Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4080/16.9T8BRG-A.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: USUCAPIÃO
FRACÇÃO AUTÓNOMA
FRAÇÃO AUTÓNOMA
OBJECTO IMPOSSÍVEL
OBJETO IMPOSSÍVEL
PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
ACTO INÚTIL
ATO INÚTIL
CAUSA DE PEDIR
PRÉDIO URBANO
Data do Acordão: 10/04/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACOS JURÍDICOS / OBJECTO NEGOCIAL, NEGÓCIOS USUÁRIOS / ACTOS JURÍDICOS – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE HORIZONTAL / CONSTITUIÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / GESTÃO INICIAL DO PROCESSO.
Doutrina:
- Aragão Seia, Propriedade Horizontal, Condóminos e Condomínios, Almedina, 2001, p. 34;
- Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1996, p. 313;
- Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2007, p. 26 a 28 e 35 a 41;
- Rui Vieira Miller, A Propriedade Horizontal no Código Civil, Almedina, 3.ª Edição, p. 96 e 97.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 280.º, 295.º, 1414.º, 1415.º, 1417.º, N.º 1 E 1418.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 590.º, N.ºS 2, ALÍNEA B) E 4.
Sumário :
I. A aquisição originária de um bem imobiliário por usucapião só é legalmente possível se a posse recair sobre coisa imóvel ou parte de coisa imóvel suscetível de constituir objeto de direito real.

II. A usucapião, enquanto ato jurídico de aquisição originária de direitos reais, não opera validamente sobre coisa que, nesse domínio, se traduza em objeto legalmente impossível, nos termos do artigo 280.º, aplicável por via do art.º 295.º, ambos do CC.

II. O exercício de posse usucapível sobre parte delimitada de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal não conduz, por si só, à aquisição de um direito de propriedade singular sobre essa parte, destacável daquela fração, já que essa parte não é suscetível, no quadro daquele regime, de constituir unidade independente, nos termos do artigos 1414.º e 1415.º do CC.

VI. Face ao disposto do artigo 1417.º, n.º 1, do CC, a propriedade horizontal pode ser originariamente constituída por usucapião, mas tal constituição tem de assentar em exercício de posse usucapível sobre prédio urbano, ou porventura parte dele, que reúna, desde logo, as características exigidas pelos artigos 1414.º e 1415.º do CC, mormente sobre frações em condições de constituírem unidades independentes, distintas e isoladas ente si com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

V. Só assim poderão ficar a constar da sentença de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião as especificidades obrigatórias a que se refere o artigo 1418.º, n.º 1, do CC.

VI. A ação em que se vise o reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião terá de correr entre todos os condóminos para que a respetiva sentença possa ter eficácia de caso julgado material em relação a todos eles.

VII. No âmbito das pretensões de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião, a causa de pedir deverá integrar duas vertentes essenciais, a saber:

i) - a factualidade respeitante ao exercício da posse usucapível do prédio urbano ou parte dele sobre que se pretende o reconhecimento da propriedade horizontal;

ii) – a descrição das características quer físicas, estruturais e funcionais, quer técnicas do objeto sobre que incide essa posse em termos de corresponder ao que é legalmente exigível para o reconhecimento de uma situação factual de propriedade horizontal, em especial no que se refere à concreta individualização e especificação das frações autónomas, de harmonia com o disposto nos artigos 1414.º e 1415.º do CC e ainda com a regulamentação aplicável das edificações urbanas.

VIII. Num caso como o dos autos, em que os A.A. pretendem a constituição da propriedade horizontal por usucapião sobre duas partes de uma fração autónoma já constituída, mas pedem que os R.R. realizem obras numa dessas partes para que possa ser destacável, chegando mesmo a admitir a possibilidade do não fracionamento, uma tal pretensão contradiz a necessária verificação de pré-existência de uma situação de facto inerente ao regime da propriedade horizontal.

IX. Nestas circunstâncias alegatórias, o suprimento de uma tal contradição implicaria a reformulação da causa de pedir, num segmento essencial, muito para além do aperfeiçoamento em sede de factos complementares ou concretizadores dos já alegados.

X. Em tal situação, não se mostra útil um convite ao aperfeiçoamento para o adequado aproveitamento da pretensão deduzida de modo tão insuficiente, em termos de justificar que o tribunal use do poder-dever conferido pelo artigo 590.º, n.º 2, alínea b), e n.º 4, do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



 I – Relatório


1. AA e cônjuge BB (A.A.) intentaram, em 22/09/2016, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra:

- CC e cônjuge DD (1.ºs R.R.);

- EE e cônjuge FF (2.ºs R.R.);

 - GG - Sociedade de Investimentos Imobiliários e Construção Civil, Lda (3.ª R.);

  - HH - Sociedade de Investimentos Imobiliários, Lda (4.ª R.).  


Alegam, no essencial, o seguinte: 

   . Em 27/02/1985, foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda entre os A.A., então representados por II, na qualidade de promitentes-compradores, o 1.º R. CC, na qualidade de promitente-vendedor, no âmbito do qual se convencionou, sob cláusula verbal, que:

“o prédio dos A.A. seria o referente à fração autónoma designada pela letra E, correspondente à 2.ª loja do 1.º andar, a contar do sul, destinada a atividades económicas, descrita na 2.ª Conservatória sob o n.º 593 com a artigo matricial urbano 1409 NIP da freguesia de …, em Braga”;

   . Realizada a escritura pública de compra e venda em 23/05/1985, nesta data, o vendedor CC entregou ao representante dos A.A. as chaves da porta do estabelecimento correspondente àquela fração;

     . No fim de 2015, os A.A. tomaram conhecimento de que, embora tendo o exercício da posse efetiva da referida fração E, no contrato ficara-lhes antes atribuída a titularidade de uma fração D, descrita sob o n.º 48.891 e inscrita na matriz sob o n.º 1437-D, sita na Rua …, n.º … e …, freguesia de …, município de Braga, e integrada no mesmo edifício em que se integra a fração E;

   . Porém, os A.A. nunca usaram nem fruíram aquela fração D;

