrar que o respectivo montante deu efectiva entrada na massa insolvente, não tem aplicabilidade no caso do contrato de arrendamento, pois não se está na presença do pagamento de dívidas à insolvente, mas sim perante o cumprimento de um contrato de arrendamento e inerentes prestações, que, por parte da locatária consistem no pagamento mensal das rendas, nos termos previstos no contrato.
Decisão Texto Integral:

PROC 1663/15.8T8PDL-T.L1.S1

6ª SECÇÃO

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I MASSA INSOLVENTE DE MADIÇOR - SOCIEDADE DE MATERIAIS E CONSTRUÇÃO CIVIL LDA intentou contra CTT - CORREIOS DE PORTUGAL, SA  ação de despejo, em processo declarativo comum, pedindo que fosse declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a Autora e Ré; a condenação da Ré ao pagamento das rendas vencidas no valor de €42.954,66, acrescidos de juros de mora até integral pagamento; e ainda na desocupação do imóvel locado, entregando-se o mesmo livre de pessoas e bens à Autora.

Alegou que a Ré não pagou as rendas contratualmente estabelecidas com a Madiçor, Lda., não tendo a Massa Insolvente recebido qualquer pagamento a esse título.

Citada, a Ré contestou invocando a exceção do pagamento, sustentando a manutenção do contrato de arrendamento, impugnando o alegado pela A..

A Autora, convidada previamente a responder à exceção invocada, veio fazê-lo sustentando e reiterando o alegado incumprimento da obrigação de pagamento das rendas.

Findos os articulados, veio a ser proferido despacho saneador, com dispensa da de audiência prévia, fixando-se objeto do litígio e os temas de prova e admitindo-se os meios probatórios requeridos.

Porque a Autora veio dar nota de que o prédio locado à Ré foi vendido a terceiros, em novembro de 2019, e, por isso, só mantinha interesse, única e exclusivamente, no pedido de pagamento das rendas vencidas e não pagas, na sequência do que veio a ser proferido despacho que declarou a ilegitimidade da Autora no que tocava aos pedidos de resolução do contrato de arrendamento e de entrega do locado, deles sendo a Ré absolvida da instância, prosseguindo a lide apenas quanto ao pedido de condenação no pagamento das rendas.

Foi proferida sentença a julgar a ação improcedente, da qual a Autora interpôs recurso de Apelação, o qual procedeu parcialmente, tendo a Ré sido condenada a pagar à Autora a quantia de €41.931,93, correspondente ao valor das rendas dos meses de Novembro de 2015 a Março de 2019, absolvendo-se a mesma do demais peticionado.

Inconformada com este desfecho, recorre agora a Ré de Revista, apresentando as seguintes conclusões:

- Vem o presente recurso de Revista interposto do Douto Acórdão que alterou a sentença da1ª instância, julgando a ação parcialmente procedente e, em conformidade, condenou a ré no pagamento à autora da quantia de €41.931,93, correspondente ao valor das rendas dos meses de Novembro de 2015 a Março de 2019.

- Entendeu o Tribunal da Relação ……. que os pagamentos de rendas feitos nos termos acordados com a gerência da insolvente, só são liberatórios se efetuados de boa-fé, e só relativamente aos realizados antes do registo da sentença que declarou a insolvência da sociedade senhoria (Art. 81.º n.º 7, 1.ª parte, conjugado com o Art. 38.º, ambos do C.I.R.E.).

- Em discordância com o entendimento perfilhado no Douto Acórdão ora recorrido, a ré, ora recorrente, submete à apreciação desse Alto Tribunal a questão do cumprimento da obrigação de pagamento das rendas após a declaração de insolvência da sociedade senhoria, tendo em consideração a matéria assente nos presentes autos.

