Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
157/21.7YRCBR.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CID GERALDO
Descritores: EXTRADIÇÃO
RECUSA
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA PENAL ESTRANGEIRA
EXECUÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Data do Acordão: 07/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO/ M.D.E./ RECONHECIMENTO SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O recorrente veio requerer ao Estado Português – e, concretamente, aos tribunais portugueses – que revejam e confirmem a sentença (penal) estrangeira que lhe reconhece o direito a não ser extraditado para a República de Angola pelos factos ali apreciados. Concretamente, pretende que seja revista e confirmada em Portugal a decisão de 12-07-2021 do TC Espanhol, proferida no recurso de amparo 5275-2020, e que recusou a sua extradição para um Estado terceiro – Angola – com fundamento na violação do direito à tutela jurisdicional efectiva e ao processo equitativo, em conexão com os direitos fundamentais à liberdade pessoa e à liberdade de circulação.
II - A Relação recusou o pedido do requerente, essencialmente, por dois motivos:
a) Por falta de fundamento legal, nos termos do disposto nos arts. 237.º, n.º 3, do CPP e 98.º da Lei n.º 144/99 de 31-08. (cfr. Dispositivo, p. 38 do acórdão) – considerando não estarem preenchidos os requisitos formais para a sua procedência – concretamente, por não ser uma sentença condenatória.
b) Por a revisão e confirmação da decisão revidenda implicar a violação dos princípios da ordem pública internacional do estado português, considerando que “feriria o princípio da soberania do Estado Português (...) o princípio da independência do poder judicial (...) [e] o princípio da separação e interdependência dos poderes.” (cfr. p. 37 da decisão recorrida).
III - O recorrente veio interpor recurso para este STJ por discordar da interpretação que o Tribunal da Relação faz quer das normas relativas às formalidades inerentes ao processo de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira, quer quanto aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, discordando da sua aplicação no sentido que lhes deu a decisão recorrida.
IV - O entendimento da recusa em admitir a revisão e confirmação da decisão do TC Espanhol por não estarem preenchidos os requisitos formais para a sua procedência – concretamente, por não ser uma sentença condenatória – afigura-se desproporcionadamente limitativo, não levando em consideração uma interpretação sistémica, teleológica e funcional das normas e instituto a que pertencem, na unidade normativa do sistema de cooperação judiciária internacional penal a que respeita.
V - É certo que o mandado de detenção europeu e a revisão e confirmação de sentença estrangeira são institutos diferentes. Há que não confundir a diferenciação dos institutos com o campo da sua aplicação, e que radica na natureza, características e finalidades que lhe subjazem.
VI - O título II do Livro V do Código de Processo Penal Português refere-se à revisão e confirmação de sentença estrangeira, e nele se estabelece que quando por força da lei ou de tratado ou convenção, uma sentença penal estrangeira dever ter eficácia em Portugal, a sua força executiva depende de prévia revisão e confirmação, salvo se a sentença penal estrangeira for invocada nos tribunais portugueses como meio de prova (v. art. 234.º, n.ºs 1 e 3 do CPP).
VII - Mas basta consultar as disposições gerais do título I do mesmo livro, para se ver a imediata consagração legal da prevalência dos acordos e convenções internacionais, pois que como refere o art. 229.º: As rogatórias, a extradição, a delegação de procedimento penal, os efeitos das sentenças penais estrangeiras e as restantes relações com as autoridades estrangeiras relativas à administração da justiça penal, são reguladas pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial e ainda pelas disposições deste livro.
VIII - No caso presente não estamos perante uma sentença estrangeira, sim perante uma sentença comunitária e, em termos simples, em se tratando de sentença comunitária e vista a existência do princípio de reconhecimento mútuo das sentenças comunitárias - que assenta na ideia de confiança mútua entre os Estados-Membros da União Europeia - significa que uma decisão judicial tomada pela autoridade judiciária de um Estado-Membro, segundo a sua própria lei, é exequível directamente pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro.
IX - Ora, se a decisão se encontra abrangida pelo princípio do reconhecimento mútuo, não faz sentido que se defenda que apenas as sentenças condenatórias têm a virtualidade de serem objecto de revisão e confirmação. O que faz sentido é que se utilize esse procedimento, aceitando a existência do princípio do reconhecimento mútuo.
X - O princípio do reconhecimento mútuo significa que uma decisão judicial tomada pela autoridade judiciária de um Estado-Membro, segundo a sua lei, é exequível directamente pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro. O princípio do reconhecimento mútuo em matéria penal assenta, pois, no pressuposto de que todos os EM garantem um elevado e equivalente grau de protecção dos direitos fundamentais, aferido pelo standard da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, como base para a existência de confiança mútua.
XI - E, é esta existência de confiança mútua que permite reconhecer como válidas as decisões proferidas em outro EM ao abrigo das respectivas decisões nacionais, independentemente da existência de harmonização (muito embora esta seja actualmente reconhecida como favorável ao funcionamento do próprio princípio). Desta forma, pode dizer-se que sempre que estejamos perante uma decisão de um EM que, em aplicação de normas de direito da UE cujo conteúdo é autónomo e tem de ser aplicado uniformemente em todos os Estados-Membros, esta decisão, ao abrigo do princípio do reconhecimento mútuo, é merecedora de reconhecimento nos outros EM, sem que tal constitua qualquer violação da soberania dos EM, pois estamos no âmbito das competências soberanas cujo exercício foi transferido para a União, por acto soberano dos EM.
XII - Neste sentido, uma decisão do Tribunal Constitucional Espanhol em processo de extradição terá que considerar-se uma decisão judiciária em matéria penal que, como tal, está sujeita ao princípio do reconhecimento mútuo.
XIII - É precisamente este o caso da decisão revidenda, que recusou a extradição do recorrente para um Estado terceiro – Angola – com fundamento na violação do direito à tutela jurisdicional efectiva e ao processo equitativo, em conexão com os direitos fundamentais à liberdade pessoal e à liberdade de circulação, no recurso originado no processo de extradição movido ali contra o requerente, na sequência da detenção deste em Marbella, por força do mandado de detenção emitido pelas autoridades angolanas, e que por sua vez deu origem à publicação de um red notice (n.º A-5765/5-2019), o qual se mantém em vigor, pelo que existe risco real e efectivo de o recorrente ser detido em Portugal com fundamento nos mesmos factos já apreciados pelos tribunais espanhóis, e sem qualquer controlo judicial prévio, nos termos do disposto no art. 39.º da Lei n.º 144/99, de 31-08, e 21.º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em vigor entre Portugal e Angola.
XIV - E o Acórdão do TC Espanhol 147/2020, de 19 de Outubro, analisando se o pedido de extradição cumpre os cânones do processo equitativo e, em concreto, se estão verificadas as condições de objectividade e imparcialidade da autoridade cuja decisão está na origem do procedimento de cooperação internacional, como condições para a legalidade das restrições aos direitos à liberdade e à livre circulação no espaço de um EM da UE, e para definir o standard normativo para a decisão, recorreu à jurisprudência do TJUE sobre a matéria (acórdãos de 27-05-2019, processos OG e PI, (C-508/18 e C-82/19 PPU, EU:C:2019:456); PF, C-509/18, EU:C:2019:457; de 12-12-2019, JR e YC, C-566/19 PPU e C- 626/19 PPU, EU:C:2019:1077; XD, C-625/19 PPU, EU:C:2019:1078; ZB, C-627/19 PPU, EU:C:2019:1079). E, foi precisamente a falta de conformidade com estes direitos fundamentais estabelecidos no direito da UE (e como homólogos na Constituição Espanhola) que conduziu à decisão de recusa de extradição pela decisão revidenda
XV - Do exposto resulta que a decisão recusou a extradição com um fundamento pan-europeu, ou seja, com fundamento nos direitos consagrados na Constituição Espanhola, homólogos dos direitos constantes da CDFUE e, neste sentido, declarou o direito da UE aplicável ao caso, direito esse aplicável de forma necessariamente uniforme em toda a UE, por não estar sujeito às idiossincrasias do direito interno. Assim sendo, a decisão revidenda é susceptível de ser revista e confirmada em Portugal, apesar de não se tratar de sentença penal de caráter condenatório
XVI - A procedência deste meio processual não importa, de forma alguma, uma violação da soberania portuguesa, ou de algum princípio de ordem pública internacional do Estado Português, antes garantindo o cumprimento das obrigações em que o Estado Português, soberano, se constituiu com os seus parceiros Europeus.
XVII - O n.º 1 do art. 8.º, da CRP estabelece um regime de recepção automática das normas e princípios de direito internacional geral, que fazem parte integrante do direito português. Assim, tal normativo constitucional reflecte o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário, tal como tem vindo a ser sustentado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
XVIII - Uma das dimensões de tal primado consiste, precisamente, em «afastar as normas de direito ordinário internas preexistentes e em tornar inválidas, ou pelo menos ineficazes e inaplicáveis, as normas subsequentes que o contrariem. Em caso de conflito, os tribunais nacionais devem considerar inaplicáveis as normas anteriores incompatíveis com as normas de direito da UE e devem desaplicar as normas posteriores, por violação da regra da primazia», pelo que, não pode proceder o entendimento postulado na decisão recorrida de que uma Convenção estabelecida com Estado Terceiro – no caso, a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – teria primazia sobre o Direito da União.
XIX - A Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, na al. a) do n.º 1 do art. 6.º, sob a epígrafe de requisitos gerais negativos da cooperação internacional, estabelece que o pedido de cooperação é recusado quando o processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da CEDH, de 4-11-1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal. E, à Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, tal como ocorre relativamente ao Regime Jurídico do MDE, encontra-se subjacente a ideia de cooperação judiciária internacional em matéria penal, tendo em vista o combate célere e eficaz da criminalidade, na base da confiança recíproca entre os Estados contratantes e do reconhecimento mútuo, princípios através dos quais se garante que as decisões judiciais de qualquer um dos Estados serão respeitadas e tomadas em consideração por todos os outros Estados nos precisos termos em que foram proferidas (Os Estados contratantes confiam que os sistemas jurídicos e respectivos processos garantem a legalidade das decisões proferidas por qualquer um dos Estados).
XX - Sustentar a impossibilidade de rever e confirmar uma decisão judicial em matéria de cooperação judiciária internacional proferida noutro EM com fundamento no primado de Tratado de extradição com um Estado Terceiro, equivale a negar o primado que o Direito da UE tem sobre o direito interno, nos termos dos Tratados institutivos e do art. 8.º, n.º 4, da CRP. Primado esse que nada subtrai à soberania do Estado Português, antes pelo contrário, uma vez que foi por decisão soberana que Portugal escolheu transferir para a União o princípio do reconhecimento mútuo em matéria de decisões judiciais que impliquem a aplicação de norma de direito da UE.
Decisão Texto Integral:


Processo nº 157/21.7YRCBR.S1

 Revisão/Confirmação Sentença Penal Estrangeira

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I. RELATÓRIO

1. AA, natural de ..., Angola, de nacionalidade angolana (portador do passaporte nº ...), com residência em Portugal no Loteamento ..., ..., ..., veio intentar a presente acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, ao abrigo do disposto nos artigos 978º e seguintes do NCPCiv, pretendendo que seja revista e confirmada em Portugal o acórdão do Tribunal Constitucional de Espanha, prolatado a 12/07/2021 e já transitado em julgado, proferido no recurso de amparo 5275-2020, que recusou o pedido de extradição apresentado pelo Estado Angolano relativamente ao requerente, com fundamento na violação do direito à tutela jurisdicional efectiva e ao processo equitativo, em conexão com os direitos fundamentais à liberdade pessoa e à liberdade de circulação.

Para tanto alegou, em síntese, que:

- Contra si foi formalizado um pedido de extradição internacional emitido pelas autoridades angolanas, por força do qual veio a ser detido em Espanha, onde se encontrava a 10/09/2019, em período de férias com a sua família;

- Com título de residência em Portugal, onde pretende continuar a residir, o Autor viu o Tribunal Constitucional Espanhol, através de acórdão proferido a 12/07/2021, dar provimento a recurso de amparo por si apresentado, por força do qual foi anulado o despacho proferido a 28/09/2020 pelo Plenário da Secção Penal da Audiência Nacional, talqualmente como o despacho datado de 21/10/2020 da mesma Secção, e restabelecendo os direitos violados e, consequentemente, reconhecendo os seus direitos à protecção jurisdicional efectiva e a um julgamento justo, em relação aos seus direitos à liberdade pessoal e liberdade de residência e circulação;

- Para a revisão e confirmação desta decisão estrangeira (acórdão do Tribunal Constitucional de Espanha) é competente este Tribunal da Relação de Coimbra, em matéria cível, nada obstando ao seu deferimento;

- Aquela decisão está em condições de ser revista por preencher os requisitos impostos pela lei processual aplicável.