    . Por seu turno, a mencionada fração E foi, entretanto, objeto de sucessivos negócios familiares realizados pelo R. CC e o seu irmão EE, ora 2.º R., entre este e o sócio-gerente da 3.ª R. GG e entre este e a irmã do sócio-gerente da 4.ª R. HH, negócios esses realizados de má fé com o objetivo de lesar os interesses dos A.A;      

     . Não obstante isso, logo após a tomada de posse da referida fração E, os A.A. fizeram, de forma periódica, toda a manutenção e conservação da mesma, ali instalando e explorando o “Minimercado JJ”, ininterruptamente durante 22 anos – de 1985 a 2007;

    . Em 31/05/2007, os A.A. cessaram aquela atividade e passaram a arrendar aquela fração para outros usos;

    . Assim, os A.A. vêm possuindo tal fração à vista de toda a gente, com o conhecimento de todos os condóminos e com convicção de que a mesma lhes pertence;

     . A referida loja E tem a área e confrontações constantes dos documentos juntos, sendo que, imediatamente a tomada da respetiva posse, os A.A. interpelaram o R. CC acerca da área que tinham para explorar, tendo este informado que iam demarcar a fração através de parede, dividindo-a em duas unidades, como veio a suceder, pouco tempo depois do início da posse;

     . Assim, aquelas duas unidades podem ser constituídas como unidades independentes, preenchendo os mínimos requisitos legais respeitantes ao regime da propriedade horizontal, podendo ser objeto de aprovação pelas entidades competentes

    . A 1.ª unidade, atribuída aos A.A. e sobre a qual estes têm exercido a sua posse, apresenta uma área de 56 m2, confrontando a nascente com a EN n.º 201, a poente com KK, a norte com LL, a sul com MM.

     . Por sua vez, devem os R.R., a suas expensas, proceder às obras e obter a autorização junto das entidades competentes para que a 2.ª unidade, antes destacada pelo seu primitivo proprietário, seja objeto de propriedade horizontal;

     . Caso não seja de todo possível destacar a 2.ª unidade, deve a fração ser atribuída, na sua totalidade, ao A..  

         Concluíram os A.A. a pedir o seguinte:     

  A – Em primeira linha, a retificação da escritura pública de 23/05/1985, no que respeita à titularidade e registo a favor dos AA., da fração autónoma correspondente à segunda loja do 1.º andar, a contar do sul, destinada a atividades económicas, designada pela letra E, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 593, sita na Rua …, n.º …, da freguesia de …, Braga, com o artigo matricial urbano sob o n.º 1409 NIP;

   B – Em segundo lugar, o reconhecimento de que os A.A. são donos exclusivos e legítimos proprietários da segunda loja do 1.º andar, designada pela letra E, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 593, sita na Rua …, n.º …, …, mediante aquisição originária por usucapião;

  C - Em consequência disso, que sejam oficiadas as entidades competentes, que discriminam, no sentido de procederem de acordo com o enunciado em A e B, nomeadamente quanto ao prédio designado pela letra E, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 593, à pertinente retificação, averbamento e inscrição da fração autónoma;

   D – Em “alternativa”, que:

     a) - Os R.R. obtenham, a suas expensas, autorizações necessárias, junto das entidades competentes, e realizem obras para que a 2.ª unidade antes destacada pelo primitivo proprietário, CC, seja objeto de propriedade horizontal, e por conseguinte pertença daqueles, reconhecendo o direito de propriedade dos AA. sobre a 1.ª unidade;

     b) - Caso de todo não seja possível, sejam os R.R. “condenados a reconhecerem”o direito de propriedade daqueles A.A., por força do direito de aquisição originária, por via de usucapião na forma sobredita, devendo a fração, no seu todo, ser-lhes reconhecida e atribuída.

2. Os R.R. CC e cônjuge DD, EE e cônjuge FF e HH Ld.ª, contestaram, a arguir a ineptidão da petição inicial e impugnar o alegado na petição inicial, sustentando, no que aqui releva, que:

. Os A.A. e o R. CC acordaram em este permitir àqueles a ocupação temporária e gratuita de 56 dos 135 metros quadrados da fração E, até ao momento em que houvesse possibilidade do fornecimento individual de eletricidade e água na fração D que o mesmo R. lhes tinha vendido; 

. Foi nessas circunstâncias que foi construída uma divisória a separar a fração E em duas unidades independentes - uma com a área de 56 m2 e outra com a área de 79 m2 – sem possibilidade de passagem de uma para a outra;

. Porém, no final de 1988, o R. CC comunicou aos A.A. que já não existia o problema que impedia o fornecimento de eletricidade e água ao prédio em que se integrava a fração D, pedindo-lhes para desocuparem a fração E, o que estes se comprometeram fazer sem nunca realizar;     

. Assim, jamais os A.A. poderão adquirir a fração E por usucapião nem muito menos a parte dela que ocupam.

 Além disso, os mesmos R.R. deduziram pretensão reconvencional, pedindo que os A.A. fossem condenados a:

   a) – Entregar à R. HH parte da sobredita fração E;

   b) – A pagar aos reconvintes a quantia de € 175,00 mensais, pela ocupação ilegal dessa fração desde 01/01/1989, perfazendo os seguintes montantes, acrescidos de juros:

   - em relação aos R.R. CC e DD, o de € 6.300,00;

- em relação aos R.R. EE e FF, o de € 16.800,00;

- em relação à R. HH, o montante de € 7.875,00.

   3. Os A.A. deduziram réplica, opondo-se à junção de documentos apresentados com a contestação e defendendo-se quanto à matéria da reconvenção, concluindo pela sua improcedência.

        Requereram também a intervenção principal para o lado passivo dos 20 condóminos, identificados a fls. 187/v.º e 188.

    4. Notificados para se pronunciarem sobre a exceção de ineptidão da petição inicial, os A.A. deduziram o articulado reproduzido a fls. 38/v.º a 42/v.º, vindo aditar o pedido de anulação da escritura de compra e venda, tendo ainda reiterado que:

       . Os A.A. apenas exerceram a sua posse sobre a 1.ª unidade da fração E com a área de 56 m2 e as confrontações já referidas, verificando-se uma total autonomia dessa unidade a favor daqueles;

      . Estão preenchidos os requisitos legais para serem destacadas as duas unidades da fração E e constituída a pretendida propriedade horizontal por usucapião.  