- Em Novembro de 2008, entre a Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda. e os CTT – Correios de Portugal, S.A., aqui recorrente, foi celebrado um contrato de arrendamento não habitacional, relativo à fração autónoma correspondente ao r/chão ……. do prédio sito na Rua …….., Freguesia ……… e Concelho …….., pelo prazo de 15 anos, contados de 1 de dezembro de 2008, mediante o pagamento pela inquilina duma renda mensal de €1.022,73, a liquidar adiantadamente e até ao dia oito do mês anterior àquele a que dissesse respeito, por depósito bancário.

- Estamos, assim, perante um contrato de locação, tal como define o Artigo. 1022.º do Código Civil (CC), nos termos do qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante uma retribuição, no caso em apreço, uma renda.

- Na vigência do contrato de arrendamento, em 7 de Setembro de 2015, a sociedade locadora foi declarada insolvente, tendo sido nomeada administradora da insolvência a Dr.ª AA., com morada na Rua ……...

- Contrariamente ao que preconizou o Tribunal da Relação ……, entende a recorrente que o nº 7 do artigo 81º do CIRE não tem aplicabilidade no caso em apreço, uma vez que não estamos na presença do pagamento de dívidas à insolvente.

- Dispõe o nº 7 do artigo 81º do CIRE que os pagamentos de dívidas à massa efectuados ao insolvente, após a declaração de insolvência só serão liberatórios se forem efectuados de boa fé, em data anterior à do registo da sentença, ou se se demonstrar que o respectivo montante deu efectiva entrada na massa insolvente.

- Nos presentes autos não estamos perante pagamento de qualquer dívida à massa, efectuado ao insolvente, mas sim perante o cumprimento de um contrato de arrendamento e inerentes prestações, que, por parte da recorrente consistem no pagamento mensal das rendas, nos termos previstos no contrato de arrendamento.

- Dispõe o nº 1 do artigo 109º do CIRE que a declaração de insolvência não suspende a execução do contrato de locação em que o insolvente seja o locador, e a sua denúncia por qualquer das partes apenas é possível para o fim do prazo em curso, sem prejuízo dos casos de renovação obrigatória.

- Esta norma legal vem consagrar a “inoponibilidade da declaração de insolvência aos locatários do devedor, conquanto, naturalmente, se mantenha a faculdade geral de denúncia que decorra da lei ou do próprio contrato, sem prejuízo dos casos de renovação obrigatória.

- Atento o disposto no artigo 109º do CIRE, contratos de locação têm de ser cumpridos pelas partes nos seus precisos termos, traduzindo-se esta disposição legal numa manifesta protecção dos locatários.

- Nesta conformidade, qualquer alteração contratual, tem de comunicada, pela respectiva parte, ao outro contraente, nos termos previstos no Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro (NRAU).

- Na sequência da declaração de insolvência, nos termos no disposto no nº 1 do artigo 81º do CIRE, os poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente passam a competir ao administrador de insolvência.

- O recebimento das rendas constitui um acto de administração, cujos poderes/deveres foram transferidos para a Sra. administradora de insolvência (nº 1 do artigo 81º do CIRE), que não os exerceu, circunstância à qual a ré, ora recorrente, é alheia.

- Qualquer alteração contratual do contrato de arrendamento, nomeadamente, do modo do pagamento da renda mensal, pressupunha que a Sra. administradora de insolvência tivesse remetido uma comunicação à ré, na qual informasse que as rendas que se vencessem após a declaração de Insolvência deveriam pagas à Massa Insolvente para a respectiva conta bancária, indicando para tanto o respectivo NIB, ou outra forma de pagamento, o que não se verificou.

- É patente, que a Sra. administradora de insolvência, no âmbito das suas funções, não usou da diligência que lhe era exigível, sendo da sua inteira responsabilidade que o contrato de arrendamento tenha sido cumprido pela ré nos exactos termos anteriores à declaração de insolvência da proprietária do locado.

- E, tendo tomado conhecimento da existência do contrato de arrendamento, pelo menos, em Outubro de 2016 (cft. ponto 10. da matéria assente), a Sra. administradora de insolvência apenas dirigiu a 1ª missiva à ré em Janeiro de 2019, mais de dois anos depois de ter, inequivocamente, tomado conhecimento da existência do arrendamento, e, no teor de tal comunicação, omite saber da existência do contrato …, sendo certo que, nem nesse momento, e apesar de tal lhe ter sido solicitado, não se dignou a facultar o NIB da conta bancária da massa insolvente … conduta que constituiu, de novo, grave negligência no exercício das suas junções, em claro prejuízo dos credores da insolvente.

