Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
25384/18.0T8PRT-A.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: OBRIGAÇÕES PROPTER REM
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
FACTO ILÍCITO
OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
EMBARGOS DE EXECUTADO
TÍTULO EXECUTIVO
SENTENÇA
LEGITIMIDADE PASSIVA
DEVEDOR
TRANSMISSÃO DE DÍVIDA
TRANSMISSÃO DE DIREITO REAL
Data do Acordão: 09/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A obrigação de suportar os custos da demolição de uma obra clandestina realizada em prédio alheio e de reposição do imóvel no estado anterior, judicialmente imposta, ao proprietário de prédio contíguo, com base em responsabilidade civil por facto ilícito, não é uma obrigação “propter rem”.
II - Enquanto obrigação de natureza pecuniária, emergente de responsabilidade por facto ilícito, não é uma obrigação inerente à titularidade de determinado direito real, cujo cumprimento devesse, necessariamente, ser realizado pelo titular desse direito.
III - Dado que essa obrigação pecuniária não é inerente à qualidade de proprietário de um imóvel, ela não se transmite, automaticamente, ao novo adquirente desse imóvel.
IV - Para que a obrigação de indemnizar, baseada em responsabilidade por facto ilícito, na qual foi condenado um sujeito que é proprietário de determinado imóvel, se transmita ao novo adquirente desse imóvel, tal transmissão tem de ser convencionada (art. 595.º do CC).
V - O adquirente daquele imóvel não tem legitimidade processual passiva na execução para pagamento de quantia certa [a quantia referida no ponto 1] porque não figura no título [a sentença proferida nos autos principais] como devedor (art. 53.º do CPC), nem a dívida lhe foi transmitida (por não ser obrigação “propter rem”), não se verificando sucessão na obrigação (art. 54.º do CPC). Nestas circunstâncias, procedem os embargos de executado.
Decisão Texto Integral:


Processo n. 25384/18.0T8PRT-A.P1.S1

Recorrente: AA

Recorrido: BB

I. RELATÓRIO

1. AA deduziu embargos à execução (a que respeitam os autos principais) que lhe foi movida por BB, invocando, essencialmente, a inexistência e inexequibilidade de título executivo que sustentou tal execução.

Alegou, em síntese, que não foi parte na ação de condenação, que a sentença não o condenou a pagar qualquer montante, e que não existe sucessão na obrigação de indemnizar. Defendeu, ainda, que a sentença que sustenta a execução apenas se lhe impõe (tendo força de caso julgado) no que respeita à obrigação de permitir e tolerar que na sua fração “A” sejam executadas as obras [descritas nas alíneas a) e b) da parte dispositiva da sentença] necessárias a repor a situação existente antes das obras ilicitamente realizadas pelo anterior proprietário da referida fração “A”, mas já não quanto ao pagamento da indemnização exequenda. Invocou ainda a inexequibilidade do título quanto aos juros de mora peticionados.

2. O exequente-embargado BB contestou, defendendo a improcedência dos embargos e sustentando, em síntese, que o executado sucedeu na obrigação do condenado primitivo, pelo que, por aplicação do disposto no art. 54.º n. 1 do CPC, seria parte legítima na ação, até por força da autoridade de caso julgado.

3. Pela primeira instância foi proferido saneador-sentença, no qual se julgaram os embargos procedentes, declarando-se, consequentemente, extinta a execução (à qual os embargos se encontram apensos).

4. Inconformado com esta sentença, o exequente-embargado interpôs recurso de apelação, vindo o TR……. a considerar esse recurso procedente[1].