    5. Subsequentemente, foi proferido o despacho saneador reproduzido a fls. 31/v.º-37/v.º, em que, no que ora interessa consignar:

i) – Foi julgada improcedente a invocada exceção de ineptidão da petição inicial, relativamente ao primeiro pedido formulado;   

ii) – Foram julgados improcedentes os pedidos dos A.A. sobre:

- o reconhecimento do direito do seu direito de propriedade da segunda loja do 1.º andar designada pela letra E, com base na aquisição originária por usucapião;

- a realização das pretendidas comunicações às entidades competentes para retificação e averbamento e inscrição da fração autónoma;

- a condenação dos R.R. a obter autorizações e obras necessárias, junto das entidades competentes, para que a 2.ª unidade seja destacada pelos primitivos proprietários e objeto de propriedade horizontal com o reconhecimento do direito de propriedade dos A.A. sobre a 1.ª unidade;   

- o reconhecimento por parte do R.R. do direito de propriedade dos A.A. sobre a 1.ª unidade da fração E com fundamento em usucapião.

iii) – Foram também julgados inadmissíveis os pedidos reconvencionais formulados pelos R.R. contestantes, em virtude do decaimento dos pedidos dos A.A. acima referidos.

      Afora isso, foi ordenando o prosseguimento da ação para conhecer da pretensão dos A.A. sobre a anulação da escritura de compra e venda celebrada em 23/03/1985, por erro na declaração identificadora da fração ali alienada.

     6. Inconformados com tal decisão, na parte em que decaíram, os A.A. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de …, tendo ali o Exm.º Relator convidado as partes a pronunciar-se sobre a eventualidade de ser equacionada a possibilidade de usucapião de parte de fração autónoma, mas colocando-se a questão de, nesse caso, a pretensão poder improceder por não figurarem todos os elementos necessários para esse efeito, tais como as permilagens das duas frações que resultaria da divisão, as áreas de ambas, o fim a que se destinam, as suas confrontações e a designação que deviam ter.

     7. Na sequência desse convite, os A.A. apresentaram a peça de fls. 198/ v.º a 199/v.º, com indicações das áreas, confrontações, valores patrimoniais e permilagens da fração E e das duas unidades em referência, bem com a designação destas, requerendo ainda que o tribunal solicitasse, oficiosamente, aos serviços técnicos pronunciamento sobre a pretendida divisão daquela fração nos termos e para os efeitos do art.º 1415.º do CC, bem como o respetivo levantamento topográfico e/ou planta dessa fração.

     8. Seguidamente, foi proferido o acórdão de fls. 205 a 211, datado de 11/01/2018, a julgar improcedente a apelação com fundamento em que, diversamente do entendimento da 1.ª instância, embora fosse admissível a constituição da propriedade horizontal de parte de uma fração autónoma, no caso dos autos, o pedido formulado pelos A.A. não continha todos os elementos necessários para tal efeito, tais como as permilagens das duas frações que resultariam da divisão, as áreas de ambas, o fim a que se destinam, as suas confrontações e a designação que deveriam ter, em termos de modificar o título constitutivo da propriedade horizontal, concluindo-se assim pela improcedência desse pedido.


    9. Mais uma vez inconformados, os A.A. vem pedir revista, formulando as seguintes conclusões:  

A – O presente recurso de revista vem interposto do despacho e acórdão, nomeadamente:

1 - Da reclamação do despacho de fls. ref. sec. 5490485 para que os AA. se pronunciassem acerca tos elementos necessários para a modificação do titulo constitutivo da propriedade horizontal da fração "E";

2 - Da arguição da omissão de pronúncia quanto ao requerimento apresentado pelos AA. sob o item supra j-c) do recurso de apelação de fls., no que se refere ao consentimento tácito dos condóminos quanto à autorização da modificação do título constitutivo da propriedade horizontal da fração “E”, de fls;

3 - Da impugnação do acórdão ref. sec. 5483136, no que concerne à improcedência do recurso ordinário de apelação, quanto ao pedido relativo à aquisição de uma parte (1.ª) da fração "E" da consequente improcedência dos demais pedidos dos que dele dependem;

B - No entendimento dos AA., a notificação do despacho de fls., ref.a secção: 5356949, de 10-11-17, nos termos e para os legais efeitos do art.º 3, n.º 3, do CPC, para que aqueles se pronunciassem acerca dos elementos necessários para a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, poderia/deveria ter aceitado o esclarecimento dos aludidos elementos, nomeadamente por força do princípio da cooperação ativa que é devido às partes, e consequentemente completassem os elementos em falta, (vd. n.º 2 do art.º 7.º e demais legal do CPC);

C - Pelo que, aqui, com os legais efeitos, reclamam a omissão de suprimento quanto aos esclarecimentos suscitados e não recebidos pelo tribunal “ad quem, sendo que atenta a qualidade do subsequente acórdão, aquele despacho revelou-se inútil, não resultando quaisquer interesse para a prossecução e utilidade do tramite processual.

D – O acórdão não se pronunciou sobre questão que lhe fora apresentada pelos AA. no item supra j-c) do recurso de apelação de fls., no que concerne ao: consentimento tácito dos condóminos quanto à autorização da modificação do título constitutivo da propriedade horizontal da fração "E", sendo que, ao tribunal ad quem fora aquela questão submetida à sua apreciação;

E - Assim, de acordo com o preceituado na alínea c) do art.º 674.º e demais do CPC deve aquele acórdão, nessa parte, considerar-se nulo em virtude de não se ter pronunciado sobre uma concreta questão apresentada e que devia apreciar;

F - Deve, consequentemente, atentos os motivos atrás invocados, ser reconhecido o direito de propriedade dos A.A. sobre a 1.a unidade daquela fração, no que concerne à validação do consentimento tácito dos condóminos quanto à autorização da modificação do título constitutivo da propriedade horizontal correspondente à referida fração de fls., porquanto, decorrido o período de tempo sobredito, os condóminos reconheceram, expressamente, como válida a divisão da fração "E", com todas as legais consequências daí decorrentes, designadamente as que se reportam ao reconhecimento e aceitação da alteração do título constitutivo (artigos 1419.º, n.º 1, e 1422.º-A, n.º 3, do CC);