- Tal com foi referido no Douto Acórdão, a publicação da sentença de declaração de insolvência, só por si, não é suficiente para se considerar que a ré, ora recorrente, tomou conhecimento da situação de insolvência por parte da sociedade proprietária do locado, e, por maioria de razão, tendo em conta as regras da experiência comum, muito menos a ré tomou conhecimento do registo da sentença de insolvência junto do registo comercial, que, pese embora seja oponível “erga omnes”, considerando que que não está em causa o pagamento de uma dívida à massa insolvente, mas sim o cumprimento de uma obrigação decorrente de uma contrato de arrendamento, tal registo não poderá relevar para a questão aqui em apreço.

- A ré, ora recorrente, pagou pontualmente as rendas que se venceram ao longo da vigência do contrato de arrendamento, pelo que, cumpriu com as prestações a que se encontrava adstrita, não tendo constituído qualquer dívida para com a insolvente ou mesmo para com a massa insolvente, aqui autora e recorrida.

- O pagamento da renda não constitui o pagamento de uma dívida, a que se alude naquele nº 7 do artigo 81º do CIRE, constituindo o cumprimento das obrigações decorrentes da vigência de um contrato de arrendamento celebrado entre a sociedade insolvente e a ré, ora recorrente, pelo que, salvo o devido respeito, que é muito, o Douto Acórdão errou ao enquadrar juridicamente os factos no disposto no nº 7 do artigo 81º do CIRE, tendo sido violado o regime definido pelo artigo 109º do CIRE.

- Constitui uma injustiça gritante a condenação da ré, ora recorrente, no pagamento de rendas, que já liquidou, cuja obrigação, pontualmente e de boa fé cumpriu, na vigência de um contrato de arrendamento que não foi objecto de qualquer alteração contratual e relativamente ao qual, como já referido, a insolvência é inoponível (artigo 109º do CIRE).

Nas contra alegações a Autora, aqui Recorrida, pugna pela manutenção do julgado.

II Põe-se como questão única a resolver no presente recurso de Revista, a de saber se as rendas devidas em sede de contrato de arrendamento podem, ou não, ser classificadas como dívidas da insolvente locadora, face ao disposto no artigo 81º, nº 7 do CIRE.

As instâncias deram como assentes os seguintes factos:

1. Em 24 novembro de 2008, a R. celebrou com a Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda., um contrato de arrendamento não habitacional, tendo como objeto a fração autónoma designada pela letra A, destinada a comércio, correspondente ao r/chão ……. do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ……, freguesia …….., concelho …….., descrito na conservatória do registo predial …. sob o nº……., inscrito na matriz predial urbana da freguesia .… sob o artigo ….;

2. De acordo com o contrato referido em 1., o início da sua vigência foi estabelecido para o dia 1 de dezembro de 2008, com o prazo de 15 anos, sendo automaticamente renovável por períodos de 3 anos, se não fosse denunciado pelas partes nos termos legalmente previstos;

3. O valor da renda mensal, inicialmente, foi acordado em €1.022,73 (mil e vinte e dois euros e setenta e três cêntimos), a pagar adiantadamente e até ao dia oito do mês anterior àquele a que disser respeito, por depósito bancário na conta com o NIB ……, do Millennium BCP;

4. Em 18 de outubro de 2012, a Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda., por intermédio do seu sócio gerente BB., deu, nessa qualidade, indicações à R., através de e-mail que lhe dirigiu, do endereço eletrónico .....@sapo.pt, no sentido de o pagamento da renda passasse a ser efetuado por transferência bancária para a conta com o NIB ….., da Caixa Geral de Depósitos;