5. Por sua vez, inconformado com o acórdão do TR…., o embargante-apelado interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«A) O Recorrente não se conforma com acórdão do douto Tribunal da Relação que revogou a decisão proferida no despacho saneador-sentença, julgando improcedentes os Embargos e declarando o Recorrido parte legítima e a sentença exequenda título executivo válido;

B) Entende o Recorrente que o douto Acórdão recorrido erra na interpretação dos factos e na aplicação do direito, devendo, por isso, ser revogado;

C) O Recorrente não só não concorda com o entendimento de que a obrigação em causa (pagamento das despesas necessárias à execução das obras de reposição do prédio do Exequente) tenha a natureza de obrigação real “propter rem”, como entende que, caso seja reconhecida a essa obrigação tal natureza, ainda assim, a mesma não se lhe transmitiu por via da aquisição da fração em causa;

D) No caso da condenação no pagamento das despesas necessárias à execução das obras de reposição do prédio do Recorrido, estamos perante uma obrigação que nasce da prática de um facto ilícito e tem natureza indemnizatória;

E) Natureza indemnizatória que é reconhecida na própria sentença dada à execução, onde, a dado passo, se refere: “Por conseguinte, da execução destas obras resultaram danos para a fracção do autor (fracção “C”), importando para a massa insolvente de CC a obrigação de indemnizar, designadamente repondo a situação que existiria se o evento danoso não tivesse ocorrido (cfr. arts. 483º, 496º e 562º, do C. Civil)”;

F) A obrigação exequenda (no que à quantia exequenda respeita) não é uma obrigação propter rem, e como obrigação comum que é não se impõe ao executado, por via da sentença proferida, pois que só pode ser exigida ao devedor da obrigação, autor das obras ilícitas, não constituindo nessa parte a sentença título executivo válido;

Sem prescindir:

G) Ainda que se reconheça à obrigação exequenda a natureza de obrigação real “propter rem”, ainda assim, essa obrigação não se transmitiu ao Recorrente por via da aquisição da fração em causa, uma vez que não tem natureza ambulatória;

H) As obrigações “propter rem” quando obrigações de “dare” devem considerar-se não ambulatórias, considerando que a alienação do direito real não impossibilita o alienante de realizar a prestação;

I) Ambulatórias serão as obrigações reais de “facere” que imponham ao devedor a prática de atos materiais na coisa objeto do direito real;

J) Nesses casos, e como refere o Prof. Henrique Mesquita, “o alienante do ius in re, em virtude de ter cessado a soberania sobre a coisa, fica impossibilitado de realizar a prestação debitória”, como obrigações ambulatórias que são, “trata-se sempre, em síntese, de obrigações que só podem ser cumpridas por quem seja titular do direito real de cujo estatuto promanam”;

L) No caso dos presentes autos, estando em causa uma prestação pecuniária, ou seja, uma obrigação de “dare” e não “facere”, ainda que lhe seja atribuída a natureza de obrigação real “propter rem”, tal obrigação tem natureza não ambulatória;

M) O que equivale por dizer que tal obrigação não se transmitiu ao Recorrente por via da aquisição que este efetuou da fração autónoma “A”, tendo antes permanecido na esfera da alienante, a massa insolvente de CC;

N) O Acórdão recorrido labora num manifesto equívoco, qual seja o de erradamente considerar que, com a alienação ao aqui Recorrente da fração autónoma em causa, a massa insolvente de CC “ficou impossibilitado de realizar a prestação debitória”;

O) No caso em apreço, não existe, ligada ao domínio e soberania da fração alienada, qualquer impossibilidade de o pagamento da despesa com as obras de reconstrução do prédio do Recorrido ser realizado pela Massa Insolvente de CC;

P) Estando em causa uma obrigação pecuniária (obrigação de “dare”) que não impõe ao devedor a prática de atos materiais na coisa objeto do direito real, nada impede que a mesma possa ser cumprida pelo alienante do direito real nada justificando que tal obrigação se transmita para o adquirente;

Q) Tendo já sido encerrada a insolvência de CC e não tendo o Recorrido recebido da respetiva Massa Insolvente tudo o que teria direito a receber então pode (e deve) cobrar ao devedor CC, que já deixou de ser insolvente, aquilo que ficou por receber;

R) Pois que, como decorre do disposto no art. 233º nº 1, alínea d) do CIRE as dívidas da massa insolvente são também dívidas do próprio insolvente, pelo que se elas não tiverem sido satisfeitas no processo de insolvência (ou na medida em que o não foram), o respetivo titular pode, depois do encerramento do processo de insolvência e após o rateio final, exigir do devedor, que deixou de estar insolvente, o seu pagamento.