Na sequência de notificação, o Autor veio a juntar o documento comprovativo devidamente autenticado e traduzido cuja revisão e confirmação requer, bem como quanto à respectiva genuidade e caracter definitivo, concluindo o petitório no sentido de que seja revista e confirmada aquela decisão, para que produza os seus efeitos em Portugal, «ordenando-se o arquivamento do pedido de extradição pedido pelo Governo da Republica de Angola, para todos os efeitos legais que a mesma decreta e produzir todos os efeitos na ordem jurídica portuguesa.»

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Operada a citação do Estado Português, foi deduzida oposição.

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À luz do disposto no artigo 656º “ex vi” artigo 982º, nº 2 do NCPCivil foi proferida decisão sumária, vindo a “julgar-se ser a Secção Cível do TRC absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer e julgar quanto a esta acção de confirmação de decisão estrangeira, com a consequente absolvição do Réu da instância”.

Foi ordenado que fosse aguardado o trânsito em julgado da decisão, com ulterior remessa, se o Autor o requeresse no prazo legal, à distribuição pelas Secções Criminais deste TRC, por serem as materialmente competentes.

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Na sequência da aludida decisão sumária o requerente AA requereu a remessa dos autos à Secção Central do Tribunal da Relação de Coimbra para distribuição pelas Secções Criminais.

No seu petitório, o Requerente, para além de requerer a distribuição dos autos pelas Secções Criminais, e que fosse ordenada a notificação do Estado Português para o exercício do contraditório, pugnou pela procedência do pedido de revisão e confirmação do acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional espanhol, com todos os efeitos legais.

Considerado o disposto no artigo 235º do Código do Processo Penal, e na sequência de notificação para esse efeito à luz do disposto nos artigos 149º e 978º do Código do Processo Civil “ex vi” artigo 240º do Código do Processo Penal, o requerente AA veio juntar um documento que comprova que tem residência no Loteamento ..., ..., ..., ....

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Foi cumprida a citação do Estado Português, nos termos e para os fins a que alude o artigo 981º do Código do Processo Civil “ex vi” artigo 240º do Código do Processo Penal.

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O Ministério Público deduziu oposição, concluindo que o pedido de revisão apresentado por AA, do acórdão do Tribunal Constitucional do Reino de Espanha, que negou a sua extradição, ao pedido formulado pelo Governo da Republica de Angola, deve ser liminarmente indeferido.

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Dado cumprimento ao contraditório, o requerente AA ofereceu resposta quanto à excepção dilatória da falta de interesse em agir e aos requisitos da sentença para efeitos de revisão, face à invocação do Ministério Publico.

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O Requerente AA, veio apresentar alegações escritas e juntou um Parecer.

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O Estado Português não ofereceu alegações escritas.

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O Tribunal da Relação de Coimbra (... Secção Criminal), por acórdão datado de 30 de Março de 2022, decidiu julgar improcedente o processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira intentado por AA, por falta de fundamento legal, nos termos do disposto nos artigos 237º, nº 3 do Código do Processo Penal e 98º da Lei nº 144/99 de 31/08.

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É deste acórdão que o requerido AA interpõe recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua fundamentação nos seguintes termos:

I. A decisão recorrida considerou improcedente o pedido de revisão e confirmação em Portugal da decisão do Tribunal Constitucional Espanhol que negou a extradição do requerente AA para Angola com fundamento no artigo 6.º e 47.º da CDFUE por a decisão que se encontra na base do pedido de extradição violar o “direito à proteção jurisdicional efetiva devido ao não cumprimento do requisito de fundamentação reforçada (art. 24.1 CE) e de direito a um julgamento justo (art. 24.2 CE) em conexão com os direitos fundamentais à liberdade pessoal (art. 17.1 CE) e à liberdade de residência e circulação (art. 19 CE) do extraditando internacionalmente.” (cfr. 5. Conclusão da decisão revidenda), não sendo assim susceptível de fundamentar uma decisão que venha a cercear a liberdade individual, como seria o caso da decisão de extraditar.

II. O requerente, ora recorrente, é titular de autorização de residência em Portugal desde 2018 e pai de dois cidadãos portugueses, menores, pelo que é sujeito de pleno direito do Direito da União, nomeadamente, o direito à liberdade e à livre circulação.

III. A decisão recorrida, reconhecendo o interesse do ora recorrente em ver reconhecida em Portugal a decisão tomada pela Corte Espanhola no âmbito do direito da UE, consagrando-lhe um direito fundamental que terá de poder opôr ao poder detentivo dos Estados, negou-lhe, no entanto, a revisão e confirmação daquela decisão, porquanto não se poderia classificar de “sentença penal condenatória” e, como tal, estaria fora do âmbito de aplicação daquele instrumento processual de efectivação de decisões judiciais estrangeiras.

IV. O recorrente discorda de tal interpretação literal das normas em causa - concretamente, do artigo 237.º do CPP e do artigo 98.º da Lei 144/99, de 31 de Agosto, bem como, implicitamente, das normas dos artigos 95.º, 96.º, 98.º e 100.º -, porquanto a decisão em processo de extradição é uma decisão penal e que tem efeitos semelhantes aos de uma condenação ou absolvição, em particular nas suas repercussões no direito à liberdade do visado, devendo ser considerada uma decisão substantiva, que versa sobre o mérito da causa, entendido como o objecto do processo de extradição - a decisão sobre a existência de impedimentos à entrega, nomeadamente por força dos direitos fundamentais do recorrente.

V. Ao preconizar diferente interpretação, violou a decisão recorrida aquelas normas.

VI. Além do mais, a todo o direito tem de caber um meio de tutela adequado à sua efectivação, pelo que deverá fazer-se uma interpretação daquelas normas entendendo que nelas cabe a revisão e confirmação de decisão judiciária penal de outro EM da UE que recuse a extradição, em particular quando a recusa se fundamente em direitos fundamentais consagrados no direito da União, homólogos aos consagrados na Constituição portuguesa, até porque inexiste outro meio para o efeito.

VII. Essa é a única interpretação conforme à Constituição, em concreto aos artigos 20.º, n.º 1, 27.º, 32.º, 8.º, nº 4, e 15.º, 33.º, e 44.º da CRP, conforme supra dirimido na motivação que aqui se dá por reproduzida.

VIII. Pelo que, ao preconizar diferente interpretação, aplicou a decisão recorrida norma inconstitucional.

IX. E é a única interpretação conforme ao direito da União, em concreto aos artigos 19.º, n.º 1, §2, do TUE e o artigo 47.º da CDFUE (tutela jurisdicional efectiva), e ao princípio do reconhecimento mútuo em matéria penal e da cooperação leal, consagrados nos artigos 67.º, n.º 3, e 82.º do TFUE e no artigo 4.º, n.º 3, do TUE, e aos artigos 6.º e 47.º, da CDFUE (direito à liberdade e direito à proteção jurisdicional e a um julgamento justo e equitativo), conjugados com os artigos 18.º e 21.º do TFUE e 79.º e 80.º do TFUE, conforme supra dirimido na motivação que aqui se dá por reproduzida.

X. Caso não se considere ser evidente o teor do direito da União, tendo em conta a novidade das questões de direito da União Europeia invocadas, no sentido de inexistir uma decisão do TJUE em caso exactamente idêntico ao presente, bem como a sua pertinência para a decisão no presente processo, requer-se que sejam as mesmas submetidas para decisão a título prejudicial por aquele Tribunal, após prévio contraditório das partes para se pronunciarem sobre a exacta formulação da questão e as respostas a dar-lhe.

XI. Sem prejuízo de melhor densificação, que desde já se protesta fazer, crê o recorrente que as questões fundamentais são as seguintes:

A) Tendo um EM reconhecido que a extradição para um Estado Terceiro viola os direitos consagrados nos artigo 6.º e 47.º, da CDFUE (direito à liberdade e direito à proteção jurisdicional e a um julgamento justo e equitativo), em conjugação com os artigos 18.º e 21.º do TFUE e 79.º e 80.º do TFUE, impõe o direito da União (em particular, o artigo 19.º, n.º 1, §2, do TUE e o artigo 47.º da CDFUE) que os demais EM consagrem meios de acção (“recursos”) judiciais que permitam ao visado obter no respectivo território tutela para aqueles mesmos direitos, através do reconhecimento da decisão do primeiro EM que declarou a violação do direito da União, evitando assim nova detenção pelos mesmos factos e pedido com vista à extradição?

B) Consagrando um EM um meio de acção (“recurso”) judicial que permite o reconhecimento de uma decisão de outro EM com natureza penal, com vista à produção de efeitos no território do primeiro Estado, impõe o princípio da equivalência e efectividade, decorrentes dos artigos 19.º, n.º 1, §2, do TUE e o artigo 47.º da CDFUE, e o princípio do reconhecimento mútuo em matéria penal e da cooperação leal, consagrados nos artigos 67.º, n.º 3, e 82.º do TFUE e no artigo 4.º, n.º 3, do TUE, a disponibilização desse meio para reconhecer e dar efeitos a uma decisão de um Tribunal de outro EM que determinou que a extradição para um Estado Terceiro viola os direitos consagrados nos artigos 6.º e 47.º, da CDFUE (direito à liberdade e direito à proteção jurisdicional e a um julgamento justo e equitativo), conjugados com os artigos 18.º e 21.º do TFUE e 79.º e 80.º do TFUE?

XII. A manutenção da posição adoptada na decisão recorrida, traduz-se em resultado inconstitucional, porquanto veda ao recorrente o acesso a uma tutela jurisdicional que garanta a efectivação do direito fundamental à liberdade, a fazer valer contra a pretensão de um Estado Terceiro relativa à sua detenção e extradição,

XIII. Direito esse atribuído pelo direito da UE, e já reconhecido por um Tribunal de um EM e que, como tal, versando sobre Direito Fundamental da UE, tem de ser reconhecido em Portugal em virtude dos compromissos assumidos junto dos seus parceiros europeus.

XIV. E direito também decorrente da própria CRP, que reconhece igualmente os direitos à liberdade e ao processo justo e equitativo.

XV. É inconstitucional a norma segundo a qual não é susceptível de revisão e confirmação a decisão judiciária penal de recusa de extradição para Estado terceiro emitida por Tribunal de outro Estado-Membro da União Europeia, com fundamento em norma de direito da União.

XVI. É ainda inconstitucional a norma segundo a qual a decisão judiciária penal de recusa de extradição para Estado terceiro emitida por Tribunal de outro Estado-Membro da União Europeia, com fundamento em norma de direito da União, não é sentença penal, não sendo susceptível de revisão e confirmação.

XVII. Por seu turno, é inconstitucional a norma segundo a qual a decisão judiciária penal de recusa de extradição para Estado terceiro emitida por Tribunal de outro Estado-Membro da União Europeia, com fundamento em norma de direito da União, não é sentença penal condenatória, não sendo susceptível de revisão e confirmação.

XVIII. É também inconstitucional a norma segundo a qual não é susceptível de revisão e confirmação a decisão judiciária penal de recusa de extradição para Estado terceiro emitida por Tribunal de outro Estado-Membro da União Europeia, com fundamento na violação do direito à liberdade conexionado com o direito ao processo justo equitativo na vertente do direito à tutela jurisdicional por um tribunal imparcial e mediante processo justo e equitativo.

XIX. Outrossim, é inconstitucional a norma segundo a qual a decisão judiciária penal de recusa de extradição para Estado terceiro emitida por Tribunal de outro Estado-Membro da União Europeia com fundamento na violação do direito à liberdade conexionado como direito ao processo justo equitativo na vertente do direito à tutela jurisdicional por um tribunal imparcial e mediante processo justo e equitativo, não é sentença penal, não sendo susceptível de revisão e confirmação.