5. Na sequência da instrução referida em 4., a partir de novembro de 2012, a R. passou a pagar a renda mensal devida nos termos do contrato acima em 1. a 3., através de transferência bancária para a conta com o NIB ……, da Caixa Geral de Depósitos;

6. Com o pagamento das rendas, a R. procedeu à retenção na fonte do imposto devido pela Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda., entregando os valores dessa retenção, nos termos da lei, à Autoridade Tributária, emitindo, quanto a esses pagamentos e retenções as competentes declarações de rendimentos anuais, onde indicou os montantes de imposto retidos em cada ano e que, em janeiro seguinte, designadamente de 2015 a 2019, remeteu à sociedade Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda., via postal normal, para a morada da respetiva sede social, sita na Rua …….., ……….;

7. No locado encontra-se instalado Centro de Desporto, Cultura e Recreio do Pessoal dos CTT (CDCR dos CTT) e na montra dessa fração, que dá para a via pública, desde sempre que se encontra afixado o símbolo do CDCR dos CTT … e nesse mesmo prédio também a Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda. tinha instalações devidamente publicitadas;

8. Em 7.9.2015 foi proferida sentença de declaração de insolvência da Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda., pessoa coletiva nº……. com sede na rua ………, fração …….., ……;

9. No âmbito da respetiva liquidação, em 27.10.2016, a senhora Administradora de Insolvência, Dra. AA., que, por força dessa nomeação passou a deter os poderes de administração, gestão e disposição relativamente a bens compreendidos na massa insolvente, procedeu à apreensão dos bens imóveis que pertenciam à insolvente, entre eles, o imóvel locado à R., registando essa apreensão através da Ap. …..;

10. Pelo menos em outubro de 2016, a Leiloeira que estava encarregada de proceder à venda dos bens aprendidos nos autos principais, deparou-se com a fração aqui em causa ocupada pela R., disso dando conhecimento à Sra. Administradora da insolvência, o que a levou a interpelar a R., apenas por missiva de 10.1.2019, para que justificasse tal ocupação;

11. Em resposta, a R., enviou-lhe carta datada de 11.2.2019, com cópia de contrato de arrendamento e os comprovativos de pagamentos das rendas;

12. Em resposta à missiva da R., a A. enviou-lhe um mail, datado de 18.2.2019, com o seguinte teor:

“1 - A Massa Insolvente da Madiçor nunca recebeu o pagamento de qualquer renda a que se refere o contrato de arrendamento não habitacional celebrado em 24 de novembro de 2008;

2 - O NIB para o qual V. Exas procedem à transferência, como é do vosso conhecimento, não é o mesmo que consta do referido contrato nem tão pouco pertence à Madiçor;

3 - A Massa Insolvente nunca emitiu qualquer recibo de pagamento de renda. Termos em que se interpela V. Exas para procederem ao pagamento das rendas em falta, desde setembro de 2015, inclusive, até à presente data, sob pena de não o fazendo, no prazo máximo de 7 dias, serem acionados todos os mecanismos judiciais com vista à entrega do imóvel e ao pagamento das rendas em falta”;

13. Por carta datada de 25 de fevereiro de 2019, a R. enviou nova missiva à A., nos termos da qual alega, de forma sumária, que: “Celebrou um contrato de arrendamento; cumpriu sempre as suas obrigações, nomeadamente, pagando as rendas, por transferência bancária, para as contas indicadas pela primeira contraente: de dezembro de 2008 a outubro de 2012, através do NIB …… do Millennium BCP e de novembro de 2012 até à presente, através do NIB …… da Caixa Geral de Depósitos, conforme instruções da Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda. documentadas em anexo”; 14. Por oficio datado de 18 de janeiro de 2019, o Banco Millennium informou a A. quais as contas de que era titular e o respetivo saldo;

15. A R., até ao momento reportado em 11., nunca informou a A. da existência do contrato de arrendamento referido em 1. a 3. acima;