S) Do supra exposto, conclui-se que, ainda que se reconheça à obrigação exequenda a natureza de obrigação real “propter rem”, ainda assim, essa obrigação não se transmite ao Recorrente por via da aquisição da fração em causa.

T) Não só porque essa obrigação pecuniária tem natureza de obrigação de “dare” e não “facere”, e como tal natureza não ambulatória, mas também porque, não impondo ao devedor a prática de atos materiais na coisa objeto do direito real, nada impede que a mesma seja cumprida pelo alienante do direito real (Massa Insolvente ou o Insolvente CC), não se justificando que a mesma se transmita para o adquirente do mesmo, o aqui Recorrente.

U) Ao que acresce que não seria justo e equitativo imputar ao Recorrente a responsabilidade pelo pagamento de obras de reposição da fração do Recorrido, pois que não só não teve qualquer responsabilidade na criação da situação que torna necessária a realização dessas obras, como, quando adquiriu a referida fração “A” à Massa Insolvente de CC, desconhecia em absoluto a existência do litígio que opunha esta ao Reccorrente, só dele tendo vindo a tomar conhecimento após ter adquirido tal fração;

V) Em face do exposto, deveria o Recorrente ter sido considerado parte ilegítima na presente execução, porquanto a sentença dada à execução não constituiu, quanto à sua pessoa, título executivo válido e eficaz.

X) Ao decidir de forma diferente o douto acórdão recorrido violou, designadamente, o disposto nos art.º s 53.º e 54º do CPC.

Ainda sem prescindir:

Z) A sentença dada à execução não condena a Massa Insolvente de CC no pagamento de quaisquer juros, sejam eles moratórios ou de qualquer outra natureza, razão pela qual carece o Exequente título executivo que lhe permita cobrar juros moratórios.

AA) Por outro lado, não tendo a obrigação de juros moratórios natureza real (propter rem) e, como tal não se transmitindo ao Recorrente por via da aquisição da fração, carece o Recorrido de título executivo que lhe permita exigir o pagamento, a esse título, da peticionada quantia de € 21.013,97.

BB) Até porque, atenta a autonomia da obrigação de juros face à obrigação de capital, uma eventual caracterização da dívida exequenda como obrigação real com caráter ambulatório, e como tal transmissível ao aqui Recorrente, não seria extensível à obrigação de juros.

Termos em que, com o Douto suprimento de V. Exas, deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, ser revogado douto Acórdão recorrido, com todos os efeitos legais.»

6. O recorrido apresentou contra-alegações defendendo, em síntese, a manutenção do acórdão recorrido.

*

II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso:

Estando em causa um recurso de revista de um acórdão da Relação proferido num processo de oposição deduzida contra a execução, a revista não é obstaculizada pela limitação geral prevista o art. 854º do CPC. Tendo o acórdão recorrido revogado a decisão da primeira instância que havia sido favorável ao agora recorrente, verificam-se os requisitos de admissibilidade previstos no art. 671º, nº 1 do CPC.

Sendo o objeto do recurso delimitado pelo teor das alegações do recorrente, são as seguintes as questões jurídicas a apreciar:

- saber se o recorrente-executado devia ter sido considerado parte ilegítima na execução para pagamento de quantia certa, por não ter sido parte no processo onde foi proferida a sentença que serve de título executivo a essa execução, nem tendo expressamente assumido a qualidade de sucessor do devedor da obrigação pecuniária exequenda (art. 53º e 54º do CPC);

- caso se entenda ser parte legítima, saber se devia ter sido condenado no pagamento dos juros.