XX. Finalmente, é inconstitucional a norma segundo a qual a decisão judiciária penal de recusa de extradição para Estado terceiro emitida por Tribunal de outro Estado-Membro da União Europeia com fundamento na violação do direito à liberdade conexionado como direito ao processo justo equitativo na vertente do direito à tutela jurisdicional por um tribunal imparcial e mediante processo justo e equitativo, não é sentença penal condenatória, não sendo susceptível de revisão e confirmação.

XXI. Normas extraídas dos artigos 95.º, 96.º, 98.º e 100.º da Lei 144/99, de 31.08, e do artigo 237.º do CPP.

XXII. Sendo a inconstitucionalidade por violação do artigo 20.º,n.º1,27.º,32.º, 8.º, nº 4, e 15.º, 33.º, e 44.º da CRP.

XXIII.O reconhecimento da decisão revidenda não viola quaisquer princípios da ordem pública portuguesa, nomeadamente a soberania, independência do poder judicial e princípio da separação e interdependência dos poderes.

XXIV. Pelo contrário, o não reconhecimento viola a ordem pública portuguesa e europeia, por violar o princípio do primado do direito da União reconhecido nos Tratados da UE e no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, e as normas dos artigos 19.º, n.º 1, §2, do TUE e 47.º da CDFUE (tutela jurisdicional efectiva), os princípios do reconhecimento mútuo em matéria penal e da cooperação leal, consagrados nos artigos 67.º, n.º 3, e 82.º do TFUE e no artigo 4.º, n.º 3, do TUE, e os artigos 6.º e 47.º, da CDFUE (direito à liberdade e direito à proteção jurisdicional e a um julgamento justo e equitativo), conjugados com os artigos 18.º e 21.º do TFUE e 79.º e 80.º do TFUE, conforme supra dirimido na motivação que aqui se dá por reproduzida.

XXV. É assim inconstitucional a norma segundo a qual os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português – concretamente, do princípio da soberania do Estado, da independência do poder judicial e da separação e interdependência dos poderes – impedem a revisão e confirmação de decisão judiciária penal proferida por outro EM da UE recusando a extradição para um Estado Terceiro, com fundamento na verificação da violação de direitos fundamentais consagrados no direito da UE, inconstitucionalidade por violação dos n.ºs 3 e 4 do artigo 8.º da CRP. Norma extraída dos artigos 2.º, n.º 1, 95.º, 96.º, 98.º e 100.º da Lei 144/99, de 31.08, do artigo 237.º do CPP e do artigo 980.º, al. f), do CPC. Sendo a inconstitucionalidade por violação do artigo 8.º, n.º 3 e 4, da CRP.

XXVI. Pelo que, ao preconizar diferente interpretação, aplicou a decisão recorrida norma inconstitucional.

Termos em que, realizada a audiência oral supra requerida, deve ser julgado o recurso procedente, determinando-se a revisão e confirmação da decisão revidenda.

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 Cumpre apreciar e decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. O requerente pretende a revisão e confirmação de Acórdão do Tribunal Constitucional do Reino de Espanha, que negou a sua extradição, ao pedido formulado pelo Governo da República de Angola, para efeitos de aplicação em Portugal.

Nesse pressuposto, veio requerer ao Estado Português – e, concretamente, aos tribunais portugueses – que revejam e confirmem a sentença (penal) estrangeira que lhe reconhece o direito a não ser extraditado para a República de Angola pelos factos ali apreciados.

Concretamente, o ora recorrente pretende que seja revista e confirmada em Portugal a decisão de 12 de Julho de 2021 do Tribunal Constitucional Espanhol, proferida no recurso de amparo 5275-2020, e que recusou a sua extradição para um Estado terceiro – Angola – com fundamento na violação do direito à tutela jurisdicional efectiva e ao processo equitativo, em conexão com os direitos fundamentais à liberdade pessoa e à liberdade de circulação.

Esse recurso foi originado no processo de extradição movido ali contra o requerente, na sequência da detenção deste em ..., por força do mandado de detenção emitido pelas autoridades angolanas, e que por sua vez deu origem à publicação de um red notice (n.º A-5765/5-2019), o qual se mantém em vigor, entendendo o recorrente que existe risco real e efectivo de poder ser detido em Portugal com fundamento nos mesmos factos já apreciados pelos tribunais espanhóis, e sem qualquer controlo judicial prévio, nos termos do disposto no artigo 39.º da Lei 144/99, de 31.08, e 21.º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em vigor entre Portugal e Angola.

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II.2. O pedido foi, porém, indeferido pela Relação de Coimbra, com a seguinte fundamentação:

« O Requerente AA intentou a presente acção especial de reconhecimento e confirmação de sentença estrangeira contra o Estado Português, peticionando que, após o cumprimento do contraditório, seja a mesma julgada procedente e, em consequência, revisto e confirmado o acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional espanhol, com todos os efeitos legais.

Vejamos

O Direito moderno nasce associado à ideia lógica e racional de que um Estado é soberano na medida em que determina as condutas da sua população sem interferências de natureza interna ou externa, achando-se o Mundo constituído por este conjunto de Estados soberanos.

Fica patente a igualdade formal dos Estados no plano internacional, exercendo, estes, a sua soberania por si próprios quer interna, quer externamente.

Conatural a este paradigma é o princípio da territorialidade do direito penal. Verificado que seja o normativo do artigo 4º do Código Penal, que estabelece o enunciado princípio, ao prescrever que a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses, não obstante as extensões previstas nos artigos 5º e 6º do citado diploma.

O princípio da territorialidade, é explicado por Teresa Beleza, como prescrevendo, que “a quaisquer infracções praticadas no território português, se aplica a lei penal portuguesa”, salientando, por sua vez, que a extensão realizada além-fronteiras assenta essencialmente no princípio do pavilhão.

Eduardo Correia, definia este princípio como aquele “segundo o qual o direito penal de um determinado país deve fundamentalmente aplicar-se a todos os factos praticados no seu território, qualquer que seja a nacionalidade do agente.

No entanto, apesar de ser este o paradigma tradicional, o próprio Código Penal, no mencionado artigo 5º, vem já admitir a punição de agente de qualquer nacionalidade, desde que seja encontrado em Portugal e tenha cometido os crimes previstos nos artigos 144.º-A, 144.º-B, 154.º-B e 154.º-C, 159.º a 161.º, 278.º a 280.º, 335.º, 372.º a 374.º, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português.

Este caso previsto na lei portuguesa introduz um outro princípio que é o princípio da universalidade.

A jurisdição universal, é classicamente definida como um princípio legal permitindo ou exigindo que um Estado desenvolva um processo – crime em relação a determinados crimes, independentemente da localização do crime e da nacionalidade do perpetrador ou vítima.

Este princípio derroga as regras comuns de competência penal que exigem uma ligação territorial ou pessoal com o crime, o autor ou a vítima.

Mas a lógica por trás de tal princípio é mais ampla: surge da noção de que certos crimes são tão prejudiciais aos interesses internacionais, que os Estados têm o direito – e mesmo a obrigação – de intentar uma acção contra o autor, independentemente do local do crime e da nacionalidade.

A jurisdição universal permite o julgamento de crimes cometidos por qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, ainda que os exemplos sejam raros.

Há, assim, uma fluidez e uma criação de novas realidades e novos conceitos, que fazem ultrapassar o princípio da territorialidade do direito penal; seja a globalização, seja a criação de organizações de pendor politico-economico, de que é exemplo a União Europeia, seja um novo conceito de direito penal humanitário.

Todas estas realidades apontam num sentido unívoco, que é aquele que impõe a existência de mecanismos de cooperação judiciária global reforçados.

Um desses mecanismos de cooperação judiciária internacional é a revisão e confirmação de sentença penal que se compraz num processo específico para a produção de eficácia em Portugal das sentenças estrangeiras, ou seja, para a possibilidade de serem executadas em Portugal.

Estabelece o artigo 234º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Necessidade de revisão e confirmação”, que:

1 – Quando, por força da lei ou de tratado ou convenção, uma sentença penal estrangeira dever ter eficácia em Portugal, a sua força executiva depende de prévia revisão e confirmação.

2 – A pedido do interessado pode ser confirmada, no mesmo processo de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira, a condenação em indemnização civil constante da mesma.

3 – O disposto no n.º 1 não tem aplicação quando a sentença penal estrangeira for invocada nos tribunais portugueses como meio de prova.

Ressuma deste comando legal serem dois os pressupostos para a revisão e confirmação de sentença penal estrangeira.

O primeiro é, desde logo, a existência de lei, tratado ou convenção que preveja ou admita a possibilidade dessa sentença poder ter eficácia na ordem jurídica nacional.

A este propósito temos que ter presente o fixado no artigo 3º da Lei nº 144/93 de 31/08 (Lei de Cooperação Judiciária) que sob a epigrafe “Prevalência dos tratados, convenções e acordos internacionais” estipula que:

1 – As formas de cooperação a que se refere o artigo 1.º regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma.

2 – São subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal.

Norma esta que repassa o consignado na lei adjectiva penal, posto que no artigo 229º, sob a epigrafe “Prevalência dos acordos e convenções internacionais”, se acha que:

As rogatórias, a extradição, a delegação do procedimento penal, os efeitos das sentenças penais estrangeiras e as restantes relações com as autoridades estrangeiras relativas à administração da justiça penal são reguladas pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial e ainda pelas disposições deste livro.

O segundo dos falados pressupostos é que a sentença seja revista e confirmada pelos tribunais portugueses.

A eficácia da sentença penal estrangeira está, assim, sempre dependente de pedido prévio de revisão e confirmação, cujo procedimento se acha regulado nos artigos 234º a 240º do Código do Processo Penal complementado pela disciplina dos artigos 980º a 984º do Código do Processo Civil e pela Lei nº 144/99 de 31/08.

No conhecimento deste pedido devem observar-se, desde logo, os requisitos e condições estabelecidos nos artigos 96º da Lei nº 144/99 e 237º do Código de Processo Penal.

 Fica estabelecido naquele artigo 96º da Lei nº 144/99 de 31/08, sob a epígrafe “Condições especiais de admissibilidade”, que:

1 – O pedido de execução, em Portugal, de uma sentença penal estrangeira só é admissível quando, para além das condições gerais estabelecidas neste diploma, se verificarem as seguintes:

a) A sentença condenar em reacção criminal por facto constitutivo de crime para conhecer do qual são competentes os tribunais do Estado estrangeiro;

b) Se a condenação resultar de julgamento na ausência do condenado, desde que o mesmo tenha tido a possibilidade legal de requerer novo julgamento ou de interpor recurso da sentença;

c) Não contenha disposições contrárias aos princípios fundamentais do ordenamento jurídico português;

d) O facto não seja objecto de procedimento penal em Portugal;

e) O facto seja também previsto como crime pela legislação penal portuguesa;

f) O condenado seja português, ou estrangeiro ou apátrida que residam habitualmente em Portugal;

g) A execução da sentença em Portugal se justifique pelo interesse da melhor reinserção social do condenado ou da reparação do dano causado pelo crime;

h) O Estado estrangeiro dê garantias de que, cumprida a sentença em Portugal, considerará extinta a responsabilidade penal do condenado;

i) A duração das penas ou medidas de segurança impostas na sentença não seja inferior a um ano ou, tratando-se de pena pecuniária, o seu montante não seja inferior a quantia equivalente a 30 unidades de conta processual;

j) O condenado der o seu consentimento, tratando-se de reacção criminal privativa de liberdade.

2 – Sem prejuízo do disposto no número anterior, pode ainda executar-se uma sentença estrangeira se o condenado cumprir, em Portugal, condenação por facto distinto do estabelecido na sentença cuja execução é pedida.

3 – A execução de sentença estrangeira que impõe reacção criminal privativa de liberdade é também admissível, ainda que não se verifiquem as condições das alíneas g) e j) do n.º 1, quando, em caso de evasão para Portugal ou noutra situação em que a pessoa aí se encontre, tiver sido negada a extradição do condenado pelos factos constantes da sentença.

4 – O disposto no número anterior é também aplicável, mediante acordo entre Portugal e o Estado interessado, ouvida previamente a pessoa em causa, aos casos em que houver lugar à aplicação de uma medida de expulsão posterior ao cumprimento da pena.

5 – A condição referida na alínea i) do n.º 1 pode ser dispensada em casos especiais, designadamente se o estado de saúde do condenado ou razões de ordem familiar ou profissional assim aconselharem.

6 – A execução da sentença tem ainda lugar, independentemente da verificação das condições do n.º 1, quando Portugal, nos termos do n.º 2 do artigo 32.º, tiver previamente concedido a extradição de cidadão português.

