Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
303.06.0GEVFX
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO FRÓIS
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
INTENÇÃO DE MATAR
MATÉRIA DE FACTO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
ERRO DE JULGAMENTO
LEGÍTIMA DEFESA
ANIMUS DEFENDENDI
EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA
Nº do Documento: SJ200904220003033
Data do Acordão: 04/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - A fundamentação não se satisfaz com a enumeração dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento e dos que serviram para fundamentar a sentença. É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correcta aplicação da justiça no caso concreto.

II - «... Estes motivos de facto que fundamentam a decisão, não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados.»

III - «A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso, conforme impõe inequivocamente o artigo 410º-2. E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade...» – cf. Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 229-230.

IV - A razão de ser da exigência da exposição, ainda que concisa, dos meios de prova é não só permitir aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, como também assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova; é necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção. E a indicação das provas que serviram para formar a convicção apenas é obrigatória na medida do que é necessário – cf. Ac. do STJ de 29-06-1995, CJSTJ, III, tomo 2, pág. 254.

V - O exame crítico das provas, a que faz referência o n.º 2 do art. 374.º do CPP, em sede de fundamentação da sentença, consiste tão-somente na indicação das razões que levaram a que determinada prova tenha convencido o tribunal – cf. Ac. do STJ de 24-06-1999, Proc. n.º 457/99 - 3.ª, SASTJ, n.º 32, pág. 88. Com efeito, a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível, devendo também não ser esquecido que o convencimento é de cada um dos juízes e jurados que constituem o colectivo ou júri (art. 365.º, n.º 3, do CPP) – cf. Ac. do STJ de 30-06-1999, Proc. n.º 285/99 - 3.ª, SASTJ, n.º 32, pág. 92.

VI - Estando em discussão a determinação da intenção do agente – intenção de matar –, não cabe no âmbito do presente recurso uma tal reapreciação, por estar em causa matéria de facto, como a jurisprudência tem entendido – cf. a tal respeito, entre os mais recentes, os Acs. do STJ de 10-10-2007, Proc. n.º 3315/07 - 3.ª – [A intenção de matar, enquanto matéria de facto, captada através dos meios de prova que desfilaram perante o tribunal da 1.ª instância, com os quais manteve imediação e oralidade, escapa à sindicância deste STJ]; de 17-01-2008, Proc. n.º 607/07 - 5.ª [A intenção de matar é matéria de facto que escapa à censura do STJ enquanto tribunal de revista, pois pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar, a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial e a aplicação do princípio in dubio pro reo. A intenção de matar constitui matéria de facto a apurar pelo tribunal face à diversa prova ao seu alcance e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador]; de 03-04-2008, Proc. n.º 132/08 - 5.ª; de 12-06-2008, Proc. n.º 1782/08 - 3.ª; de 16-10-2008, Proc. n.º 2851/08 - 5.ª [O apuramento de existência ou não de intenção de matar é matéria de facto. Não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto]; de 22-10-2008, Proc. n.º 3274/08 - 3.ª [Se o recorrente nas conclusões que formula, discorda da factualidade assente, nomeadamente de ter sido considerada provada a intenção de matar, encontramo-nos no domínio da matéria de facto, cujo conhecimento está excluído dos poderes do STJ]; e de 21-05-2008, Proc. n.º 678/08 - 3.ª.

VII - Na verdade, a reapreciação da decisão sob recurso há-de, como princípio, confinar-se à matéria de direito, salvo se, a título excepcional, se tornar imperativo para o conhecimento da matéria de direito a ampliação da matéria de facto, a correcção de evidentes erros ou a remoção de contradição insanável entre os factos e a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, caso em que este Supremo Tribunal ordena o reenvio – arts. 410.º, n.º 2, als. a), b) e c), e 426.º do CPP.

VIII - Mas, ainda assim, mantendo-se no estrito âmbito da reserva de competência e do indispensável pressuposto de que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, pois a única hipótese de o STJ sindicar matéria de facto é através da análise da existência de vícios decisórios, previstos nas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do CPP, sendo esse reexame feito por iniciativa própria.

IX - O erro de julgamento não é sindicável pelo STJ, uma vez que não se confunde com o vício da decisão. O erro de julgamento da matéria de facto tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP, e existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso.

X - Já os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes (in RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).