16. A A. nunca recebeu o pagamento de qualquer renda proveniente da R. e nunca emitiu nenhum recibo a favor desta;

17. A conta bancária com o NIB …… da Caixa Geral de Depósitos não é titulada pela A. nem é dela beneficiária;

18. A R. sempre procedeu ao pagamento, pontual, das rendas nos termos apontados acima em 3. a 5., desconhecendo, até 16 de janeiro de 2019, que a Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda. fora declarada Insolvente em 7.9.2015;

19. Na missiva que a R. enviou à A. e referida em 13., solicitou-lhe que lhe fosse facultado o NIB da conta bancária para a qual haveria de passar a pagar as rendas…o que não lhe foi fornecido, levando-a, assim, a proceder ao pagamento das rendas que se foram vencendo, através da consignação em depósito, junto da Caixa Geral de Depósitos, o que fez a partir de dia 8 de março de 2019, com o pagamento da renda referente ao mês de abril de 2019, no valor de €1.025,80 (considerando as atualizações legalmente previstas e sem qualquer retenção de imposto), tendo procedido de igual forma nos meses subsequentes, disso dando conhecimento à A. no dia 11 de março de 2019, bem como à respetiva mandatária e ao processo de insolvência;

20. Ainda assim, em 20 de maio de 2019, a A. remeteu uma comunicação à R., através da qual pretendeu resolver o contrato de arrendamento, com o fundamento na falta de pagamento das rendas, pretensão à qual, por carta de dia 27 de maio de 2019, se manifestou expressamente oposição à resolução do contrato, por falta de fundamento legal;

21. A Leiloeira ........, que foi encarregada da venda dos imóveis da A., em leilão anunciado na internet, cuja data de encerramento era de 1.12.2018, indicou através do pregoeiro e de forma expressa, que o imóvel aqui em causa se encontrava arrendado, desde 1 de dezembro de 2008, pelo prazo de 15 anos, renovável por períodos de 3 anos, e que o valor da renda era de €1.022,73 mensais, desconhecendo a R. a data em que a leiloeira tomou conhecimento do arrendamento, nem por que forma acedeu a essa informação;

22. A R. desconhece quantos leilões existiram e quais as datas em que os mesmos decorreram para promover a venda dos imóveis da A., sendo certo que a publicidade dos leilões de imobiliário é feita com bastante antecedência, desconhecendo também a ré, no caso concreto, quando é que o anúncio do leilão que findava em 1 de dezembro de 2018 foi publicado; 23. Só a partir de 29 de janeiro de 2019, é que a R. passou a ser notificada para o exercício do direito de preferência na compra do imóvel, a saber:

. em 29 de janeiro de 2019, para o exercício do direito de preferência na venda do imóvel no leilão a realizar em 8 de fevereiro de 2019;

. em 5 de abril de 2019, para o exercício do direito de preferência na venda do imóvel no leilão a realizar em 18 de abril de 2019; e

. em 25 de junho de 2019, para o exercício do direito de preferência na venda do imóvel no leilão a realizar em 9 de julho de 2019.

Foram dados por não provados os seguintes factos:

24. Que a A. apenas tomou conhecimento de que a fração aqui em causa estava arrendada em janeiro de 2019, desconhecendo ela a existência do contrato de arrendamento em causa;

25. Que as partes intervenientes no contrato, por um lado, a sociedade Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda. representada pelo respetivo gerente e o próprio gerente, senhor BB., nunca comunicaram à A. o contrato referido em 1.

Vejamos, então.

Insurge-se a Recorrente contra decisão plasmada no Acórdão sob recurso uma vez que aí se entendeu que os pagamentos de rendas feitos nos termos acordados com a gerência da insolvente, só são liberatórios se efetuados de boa-fé, e só relativamente aos realizados antes do registo da sentença que declarou a insolvência da sociedade senhoria, nos termos dos artigos 81.º n.º 7, 1.ª parte, conjugado com o 38.º, ambos do CIRE.

Façamos antes um pequeno sobrevoo sobre a factualidade assente.