2. A factualidade relevante:

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

«1. O título que serve de base à execução é a sentença proferida nos autos de ação declarativa de condenação, com processo comum ordinário, que correu os seus termos na extinta …. Secção, …. Vara Cível  …, sob o n. 484/10….., junta a fls. 8 e ss dos autos de execução, transitada em julgado, cujo teor se dá aqui por reproduzido, na qual consta o seguinte segmento decisório:

 “Pelo exposto, ponderado o estatuído nos preceitos legais supra invocados, julgo a presente ação procedente e provada, nos termos sobreditos, e consequentemente decide-se:

A) Condenar a Massa Insolvente de CC a entregar ao A. BB, o espaço atualmente ocupado pela fração A, correspondente ao local onde se encontra a varanda;

B) Condenar a Massa Insolvente a afastar o telhado da varanda a construir, respeitando a distância legal do RGEU (3 metros); e

C) Pagar as despesas a suportar por terceiro que proceda à execução das ditas obras de reconstrução do prédio do A., no montante global de € 74.492,40.”

2. A ação referida em 1. foi proposta pelo exequente BB contra a Massa Insolvente de CC.

3. O Senhor Administrador da Massa Insolvente não executou as obras nem pagou a quantia a que foi condenada, pelo que o Autor, aqui exequente, deduziu a competente Execução para pagamento de quantia certa (no valor de € 74.492,40 e juros vencidos até 11.09.2012, no valor de € 5.290,00) no valor global de € 79.782,40, a qual foi distribuída à …. Secção …. Juízo de Execução ….., sob o n. 5547/12…….

4. Nessa execução procedeu-se à penhora do único imóvel da Massa Insolvente e ao seu registo na competente Conservatória do Registo Predial (fração autónoma designada pela letra “A” do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, nºs. …. e …, com entrada pelo número …, da União de freguesias …., ….., ….., …., ….. e …, do concelho ….., descrita na Conservatória do Registo Predial ….. sob o n. …21 e inscrita na matriz predial sob o artigo …...86).

5. Após o registo da penhora, por despacho …. Juízo Cível do Tribunal Judicial ….. (Proc. 2701/08……), foi requerida a remessa dos Autos de Execução para serem apensados ao Processo de Insolvência, o que foi feito.

6. Posteriormente, o Senhor Administrador da Massa Insolvente procedeu à venda da fração supra identificada, em 29.08.2016, pela quantia de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros) a AA, casado sob o regime de separação de bens com DD, residente Rua …., ….., nos termos constantes da escritura de compra e venda junta a fls. 12 a 13 da execução, e cujo teor se dá aqui por reproduzido.

7. O Senhor Administrador da Massa Insolvente inseriu nos anúncios publicados, para venda desse imóvel mediante propostas em carta fechada, a entregar até ao dia 02.01.2012 o seguinte texto: “Mais informa o aqui administrador que sobre o prédio incide um ónus de € 74.492,40 que acresce ao valor ora publicitado, porquanto a massa insolvente foi condenada a custear esse valor que diz respeito a obras de demolição, obras essas que não se encontravam legalizadas”, e nos demais termos constantes do anuncio de fls. 14 v e cujo teor se dá aqui por reproduzido, no qual consta para alem do mais, que se aceitam propostas de valor igual ou superior a € 202.3000,00.

8. A venda da fração A) concretizou-se na modalidade de venda por negociação particular, tendo o executado encetado negociações com o AI em abril de 2016. A proposta foi apresentada ao credor hipotecário, que a aceitou e a venda da fracção concretizou-se na escritura de compra e venda referida em 6.

9. Do produto da venda, o Exequente recebeu na supra identificada execução a quantia de € 43.800,96, correspondente à quantia transferida para os autos de execução, após rateio final levado a cabo nos autos de insolvência, nos termos que constam do documento junto aos autos a fls. 13v, sendo que essa execução foi declarada extinta por inutilidade da lide, por inexistirem mais bens capazes de garantir o restante ainda em débito (cfr. fls. 13v).

10. Na execução a que estes autos se encontram apensos, o exequente peticiona, do executado, o pagamento do remanescente da quantia ainda em débito ao exequente acrescida dos juros legais vencidos até 30 de Novembro de 2018, no valor de € 21.013,97, e dos vincendos até integral pagamento, no valor global de € 51.704,41 (74.492,40 + 21 013,97 – 43.800,96); e bem ainda que o executado permita que o Exequente efetue as obras de construção civil nas frações “A” e “C”, ordenadas pela Douta Sentença, após receber a totalidade da quantia exequenda, invocando, para o efeito, a qualidade do executado do comprador da fração “A”

11. O executado embargante não se opõe a que o exequente efetue as obras de construção civil nas frações “A” e “C”, a que se refere a al. C) da sentença dada à execução.»