Não sendo, ainda, despicienda para a resolução destes autos a disciplina do artigo 95º, nº 1 do mesmo diploma que, sob a epigrafe “Principio”, vem firmar que

1 – As sentenças penais estrangeiras, transitadas em julgado, podem ser executadas em Portugal nas condições previstas neste diploma.

O artigo 237º do Código de Processo Penal, igualmente, com pertinência, para a presente decisão, contempla a seguinte disciplina, sob a epígrafe “Requisitos da confirmação”

1 – Para confirmação de sentença penal estrangeira é necessário que se verifiquem as condições seguintes:

a) Que, por lei, tratado ou convenção, a sentença possa ter força executiva em território português;

b) Que o facto que motivou a condenação seja também punível pela lei portuguesa;

c) Que a sentença não tenha aplicado pena ou medida de segurança proibida pela lei portuguesa;

d) Que o arguido tenha sido assistido por defensor e, quando ignorasse a língua usada no processo, por intérprete;

e) Que, salvo tratado ou convenção em contrário, a sentença não respeite a crime qualificável, segundo a lei portuguesa ou a do país em que foi proferida a sentença, de crime contra a segurança do Estado.

2 – Valem correspondentemente para confirmação de sentença penal estrangeira, na parte aplicável, os requisitos de que a lei do processo civil faz depender a confirmação de sentença civil estrangeira.

3 – Se a sentença penal estrangeira tiver aplicado pena que a lei portuguesa não prevê ou pena que a lei portuguesa prevê, mas em medida superior ao máximo legal admissível, a sentença é confirmada, mas a pena aplicada converte-se naquela que ao caso coubesse segundo a lei portuguesa ou reduz-se até ao limite adequado. Não obsta, porém, à confirmação a aplicação pela sentença estrangeira de pena em limite inferior ao mínimo admissível pela lei portuguesa.

Sendo o sistema português de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira de natureza formal está exonerado o tribunal pátrio do exercício de qualquer poder de censura à sentença revidenda, estando obliterada a possibilidade de pronúncia sobre o mérito da causa.

Contudo se essa é a regra, posto que “na revisão e confirmação de sentença estrangeira há que acatar tal e qual o decidido, como manifestação de reconhecimento da soberania do órgão decisor de outro país”, não é de olvidar que outro tipo de intervenção jurisdicional quando “objecções de fundo, conexionadas com princípios estruturantes do direito penal pátrio e que têm a ver com direitos fundamentais consignados na Constituição, impliquem ajustamentos de alguns aspectos da sentença revidenda, a fim de a adequar ao direito nacional.”

Analisada toda a arquitectura legal em que enquadra o processo de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira repassa, sem margem para duvida, que apenas as sentenças condenatórias têm a virtualidade de serem objecto de revisão e confirmação.

Di-lo o nº 3 do artigo 237º do Código do Processo Penal ao enquadrar a solução face à discrepância entre o regime punitivo da lei pátria e da lei estrangeira.

Conclusão que ressuma óbvia, igualmente, da norma do artigo 98º da Lei nº 144/99 de 31/08, na medida em que fica estabelecido que quanto à execução da sentença estrangeira esta fica limitada à pena ou medida de segurança que impliquem privação de liberdade ou pena pecuniária se, neste caso, forem encontrados em Portugal bens do condenado suficientes para garantir, no todo ou em parte, essa execução (alínea a) do nº 1), à perda de produtos, objectos e instrumentos do crime (alínea b) do nº 1); à indemnização civil, constante da mesma, se o interessado a requerer (alínea c) do nº 1).

O artigo 97º, nº 1 do Código do Processo Penal define sentença como o acto decisório dos juízes que conheçam a final do objecto do processo.

Sentença penal condenatória será, nestes, termos, a decisão final (nas modalidades singular ou colegial) que, no seguimento de um conjunto de procedimentos firmados na lei, define a responsabilidade acerca de um facto que pôs em crise a ordem jurídica e determina as sanções de molde à reposição dos bens jurídicos e à paz social, sempre dirigida a um concreto sujeito.

O Requerente AA intentou a presente acção com vista à revisão e confirmação do acórdão do Tribunal Constitucional Espanhol, decisão aquela que negou provimento ao pedido de extradição formulado pelo Governo da Republica de Angola.

Aquele acórdão foi prolatado no seguimento de um recurso de amparo apresentado por aquele AA que lhe dando procedência veio a anular o despacho proferido pela Plenário da Secção Penal da Audiência Nacional datado de 28/09/2020 e um outro proferido pela mesma secção com data de 21/10/2020.

Mais declarou o restabelecimento de direitos violados e, consequentemente, reconheceu ao impetrante os direitos à protecção jurisdicional efectiva (artigo 24º, nº 1 CE), a um julgamento justo (artigo 24º, nº 2 CE), à liberdade pessoal (artigo 17º, n 1 CE) e à liberdade de residência e circulação (artigo 19º CE).

Ressalta, assim, que a decisão revidenda nenhuma dúvida suscita quanto à sua autenticidade e inteligibilidade, tendo já transitado em julgado.

Contudo não obedece ao requisito matriz – aquela decisão não se assimila ao conceito de sentença penal condenatória.

É, certamente, uma decisão judiciária em matéria penal, como adiantou já o nosso Tribunal Constitucional, razão por é das Secções Criminais dos Tribunais Superiores (Tribunais das Relações e Supremo Tribunal de Justiça) a competência para o conhecimento e recurso, respectivamente, desta acção especial.

Todavia entre o espectro das decisões judiciárias em matéria penal, o legislador português veio especificar aquelas que, após o respectivo reconhecimento e confirmação, admite executar os efeitos que lhe cabem no Estado de origem, como acto jurisdicional, segundo a lei desse mesmo Estado.

E essas são as sentenças penas condenatórias!

Destarte não se verifica, pois, o preenchimento dos requisitos exigidos para a procedência do pedido de revisão e reconhecimento requerido por AA.

Um outro obstáculo se atinaria, ainda, à procedência do pedido de revisão e reconhecimento apresentado por AA, ainda que se pudesse catalogar o acórdão do Tribunal Constitucional Espanhol como sendo uma sentença penal condenatória.

Um dos limites ao reconhecimento e confirmação de sentença, face ao disposto na alínea f) do artigo 980º do Código do Processo Civil “ex vi” artigo 237º, nº 2 do Código do Processo Penal trata-se da decisão a reconhecer conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Estabelece aquele artigo 980º do Código do Processo Civil, sob a epígrafe “Requisitos necessário à confirmação”, que:

Para que a sentença seja confirmada é necessário:

a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;

c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;

f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

António Ferrer Correia dá bem nota deste falado conceito ao explicitar que “Ordem pública internacional é forçosamente impreciso e vago. Ordem pública internacional é um conceito indeterminado, um conceito que não pode definir-se pelo conteúdo, mas só pela função (…)”

O mais Alto Tribunal adianta proficuamente que “a ordem pública internacional de qualquer estado inclui: (i) os princípios fundamentais, relativos à justiça e à moral, que o Estado deseja proteger mesmo quando ele não está directamente em causa; (ii) regras concebidas para servir os interesses políticos, sociais ou económicos essenciais do estado, sendo estas conhecidas como «lois de police» ou «regras de ordem publica» deixando como matriz orientadora que “a fim de determinar se um principio que faça parte do seu sistema jurídico deve ser considerado suficientemente fundamental para justificar a recusa do reconhecimento de uma sentença, o tribunal deve levar em conta, por um lado, o caracter internacional do caso e a sua conexão com o sistema jurídico do foro e, por outro lado, a existência ou não de um consenso entre a comunidade internacional no que se refere ao principio em questão (convenções internacionais podem evidenciar a existência de tal consenso).”

Volvendo ao caso dos autos ressalta, desde logo, que o requerente AA tem nacionalidade angolana.

Outrossim há que ter presente que entre Portugal e Angola, em matéria de extradição, as recíprocas relações estão reguladas pela Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na Cidade da Praia, a 23 de Novembro de 2005, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 49/2008, publicada no Diário da República, 1ª Série, nº 178, de 15 de Setembro de 2008 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 67/2008 de 15/09.

Nesse instrumento convencional acham-se estatuídas, para além do mais, as regras acerca da obrigação de extraditar (artigo 1º), os factos determinantes da extradição (artigo 2º), o direito de defesa (artigo 8º), a transmissão do pedido (artigo 9º), a forma e instrução do pedido (artigo 10º) e a decisão e entrega (artigo 13º), sendo certo que vigora em Portugal desde 01/03/2010 e na República de Angola desde 01/01/2011.

Isto é, na modelação do seu poder soberano, o Estado Português, imbuído por interesses de natureza politica, económica e, certamente, cultural e histórica vinculou-se reciprocamente com a Republica de Angola a estabelecerem, no âmbito do processo de extradição dos seus nacionais, a cumprirem regras próprias e específicas que a ambas comprometem.

O Reino de Espanha não é subscritor desta Convenção.

Deste modo qualquer decisão jurisdicional dos tribunais espanhóis, relativa ao processo de extradição do ora requerente, sempre seria espúria – a decisão relativa a um eventual processo de extradição formulado pelo Governo da Republica de Angola relativamente ao ora requerente AA terá, necessariamente, que ser conhecido por um tribunal português e considerando a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Conceber a decisão de tal procedimento através do processo especial de revisão e reconhecimento do acórdão do Tribunal Constitucional Espanhol redundaria na violação de princípios fundamentais que estribam Portugal como um Estado de Direito.

Em primeiro lugar feriria o princípio da soberania do Estado Português (artigo 1º da Constituição da Republica), na medida em que, tendo convencionado regras próprias e recíprocas para o processo de extradição com a Republica de Angola, delas abdicava ao recepcionar uma decisão judicial de um Estado terceiro que não é parte desse instrumento convencional.

Mitigado ficaria, ainda, o principio da independência do poder judicial (artigo 203º da Constituição da Republica), na medida em que, atentos os requisitos do procedimento de revisão e confirmação de sentença, os poderes de cognição não se dirigiriam ao mérito da pretensão.

Em causa ficaria, também, o princípio da separação e interdependência dos poderes (artigo 2º da Constituição Portuguesa), na medida em que cabendo ao poder legislativo estabelecer as regras próprias do processo de extradição, como o levou a efeito, caso este Tribunal viesse a rever e confirmar a decisão, nos termos requeridos, naquele viria a imiscuir-se, ilegal e injustificadamente, violando a regra primordial da separação dos poderes.

Vale tudo por dizer, atentos os fundamentos coligidos, não procederá a pretensão do requerente AA, por falta de fundamento legal».

*

 II.3. São os seguintes os factos provados:

- AA, de nacionalidade angolana, foi detido em ..., a 10 de Setembro de 2019, por força do mandado de detenção nº 27/...19/DNIAP/PGR emitido a 21 de Maio de 2019 pelo Ministério Publico Angolano;

- O Tribunal Central de Instrução nº 4 emitiu um despacho na mesma data, dando inicio ao processo de extradição;

- O Conselho de Ministros, na sua reunião de 25 de Outubro de 2019, concordou em continuar com tal processo de extradição através dos tribunais, disso notificando o mesmo ao Tribunal Central de Instrução nº 4;

- A 18 de Novembro de 2019, a comparência prevista no artigo 12º da Lei da Extradição Passiva teve lugar no Tribunal Central de Extradição nº 4, no qual o extraditando manifestou a sua oposição ao pedido de extradição e não renunciou ao princípio da especialidade;

- Na mesma data o Tribunal emitiu um despacho para submeter o processo à Secção;

- No despacho nº ...0 de 29 de Julho, a ... Secção da Divisão Penal da Audiência Nacional rejeitou o pedido de extradição devido à ausência do requisito da dupla incriminação;

- O Ministério Público interpôs recurso com fundamento no preenchimento da dupla incriminação;

- Tal recurso foi julgado procedente pelo Plenário da Divisão Penal da Audiência Nacional no despacho nº ...20 de 28 de Setembro para que fosse declarada procedente a extradição do recorrente para Angola, sem prejuízo da decisão final que corresponda ao Governo da Nação;

- O extraditando interpôs um incidente de nulidade do processo, alegando os seguintes fundamentos:

. Violação do princípio da legalidade em relação à dupla incriminação

. Violação da protecção jurisdicional efectiva na sua vertente de obtenção de uma decisão baseada na lei, em relação à dupla incriminação

. Violação do direito à protecção jurisdicional efectiva devido à falta de fundamentação em relação ao artigo 7.1.a) da LEP (falta de independência do Ministério Publico angolano)

. Violação do direito à legalidade penal em relação ao artigo 4.4. da LEP (não exame da amnistia)

. Violação indirecta do direito a não sofrer tratamento desumano e degradante por falta de fundamentação.