G - O Tribunal “ad quem”, não tendo ordenado como lhe competia as diligências consideradas necessárias, não fez uso da norma adjetiva aplicável ao caso sub judice, constante no art.º 652.º, n.º 1, al. c) e d), do CPC, impossibilitando, dessa feita, a normal prossecução da causa;

H - O CPC vigente à data do presente, aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26/06, veio inovar e criar alguns paradigmas do processo, principalmente, dos poderes/deveres do juiz, não só do juiz a quo, mas, igualmente, por aplicação consentânea em relação aos demais magistrados judiciais, como sejam: da prevalência da justiça material em detrimento da justiça formal, da direção efectiva do processo por parte do juiz, quanto à sua fiscalização, como da premente gestão até à decisão final proferida no processo;

I - De acordo com a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, verificou-se: a reforma do processo civil mediante a simplificação do regime, desformalização de procedimentos e na limitação de questões processuais relevantes; sendo que, quanto ao ónus da alegação pretendeu "...homenagear o mérito e a substância em detrimento de mera formalidade processual, conferindo-se às partes..., a possibilidade de, ao longo de toda a tramitação,...vir a entrar nos autos todo um acervo factual merecedor de consideração pelo tribunal com vista à justa composição do litígio"; "...E em consonância com o princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma com reforço dos poderes de direcção, agilização, adequação e gestão processual do juiz, no sentido de propiciar a obtenção da decisão que privilegie o mérito ou a substância sobre a forma, cabendo suprir-se o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjetivas que impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais";

J - Aquela Proposta de Lei veio reforçar os poderes da 2.a Instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontra devidamente fundamentada ou se mostra que é insuficiente, obscura ou contraditória, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material".

K - Doutrina o Exm.º Sr. Juiz António Geraldes. no que concerne ao enunciado na al. d) do n.° 1 do art.º 652.º, no que se refere ao ordenar a realização das diligências que considere necessárias:

1.-1-"...,Trata-se de um preceito que concretiza, para a fase de recurso, o poder de direcção genericamente previsto no art. 265.º e que encontra afloramentos noutros preceitos.

.../ Mas cremos que os poderes de indagação do relator podem ir mais longe, permitindo, designadamente, que convide a parte a esclarecer determinados aspectos considerados pertinentes, nos termos dos arts. 265.º e segs. Neste campo, parece-nos que não têm sido extraídas todas as consequências das normas vigentes, nomeadamente as resultantes das alterações que ocorreram ao nível da ampliação dos poderes oficiosos".

1.-2-.1 "O recurso aos princípios gerais, designadamente ao enunciado no art. 265.º, pode servir para suprir lacunas de regulamentação ou para revalorizar a função dos tribunais superiores, introduzindo um factor de eficiência que faça jus aos princípios da celeridade e da economia processual. Para o efeito deve ponderar-se que, nos termos daquele normativo, compete ao juiz (sem exclusão, é claro, do juiz relator nos tribunais de recurso) providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (rectius, do recurso) e recusando o que for impertinente e meramente dilatório. Ou, ainda, atentar que pode solicitar o fornecimento dos esclarecimentos julgados pertinentes, nos termos do art. 266.° n.°2”.

L - O direito adjetivo instituído no novo CPC confere amplos poderes efetivos não só ao tribunal “a quo” como, igualmente, ao tribunal “ad quem” para agir ativamente no tramite processual, como seja o caso de suprir oficiosamente quanto à completude/aperfeiçoamento ou esclarecimentos de elementos cuja falta se tenha verificado;

M - O tribunal “ad quem” poderia/ deveria tomar uma de duas decisões: constatadas dúvidas quanto à divisibilidade da fração "E" para ser objeto de propriedade horizontal no que concerne à verificação dos requisitos da norma do art.º 1415.º do CC, como da falta de alguns elementos identificadores da aludida fração, ou supria oficiosamente nos termos legais aplicáveis ou fazia baixar os autos para que o tribunal “a quo” procedesse em conformidade;

N - O acórdão na sua parte aqui recorrida e supra identificada, violou, por omissão, os artigos 652.º, n.º 1, al. b) e d), e 674.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC.


Nesta base, pedem os A.A. Recorrentes que a decisão recorrida seja substituída por outra em que:

a) - Seja feito o competente suprimento quanto aos esclarecimentos suscitados e não recebidos pelo tribunal ad quem;

b) – Se reconheça o direito de propriedade dos A.A. sobre a 1.a unidade daquela fração, no que concerne à validação do consentimento tácito dos condóminos daquele prédio, quanto à autorização da modificação do título constitutivo da propriedade horizontal correspondente à referida fração "E";

c) – Se ordene a baixa do processo à 1.a instância de forma a que esta possa convidar os A.A. ao competente aperfeiçoamento do pedido e sejam acolhidos todos os elementos tidos como necessários pelo tribunal recorrido e consequentemente reconhecidos e validados os pedidos apresentados pelos AA. na sua p.i., designadamente:

c1 - O reconhecimento do direito de propriedade da 1.ª unidade da segunda loja do 1.º andar, a contar do sul, designada pela letra "E", descrita na 2.a Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º 593, …, por força de aquisição originária por via de usucapião, sita na Rua …, n.º …, União das freguesias de Braga Maximinos, Sé e Cividade, Braga, por usucapião, caracterizada pelos elementos seguintes:  

   - Área: 56m2;

   - Confrontações: - nascente, Terraço Condomínio da Rua …, n.º …; poente, HH, Ld.ª; - norte, LL; - sul, MM;

  - Com a Permilagem: 13,68/1000, a que corresponde a percentagem de: 41,48%; sendo o fim a que se destina: actividades económicas; com a designação que deve ter:"E-A".

c-2 – A realização de comunicações a entidades oficiais da retificação, averbamento e inscrição da fração autónoma;

c-3 – A obtenção pelos RR., a suas expensas, de autorizações e obras necessárias, junto das entidades competentes, para que a 2.a unidade seja objeto de propriedade horizontal com o reconhecimento do direito de propriedade dos A.A. sobre a 1.ª unidade;

c-4 – Caso não seja isso possível, a condenação dos R.R. a reconhecer o direito de propriedade dos A.A., por força de direito de aquisição originária por via de usucapião, de toda a fração E;

10. Os Recorridos apresentaram contra-alegações, em que se limitam a invocar a inadmissibilidade do recurso por entenderem que se verifica a dupla conforme nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC.