 

3. O direito aplicável:

3.1. Como supra referido, está em causa a questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei, quando considerou o agora recorrente [executado-embargante] parte legítima na ação executiva movida pelo recorrido [exequente-embargado], e ainda quando entendeu que ele seria devedor dos juros de mora peticionados pelo exequente.

3.2. Como decorre das conclusões das alegações do recorrente (e do ponto n.11 da factualidade provada), no presente recurso, não está em causa a apreciação de qualquer questão respeitante à realização das obras a que se referem as alíneas a) e b) da sentença proferida no processo n. 484/10…… (… Secção,  ….. Vara Cível  …..), pois as partes não estão em conflito quanto a essa matéria. O conflito respeita apenas à matéria do pagamento da quantia a que se refere a alínea c) da referida sentença.

3.3. Como consta da matéria de facto provada, o título que serve de base à execução (à qual os presentes autos se encontram apensos) é a sentença proferida nos autos de ação declarativa de condenação, com processo comum ordinário, que correu termos na extinta …. Secção,  ….. Vara Cível  …., sob o n. 484/10……, transitada em julgado, na qual se decidiu:

a) - Condenar a Massa Insolvente de CC a entregar ao A. BB, o espaço atualmente ocupado pela fração A, correspondente ao local onde se encontra a varanda;

b) - Condenar a Massa Insolvente a afastar o telhado da varanda a construir, respeitando a distância legal do RGEU (3 metros); e

c) - Pagar as despesas a suportar por terceiro que proceda à execução das ditas obras de reconstrução do prédio do A., no montante global de € 74.492,40.”

3.4. Essa ação declarativa foi proposta pelo agora exequente, BB, contra a Massa Insolvente de CC. Não foi, portanto, proposta contra o atual recorrente [executado-embargante], AA, o qual, não tendo sido condenado naquela sentença, nunca teria a qualidade de executado na previsão do art.53º do CPC.

Afastada essa hipótese, a questão central em análise é, agora, a de saber se ele poderá ter a qualidade de executado com base na previsão normativa do art. 54º do CPC, ou seja, enquanto sucessor do devedor condenado na referida sentença [a Massa Insolvente de CC]. Efetivamente, como decorre da factualidade provada, o agora recorrente adquiriu a “fração A”, a que se refere a sentença, através de venda por negociação particular, realizada com o administrador da referida massa insolvente. Importa, portanto, apurar se, por força dessa aquisição, o agora recorrente se tornou devedor da quantia pecuniária que a Massa Insolvente havia sido condenada a pagar ao exequente, deduzida da quantia de € 43.800,96 que o administrador da insolvência já havia pago (cf. ponto n.9 da factualidade provada).

3.5. No acórdão recorrido (revogando a decisão da primeira instância) entendeu-se que o executado tinha legitimidade para ser sujeito da ação executiva, que, assim, devia continuar contra ele, porquanto teria sucedido na posição do anterior devedor.

O acórdão recorrido, depois de reproduzir doutrina sobre os conceitos de ónus real e de obrigação real, bem como sobre os conceitos de obrigações “propter rem” ambulatórias e não ambulatórias, fundamenta a decisão do caso concreto nos seguintes termos:

«(…) em causa está o ressarcimento das despesas necessárias à execução das obras de reposição do prédio do Exequente no estado anterior às obras clandestinas levadas a cabo pelo insolvente CC, no seu prédio contíguo ou vizinho daquele.

(…) trata-se de verdadeira obrigação propter rem, uma obrigação que resulta do facto de o insolvente ser o titular de um determinado direito real sobre a coisa (a fracção onde foram feitas as obras clandestinas) – resulta, como dito supra, directa e imediatamente, da aplicação do estatuto do direito à situação em que a coisa objectivamente se encontra. Nasce com a violação e subsiste, ligada à coisa, enquanto não se verificar uma causa de extinção.