- A 21 de Outubro de 2020, por despacho do Plenário da Divisão Penal da Audiência Nacional, o incidente de nulidade do processo foi indeferido;

- O extraditando apresentou recurso de amparo junto do Tribunal Constitucional sob o nº 5275-2020 relativamente à decisão do Plenário da Divisão Penal da Audiência Nacional que autorizou a sua extradição para Angola através dos tribunais, alegando os seguintes fundamentos:

. Violação do direito fundamental à protecção jurisdicional efectiva por incumprimento da exigência de fundamentação (artigo 24.1 CE) e do direito ao devido processo (artigo 24.2 CE) em relação aos direitos fundamentais à liberdade pessoal (artigo 17.1 CE) e à liberdade de residência e circulação (artigo 19 CE) da pessoa internacionalmente solicitada, garantias processuais m relação à “decisão análoga” ao despacho de acusação

. Violação indirecta do direito a não sofrer tratamento desumano ou degradante (artigo 15 CE) e do direito à protecção jurisdicional efectiva (artigo 24.1 CE) devido à falta de fundamentação

. Violação do princípio da legalidade penal (artigo 25.1 CE) e do direito fundamental à protecção jurisdicional efectiva (artigo 24.1 CE) relativamente à não aplicação do fundamento de recusa de extradição no artigo 4.4. da LEP

. Violação do direito à protecção jurisdicional efectiva (artigo 24.1 CE) na sua vertente de obtenção de uma decisão baseada na lei, em relação à exigência de dupla incriminação

. Violação do princípio do acusatório, na sua vertente da exigência de imparcialidade judicial e do direito de defesa (artigo 24. 2 CE), em relação à exigência da dupla incriminação

. Violação do direito a um julgamento justo, à defesa e à presunção de inocência (artigo 24. 2 CE)

. Violação do direito à protecção jurisdicional efectiva (artigo 24. 1 CE), na sua vertente do direito de acesso aos recursos, devido à inadmissibilidade não fundamentada do incidente de nulidade do processo apresentado contra o despacho que deferiu a extradição

- Por despacho de 14 de Dezembro de 2020, a ... Secção do Tribunal Constitucional Espanhol admitiu o recurso de amparo, considerando ser de especial importância constitucional porque o recurso levantava um problema ou afectava uma faceta de um direito fundamental sobre o qual não havia doutrina do Tribunal e poderia dar ao tribunal a oportunidade de esclarecer ou mudar a sua doutrina, como resultado de um processo reflexão interna;

- Aquele Tribunal remeteu uma comunicação à ... Secção da Audiência Nacional para que, no prazo de dez dias, enviasse uma fotocópia autenticada ou certificada dos trâmites correspondentes ao rol do processo nº ...19 da Secção, correspondente ao processo de extradição nº 40/2019 do Tribunal Central de Extradição nº 4, notificando previamente aqueles que tinham sido partes no processo, com excepção do recorrente em amparo, para comparecerem no recurso no prazo de dez dias, se assim o desejassem;

- A requerimento do recorrente em amparo, foi proferido despacho a suspender a execução das decisões impugnadas sobre a apreciação da urgência excepcional referida no artigo 56.6 LOTC, dado que tal execução causaria danos impossíveis ou muito difíceis de reparar, o que faria com que o recurso de amparo perdesse a sua finalidade;

- Recebidos os depoimentos solicitados e cumpridas as notificações requeridas, por despacho de 29 de Março de 2021 do Secretário de Justiça da ... Secção do Tribunal Constitucional foi acordado dar ao recorrente e ao Ministério Publico uma audiência do processo, por um período conjunto de vinte dias, para que formulassem as alegações, conforme o artigo 52º da LOTC;

- O Recorrente e o Ministério Publico apresentaram alegações;

- Por despacho de 8 de Julho de 2021 foi fixado o dia 12 do mesmo mês para a deliberação e votação do acórdão;

- Por acórdão de 12 de Julho de 2021 foi dada providência ao recurso de amparo apresentado por AA e, em virtude do mesmo:

. Anular o despacho de 28 de Setembro de 2020 proferido pelo Plenário da Secção Penal da Audiência Nacional bem como o despacho de 21 de Outubro de 2020 proferido pela mesma secção;

. Restabelecer os direitos violados e, consequentemente, reconhecer os seus direitos à protecção jurisdicional efectiva (artigo 24. 1 CE) e a um julgamento justo (artigo 24. 2 CE) em relação aos seus direitos à liberdade pessoal (artigo 17. 1 CE) e liberdade de residência e circulação (artigo 19. CE) invocados pelo recorrente.

*

II.4. Como vimos, o recorrente veio requerer ao Estado Português – e, concretamente, aos tribunais portugueses – que revejam e confirmem a sentença (penal) estrangeira que lhe reconhece o direito a não ser extraditado para a República de Angola pelos factos ali apreciados.

Concretamente, o ora recorrente pretende que seja revista e confirmada em Portugal a decisão de 12 de Julho de 2021 do Tribunal Constitucional Espanhol, proferida no recurso de amparo 5275-2020, e que recusou a sua extradição para um Estado terceiro – Angola – com fundamento na violação do direito à tutela jurisdicional efectiva e ao processo equitativo, em conexão com os direitos fundamentais à liberdade pessoa e à liberdade de circulação.

A Relação recusou o pedido do requerente, essencialmente, por dois motivos:

a) Por falta de fundamento legal, nos termos do disposto nos artigos 237.º, n.º 3 do Código do Processo Penal e 98.º da Lei nº 144/99 de 31/08. (cfr. Dispositivo, p. 38 do acórdão) – considerando não estarem preenchidos os requisitos formais para a sua procedência – concretamente, por não ser uma sentença condenatória.

b) Por a revisão e confirmação da decisão revidenda implicar a violação dos princípios da ordem pública internacional do estado português, considerando que “feriria o princípio da soberania do Estado Português (...) o princípio da independência do poder judicial (...) [e] o princípio da separação e interdependência dos poderes.” (cfr. p. 37 da decisão recorrida).

O recorrente veio interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça por discordar da interpretação que o Tribunal da Relação faz quer das normas relativas às formalidades inerentes ao processo de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira, quer quanto aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, discordando da sua aplicação no sentido que lhes deu a decisão recorrida.  

Assim, as questões a analisar no presente recurso são as seguintes:

- Se deve ser recusada a revisão e confirmação da decisão do Tribunal Constitucional Espanhol por não estarem preenchidos os requisitos formais para a sua procedência – concretamente, por não ser uma sentença condenatória.

- Se a revisão e confirmação da decisão revidenda implicaria a violação dos princípios da ordem pública internacional do estado português.

*

II.5. Quanto à recusa em admitir a revisão e confirmação da decisão do Tribunal Constitucional Espanhol por não estarem preenchidos os requisitos formais para a sua procedência – concretamente, por não ser uma sentença condenatória.

II.5.1. Como consabido, o reconhecimento dos efeitos internacionais das sentenças estrangeiras em Portugal não se processa automaticamente. Elas só ganham eficácia internamente através da revisão e confirmação, que a nossa lei processual regula nos artigos 234 a 240 do CPP – cf. Também o art. 100 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto (Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal – LCJIMP).

Sendo concedida a revisão, a sentença revidenda ingressa por essa via no sistema jurisdicional português que a acolheu.

O recorrente pretende que seja revista e confirmada em Portugal a decisão de 12 de Julho de 2021 do Tribunal Constitucional Espanhol, proferida no recurso de amparo 5275-2020, e que recusou a sua extradição para um Estado terceiro – Angola – com fundamento na violação do direito à tutela jurisdicional efectiva e ao processo equitativo, em conexão com os direitos fundamentais à liberdade pessoa e à liberdade de circulação.

No entanto, a decisão recorrida negou a revisão e confirmação daquela sentença “por falta de fundamento legal, nos termos do disposto nos artigos 237.º, n.º 3 do Código do Processo Penal e 98.º da Lei n.º144/99 de 31/08.” (cfr. Dispositivo, p. 38 do acórdão), considerando que “Analisada toda a arquitectura legal em que enquadra o processo de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira repassa, sem margem para dúvida, que apenas as sentenças condenatórias têm a virtualidade de serem objecto de revisão e confirmação [sendo manifesto que a decisão revidenda não o é].” (cfr. p. 33 da decisão recorrida).

Com efeito, o Tribunal recorrido atribui sentido literal às normas constantes dos artigos 95.º, 96.º, 98.º e 100.º da Lei n.º 144/99, de 31/08 e 237.º, retirando concretamente do nº 3 do artigo 237.º e do artigo 98.º da Lei nº 144/99, de 31/08, que “repassa sem margem para dúvida, que apenas as sentenças condenatórias têm a virtualidade de serem objecto de revisão e confirmação” (cfr. p. 33 da decisão recorrida).

Acrescentou ainda que “entre o espectro das decisões judiciárias em matéria penal, o legislador português veio especificar aquelas que, após o respectivo reconhecimento e confirmação, admite executar os efeitos que lhe cabem no Estado de origem, como acto jurisdicional, segundo a lei desse mesmo Estado. E essas são as sentenças penais condenatórias!

*

II.5.2. Entendemos, porém, como defende o recorrente, que tal entendimento, sustentado na literalidade daquelas normas, se afigura desproporcionadamente limitativo, não levando em consideração uma interpretação sistémica, teleológica e funcional das normas e instituto a que pertencem, na unidade normativa do sistema de cooperação judiciária internacional penal a que respeita.

É certo que o mandado de detenção europeu e a revisão e confirmação de sentença estrangeira são institutos diferentes.

Há que não confundir a diferenciação dos institutos com o campo da sua aplicação, e que radica na natureza, características e finalidades que lhe subjazem.

O título II do Livro V do Código de Processo Penal Português refere-se à revisão e confirmação de sentença estrangeira, e nele se estabelece que quando por força da lei ou de tratado ou convenção, uma sentença penal estrangeira dever ter eficácia em Portugal, a sua força executiva depende de prévia revisão e confirmação, salvo se a sentença penal estrangeira for invocada nos tribunais portugueses como meio de prova (v. artº 234º nºs 1 e 3 do CPP).

Mas basta consultar as disposições gerais do título I do mesmo livro, para se ver a imediata consagração legal da prevalência dos acordos e convenções internacionais, pois que como refere o artº 229º: As rogatórias, a extradição, a delegação de procedimento penal, os efeitos das sentenças penais estrangeiras e as restantes relações com as autoridades estrangeiras relativas à administração da justiça penal, são reguladas pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial e ainda pelas disposições deste livro.

No caso presente não estamos perante uma sentença estrangeira, sim perante uma sentença comunitária.

E, em termos simples, em se tratando de sentença comunitária e vista a existência do princípio de reconhecimento mútuo das sentenças comunitárias - que assenta na ideia de confiança mútua entre os Estados-Membros da União Europeia - significa que uma decisão judicial tomada pela autoridade judiciária de um Estado-Membro, segundo a sua própria lei, é exequível directamente pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro.

Ora, se a decisão se encontra abrangida pelo princípio do reconhecimento mútuo, não faz sentido que se defenda que apenas as sentenças condenatórias têm a virtualidade de serem objecto de revisão e confirmação.

O que faz sentido é que se utilize esse procedimento, aceitando a existência do princípio do reconhecimento mútuo.

O princípio do reconhecimento mútuo significa que uma decisão judicial tomada pela autoridade judiciária de um Estado-Membro, segundo a sua lei, é exequível directamente pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro. “Segundo o princípio, uma decisão tomada por uma autoridade judiciária de um Estado-Membro com base na sua legislação interna será reconhecida e executada pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro, produzindo efeitos pelo menos equivalentes a uma decisão tomada por uma autoridade judiciária nacional.” (Ricardo Jorge Bragança de Matos, “O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 14º, nº 3, pp. 327-328; sobre a matéria ver também, Anabela Miranda Rodrigues, “O mandado de detenção europeu”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 13º, nº 1, pp. 32-33).