11. O recurso foi admitido mediante o despacho exarado a fls. 246, considerando que o acórdão impugnado, embora confirmativo da decisão da 1.ª instância, assentou em fundamentação essencialmente diferente.

12. Recebido neste Supremo, o processo foi mandado baixar à Relação para se pronunciar sobre a arguição da nulidade do acórdão recorrido com fundamento em omissão de pronúncia (despacho de fls. 253), em cumprimento do que foi proferido o acórdão de fls. 261-262/v.º, datado de 21/06/2018, em que se concluiu pela inexistência daquela nulidade.

13. Vieram ainda os Recorrentes apresentar o requerimento de fls. 271-274, a rebater aquele acórdão, sustentando que o mesmo carece de fundamento legal.       

Cumpre apreciar e decidir.


II – Delimitação do objeto do recurso


Antes de mais, quanto a inadmissibilidade da revista invocada pelos Recorridos, importa consignar que tal não se verifica, uma vez que o acórdão recorrido, apesar de confirmar o decidido em 1.ª instância, sem voto de vencido, fê-lo com fundamentação essencialmente diferente, nos termos e para os efeitos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, ao considerar, diversamente do entendimento daquela instância, que embora fosse admissível a constituição da propriedade horizontal de parte de uma fração autónoma, no caso dos autos, o pedido formulado pelos A.A. não continha todos os elementos necessários para tal efeito, sendo, por isso, julgado improcedente.     


Atento o teor das conclusões dos Recorrentes, em função dos quais se delimita o objeto do recurso, as questões suscitadas consistem no seguinte:

i) – A questão da impugnação do despacho de fls. 194, de 10/11/ 2017, proferido pelo Exm.º Relator da Relação, a convidar os Recorrentes a se pronunciarem sobre a eventualidade de improcedência da sua pretensão aqui em foco, por falta dos elementos necessários à peticionada constituição da propriedade horizontal de parte da fração autonóma E;

ii) – A questão da nulidade do acórdão recorrido com fundamento em omissão de pronúncia, no que se refere ao alegado consentimento tácito dos condóminos sobre a autorização da modificação do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em que se integra a fração E;

iii) – A questão da alegada violação dos artigos 652.º, n.º 1, alíneas b) e d), e 674.º, n.º 1, alínea b) e c), do CPC, com fundamento no facto de o tribunal “a quo” não ter convidado os A.A. a aperfeiçoarem o pedido nem suprido as deficiência notadas com os esclarecimentos dados pelos Recorrentes no sentido de apurar a divisibilidade das unidades da fração “E”.  


III – Fundamentação


1. Quanto à impugnação do despacho de fls. 194, de 10/11/ 2017


Como já acima foi referido, o Exm.º Relator da Relação, prevenindo a eventualidade de se equacionar a admissibilidade de constituição da propriedade horizontal sobre parte de fração autónoma, em divergência do que fora entendido pela 1.ª instância, mas colocando-se a questão da improcedência do pedido por falta dos elementos necessários para tal efeito, convidou as partes a pronunciarem-se sobre tal eventualidade, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do CPC.

É este despacho que os Recorrente começam por impugnar, sustentando que deveria o tribunal a quo atender aos esclarecimentos prestados na sequência daquele despacho.

Sucede que o referido despacho, nos termos em que foi dado, não é dotado de definitividade para que seja passível de recurso autónomo.

Por sua vez, o não atendimento dos esclarecimentos então prestados não é suscitável por via de impugnação desse despacho, mas sim por via de impugnação do acórdão que os não relevou, o que será apreciado nessa sede.

Improcede, pois, aquela impugnação, sem prejuízo de tal apreciação subsequente.


2. Quanto à questão da nulidade por omissão de pronúncia

 

Vêm os Recorrentes arguir a nulidade do acórdão recorrido com fundamento em omissão de pronúncia, no que respeita ao alegado consentimento tácito dos condóminos sobre a autorização da modificação do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em que se integra a fração E.

O Tribunal da Relação através do acórdão de fls. 261-262/v.º, de 21/06/2018, considerou tal nulidade inexistente, porquanto, nas conclusões da apelação, os ali apelantes nada disseram sobre esse ponto, embora venha referido no corpo das alegações.

No entanto, acrescenta a Relação que o alegado consentimento seria absolutamente desnecessário, visto que a usucapião se impõe por si própria, não carecendo daquele consentimento, estando tal questão prejudicada por inútil.

Com efeito, a constituição da propriedade horizontal de parte de uma fração autónoma por usucapião depende da posse que tiver sido exercida em conformidade com os requisitos legais de individualização dessa parte como fração autónoma, nos termos dos artigos 1414.º e 1415.º do CC, operando por essa via de aquisição originária a modificação do título constitutivo, desde que legalmente permitida, independentemente do consentimento dos demais condóminos.

Nessa perspetiva, trata-se de uma questão perfeitamente irrelevante no âmbito da pretensão aqui em foco, não constituindo, por isso, questão que importe considerar.  

Termos em que improcede a invocada nulidade.