Sendo assim, essa obrigação transmite-se ao adquirente da coisa com o direito real de que ela decorre: o novo titular do direito real fica colocado, relativamente ao cumprimento dessa obrigação (no caso sub judice, a obrigação de pagar as despesas necessárias à reposição da anterior situação do prédio do Exequente), na mesmíssima situação em que se encontrava o anterior (o insolvente CC).

Ora, como “o alienante do ius in re, em virtude de ter cessado a soberania sobre a coisa, fica impossibilitado de realizar a prestação debitória” [“Mesmo que ele, não obstante a alienação, se dispusesse a fazê-lo, lograria efectuar o cumprimento caso o novo titular do direito real o autorizasse a interferir na res», refere Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais] e, por isso, ou seja, “porque a obrigação está ligada ao domínio e com o detentor desta posição jurídica coincide a legitimidade para nela interferir, é também este sujeito que deve realizar a prestação. Portanto, impõe-se também a conclusão de que o credor da obrigação propter rem pode exigir o cumprimento ao subadquirente, porque a obrigação acompanha a coisa, vinculando quem se encontre, a cada momento, na titularidade do respectivo estatuto” [mesmo autor, cit. supra].

Sendo assim, é evidente que o executado/embargante é parte legítima na demanda, constituindo a sentença dada à execução um título executivo perfeitamente válido


3.6. Entendeu-se no acórdão recorrido que o agora recorrente (atual proprietário da fração “A”) seria responsável pelo cumprimento da obrigação de pagar as despesas destinadas a reconstituir o prédio do autor/exequente, porque essa obrigação pecuniária teria a natureza de uma obrigação “propter rem” e seria ambulatória.
Vejamos se assim é.
 O conceito de obrigação “propter rem” e a sua natureza ambulatória (ou não ambulatória) respeitam a designações que não encontram correspondência direta na letra da lei. Trata-se de matéria de construção doutrinal (por influência da doutrina italiana). 
Todavia, a doutrina não é unânime quanto à natureza da obrigação “propter rem” (tese realista, tese personalista e tese mista[2]), quanto ao seu conteúdo (concretamente quanto a saber se aí se compreendem apenas obrigações positivas[3] ou também obrigações negativas[4]) e quanto ao seu âmbito de transmissibilidade[5].
Apesar das apontadas divergências, a doutrina coincide, porém, em formulações mais ou menos próximas, quanto ao núcleo essencial das notas caraterizadoras da figura da obrigação propter rem, enquanto obrigação que emerge do estatuto próprio da titularidade de certos direitos reais (máxime do direito de propriedade).
Vejamos algumas formulações sobre o conceito de obrigação propter rem.
Segundo Henrique Mesquita: «Como obrigações propter rem (…) devem qualificar-se apenas aquelas a cujo cumprimento se encontra adstrito o titular de um direito real – seja por mero efeito do respetivo estatuto (uma vez verificados os pressupostos de que dependem), seja em consequência da violação das regras que nele se contêm»[6].
Para Menezes Leitão, as obrigações propter rem «(…) correspondem a obrigações em que o respetivo devedor é determinado pela titularidade de um direito real. Trata-se assim de obrigações cujo sujeito passivo é variável, correspondendo ao que for titular naquele momento de determinado direito real, o que justifica a sua qualificação como obrigação ambulatória»[7].
Segundo José Alberto Vieira: «Dentro das situações jurídicas propter rem, as mais relevantes são as designadas obrigações reais ou, mais corretamente, propter rem. Nelas, o sujeito passivo da obrigação surge determinado pela titularidade do direito real»[8].
Ainda no âmbito da caraterização da figura da obrigação propter rem, distinguindo-a de figuras próximas, assume particular pertinência, no contexto do presente caso, a afirmação de Menezes Leitão que se transcreve: «Não devem ser confundidas com as obrigações propter rem os casos de responsabilidade civil atribuídos ao proprietário que exigem um facto culposo para se poderem constituir»[9].
No mesmo sentido, afirma Santos Justo que as obrigações emergentes de factos ilícitos não são obrigações propter rem. Escreve o autor: «(…) não devemos confundir as obrigações reais com as que integram a responsabilidade extracontratual (ou aquiliana) decorrente de danos causados culposamente a um direito real. Com efeito, embora se trate da violação de um direito dessa natureza, tais obrigações incidem sobre indemnizações»[10].
Já neste sentido se havia pronunciado Henrique Mesquita, afirmando, em termos mais amplos, que «Os direitos de indemnização fundados em normas gerais sobre responsabilidade civil (…) não são pretensões reais»[11].