Entre Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda (agora Insolvente) e a Ré foi celebrado um contrato de arrendamento, cujo inicio teve lugar em Em 24 novembro de 2008, o qual teve por objecto o r/chão …… do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ……., freguesia ……., concelho ……., pelo prazo de de 15 anos, sendo automaticamente renovável por períodos de 3 anos, se não fosse denunciado pelas partes nos termos legalmente previstos, sendo o valor da renda mensal, inicialmente, foi acordado em €1.022,73 (mil e vinte e dois euros e setenta e três cêntimos), a pagar adiantadamente e até ao dia oito do mês anterior àquele a que disser respeito, por depósito bancário na conta com o NIB ……., do Millennium BCP.

Porém, em 18 de outubro de 2012, a locadora, Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda., por intermédio do seu sócio gerente BB., deu, nessa qualidade, indicações à R., através de e-mail que lhe dirigiu, do endereço eletrónico .....@sapo.pt, no sentido de o pagamento da renda passasse a ser efetuado por transferência bancária para a conta com o NIB …….., da Caixa Geral de Depósitos, o que a Ré passou a fazer.

Em 7 de Setembro de 2015 foi declarada a insolvência da Locadora Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, tendo a respectiva AI procedido à apreensão dos imóveis propriedade da Insolvente, entre os quais o locado, o que aconteceu em 27 de Outubro de 2016, sendo que em outubro de 2016, a Leiloeira que estava encarregada de proceder à venda dos bens aprendidos nos autos principais, deparou-se com a fração aqui em causa ocupada pela Ré, disso dando conhecimento à AI, mas esta, apenas em Janeiro de 2019, através de carta enviada à Ré datada de 10 de Janeiro, solicitou-lhe que justificasse a ocupação da fracção, tendo a Ré feito chegar a cópia de contrato de arrendamento e os comprovativos de pagamentos das rendas, através da carta datada de 11 de Fevereiro, tendo-lhe solicitado através de nova carta datada de 25 de Fevereiro de 2019 que lhe fosse facultado o NIB da conta bancária para a qual haveria de passar a pagar as renda, tendo a Autora respondido através de email refutando o recebimento de quaisquer rendas, omitindo a informação do seu NIB para recebimento futuro das rendas.

A Leiloeira ........, que foi encarregada da venda dos imóveis da Autora, em leilão anunciado na internet, cuja data de encerramento era de 1 de Dezembro de 2018, indicou através do pregoeiro e de forma expressa, que o imóvel aqui em causa se encontrava arrendado, desde 1 de dezembro de 2008, pelo prazo de 15 anos, renovável por períodos de 3 anos, e que o valor da renda era de €1.022,73 mensais, tendo a Ré, a partir de 29 de Janeiro de 2019 passado a ser notificada para o exercício do direito de preferência na compra do imóvel.

Do mencionado iter factual, podemos assacar o seguinte:

Entre a sociedade Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda, agora Insolvente, e a Ré foi havido um contrato de arrendamento, tal como o mesmo nos é definido pelos artigos 1022º e 1023º do CCivil, pelo qual se obrigou a proporcionar a esta o gozo do r/chão …… do seu prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ……., freguesia …….., concelho ………, pelo prazo de de 15 anos, automaticamente renovável por períodos de 3 anos, se não fosse denunciado pelas partes, mediante a satisfação da quantia mensal de €1.022,73 (mil e vinte e dois euros e setenta e três cêntimos), a pagar adiantadamente e até ao dia oito do mês anterior àquele a que dissesse respeito, por depósito bancário na conta com o NIB ……, do Millennium BCP.

Subsequentemente, em 18 de outubro de 2012, a locadora, Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda., por intermédio do seu sócio gerente BB., deu, nessa qualidade, indicações à Ré no sentido de o pagamento da renda passasse a ser efetuado por transferência bancária para a conta com o NIB ……., da Caixa Geral de Depósitos, o que a Ré passou a fazer.

Esta alteração contratual mostra-se perfeitamente lícita, uma vez que foi feita por escrito, consentânea, pois, com a formalidade exigida para este tipo negocial, o que decorre do artigo 1069º do CCivil.