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II.5.3. A cooperação judiciária penal internacional deu-se com o Tratado da Amesterdão, celebrado a 2 de Outubro de 1997 e que entrou em vigor a 1 de Maio de 1999 (Foi ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 65/99 e aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/99, de 19 de Fevereiro). O Tratado veio dar um novo impulso à cooperação judiciária penal entre os Estados-membros, uma vez que alterou substancialmente o Título VI, do Tratado de Maastrich, depurando-o de matérias que não diziam respeito à polícia e ao direito penal, nomeadamente, emigração, vistos e asilo.

Do mesmo passo, o Tratado incorporou o acervo de Schengen no âmbito comunitário através do protocolo A.3 anexo ao mesmo e proclamou que um dos objectivos da União Europeia é a manutenção e o desenvolvimento da União enquanto espaço com um elevado nível de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, mediante a instituição de acções em comum entre Estados-membros no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal” (arts. 2.º e 29.º,ex-art. K.1).

Em consequência, o Tratado vem afirmar que a acção comum no domínio da cooperação judiciária em matéria penal passará, nomeadamente, por facilitar a extradição entre Estados-membros (art. 31.º, al. b) ex-artigo K.3). O Tratado passou a designar o terceiro pilar por “cooperação policial e judiciária em matéria penal” e colocou essa matéria sob o controlo jurisdicional do Tribunal de Justiça e sujeito ao crivo democrático do Parlamento Europeu (art. 46.º, al. b) e art. 39.º, n.º1).

Pelo Tratado, a comissão passou a ter direito de iniciativa (cf. art. 34.º, n.º 2) e estabeleceu-se a decisão-quadro como instrumento de eleição para harmonizar as legislações entre o Estados-membros no âmbito da mesma matéria.

Por outro lado, permite-se ao Conselho a celebração de acordos com terceiros Estados ou com organizações internacionais no domínio da cooperação judiciária penal (cf. art. 24.º ex vi art.38.º). Ou seja, não obstante a cooperação judiciária em matéria penal continuar no âmbito das relações intergovernamentais, o certo é que a “comunitarização” dessa matéria aprofundou-se.

O passo seguinte foi dado pelo Conselho Europeu de Cardiff, de 15 e 16 de Junho de 1998, no âmbito do qual foi concluído que se deviam estudar mecanismos para o reconhecimento mútuo das sentenças penais: o Conselho Europeu sublinha a importância de uma cooperação judiciária efectiva na luta contra o crime transfronteiras. Reconhece a necessidade de se reforçar a capacidade de os sistemas jurídicos nacionais trabalharem em estreita colaboração e solicita ao Conselho que estude a possibilidade de um maior reconhecimento mútuo das sentenças dos tribunais nacionais, como forma de optimizar a cooperação penal europeia.

Na sequência do Conselho Europeu de Cardiff e tendo presente a necessidade de, antes da entrada em vigor do Tratado da Amesterdão, fossem estabelecidas disposições que facilitassem a função e a coordenação do Comité de Representantes Permanentes e o enquadramento do Sistema de Informações Schengen (SIS), o Conselho e a Comissão, em 3 de Dezembro de 1998, através do plano de acção de Viena, estabeleceram algumas das medidas a tomar no prazo de cinco anos após a entrada em vigor do referido Tratado. 

O Conselho JAI de Cardiff, a 3 de Dezembro de 1998, preconizou que nos três anos seguintes à entrada em vigor do tratado de Amesterdão fossem estudados mecanismos que facilitassem a extradição entre Estados-membros e que se assegurasse que as duas convenções adoptadas com base no tratado da União Europeia fossem efectivamente implementadas na lei e na prática.

Outrossim, foi estabelecido que se iniciasse um estudo com vista a encontrar mecanismos que facilitassem o reconhecimento mútuo das decisões e o reforço dos julgamentos em matérias criminais.

Nos dias 15 e 16 de Outubro de 1999, em Tampere, o Conselho Europeu reuniu extraordinariamente com vista a implementar o objectivo traçado pelo Tratado de Amesterdão; isto é: a criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Com efeito, o estatuto de liberdade, onde se inclui a liberdade ambulatória, pressupõe que esta se possa exercer num espaço de segurança – e isso não é possível sem um sistema de justiça que a garanta. Compete ao sistema de justiça possibilitar que qualquer cidadão da União possa recorrer aos Tribunais tão facilmente quanto o poderia fazer no seu próprio país e que o criminoso intua que, não obstante a liberdade de circulação, a justiça poderá ser actuada em qualquer ponto da União.

Assim, em Tampere, definiu-se que “as sentenças e outras decisões das autoridades judiciais devem ser respeitadas e aplicadas em toda a União, salvaguardando simultaneamente a segurança jurídica de base tanto dos indivíduos como dos operadores económicos” e que, em consequência, era “necessário alcançar um grau mais elevado de compatibilidade e de convergência entre os sistemas jurídicos dos Estados-membros”, pelo que o principio do reconhecimento mútuo, assente no principio da confiança mútua, era a “pedra angular” da cooperação judiciária da União (sublinhado nosso) – sobre a evolução descrita na cooperação judiciária penal internacional, cfr. Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, Luís Mota Carmo, Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito “O ne bis in idem Como Fundamento de Recusa do Cumprimento do Mandado de Detenção Europeu”, 2009.

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II.5.4. O princípio do reconhecimento mútuo em matéria penal assenta, pois, no pressuposto de que todos os EM garantem um elevado e equivalente grau de protecção dos direitos fundamentais, aferido pelo standard da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, como base para a existência de confiança mútua.

E, é esta existência de confiança mútua que permite reconhecer como válidas as decisões proferidas em outro EM ao abrigo das respectivas decisões nacionais, independentemente da existência de harmonização (muito embora esta seja actualmente reconhecida como favorável ao funcionamento do próprio princípio).

Pese embora em matéria penal, o reconhecimento de decisões judiciárias implique regra geral um reconhecimento de decisões limitadoras dos direitos individuais, e funcione tipicamente de forma “bilateral”, entre Estado de emissão e de execução, estando sujeito a causas de recusa de execução ligadas às idiossincrasias do direito interno do Estado de execução, não discordamos do recorrente quando salienta que na sua origem, o princípio tem precisamente uma ideia de sentido contrário, a de expandir a “defesa das liberdades contra o poder estatal”, em concreto das liberdades estabelecidas pelo próprio direito da UE e que não podem ser restringidas pelo direito interno dos EM, não estando assim sujeitas às tais idiossincrasias ou variações. Desta forma, pode dizer-se que sempre que estejamos perante uma decisão de um EM que, em aplicação de normas de direito da UE cujo conteúdo é autónomo e tem de ser aplicado uniformemente em todos os Estados-Membros, esta decisão, ao abrigo do princípio do reconhecimento mútuo, é merecedora de reconhecimento nos outros EM, sem que tal constitua qualquer violação da soberania dos EM, pois estamos no âmbito das competências soberanas cujo exercício foi transferido para a União, por acto soberano dos EM.

No entanto, o reconhecimento em matéria de decisões penais exige em regra, para operar, uma decisão com carácter constitutivo por parte do Estado recognoscente, pelo que a decisão judiciária em causa tem de ser susceptível de reconhecimento mútuo (e reconhecimento através do processo de revisão e confirmação), como será o caso de uma decisão que aplica uma norma de direito da UE que tem por escopo a protecção de direitos e liberdades fundamentais e com conteúdo autónomo e aplicável de modo uniforme em todos os EM.

Neste sentido, uma decisão do Tribunal Constitucional Espanhol em processo de extradição terá que considerar-se uma decisão judiciária em matéria penal que, como tal, está sujeita ao princípio do reconhecimento mútuo.

Como decidiu o TJUE no Acórdão WS[1] (mencionado pelo recorrente na sua motivação), precisamente debruçando-se sobre um caso em que se questionava qual o efeito de existência de um direito consagrado no direito da UE, e em particular no artigo 54.º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen (CAAS) e no artigo 50.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), a partir do momento em que um direito seja reconhecido por um Tribunal de um EM, os tribunais dos outros EM terão de o reconhecer, de acordo com os mecanismos processuais internos disponíveis, estabelecendo a decisão em causa um princípio geral no que se refere ao carácter vinculativo para os outros EM de uma decisão judicial de um EM que reconheça um direito ou liberdade estabelecido no direito da União, em termos que tornam ilegal uma detenção provisória com vista à extradição com base num red notice emitido por um Estado terceiro.

Este princípio estende-se a outras decisões judiciais proferidas nos EM da UE e que tenham o mesmo teor, desde que se esteja perante a afirmação de um direito estabelecido de forma harmonizada (por oposição, por exemplo, a motivos de recusa de índole estritamente nacional e não harmonizada, como a inimputabilidade em razão da idade, ou a prescrição do procedimento criminal).

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II.5.5. É precisamente este o caso da decisão revidenda, que recusou a extradição do recorrente para um Estado terceiro – Angola – com fundamento na violação do direito à tutela jurisdicional efectiva e ao processo equitativo, em conexão com os direitos fundamentais à liberdade pessoal e à liberdade de circulação, no recurso originado no processo de extradição movido ali contra o requerente, na sequência da detenção deste em ..., por força do mandado de detenção emitido pelas autoridades angolanas, e que por sua vez deu origem à publicação de um red notice (n.º A-5765/5-2019), o qual se mantém em vigor, pelo que existe risco real e efectivo de o recorrente ser detido em Portugal com fundamento nos mesmos factos já apreciados pelos tribunais espanhóis, e sem qualquer controlo judicial prévio, nos termos do disposto no artigo 39.º da Lei 144/99, de 31.08, e 21.º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em vigor entre Portugal e Angola.

E o Acórdão do Tribunal Constitucional Espanhol 147/2020, de 19 de Outubro, analisando se o pedido de extradição cumpre os cânones do processo equitativo e, em concreto, se estão verificadas as condições de objectividade e imparcialidade da autoridade cuja decisão está na origem do procedimento de cooperação internacional, como condições para a legalidade das restrições aos direitos à liberdade e à livre circulação no espaço de um EM da EU, e para definir o standard normativo para a decisão, recorreu à jurisprudência do TJUE sobre a matéria (acórdãos de 27 de maio de 2019, processos OG e PI, (C-508/18 e C-82/19 PPU, EU:C:2019:456); PF, C-509/18, EU:C:2019:457; de 12 de dezembro de 2019, JR e YC, C-566/19 PPU e C- 626/19 PPU, EU:C:2019:1077; XD, C-625/19 PPU, EU:C:2019:1078; ZB, C-627/19 PPU, EU:C:2019:1079)[2].

E, foi precisamente a falta de conformidade com estes direitos fundamentais estabelecidos no direito da UE (e como homólogos na Constituição Espanhola) que conduziu à decisão de recusa de extradição pela decisão revidenda[3].

Do exposto resulta que a decisão recusou a extradição com um fundamento pan-europeu, ou seja, com fundamento nos direitos consagrados na Constituição Espanhola, homólogos dos direitos constantes da CDFUE e, neste sentido, declarou o direito da UE aplicável ao caso, direito esse aplicável de forma necessariamente uniforme em toda a UE, por não estar sujeito às idiossincrasias do direito interno.

Assim sendo, a decisão revidenda é susceptível de ser revista e confirmada em Portugal, apesar de não se tratar de sentença penal de caráter condenatório

Com efeito, de acordo com o que foi expendido no Conselho, num espaço integrado como é a União Europeia, sedimentado nos valores da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, não faz sentido que uma decisão judicial esteja condicionada pelo principio da territorialidade e que não tenha o mesmo valor em todo o espaço comunitário, e consequentemente, que possa ser executável per se em qualquer parte do território da União.

E, o facto de não se tratar de uma “sentença penal condenatória” não constitui obstáculo à revisão e confirmação, aliás, como foi já foi reconhecido pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de 29.10.2014, 3ª secção, proc. 79/14.8YRCBR.S1, relator: Maia Costa, in www.dgsi.pt., em que foi peticionada a revisão e confirmação da sentença proferida no Tribunal de Roterdão para efeitos de aplicação em Portugal do princípio ne bis in idem em processo de contraordenação, considerando que: « (…) a pretensão em causa era a de que a sentença proferida em outro EM da UE “produza um determinado efeito em Portugal: a aplicação do princípio ne bis in idem. Estando pendente contra a requerente um processo de contraordenação que, segundo ela, incide sobre os mesmos factos, isto é, sobre os factos que fundamentaram a sua condenação no tribunal holandês, a requerente tem obviamente interesse em fazer valer o princípio ne bis in idem. E se, para essa finalidade, lhe foi exigido pela autoridade administrativa, a IGAMAOT, a revisão e confirmação dessa sentença, é óbvio e evidente que o pedido não poderia ficar sujeito à iniciativa da Autoridade Central e à autorização do Ministro da Justiça, em suma ao poder (discricionário) da Administração”. No caso, o que a requerente pretende é que a sentença proferida na Holanda produza um determinado efeito em Portugal: a aplicação do princípio ne bis in idem.