3. Quanto às questões relativas à omissão do convite dos A.A. a aperfeiçoarem o pedido e do suprimento oficioso das deficiências em que se fundou a improcedência do mesmo   


A questão enunciada em epígrafe inscreve-se na órbita das pretensões formuladas pelos A.A. no sentido de:

 i) – ser-lhes reconhecido que são donos exclusivos e legítimos proprietários da segunda loja do 1.º andar, designada pela letra E, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 593, sita na Rua …, n.º …, …, mediante aquisição originária por usucapião;

 ii) - Em consequência disso, ser oficiado às entidades competentes para procederem de acordo com assim pretendido, nomeadamente quanto ao prédio designado pela letra E, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 593, à pertinente retificação, averbamento e inscrição da fração autónoma;

  iii) Em “alternativa”:

    a) – deverem os R.R. obter, a suas expensas, autorizações necessárias, junto das entidades competentes, e a realizar obras para que a 2.ª unidade antes destacada pelo primitivo proprietário, CC, seja objeto de propriedade horizontal e, por conseguinte, pertença daqueles, reconhecendo o direito de propriedade dos AA. sobre a 1.ª unidade;

    b) - Caso de todo não seja possível, serem os R.R. condenados a reconhecer o direito de propriedade daqueles A.A., por força do direito de aquisição originária por via de usucapião na forma sobredita, devendo a fração, no seu todo, ser-lhes reconhecida e atribuída.


Significa isto que os A.A. pretendem que lhes seja reconhecido, a título de aquisição originária por usucapião, o seu invocado direito de propriedade sobre a loja da referida fração E do prédio urbano na Rua …, n.º …, …, ou seja, sobre uma dita 1.ª unidade daquela fração com a área de 56 m2.

Em vista disso, pretendem que os R.R. obtenham, a expensas suas, a autorização necessária, junto das entidades competentes, bem como realizem obras para que a dita 2.ª unidade, antes destacada pelo primitivo proprietário, CC, seja objeto de propriedade horizontal.

Por fim, caso não seja possível tal fracionamento das duas unidades daquela fração E, pedem os A.A. que lhes seja reconhecido o direito de propriedade, a título de aquisição originária por usucapião, de toda essa fração.  

     Mais precisamente, pretendendo os A.A. ver reconhecido perante os R.R. o seu alegado direito de propriedade, com fundamento em usucapião, sobre a dita 1.ª unidade da fração E, pedem então que os R.R. obtenham a autorização e realizem as obras necessárias ao fracionamento das duas unidades daquela fração e, não sendo isso possível, pedem então que lhes seja reconhecido, ao mesmo título, o direito de propriedade sobre toda a fração E.    


      Na 1.ª instância, tais pedidos foram julgados improcedente, em sede do saneador, por se considerar, em síntese, que a divisão de frações em novas frações autónomas só era permitida desde que houvesse autorização do título constitutivo ou da assembleia de condóminos aprovada sem oposição, nos termos do artigo 1422.º-A, n.º 3, do CC e que aos A.A. não era permitido usucapir sobre parte delimitada da fração E, uma vez que essa parte não consistia numa fração autónoma.


     Porém, no âmbito do recurso de apelação interposto pelos A.A., o Tribunal da Relação, divergindo desse entendimento, considerou que era admissível adquirir por usucapião parte de uma fração autónoma, desde que, no caso concreto, para além desse instituto, se verificassem também os pressupostos enunciados nos artigos 1414.ºe 1415.º do CC.

      Para tanto, entendeu a Relação que os A.A. deviam ter formulado “um pedido completo” assente em factos que lhes competia alegar, de modo a incluir todos os elementos necessários, tais como as permilagens das duas frações que resultariam da divisão da fração E, as áreas de ambas, o fim a que se destinavam, as suas confrontações e a designação que deveriam ter.

     Nessa base, considerou o mesmo Tribunal que os A.A. não supriram a insuficiência dos articulados relativamente àqueles elementos técnicos, concluindo, por isso, pela improcedência dos pedidos em causa.

        

       Vêm agora os A.A. sustentar que competia ao tribunal atender aos elementos por eles fornecidos através da peça reproduzida a fls. 198-199/ v.º, quando foram ouvidos previamente à prolação do acórdão recorrido, e que devia o mesmo tribunal ter usado dos poderes de convite ao aperfeiçamento dos articulados e de realização das diligências necessárias para a obtenção dos esclarecimentos técnicos necessários.

Consideram assim que o tribunal a quo violou o disposto no artigo 652.º [rectius 662.º], n.º 2, alíneas b) e d), do CPC.

Note-se que, na presente revista, os Recorrentes não chegam a impugnar a decisão recorrida em sede de erro de direito de natureza substantiva, mas tão só em sede de violação das regras processuais, mais precisamente no respeitante à alegada omissão do tribunal a quo dos poderes que dizem lhe competir para o aperfeiçoamento das pretensões em foco.


Assim sendo, o que aqui importa apreciar é se, em face das pretensões deduzidas e dos esclarecimentos subsequentemente prestados pelos A.A., devia o tribunal quo providenciar ainda para que os A.A. e/ou as entidades competentes fornecessem os elementos necessários à completude de tais pretensos, em vez de decidir logo pela sua improcedência.


Vejamos.


Como já foi dito, no que aqui releva, os A.A. pretendem, em primeira linha, o reconhecimento perante os R.R. do seu invocado direito de propriedade, com fundamento em usucapião, sobre uma parte da fração autónoma E, com a área de 56 m2 que, alegadamente, vêm possuindo como donos exclusivos desde 1985.

Sucede que um tal reconhecimento depende, necessariamente, de essa parte ser também reconhecida como nova fração autónoma integrada na propriedade horizontal do respetivo prédio urbano, pois só assim poderia ser reconhecida a constituição de propriedade horizontal por usucapião sobre as duas unidades em que se desdobraria a fração E..


Com efeito, sem prejuízo de regimes especiais (v.g. o da propriedade intelectual ressalvado no art.º 1303.º, n.º 1, do CC), no domínio dos direitos reais, vigoram, além do mais, os princípios da especialidade ou individualização, da totalidade da coisa e da tipicidade, à luz dos quais tais direitos só podem ter por objeto coisa corpórea, certa e determinada, na sua totalidade, de entre os tipos previstos na lei, como decorre do disposto nos artigos 204.º, 205.º, 1302.º e 1306.º, n.º 1, do CC[1].   

Desse modo, a aquisição originária de um bem imobiliário mediante o exercício de posse usucapível só é legalmente possível se recair sobre coisa imóvel ou parte de coisa imóvel suscetivel de constituir objeto de direito real. Ou seja, a usucapião, enquanto ato jurídico de aquisição originária de direitos reais, não opera validamente sobre coisa que, nesse domínio, se traduza em objeto legalmente impossível, nos termos do artigo 280.º, aplicável por via do art.º 295.º, ambos do CC.