XI - O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto.

XII - Quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo deve dirigir o recurso directamente para o STJ se visa exclusivamente o reexame da matéria de direito; porém, se visa também o reexame da matéria de facto, deve dirigi-lo à Relação, caso em que, da decisão desta, se não for irrecorrível nos termos do art. 400.º do CPP, poderá recorrer para o STJ. Só que, nesta última hipótese, o recurso, agora restrito à matéria de direito, não pode abranger o conhecimento de eventuais erros das instâncias na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais. Ao interpor recurso directamente para o STJ o arguido aceitou a matéria de facto provada, não podendo questioná-la.

XIII - A ocorrência de legítima defesa leva a que o facto típico não seja punível, porque a sua ilicitude é excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade – arts. 31.º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 32.º do CP.

XIV - A consagração legal da legítima defesa no Código Penal mais não é do que a explicitação do princípio constitucional fixado no art. 21.º da CRP, que estabelece que «Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública».

XV - A legítima defesa apresenta-se como uma causa de exclusão da antijuridicidade do facto, tendo por base uma prevalência que à ordem jurídica cumpre dar ao justo sobre o injusto, à defesa do direito contra a sua agressão, ao princípio de que o direito não deve nunca recuar ou ceder perante a ilicitude.

XVI - Independentemente das dúvidas que possam existir sobre a questão de saber que bens ou interesses estritamente individuais é que se devem considerar incluídos no direito de legítima defesa, todos concordam que ali se incluem a vida, a integridade física, a saúde, a liberdade, o domicílio e o património (neste sentido, cf. Taipa de Carvalho, A legítima defesa, 1995, pág. 318).

XVII - Constitui legítima defesa, nos termos do art. 32.º do CP, o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão ilícita ou antijurídica, enquanto ameaça de lesão de interesses ou valores, não pré-ordenada – ou seja, com o fito de, sob o manto da tutela do direito, obter a exclusão da ilicitude de facto integrante de crime –, actual, no sentido de, tendo-se iniciado a execução, não se ter verificado ainda a consumação, e necessária, ou seja, quando o agente, nas circunstâncias do caso, se limite a usar o meio de defesa adequado – menos gravoso, por a todo o direito corresponderem «limites imanentes» – a sustar o resultado iminente – cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, págs. 45 e 59.

XVIII - São, pois, pressupostos da legítima defesa: a actuação em defesa de uma agressão e o elemento subjectivo a que a doutrina dá o nome de animus defendendi (a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima). São requisitos da agressão: a ilegalidade (no sentido de o seu autor não ter o direito de a praticar, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou tratar-se de um inimputável), a actualidade (no sentido de se estar a realizar, em desenvolvimento ou iminente; a agressão inicia-se – já é actual – quando, colocando-nos numa perspectiva jurídico-penal, a pudermos considerar como acto de execução de uma determinada tentativa) e a falta de provocação; e requisitos da defesa: a impossibilidade de recurso à força pública, a necessidade e a racionalidade do meio.

XIX - A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão e, em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir. Deve ajuizar-se objectivamente e ex ante, na perspectiva de um terceiro prudente colocado na situação do arguido – cf. Ac. do STJ de 18-12-1996, Proc. n.º 115/96 - 3.ª.
XX - Sendo um dos elementos constitutivos da legítima defesa a circunstância de o agente ter praticado o facto para repelir a agressão actual e ilícita de que está a ser sujeito passivo, ou seja, que tenha agido com o intuito de defesa, não se verifica aquela causa de exclusão da ilicitude quando o tribunal dá como provado que o arguido agiu com o intuito de ofender corporalmente o ofendido – cf. Ac. do STJ de 16-04-1997, Proc. n.º 1255/96 - 3.ª, SASTJ, n.º 10, Abril de 1997, pág. 97.

XXI - Destinando-se a legítima defesa apenas a impedir ou repelir a agressão, compreende-se e exige-se que o defendente só utilize o meio considerado, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente para suster a agressão. Como refere Maia Gonçalves (in CP anotado, pág. 167), «Não pode porém, ser imposto ao agredido defendente o uso de meios desonrosos, v.g. a fuga, quando sejam meio adequado para evitar a agressão, tanto mais que isso precludiria também a função de prevenção geral da legítima defesa. Assim entende a doutrina autorizada – cfr. Direito Penal do Prof. Figueiredo Dias, Tomo I, pág. 396-397, havendo também jurisprudência neste sentido».