Estando pendente contra a requerente um processo de contraordenação que, segundo ela, incide sobre os mesmos factos, isto é, sobre os factos que fundamentaram a sua condenação no tribunal holandês, a requerente tem obviamente interesse em fazer valer o princípio ne bis in idem.

E se, para essa finalidade, lhe foi exigido pela autoridade administrativa, a IGAMAOT, a revisão e confirmação dessa sentença, é óbvio e evidente que o pedido não poderia ficar sujeito à iniciativa da Autoridade Central e à autorização do Ministro da Justiça, em suma ao poder (discricionário) da Administração.

Carece, pois, de fundamento a rejeição do pedido de revisão e confirmação com base no incumprimento pela requerente do “formalismo” previsto na Lei nº 144/99 (…)».

E decidiu o Acórdão supracitado, que era necessária a revisão de sentença pois o artigo 234.º, n.º 3, do CPP, prescinde da revisão e confirmação quando a sentença estrangeira seja invocada como meio de prova, ficando nesses casos, sujeita ao princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador nacional: «Só a revisão e confirmação é suscetível de tornar exequível a sentença em Portugal, de lhe conferir a eficácia de sentença, e consequentemente de fazer valer o princípio do caso julgado relativamente aos factos apreciados, e reflexamente o princípio ne bis in idem».

Em conclusão, face ao exposto, entendemos não haver qualquer fundamento formal para rejeitar o pedido de revisão e confirmação da sentença formulado pelo requerente, pelo que a decisão recorrida não pode subsistir.

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II.6. Quanto à revisão e confirmação da decisão revidenda implicar a violação dos princípios da ordem pública internacional do estado português.

 

II,6.1. A Relação recusou o pedido do requerente, com falta de fundamento legal, nos termos do disposto nos artigos 237.º, n.º 3 do Código do Processo Penal e 98.º da Lei nº 144/99 de 31/08, por considerar não estarem preenchidos os requisitos formais para a sua procedência – concretamente, por não ser uma sentença condenatória (questão decidida supra) e, ainda, por a revisão e confirmação da decisão revidenda implicar a violação dos princípios da ordem pública internacional do estado português, considerando que “feriria o princípio da soberania do Estado Português (...) o princípio da independência do poder judicial (...) [e] o princípio da separação e interdependência dos poderes.” (cfr. p. 37 da decisão recorrida).

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II.6.2. Porém, ao invés do que afirma a decisão recorrida, a procedência deste meio processual não importa, de forma alguma, uma violação da soberania portuguesa, ou de algum princípio de ordem pública internacional do Estado Português, antes garantindo, como atrás se referiu, o cumprimento das obrigações em que o Estado Português, soberano, se constituiu com os seus parceiros Europeus.

O n.º 1 do art.º 8.º da Constituição da República Portuguesa estabelece um regime de recepção automática das normas e princípios de direito internacional geral, que fazem parte integrante do direito português.

O n.º 4 do referido preceito constitucional, introduzido pela Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24-07 (Sexta Revisão Constitucional) estatui que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

Assim, tal normativo constitucional reflecte o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário, tal como tem vindo a ser sustentado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

Uma das dimensões de tal primado consiste, precisamente, em «afastar as normas de direito ordinário internas preexistentes e em tornar inválidas, ou pelo menos ineficazes e inaplicáveis, as normas subsequentes que o contrariem. Em caso de conflito, os tribunais nacionais devem considerar inaplicáveis as normas anteriores incompatíveis com as normas de direito da UE e devem desaplicar as normas posteriores, por violação da regra da primazia»[4], pelo que, não pode proceder o entendimento postulado na decisão recorrida de que uma Convenção estabelecida com Estado Terceiro – no caso, a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – teria primazia sobre o Direito da União.

Aliás, como bem observa o recorrente, inexiste também qualquer conflito com outras obrigações de direito internacional que pudessem vincular o Estado português, já que o direito constitucional da União - como é o caso do direito à tutela jurisdicional efectiva e o direito a um processo equitativo decorrentes dos artigos 19.º do TUE e 47.º da CDFUE, em conjunção com o direito à liberdade decorrente do artigo 6.º da CDFUE, primam, também eles, sobre obrigações internacionais que com eles conflituem – neste sentido, cfr. o Acórdão do TJUE no caso Kadi1[5] (citado na motivação de recurso).

Significa isto que na ordem jurídica portuguesa vigoram em simultâneo dois regimes gerais de competência internacional: o regime comunitário e o regime interno.

No entanto, contrariamente ao sustentado na decisão recorrida, importa notar que quando a acção estiver compreendida no âmbito de aplicação do direito comunitário, é esse regime que prevalece sobre o regime interno por ser de fonte hierarquicamente superior e face ao referido princípio do primado do direito europeu.

A Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, na alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º, sob a epígrafe de requisitos gerais negativos da cooperação internacional, estabelece que o pedido de cooperação é recusado quando o processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal.

E, à Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, tal como ocorre relativamente ao Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu, encontra-se subjacente a ideia de cooperação judiciária internacional em matéria penal, tendo em vista o combate célere e eficaz da criminalidade, na base da confiança recíproca entre os Estados contratantes e do reconhecimento mútuo, princípios através dos quais se garante que as decisões judiciais de qualquer um dos Estados serão respeitadas e tomadas em consideração por todos os outros Estados nos precisos termos em que foram proferidas (Os Estados contratantes confiam que os sistemas jurídicos e respectivos processos garantem a legalidade das decisões proferidas por qualquer um dos Estados).

In casu, sendo o recorrente nacional de Estado terceiro, residente em Portugal desde 2018, sendo titular de Autorização de Residência que permite o exercício de actividade profissional, tendo aqui também actividade económica (com a detenção de imóveis e de quotas em sociedade comercial), sendo o agregado familiar respectivo constituído, entre o mais, por dois filhos menores de idade e dependentes com cidadania portuguesa e, como tal, cidadãos da União, enquadrando-se o exercício por este do direito de residência e de circulação na UE nos artigos 79.º e 80.º do TFUE, e várias Directivas e outros normativos de direito secundário, bem como no âmbito de aplicação dos artigos 18.º e 21.º do TFUE, por força da cidadania dos filhos menores que tem a seu cargo, tem integral aplicação o direito da União, incluindo a CDFUE.

Assim sendo, encontram-se preenchidos os demais pressupostos da revisão e confirmação (sendo a dupla incriminação, neste caso, um pressuposto que só pode ser aferido por reporte aos factos subjacentes ao pedido de extradição que foi recusado pelos Tribunais espanhóis; ou até entender-se inaplicável, por não se tratar de um pedido de revisão e confirmação de sentença penal em sentido estrito, pelo que apenas seriam aplicáveis os requisitos da revisão e confirmação de sentença previstos no CPC).

Em conclusão, sustentar a impossibilidade de rever e confirmar uma decisão judicial em matéria de cooperação judiciária internacional proferida noutro EM com fundamento no primado de Tratado de extradição com um Estado Terceiro, equivale a negar o primado que o Direito da UE tem sobre o direito interno, nos termos dos Tratados institutivos e do artigo 8.º, n.º 4, da CRP.

Primado esse que nada subtrai à soberania do Estado Português, antes pelo contrário, uma vez que foi por decisão soberana que Portugal escolheu transferir para a União o princípio do reconhecimento mútuo em matéria de decisões judiciais que impliquem a aplicação de norma de direito da UE.

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III – DECISÃO

          

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso interposto pelo requerido AA, determinando-se a revisão e confirmação do acórdão do Tribunal Constitucional de Espanha, prolatado a 12/07/2021 e já transitado em julgado, proferido no recurso de amparo 5275-2020, que recusou o pedido de extradição apresentado pelo Estado Angolano relativamente ao requerente, com fundamento na violação do direito à tutela jurisdicional efectiva e ao processo equitativo, em conexão com os direitos fundamentais à liberdade pessoa e à liberdade de circulação, revogando-se, em consequência, o acórdão recorrido.

Sem custas.

Lisboa, 14 de Julho de 2022

Cid Geraldo (Relator)

Leonor Furtado

Eduardo Loureiro (Presidente)     

___________________________________________________

[1] Acórdão do TJUE de 12.05.2021, WS, C-505/19, EU:C:2021:376, www.curia.europa.eu.