Nessa conformidade, o exercício de posse usucapível apenas sobre parte de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal não conduz, por si só, à aquisição de um direito de propriedade singular sobre essa parte, destacável daquela fração, já que essa parte não é suscetível, no quadro daquele regime, de constituir unidade independente, nos termos do artigos 1414.º e 1415.º do CC.   


Questão diferente é a respeitante à constituição da própria propriedade horizontal por usucapião, nos termos permitidos pelo artigo 1417.º do mesmo Código.      


Rui Vieira Miller[2], sobre a forma de constituição da propriedade horizontal por usucapião, escreve o seguinte:

«[…] são todos os condóminos que têm de actuar sobre o prédio, por eles parcelado em fracções susceptíveis de corresponderem às exigências da sua utilização em regime de propriedade horizontal, como se efectivamente este regime estivesse regularmente constituído, usando, pois, cada um a sua fracção autónoma com exclusão dos demais e fruindo todos, como comproprietários, mas com as limitações inerentes a essa especial forma de compropriedade as partes comuns do prédio, todos contribuindo também, na proporção de valor das suas fracções, ou apenas aqueles que de tais coisas se servem, para as despesas com a conservação e fruição das partes comuns que alguns utilizem exclusivamente, todos ainda se constituindo em assembleia para administrarem as partes comuns através de um administrador que nesta elegerem, todos enfim actuando pela mesma forma que actuariam como se fossem contitulares de um direito de propriedade horizontal regularmente constituído sobre o prédio.»


Também Aragão Seia[3] considera que:

«A aquisição por usucapião de fracções autónomas, por quem é mero possuidor sem título do direito de propriedade horizontal, não é apto, por si só, a constituir um edifício em propriedade horizontal, embora seja o seu acto gerador. Para que possa ser fonte desta precisa de uma sentença que a declare e de onde constem discriminadamente os requisitos (…) dos artigos 1414.º, 1415.º e 1418.º, n.º 3 [do Código Civil]».


    Por sua vez, Carvalho Fernandes[4], relativamente à particularidade da constituição da propriedade horizontal por usucapião, observa que:

«Para além de se recordar que, naturalmente, a correspondente posse há-de traduzir-se num comportamento que seja equivalente ao que assumiria um condómino, em relação a certa unidade de um prédio urbano, vale também para a usucapião a exigência dos requisitos legalmente impostos para a constituição da propriedade horizontal. Se eles não se verificarem (…), só pode ter-se como adquirida uma situação de compropriedade proprio sensu


    Ora, face ao disposto do artigo 1417.º, n.º 1, do CC não sofre dúvida que a propriedade horizontal pode ser originariamente constituída por usucapião, mas, à luz dos ensinamentos expostos, tal constituição tem de assentar em exercício de posse usucapível sobre prédio urbano, ou porventura parte dele, que reúna, desde logo, as características exigidas pelos artigos 1414.º e 1415.º do CC, mormente sobre frações já constituídas de facto em unidades independentes, distintas e isoladas entre si com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

O mesmo é dizer que a posse usucapível, para tal efeito, deve ser exercida sobre coisa que detenha já todas essas características, em termos ficar a constar da sentença de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião as especificidades obrigatórias a que se refere o artigo 1418.º, n.º 1, do CC, como são a individualização de cada fração, o seu valor relativo, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.

Tal sentença é meramente declarativa de reconhecimento da situação possessória pré-existente e das características do prédio urbano ou parte dele sobre que incide essa posse que revelem já as condições físicas e técnicas inerentes à propriedade horizontal, nomeadamente uma realidade de facto correspondente à estrutura e funcionalidade de frações autónomas.

Nessas condições, afigura-se que seja admissível a constituição por usucapião de duas frações autónomas por decomposição de uma fração autónoma já existente, desde que devidamente integradas no respetivo condomínio.

Neste caso, a ação que vise o reconhecimento de uma tal constituição terá, obviamente, que correr entre todos os condóminos, pois se, para a divisão convencional de frações em novas frações, o artigo 1422.º-A, n.º 3, do CC exige a aprovação dos condóminos sem qualquer oposição, por maioria de razão, em caso de divisão potestativa, como é a operada por via da usucapião, têm de ser convocados também todos os condóminos, só assim podendo a sentença ter eficácia de caso julgado material em relação a todos eles.

Do que fica dito resulta que a causa de pedir e o pedido em ação destinada a obter o reconhecimento da propriedade horizontal com base na usucapião devem conter todos os elementos necessários ao preenchimento do sobredito quadro normativo.

Nessa medida, a causa de pedir deverá integrar duas vertentes essenciais, a saber:

i) – por um lado, a factualidade respeitante ao exercício da posse usucapível do prédio urbano ou parte dele sobre que se pretende ver reconhecida a propriedade horizontal;

ii) – por outro lado, a descrição das características quer físicas, estruturais e funcionais, quer técnicas do objeto sobre que incide essa posse em termos de corresponder ao que é legalmente exigível para o reconhecimento de uma situação factual de propriedade horizontal, em especial no que se refere à concreta individualização e especificação das frações autónomas, de harmonia com o disposto nos artigos 1414.º e 1415.º do CC e ainda com a regulamentação aplicável às edificações urbanas.

Não bastará, portanto, alegar uma posse usucapível sobre uma parte delimitada de um prédio urbano que, porventura, pudesse constituir fração autónoma. Torna-se necessário alegar também que as frações sobre as quais se pretende obter o reconhecimento da propriedade horizontal por usucapião já se revelem de facto dotadas de todas as características adequadas a tal reconhecimento.

E convém referir que essa matéria não diz respeito apenas ao objeto do pedido, mas também à própria causa de pedir, posto que se mostra configuradora da situação possessória invocada.


Sucede que, no caso dos autos, os A.A. laboraram nalguns equívocos graves no que respeita à consubstanciação das suas pretensões de reconhecimento da propriedade horizontal por usucapião sobre a sobredita 1.ª unidade da fração E.