A Locadora, Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda, foi entretanto declarada insolvente, o que ocorreu em 7 de Setembro de 2015 tendo a respectiva AI procedido à apreensão dos imóveis propriedade da Insolvente, entre os quais o locado, o que aconteceu em 27 de Outubro de 2016, sendo que em outubro de 2016, a Leiloeira que estava encarregada de proceder à venda dos bens aprendidos nos autos principais, deparou-se com a fração aqui em causa ocupada pela Ré, disso dando conhecimento à AI.

Aqui chegados, deparamo-nos com a nossa primeira perplexidade, qual é, a de a actuação do AI implicar, além do mais, as funções decorrentes do preceituado no artigo 55º do CIRE, as quais obrigatoriamente passariam por, além do mais, assumir o controlo da massa insolvente, proceder à sua administração e liquidação e, finalmente, repartir o respetivo produto final pelos credores.

Para tal o efeito, a Lei dispõe no artigo 55º, nº1, alínea a) do CIRE, que cabe ao administrador da insolvência “Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram;” e, “Prover, no entretanto, à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa, se for o caso, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica.”, alínea b) do mesmo segmento normativo.

De outra banda, a declaração de insolvência, faz recair sobre o seu administrador o poder de administrar os bens integrantes da massa insolvente de harmonia com disposto no artigo 81º, nº 1 do CIRE, cabendo-lhe a representação do devedor para os todos os efeitos de caráter patrimonial que respeitem à massa insolvente, nos termos do nº 4, sendo também da sua competência a apreensão dos bens, bem como a sua a sua guarda porque deles fica depositário, artigo 150º, nº 1 do mesmo diploma.

Nesta qualidade, impõe-se que o administrador da insolvência elabore um inventário dos bens e direitos que integram a massa insolvente, assim como uma lista provisória dos credores, e um relatório com o intuito de vir a ser apreciado pela assembleia dos credores, artigos 153º a 155º do CIRE.

Daqui deflui, sem margem para dúvidas, que sobre a AI impendia o dever e a obrigação de se ter inteirado desde a apreensão do prédio onde se situa a fracção autónoma arrendada à Ré, da respectiva situação, isto é, se a mesma estava ou não ocupada e estando, a que título.

Mas mesmo que por mera hipótese de raciocínio a situação locatícia em tela lhe tivesse escapado por qualquer razão que aqui se não vislumbra, como deflui da materialidade assente em Outubro de 2016 a encarregada da venda deu-lhe conhecimento que a fracção estava ocupada pela Ré, pelo que a mesma deveria, pelo menos nessa data, ter tomado as providências adequadas, procedendo às verificações pertinentes, nomeadamente através da escrituração e/ou documentação da sociedade insolvente, ou mesmo até, com a recolha de informações junto da Ré, com vista à dilucidação da bondade da ocupação da fracção por esta.

Contudo, a AI omitiu qualquer pedido de informação, tendo interpelado a Ré apenas em Janeiro de 2019, isto é mais de dois anos depois, como deflui dos factos dados por provados, e não obstante aquela lhe tivesse sido enviada a documentação pertinente, bem como a solicitação de envio do IBAN, para que fosse possível o pagamento directo da rendas, foi omitida qualquer informação nesse sentido o que veio a originar a consignação em depósito das rendas.

Não podemos deixar de acentuar, aqui, o comportamento negligente da AI, pois num processo de insolvência típico, com um objetivo liquidatário, a mesma deveria ter assumido, de pleno, o controlo da massa insolvente.

Insurge-se a Recorrente contra o Acórdão recorrido, uma vez que na sua tese o nº 7 do artigo 81º do CIRE onde se estipula que os pagamentos de dívidas à massa efectuados ao insolvente, após a declaração de insolvência só serão liberatórios se forem efectuados de boa fé, em data anterior à do registo da sentença, ou se se demonstrar que o respectivo montante deu efectiva entrada na massa insolvente, não tem aplicabilidade no caso em apreço, pois não estamos na presença do pagamento de dívidas à insolvente, mas sim perante o cumprimento de um contrato de arrendamento e inerentes prestações, que, por parte da recorrente consistem no pagamento mensal das rendas, nos termos previstos no contrato de arrendamento.