XXII - Por meio utilizado deve entender-se não só o instrumento, objecto ou arma, mas também o próprio tipo de defesa. Por isso, para se averiguar da adequação do meio de defesa, deve ter-se em consideração as circunstâncias concretas de cada caso (designadamente o bem ou interesse agredido, o tipo e intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de actuar, a capacidade física do agressor, a capacidade física do agredido e os meios de defesa disponíveis). Trata-se de um juízo objectivo, segundo o exame das circunstâncias concretas de cada caso, feito por um homem médio colocado na situação do agredido.

XXIII - Como se refere no Ac. deste Supremo Tribunal de 19-07-2006, Proc. n.º 1932/06 - 3.ª, «O juízo sobre a adequação da defesa e dos meios de defesa, é um juízo objectivo e ex ante, no sentido de que o juiz se terá de colocar na posição que assumiria uma pessoa prudente perante as circunstâncias concretas ocorrentes».

XXIV - Meios adequados para impedir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes e eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor serão considerados desnecessários e, assim, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido.

XXV - Relativamente ao elemento subjectivo (o animus defendendi), entendemos – com grande parte da doutrina e da jurisprudência – ser exigível o intuito ou a vontade de defesa por parte do defendente (embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, p. ex. indignação, vingança e ódio – v.g. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág. 46; Leal Henriques/Simas Santos, CP anotado, pág. 335; e Acs. do STJ proferidos nos Procs. n.ºs 41982, 42682 e 42837 in www.dgsi.pt). Porém, parte da doutrina entende que o elemento subjectivo da acção de legítima defesa se restringe à consciência da situação de legítima defesa, ou seja, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação. Assim, face a uma agressão actual e ilícita, deve ter-se por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários para a sua defesa – cf., neste sentido, Taipa de Carvalho, A legítima defesa, 1995, pág. 318; Cavaleiro de Ferreira e Fernanda Palma, A justificação por legítima defesa como problema de delimitação de direitos, 1990, pág. 611.

XXVI - A intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser resultante de factos objectivos que a indiciem, tal como a intenção de matar, integrando matéria de facto, há-de derivar de factos dos quais se infira.

XXVII - Por outro lado, não haverá causa de exclusão por ilicitude, segundo o disposto no art. 32.º do CP, no caso do agente fraudulentamente se ter colocado na situação objectiva de legítima defesa mediante provocação deliberada e tendo desencadeado o ataque neste sentido.

XXVIII - O excesso de legítima defesa consiste na verificação de uma acção que, pressuposta uma situação de legítima defesa, se materializa na utilização de um meio desnecessário para repelir a agressão. Assim, desde logo, para que haja excesso de legítima defesa têm de se verificar os requisitos da legítima defesa.

Decisão Texto Integral:




Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


No Círculo Judicial de Vila Franca de Xira, no processo comum nº 303/06.0 GEVFX do 1º Juízo Criminal de Vila Franca de Xira, foi submetido a julgamento perante Tribunal Colectivo, o arguido:

– AA, identificado nos autos.

Era-lhe imputada a prática, em autoria material e concurso real, de:

- Um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 22º, 23º e 131, todos do Código Penal; e

- Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. à data dos factos, pelo artigo 275º-1, do CP e actualmente, pelo artigo 86º-1-a), com referência ao artigo 3º-1 e 2-a), todos da Lei nº 5/2006, de 23.02.

CC requereu que lhe fosse arbitrada uma quantia a título de compensação por prejuízos sofridos.

A final, foi proferida sentença que, além do mais:

Julgou parcialmente provada a acusação e condenou o arguido BB:

Como autor material e em concurso real:

a) De um crime de homicídio simples na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, 131.º do Cód. Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão;
b) De um crime de detenção de arma proibida, p. e p. à data dos factos pelo art. 275.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
c) Em cúmulo jurídico das referidas penas de prisão parcelares, condenar o arguido na pena única de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão;

E indeferiu o requerimento de arbitramento de compensação formulado pelo ofendido CC, ao abrigo do disposto no art. 82.º-A, do Cód. Proc. Penal.