Desde logo, começaram por desenhar tais pretensões dirigidas apenas aos R.R., como se o reconhecimento pretendido só àqueles e aos A.A. dissessem respeito, com completo alheamento dos demais condóminos, quando é certo que a pretendida “divisão” da fração E em duas novas frações autónomas diz, necessariamente, respeito a todo o condomínio em que estas frações se passariam a integrar. Só mais tarde vieram então requerer a intervenção dos demais condóminos.  

Por outro lado, parece existir alguma confusão entre a prioridade dada ao pedido de reconhecimento de aquisição por usucapião da dita 1.ª unidade da fração E, face aos R.R., quando, como já foi dito, este reconhecimento depende necessariamente do reconhecimento da constituição daquela unidade como fração autónoma integrado no condomínio do prédio.

Acresce que a constituição da propriedade horizontal, por usucapião, sobre aquela 1.ª unidade, que os A.A. dizem possuir a título exclusivo, não pode ser desgarrada da 2.ª unidade da mesma fração E que, segundo eles, seria possuída também a título exclusivo pelos R.R.

No entanto, os A.A. nada alegaram quanto ao modo de comunicação dessa 2.ª unidade com parte comum do prédio ou com a via pública e, mesmo no que respeita ao modo de comunicação da 1.ª unidade, com parte comum do prédio – através de terraço do rés-do-chão -, nada dizem sobre a conformidade desse acesso com a regulamentação legal. Também não especificam em que consiste a “parede divisória” entre as duas unidades, nem esclarecem se tal divisória está em conformidade com a regulamentação das edificações urbanas. 

Mas mais grave do que isso é o facto de os A.A. pretenderem que os R.R. obtenham autorização e realizem obras na 2.ª unidade para permitir destacá-la como fração autónoma, admitindo mesmo que tal não seja possível, já que formulam um pedido subsidiário de reconhecimento do seu invocado direito de propriedade sobre toda a fração E.

Isto só pode significar que, afinal, a fração E não se encontra já, nem muito menos desde o início da posse, constituída por duas frações de facto autónomas.

Ora, como foi dito, o pretendido reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião, que teria de recair simultaneamente sobre as duas ditas unidades da fração E, supõe que a posse usucapível invocada tenha sido exercida sobre tais unidades dotadas já das características de facto inerentes a frações autónomas e não sobre unidades que necessitem ainda de obras de adaptação para tal efeito.

De resto, seria contraditório proferir sentença a reconhecer a constituição da propriedade horizontal sobre aquelas unidades como frações autónomas e ao mesmo tempo condenar os R.R. a realizar obras para adaptar a 2.ª unidade às características que já deveria ter como fração autónoma.

Tais deficiências não se mostram sequer supridas com os esclarecimentos complementares prestados pelos A.A. junto do Tribunal da Relação através da peça reproduzida a fls. 198/ v.º a 199/v.


Pretendem agora os A.A./Recorrentes que o tribunal use dos seus poderes oficiosos para superar as insuficiências verificadas, apelando ao disposto no artigo 652.º, n.º 1, alíneas b) e d), do CPC, querendo, quiçá, reportar-se ao art.º 662.º, n.º 2, alíneas a) e b), do mesmo diploma. 

Todavia, não estão aqui em causa medidas de suprimento quanto a diligências probatórias como são as ali preconizadas para serem oficiosamente usadas pela Relação no âmbito da reapreciação da decisão de facto.

Quando muito, o que aqui se poderá suscitar é o uso dos poderes oficiosos do tribunal com vista ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada nos articulados, ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.º 2, alínea b), e n.º 4, do CPC, com a possibilidade de a Relação ordenar ao tribunal da 1.ª instância que convide os A.A. a aperfeiçoarem a matéria insuficientemente alegada.  

Não se ignoram os poderes hoje reforçados do tribunal em sede de aperfeiçoamento, nomeadamente, quanto a factos complementares ou concretizadores da matéria já alegada nos articulados.

No entanto, convém não exagerar no seu alcance de forma a, por essa via, subverter o ónus de alegação que incumbe às partes nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do CPC.

Sucede que, no caso dos autos, não se trata de suprir factos meramente complementares ou concretizadores do já alegado pelos A.A..

Tratar-se-ia antes de reformular a causa de pedir num segmento essencial, no sentido de conter, afinal, os elementos reveladores de que as duas unidades da fração E em causa reuniam já, desde o início da posse, todas as características necessárias ao pretendido reconhecimento da propriedade horizontal, perante um quadro alegatório em que, além das verificadas insuficiências, se mostra contraditório, a ponto de se admitir a necessidade de realizar obras na 2.ª unidade ou de nem sequer ser possível o fracionamento da referida fração E. 

Por outro lado, incumbia, desde logo, aos A.A. ter providenciado no sentido de obter junto das entidades competentes a certificação de que as características físicas e técnicas dessas unidades estão em conformidade com a regulamentação das edificações urbanas, de modo a satisfazer o ónus de alegação que, nesse particular, lhes competia.

Perante um quadro alegatório tão insuficiente e sobretudo contraditório no respeitante a caracterizar as indicadas duas unidades da fração E como frações autónomas que já estivessem constituídas de facto desde o início da posse usucapível, não se afigura que estejamos perante uma situação passível de aperfeiçoamento que se mostre ainda útil para o adequado aproveitamento das pretensões assim deduzidas.

Nessa medida, tem-se por não verificada qualquer omissão relevante, por parte do tribunal a quo, no exercício do poder-dever de convidar as partes ou diligenciar junto das entidades competentes no sentido de providenciar pelo aperfeiçoamento de tais pretensões.

Nada mais tendo sido suscitado, não resta senão negar a revista.


IV – Decisão


Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se a decisão recorrida.

As custas do recurso ficam a cargo dos A.A./Recorrentes, sem prejuízo da dispensa do seu pagamento em virtude do apoio judiciário de que beneficiam.


Lisboa, 4 de outubro de 2018


Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching 

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[1] Sobre os princípios referidos, vide, entre outros, Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2007, pp. 26-28 e 35-41.
[2] In A Propriedade Horizontal no Código Civil, Almedina, 3.ª Edição, pp. 96-97.   
[3] In Propriedade Horizontal – Condóminos e Condomínios, Almedina, 2001, p. 34.
[4] In Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1996, p. 313.