3.7. No quadro doutrinal exposto [porque está em causa uma figura de construção doutrinal], deve concluir-se que a obrigação pecuniária constante da alínea c) da sentença proferida na ação declarativa supra referida não é uma obrigação propter rem, mas sim uma obrigação autónoma e, como tal, disciplinada pelo regime geral das obrigações.  
A obrigação de indemnizar emergente da violação ilícita de um direito absoluto de outrem (no caso concreto – o direito de propriedade) não é uma obrigação que se inscreva no conteúdo próprio do direito de propriedade do responsável pelo ato lesivo.
No caso concreto, a lesão do direito de propriedade do autor (através da realização da obra ilegal) foi levada a cabo pelo anterior proprietário do imóvel contíguo (que o agora recorrente veio a adquirir) como, teoricamente, o podia ter sido por outro sujeito que tivesse acesso ao gozo do imóvel, como um usufrutuário ou um superficiário.
Está em causa uma obrigação de indemnizar emergente de responsabilidade civil [como se estabeleceu na sentença da primeira instância] por violação de um direito absoluto – o direito de propriedade do autor – e não uma obrigação “propter rem” (ou real), própria do estatuto normativo do direito de propriedade do imóvel.

3.8. Não se tratando de uma obrigação propter rem, sendo transmitida a propriedade do imóvel, aquela obrigação de indemnização não acompanha este direito, porque não lhe é inerente. Não tem, portanto, caráter ambulatório. Deste modo, para que aquela obrigação pecuniária a que respeita a alína c) da sentença proferida nos autos da ação declarativa supra referida tivesse sido transmitida, teria de ter existido um acordo destinado à transmissão da dívida, nos termos do art. 595º do CC.
Não constando da factualidade provada que entre o transmitente e o adquirente do referido imóvel [fração “A”] tivesse existido acordo destinado à transmissão daquela obrigação, nos termos do art. 595º do CC, não se pode concluir que o agora recorrente tenha assumido a qualidade de devedor da obrigação exequenda.
Consequentemente, não existirá fundamento legal para lhe atribuir a qualidade de executado nem a inerente legitimidade passiva na execução para pagamento de quantia certa.  

3.9. É certo que (como consta do ponto 6 da factualidade provada) o administrador da insolvência fez publicar anúncios para venda do imóvel através de propostas em carta fechado, dos quais constava a referência expressa à existência da obrigação pecuniária a que se reportava a alínea c) da sentença proferida na ação declarativa supra referida.
Tais anúncios para venda do imóvel através de propostas em carta fechada foram publicados em 02.01.2021 (facto provado n.6). Todavia, a venda não se realizou através dessa modalidade, mas sim através de venda por negociação particular, mediante escritura pública, realizada em 29.08.2016 (factos provados n.6 e n.8), ou seja, mais de 4 anos depois da publicação daqueles anúncios. Acresce que, como também se afirma na decisão da primeira instância, daquela escritura pública não consta que o imóvel tivesse sido transmitido com quaisquer ónus ou encargos.
Poderia ainda observar-se que o facto de naquela escritura pública não se fazer referência à transmissão da obrigação pecuniária, não obstaria a que as partes pudessem ter convencionado noutro acordo a transmissão da dívida. Porém, dos autos não consta qualquer prova, nem sequer alegação, da existência de um acordo especificamente dirigido à transmissão da referida obrigação.
A primeira instância fez a correta interpretação da questão em causa quando entendeu que:

«(…) pese embora no anuncio publicado para venda do imóvel, e, carta fechada (venda esta que não chegou a ser concretizada pois que como ficou provada a venda ocorreu por via da negociação particular cerca de 4 anos depois) fez-se publicitar que "Mais informa o aqui administrador que sobre o prédio incide um ónus de € 74.492,40 que acresce (…) ao valor ora publicitado porquanto a massa insolvente foi condenada a custear esse valor que dizem respeito a obras de demolição, obras essas que não se encontravam legalizadas", sempre cumpriria referir que a venda em insolvência e em execução faz-se livre de ónus e encargos, pois assim o determinam os artigos 824.º n. 2 do CC , que estabelece quanto à venda em execução que "Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo"; e 101.º n.º 5 do Código de Registo Predial.
Assim sendo, e nada sendo estipulado em contrario no acto compra e venda sempre o "ónus" anunciado caiaria com a venda em execução.
Acresce que, o executado pura e simplesmente comprou um imóvel. E com a aquisição desse imóvel, não se transmite sem mais, a obrigação de pagamento da indemnização exequenda, aliás proveniente de facto ilícito por via da realização de obras ilícitas no imóvel em questão, e como tal só ao agente desse ilícito (e posteriormente, declarado o agente insolvente, à massa insolvente, tal como aconteceu no caso dos autos); não se transmite sem mais, e por mera compra e venda do imóvel ao adquirente deste, tal como pretende o exequente

3.10. Concluindo-se, no plano do direito substantivo, que o agora recorrente nunca assumiu a qualidade de devedor da obrigação pecuniária a que respeita a dívida exequenda, tem de se concluir que, no plano processual, ele não pode assumir a qualidade de devedor executado (nos autos da ação principal).
O adquirente da referida fração “A” não tem, assim, legitimidade processual passiva na execução para pagamento de quantia certa, porque não figura no título [a sentença] como devedor (art.53º do CPC), nem a dívida lhe foi transmitida (por não ser obrigação propter rem), não se verificando sucessão na obrigação (art.54º do CPC).
Conclui-se, assim, que o acórdão recorrido não aplicou a solução normativa tecnicamente mais correta.

3.11. Quanto à questão do pagamento dos juros de mora peticionados pelo exequente, o seu conhecimento fica prejudicado pelo sentido da decisão agora tomada, pois considerando o recorrente como parte ilegítima na ação executiva, não há que tecer considerações sobre um problema normativo que só se colocaria se o sentido decisório fosse o oposto. Sendo revogado o acórdão recorrido, é, por inerência, revogado o segmento decisório respeitante ao pagamento de juros de mora (que pressupunham o reconhecimento da legitimidade passiva do executado).

Decisão: Pelo exposto, decide-se revogar o acórdão recorrido, ficando a prevalecer a decisão da primeira instância.

Custas pelo recorrido.

Lisboa, 22.09.2021

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Por acórdão proferido em conferência, em 03.12.2020, o acórdão recorrido foi retificado, dele ficando a constar, em vez de «Custas pelo apelante», «Custas pelo apelado».
[2] Sobre as diversas teses respeitantes à natureza jurídica da obrigação propter rem, vd., entre outros, Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, pág.101 e segs; Santos Justo, Direitos Reais, pág. 87 e segs; Luís Menezes Leitão, Direitos Reais (2ª ed), pág.85 e segs.
[3] Neste sentido, vd. Henrique Mesquita, op. cit. pág.29 e Santos Justo, op. cit. pág.81.
[4] Neste sentido, vd. Menezes Leitão, op. cit. pág. 83 e José Alberto Vieira, Direitos Reais, pág.105.
[5] Sobre a hipótese paradigmática da transmissão das obrigações do condómino já vencidas quando a fração estava na titularidade do transmitente, veja-se, entre outros (no sentido da não transmissão) Menezes Leitão, op. cit. pág.84 e (no sentido da transmissão) J. Alberto Vieira, op. cit. pág.109.
[6] Op. cit. pág.280
[7] Op. cit. pág.81 e 82
[8] Op. Cit. Pág. 103
[9] Op. cit. pág. 83.
[10] Op. cit. pág. 82.
[11] Op. cit. pág. 105