Inconformado com tal condenação, o arguido interpôs o presente recurso para este STJ, pugnando pela nulidade do acórdão recorrido por falta ou insuficiente fundamentação ou, se assim se não entender, pugna pela atenuação extraordinária da pena (relativa ao homicídio tentado) que, segundo ele, deveria ter sido fixada em 2 anos e 10 meses de prisão e, a pena respeitante ao cúmulo jurídico (com o crime de detenção de arma proibida) deveria ter sido fixada em 3 anos e 10 meses de prisão.

Termina a respectiva motivação com as seguintes - - - -

CONCLUSÔES:

1. A legítima defesa tem a sua base assente em quatro pilares objectivos, ou seja, a ocorrência de uma agressão actual, ilícita, só neutralizável através de um acto defensivo, acto esse que se deve restringir á utilização do meio ou meios suficientes para pôr termo á agressão.
2. O que se põe em causa fundamentalmente no presente recurso é o juízo de valor objectivo emitido pelo Tribunal recorrido;
3 - Tal juízo de adequação é nulo pode deixar de ter em causa todas as circunstâncias específicas de cada caso, nomeadamente a intensidade da agressão, a especial perigosidade ou temeridade do agressor, o bem ou interesse agredido, a Idade e a compleição física de ambos e todas as demais circunstâncias.
4. Quem se defende não está obrigado a servir-se de meios ou medidas cuja eficácia para a sua defesa, não são seguras nem certas.
S. Nas circunstâncias descritas no caso concreto e dado como provado, a qualquer cidadão comum prudente, que estivesse na posição do recorrente, não era possível agir de outro modo, com outro meio, sendo normal um estado de perturbação e medo;
6. Pois está provado que a vítima não se atemorizou com os tiros de intimidação para o chão, atacando o arguido por três vezes, na cabeça, tronco e membros;
7. Aliás, só consegue parar as "Investidas" do ofendido com o 4° tiro imediatamente após um pontapé na cabeça de que foi alvo;
8. Não se demonstrou que o arguido após ter sofrido as agressões físicas, tivesse ao seu alcance outro meio de defesa;
9. Portanto o arguido agiu em legitima defesa, ou quando multo em excesso de legitima defesa, que o tribunal na nossa modesta opinião não considerou,
10 -Pese embora, o tribunal considerar factos que, objectivamente, apontam no sentido da verificação dos requisitos do instituto da legitima defesa, previstos no artigo 32º do CP.
11. Se por mera hipótese se vier a considerar que não estão reunidos 05 pressupostos da legitima defesa ou do excesso, a verdade é que a pena aplicada ao arguido se mostra excessiva, atendendo a todas as circunstâncias que envolveram a prática do crime, justificando-se plenamente uma atenuação especial da pena, e em concreto uma pena de 2 anos e dez meses de prisão e em cúmulo jurídico na pena única de 3 anos e dez meses de prisão
12. O douto acórdão recorrido é nulo por falta ou insuficiente fundamentação exigida pelo artigo 3740 nº 2 do CPP ex vi artigo 379º nº 1 al. a) do CPP, quanto á intenção de matar ou quanto á intenção de se defender, fazendo-a por mera remissão para os factos provados, tornando tal interpretação violadora do artigo 32º nº 1 da CRP.
13. A decisão recorrida ao considerar que os factos provados não configuram legitima defesa, violou o disposto no artigo 32º do Código Penal;
14. Violando também por erro de aplicação e interpretação os artigos 40° nº 2, 71°,72º, e 73º, do mesmo diploma legal, conforme se motivou e para aí integralmente se remete.

Respondeu o Exmº Magistrado do MºPº junto do 1º Juízo Criminal do Tribunal de Vila Franca de Xira, pugnando pelo não provimento do recurso e pela manutenção do decidido.