Neste caso, estando em causa um red notice difundido pela INTERPOL com vista a um pedido de extradição dos EUA, disse o TJUE que:
“ [...] as autoridades de um Estado contratante como as de um Estado Membro são livres de proceder à detenção provisória de uma pessoa a que se refere um alerta vermelho publicado pela Interpol enquanto não for demonstrado que o princípio ne bis in idem é aplicável.
Em contrapartida, quando as autoridades de um Estado contratante ou de um Estado Membro para o qual essa pessoa se desloca tenham tomado conhecimento de que foi tomada noutro Estado contratante ou noutro Estado Membro uma decisão judicial transitada em julgado que declara a aplicação do princípio ne bis in idem relativamente aos factos abrangidos pelo referido alerta vermelho, eventualmente depois de terem obtido as informações necessárias junto das autoridades competentes do Estado contratante ou do Estado Membro em que se alega ter sido declarada extinta a ação penal relativa aos mesmos factos, tanto a confiança mútua entre Estados contratantes que o artigo 54.º da CAAS [...], recordada no n.º 80 do presente acórdão, como o direito de livre circulação garantido pelo artigo 21.º, n.º 1, TFUE, lidos à luz do artigo 50.º da Carta, opõe-se a uma detenção provisória da referida pessoa por essas autoridades ou, sendo caso disso, à manutenção dessa detenção.
 Com efeito, no que respeita, por um lado, ao artigo 54º da CAAS, a detenção provisória deve ser encarada, nessa situação, como uma medida que já não visa verificar se os requisitos de aplicação do princípio ne bis in idem estão preenchidos, mas unicamente contribuir para o exercício efetivo de ações penais, contra a pessoa em questão, no Estado terceiro na origem da publicação do alerta vermelho em causa, eventualmente após a sua extradição para este último. [...]
Para garantir, em tal situação, o efeito útil do artigo 54.º da CAAS e do artigo 21.º, n.º1, TFUE, lidos à luz do artigo 50.º da Carta, incumbe aos Estados Membros e aos Estados contratantes assegurar a disponibilidade de vias de recurso que permitam às pessoas em causa obter uma decisão judicial transitada em julgado que declare a aplicação do princípio ne bis in idem, conforme referido no n.º 89 do presente acórdão.
A interpretação do artigo 54º  da CAAS e do artigo 21.o, nº 1, TFUE, lidos à luz do artigo 50.º da Carta, referida nos nºs 89 a 91 do presente acórdão, não é posta em causa pelos argumentos de alguns dos governos que intervieram no processo no Tribunal de Justiça, segundo os quais o artigo 54º da CAAS só é aplicável no espaço Schengen e o princípio ne bis in idem não constitui um motivo absoluto que justifique uma recusa de extradição ao abrigo do Acordo UEUSA.
 Com efeito, por um lado, embora o artigo 54º da CAAS não vincule, evidentemente, um Estado que não figura entre os Estados contratantes e que, portanto, não faz parte do espaço Schengen, há que salientar que a detenção provisória de uma pessoa a que se refere um alerta vermelho da Interpol por um dos Estados contratantes constitui, mesmo que esse alerta tenha sido publicado a pedido de um Estado terceiro no âmbito de um processo penal que instaurou contra essa pessoa, um ato desse Estado contratante que se insere assim no âmbito de um processo penal que se estende, como foi salientado nos nºs 86e 87do presente acórdão, sobre o território dos Estados contratantes e que tem a mesma consequência negativa para o direito à livre circulação da referida pessoa que o mesmo ato considerado no âmbito do processo penal que tramitou integralmente nesse Estado contratante.” [...]
A legalidade do ato de um dos Estados contratantes que consiste na detenção provisória de uma pessoa a que se refere um alerta vermelho da Interpol depende, portanto, da sua conformidade com o artigo 54º da CAAS, ilustrando os nºs 89 e 90 do presente acórdão uma situação em que tal detenção viola esta disposição. [...]
Todavia, importa recordar que a situação referida no pedido de decisão prejudicial diz respeito à detenção provisória de uma pessoa a que se refere um alerta vermelho publicado pela Interpol, a pedido de um Estado terceiro, e não à extradição dessa pessoa para esse Estado. Para verificar se a interpretação do artigo 54º da CAAS referida nos nºs 89 e 90 do presente acórdão poderia entrar em conflito com o direito internacional, é, portanto, necessário examinar, em primeiro lugar, as disposições relativas à publicação dos alertas vermelhos da Interpol e as consequências jurídicas de tais alertas, que figuram nos artigos 82ºa 87º das Regras da Interpol relativas ao Tratamento de Dados.
Ora, resulta do artigo 87º destas regras que os Estados Membros da Interpol só estão obrigados, no caso de uma pessoa a que se refira um alerta vermelho ser localizada no seu território, a proceder à sua detenção provisória se tal medida for «permitida […] ao abrigo do direito nacional e dos tratados internacionais aplicáveis». No caso de a detenção provisória de uma pessoa a que se refere um alerta vermelho da Interpol ser incompatível com o direito da União, quando esse alerta diga respeito a factos aos quais é aplicável o princípio ne bis in idem, um Estado Membro da Interpol não deixaria, portanto, de cumprir as obrigações que lhe incumbem enquanto membro dessa organização ao não proceder a essa detenção.
Além disso, resulta da jurisprudência que embora, na falta de regras do direito da União que regulem a extradição de nacionais dos Estados Membros para um Estado terceiro, os Estados Membros continuem a ser competentes para adotar tais regras, estes mesmos Estados Membros são obrigados a exercer essa competência no respeito pelo direito da União, designadamente da liberdade de circular e de permanecer no território dos Estados Membros, garantida no artigo 21º, nº 1, TFUE. (v., neste sentido, Acórdãos de 13 de novembro de 2018, Raugevicius, C247/17, EU:C:2018:898, nº 45, e de 2de abril de 2020, Ruska Federacija, C897/19 PPU, EU:C:2020:262, nº 48)”. [...]
Tendo em conta o que precede, há que responder às questões primeira a terceira que o artigo 54º da CAAS e o artigo 21.º, n.º 1, TFUE, lidos à luz do artigo 50.º da Carta, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem à detenção provisória, pelas autoridades de um Estado contratante ou de um Estado Membro, de uma pessoa a que se refere um alerta vermelho publicado pela Interpol a pedido de um Estado terceiro, exceto se estiver demonstrado, numa decisão judicial transitada em julgado proferida num Estado Contratante ou num Estado Membro, que essa pessoa já foi definitivamente julgada por um tribunal, respetivamente, de um Estado contratante ou de um Estado Membro, pelos mesmos factos que estão na base desse alerta vermelho.”
[2] Refere o Acórdão quanto às exigências resultantes do direito da União Europeia na matéria:
“[e]stas decisões referem-se às exigências de proteção geradas por "uma medida que, tal como a emissão de um mandado de detenção europeu, é suscetível de afetar o direito à liberdade da pessoa em causa, tal como consagrado no artigo 6° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia", estabelecido numa decisão-quadro que "faz parte de um sistema global de garantias inerentes a uma cooperação judiciária eficaz estabelecido por outras normas da União adotadas no domínio da cooperação judiciária em matéria penal e que contribuem para facilitar o exercício dos direitos da pessoa procurada com base num mandado de detenção europeu, mesmo antes da sua entrega ao Estado-Membro de emissão.
O Tribunal exige que "se adote uma decisão de acordo com os requisitos inerentes a uma proteção jurisdicional eficaz, pelo menos num dos dois níveis de tal proteção". No primeiro nível, a proteção jurisdicional baseia-se num procedimento nacional sujeito a revisão judicial, no qual a pessoa sujeita à ordem gozou de todas as garantias inerentes à adoção de tal decisão, nomeadamente as decorrentes dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais a que se refere o n.º 3 do artigo 1 da Decisão de março 2002/584.
No segundo nível, a proteção é conferida pela autoridade que emite o mandado de detenção europeu, verificando as condições necessárias à sua emissão e avaliando se, tendo em conta as particularidades do caso específico, a sua emissão é proporcional. Para satisfazer este segundo nível de garantia, a autoridade emissora deve estar em condições de exercer essa função objetivamente, tendo em conta todas as provas da acusação e da defesa, e sem estar exposta ao risco de o seu poder de decisão estar sujeito a ordens ou instruções externas, em particular do executivo. Quando essa autoridade, nos termos da legislação do Estado de emissão, não for um juiz ou um tribunal, a decisão de emissão desse mandado de detenção, nomeadamente a proporcionalidade dessa decisão, deve ser objeto de controlo jurisdicional no Estado-Membro que preenche os requisitos de proteção jurisdicional efetiva.
O Tribunal de Justiça da União Europeia considera, portanto, que a autoridade designada pelo direito interno para emitir o mandado de detenção europeu não tem necessariamente de ser um juiz ou tribunal, mas que outro tipo de autoridade é admissível desde que preencha as seguintes condições: (i) deve ser uma autoridade envolvida na administração da justiça penal, o que exclui ministérios e serviços policiais que fazem parte do poder executivo, mas permite a inclusão de um ministério que tenha competência no âmbito do processo penal para instaurar um processo penal contra uma pessoa suspeita de ter cometido um crime, a fim de levar essa pessoa a um tribunal; (ii) deve ser uma autoridade independente, não sujeita a ordens ou instruções externas, em particular do executivo, e deve estar em condições de exercer a sua função objetivamente, ou seja, tendo em conta todas as provas da acusação e defesa; e (iii) por último, mas não menos importante, a sua decisão seve estar sujeita a revisão judicial quanto ao cumprimento dos requisitos para a sua emissão e, em particular, quanto à sua proporcionalidade, uma revisão que pode ser prévia, simultânea ou posterior e que só é relativizada quando o mandado de detenção europeu se destina à execução de um acórdão, porque nesse caso "a sua proporcionalidade resulta do acórdão imposto".
Deve acrescentar-se que no recente acórdão proferido pela Primeira Secção do T JUE em 10 de março de 2021 no processo C-648/20 PPU, EU:C:2021:187, este último critério foi ainda mais qualificado, afirmando-se que "as exigências inerentes à proteção jurisdicional efetiva de que deve beneficiar uma pessoa objeto de um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal estão preenchidas quando tanto o mandado de detenção europeu como a decisão judicial em que este se baseia são emitidos por um procurador, que pode ser qualificado de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.º, n.º 1, desta decisão-quadro, mas não podem ser sujeitos a fiscalização jurisdicional no Estado-Membro de emissão antes da entrega da pessoa procurada pelo Estado-Membro de execução."
E conclui, depois, que estas exigências são equivalentes às decorrentes da Constituição espanhola:
Neste contexto, que não se afasta do cânone que este Tribunal estabeleceu em defesa do direito à liberdade das pessoas, conclui-se no ATC 147/2020, de 19 de outubro, que não há garantia efetiva do direito à liberdade sem mediação judicial que controle a necessidade e proporcionalidade da medida que o afeta, e que a eventual intervenção de qualquer outra autoridade pública a que o direito interno do Estado-Membro atribua uma participação significativa na administração da justiça penal no país, como pode ser o caso de certos ministérios públicos de acordo com os poderes processuais que lhes são conferidos pelo direito nacional, exigirá, em qualquer caso, a concordância indesculpável de uma autoridade judicial, mesmo nos casos em que a sua independência estrutural em relação ao poder executivo seja inquestionável”.
[3] “No quadro regulamentar em vigor na República de Angola, a Procuradoria-Geral da República, responsável pela formulação dos pedidos de extradição, é definida pela Lei22/2012, de 14 de agosto, da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público, no seu artigo 1.1, como órgão do Estado com a função de representação do Estado, especialmente no exercício da ação penal, na defesa dos direitos de outras pessoas singulares e coletivas, na defesa da legalidade no exercício da função jurisdicional e na fiscalização da legalidade na fase de investigação preparatória do processo e no que respeita à execução das penas. O artigo 8.3 da referida lei acrescenta que o Procurador-Geral da República recebe instruções diretas do Presidente da República, na área da representação do Estado pela Procuradoria-Geral da República, ou seja, no exercício da ação penal. Nessas circunstâncias, como aponta o Ministério Público, não parece possível compreender que as normas de independência do poder executivo acima referidas sejam cumpridas no órgão competente para formular os pedidos de extradição da República de Angola.
Por outro lado, o pedido de extradição baseia-se num "Relatório Final" da Direção Nacional de Prevenção e Combate à Corrupção da Procuradoria-Geral da República de Angola, que é apenas um ato processual, emitido sem qualquer controlo por parte da autoridade judicial, que impede que seja considerado comparável a um despacho de acusação referido no art. 7.1 a) L.E.P.
As decisões judiciais impugnadas no presente recurso de amparo, ao aceitarem das autoridades angolanas, com o apoio ao pedido de extradição, o mandato de uma procuradoria-geral sem verdadeiro aval judicial, não conseguiram proteger o direito à liberdade do extraditando.
5. Conclusão
Portanto, as decisões judiciais impugnadas violam o direito à proteção jurisdicional efetiva devido ao não cumprimento do requisito de fundamentação reforçada (art. 24.1 CE) e de direito a um julgamento justo (art. 24.2 CE) em conexão com os direitos fundamentais à liberdade pessoal (art. 17.1 CE) e à liberdade de residência e circulação (art. 19 CE) do extraditando internacionalmente.
A violação dos direitos à proteção jurisdicional efetiva e ao devido processo conduz, neste caso, à anulação dos autos do Audiência Nacional, dado que a mesma tem origem na falta de ponderação do impacto que a decisão de extradição tem no conteúdo constitucionalmente protegido do direito à liberdade do extraditurus e na ausência de um juízo de necessidade aprovada judicialmente no país requerente. [...]”

[4] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., 2014, anotação XXIII ao art. 8º, pág. 271.
[5] Acórdão do TJUE, de 03.09.3008, C-402/05 P e C-415/05 P, EU:C:2008:461, §§281-285, www.curia.europa.eu: [...] há que recordar que a Comunidade é uma comunidade de direito, no sentido de que nem os seus Estados-Membros nem as suas instituições escapam ao controlo da conformidade dos seus actos com a carta constitucional de base que é o Tratado CE, e que este estabelece um sistema completo de vias de recurso e de procedimentos destinado a confiar ao Tribunal de Justiça a fiscalização da legalidade dos actos das instituições (acórdão de 23 de Abril de 1986, Os Verdes/Parlamento, 294/83, Colect., p. 1339, nº 23).
[...] Além disso, segundo jurisprudência constante, os direitos fundamentais fazem parte integrante dos princípios gerais de direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça. Para este efeito, o Tribunal inspira-se nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros e nas indicações fornecidas pelos instrumentos internacionais relativos à protecção dos Direitos do Homem, em que os Estados-Membros colaboraram ou a que aderiram. A CEDH reveste, neste contexto, um significado particular (v., nomeadamente, acórdão de 26 de Junho de 2007, Ordre des barreaux francophones et germanophone e o., C-305/05, Colect., p. I-5305, nº 29 e jurisprudência aí citada).
Resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o respeito dos Direitos do Homem é um requisito da legalidade dos actos comunitários (parecer 2/94, já referido, nº 34) e que na Comunidade não se podem admitir medidas incompatíveis com o respeito desses direitos (acórdão de 12 de Junho de 2003, Schmidberger, C-112/00, Colect., p. I-5659, nº 73 e jurisprudência aí citada).
Decorre de todos estes elementos que as obrigações impostas por um acordo internacional não podem ter por efeito a violação dos princípios constitucionais do Tratado CE, entre os quais figura o princípio segundo o qual todos os actos comunitários devem respeitar os direitos fundamentais, constituindo este respeito um requisito da sua legalidade que compete ao Tribunal de Justiça fiscalizar no âmbito do sistema completo de vias de recurso estabelecido pelo mesmo Tratado.”