Efectivamente as prestações mensais devidas pela Recorrente a título de rendas por força do contrato de arrendamento havido com a sociedade Madiçor - Sociedade de Materiais e Construção Civil, Lda, entretanto declarada Insolvente e aqui Autora e Recorrida, não podem ser classificadas como dividas da insolvência, já que os pagamentos que as mesmas consubstanciam, resultam da correspectividade que traduz o gozo da coisa locada que lhe foi proporcionado por esta, significando, assim, o cumprimento de uma obrigação de carácter sinalagmático, sendo que, como deflui do artigo 109º, nº 1 do CIRE «A declaração de insolvência não suspende a execução de contrato de locação em que o insolvente seja o locador, (…)».

Daí que constitua obrigação do devedor, quando é o requerente da insolvência, fazer juntar aos autos, além do mais, a relação de bens que detenha em regime de arrendamento, nos termos da alínea e) do artigo 24º do CIRE, documentos esses, que devem ser entregues ao AI, artigo 36º, nº 1, alínea f) do CIRE.

E, se «a declaração de insolvência priva imediatamente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.» nos termos do artigo 81º, nº 1 do CIRE, as rendas devidas pelo gozo da fracção, como se apurou, apesar da declaração da insolvência em 7 de Setembro de 2015 continuaram a ser satisfeitas pela Recorrente através de transferência bancária para a conta bancária que lhe havia sido indicada pelo sócio gerente da Insolvente, BB., o que aconteceu até Fevereiro de 2019, o que significa que este ex-representante daquela recebeu indevidamente as rendas durante aquele período e até ser dado conhecimento à arrendatária pela AI, da situação insolvencial da locadora, de onde se pode concluir que durante mais de três anos, no que tange a este contrato de arrendamento, a Administradora da Insolvência descurou por completo os deveres que sobre si impendiam, de gestão administrativa dos bens apreendidos para a massa.

As rendas devidas pelo gozo da fracção foram sempre satisfeitas atempadamente pela Ré, aqui Recorrente, independentemente de terem sido recebidas entre 7 de Setembro de 2015 e Fevereiro de 2019 pelo ex gerente da Insolvente, indevidamente e em violação do apontado preceito, mas com a contribuição da negligência da AI, que ignorou por completo a situação do imóvel apreendido, mormente no que diz respeito ao arrendamento da fracção em causa.

A Recorrente cumpriu sempre a obrigação do pagamento da renda mensal que sobre si impendia nos termos do artigo 1038º, alínea a) do CCivil, em contrapartida do cumprimento da obrigação do Locador decorrente do disposto no artigo 1031º, alínea b) do mesmo diploma, consistente em assegurar-lhe o gozo da coisa locada o que sempre foi feito.

Assim sendo, não constituindo as prestações devidas pelo gozo da fracção, dívidas à massa, não podem ser subsumidas no disposto no artigo 81º, nº 7 do CIRE, pelo que, tendo a Recorrente satisfeito pontualmente as suas obrigações, não pode ser condenada a repetir tal pagamento, como se conclui no Acórdão impugnado, sem embargo de um eventual procedimento por banda da AI contra o ex gerente da Insolvente caso se entenda existir fundamento para tanto.

Procedem, pois, as conclusões de recurso.

III Destarte, concede-se a Revista, revogando-se em consequência a decisão plasmada no Acórdão recorrido, repristinando-se a sentença de primeiro grau.

Custas pela Recorrida massa insolvente.

Lisboa, 26 de Janeiro de 2021

Ana Paula Boularot (Relatora)

(Tem o voto de conformidade dos Exºs Adjuntos Conselheiros Fernando Pinto de Almeida e José Rainho, nos termos do artigo 15º-A aditado ao DL 10-A/2020, de 13 de Março, pelo DL 20/2020, de 1de Maio).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).