Na respectiva motivação, formular as conclusões seguintes: - - - - -

1) O tribunal fez criteriosa análise da prova, apreendendo a essencialidade e o objecto da matéria em litígio.
2) O douto acórdão recorrido mostra-se inequivocamente fundamentado, dando cumprimento ao dever de fundamentar, contido no nº 2, do art. 374º do Código de Processo Penal,
3) 0 tribunal justifica e avalia a sua razão de ciência, indica os factos donde ela derivou e enumera os elementos de prova de que se socorreu.
4) O tribunal recorrido fundamentou com clareza e profundidade mais do que suficiente o processo lógico com base no qual, de acordo com o princípio enunciado no art. 127°, do Código de Processo Penal, formou a sua convicção.
5) O douto acórdão recorrido não enferma de nenhuma nulidade.
6) As causas de exclusão de ilicitude encontram-se estabelecidas no art. 31º do Código Penal.
7) Não é ilícito, entre outros, o facto praticado em "legítima defesa".
8) Constitui legítima defesa, nos termos do art. 32º do Código Penal, o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.
9) No caso dos autos não se verificam os pressupostos da legítima defesa.
10) Foi provado que se verificou desnecessidade do meio empregue para afastamento da agressão do ofendido, dada a superioridade em que se encontrava o arguido, pois que possuía uma arma de fogo, municiada, e capaz de disparar, quando o ofendido se encontrava desprotegido.
11) Nunca o arguido poderá ter temido pela sua vida, pois tinha em seu poder a pistola, enquanto que o ofendido não empunhava qualquer instrumento de agressão.
12) 0 arguido claramente age com intuito punitivo.
13) 0 arguido visou, e logrou, atingir o ofendido numa zona do corpo onde se encontram alojados os órgãos vitais.
14) 0 crime de homicídio na forma tentada é punível com pena cuja moldura abstracta vai de um ano, sete meses e seis dias de prisão até dez anos e oito meses de prisão, nos termos das disposições combinadas do arts. 131.°, 23.°- 2 e 73.°-1, als. a) e b), do Código Penal.
15) Toda a pena tem, como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta. Daí que não haja pena sem culpa - nulla poena sine culpa.
16) A culpa constitui também o limite máximo da pena (art. 40º - 2, do Código Penal)
17) Há que atentar, ainda, nas exigências de prevenção, quer geral, quer especial.
18) A douta decisão ao aplicar as penas concretas já acima indicadas e ao realizar o cúmulo jurídico de penas demonstrou uma relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta aplicada e a avaliação dos factos e da personalidade do arguido, aplicando ao arguido a pena única de cinco anos e dez meses de prisão, que nos parece responder às exigências de prevenção geral e especial, e de acordo com a culpa do recorrente.
19) A atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais.
20) As situações descritas no nº 2 do art. 72º não têm o efeito automático de atenuar especialmente a pena.
21) Ao contrário do pretendido pelo arguido/recorrente, não se verifica qualquer circunstância, anterior ou posterior ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam a ilicitude dos factos, da culpa do agente ou a necessidade da pena.

A Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal teve vista do processo nos termos do artigo 417º-1 do CPP e emitiu douto e bem fundamentado processo no sentido de que o recurso não merece provimento quer porque dos factos provados não se indicia uma situação de legítima defesa ou excesso desta, sendo certo que está provado que o arguido agiu com intenção de matar o ofendido; e a medida das penas parcelares e únicas mostram-se bem doseadas e fundamentadas, devendo ser mantidas.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º-2 do CPP.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

As questões suscitadas pelo recorrente e a decidir são as seguintes:

1 - O acórdão recorrido é nulo por falta ou insuficiente fundamentação quanto á intenção de matar ou quanto à intenção de se defender?
2 – Os factos provados mostram que o arguido agiu em legítima defesa ou excesso de legítima defesa?
3 - A pena respeitante ao crime de homicídio simples na forma tentada, deveria ser especialmente atenuada e, por isso, não deveria ser superior a 2 anos de prisão? E, por isso, a pena aplicada em cúmulo (com o crime de detenção de arma proibida) deveria quedar-se pelos 3 anos e 10 meses de prisão?

Vejamos então:

É a seguinte a matéria de facto provada:
a) No dia 1 de Julho de 2006, cerca das 23.30 horas, CC dirigiu-se ao posto de abastecimento de combustíveis da Galp, sito na E.N. n.º 10, em Alhandra, área desta comarca, com o intuito de abastecer o seu veículo automóvel Peugeot 306 de matrícula ...-...-CL;
b) Neste veículo seguiam também DD e EE;
c) Ali chegados, o CC dirigiu-se ao guiché existente no aludido posto com o intuito de proceder ao pré-pagamento do combustível, no preciso momento em que dele saía o arguido que também acabara de fazer um pré-pagamento de combustível;
d) Ao passar junto do veículo do ofendido CC, no interior do qual permaneciam DD e EE, o arguido reparou que ambos se estavam a rir e de imediato pensou que estavam a gozar com ele;
e) Então, abeirou-se do veículo e depois de abrir a porta da frente do lado do passageiro, abordou DD, dizendo-lhe “queres alguma coisa? Sai cá para fora”;
f) DD respondeu ao arguido que não estavam a falar com ele e pediu-lhe que se fosse embora, pois não queria confusões;
g) O arguido afastou-se do veículo, porém dirigiu-se ao veículo automóvel Renault Trafic de matrícula ...-...-XO que conduzira até ali e depois de abrir uma das portas, retirou do seu interior uma pistola de marca desconhecida, de calibre 7,65 mm, que não foi possível apreender;
h) De seguida, aproximou-se de novo do veículo do ofendido, levando a arma na mão;
i) Aí chegado, abriu a porta, junto da qual se encontrava sentado EE e encostou-lhe a arma à barriga, ao mesmo tempo que dizia: “Então agora não dizes nada? Fala lá agora”;
j) Nesse preciso momento o ofendido CC regressava do guiché e apercebendo-se que o arguido estava a incomodar os seus amigos aproximou-se do mesmo e desferiu um empurrão na porta do veículo e, consequentemente, no arguido;
k) Surpreendido, o arguido recuou, e quando viu que o CC caminhava na sua direcção, apontou a arma para o chão e fez um disparo de intimidação;
l) O ofendido CC aproximou-se do arguido e desferiu-lhe um murro e um pontapé no braço para o obrigar a largar a arma;
m) Nesse momento, o arguido desferiu outros dois disparos para o chão;
n) Logo de seguida e sempre com o mesmo propósito, o ofendido desferiu um pontapé na cabeça do arguido;
o) Momento em que o arguido decidiu deixar de se defender das agressões e decidiu matar o CC;
p) Assim, na execução desse desígnio, e estando a uma curta distância do ofendido, o arguido apontou a arma na direcção do lado esquerdo do seu tórax, após o que premiu o gatilho, efectuando um disparo;
q) Vindo o projéctil a atingir o braço esquerdo bem como o lado esquerdo do tórax e abdómen do ofendido, acabando por ficar alojado no tecido celular subcutâneo da região lombar;
r) Provocando-lhe em consequência as lesões descritas e examinadas a fls. 109 a 111, 134 a 161, 248 a 267, 279, 284, e 240 a 244, que aqui se dão por integralmente reproduzidas e das quais se destacam: ferida transfixiva do membro superior esquerdo, isquémia aguda do mesmo membro - lesão da artéria umeral esquerda – e traumatismo perfurante tóraco-abdominal esquerda;
s) Lesões essas das quais se encontrava curado a 27.12.2006, mas de que resultaram as seguintes sequelas:
- cicatrizes;
- parastesias nos três primeiros dedos da mão esquerda;
- ligeira diminuição da força;
t) Com a conduta descrita pretendia o arguido tirar a vida ao ofendido, o que apenas não logrou fazer por razões alheias à sua vontade, designadamente por o projéctil não ter atingido nenhum dos órgãos vitais do ofendido, apesar da zona atingida e o mesmo ter sido assistido em tempo útil no hospital;
u) Acresce que a posse da pistola com calibre 7,65 mm que o arguido detinha e que usou nas circunstâncias referidas apenas pode ser utilizada por militares e agentes policiais, e no exercício das suas funções, qualidade que não tinha;
v) O arguido tinha plena consciência das características e modo de funcionamento da aludida arma de fogo e que a sua detenção lhe estava legalmente vedada e, mesmo assim, detinha-a;
w) Sabia por outro lado o arguido que o disparo que fez, na direcção da parte esquerda do tórax e abdómen do ofendido, atentas as zonas que pretendia e quis atingir, era susceptível de produzir a sua morte;
x) Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de tirar a vida ao ofendido, o que apenas não logrou alcançar, como se disse, por razões alheias à sua vontade;
y) Sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei;
z) O arguido possui como habilitações literárias a 3.ª classe, é feirante, e em liberdade, vive com a esposa e dois filhos, de 10 e 3 anos de idade;
aa) O arguido confessou os factos relativos à detenção de arma proibida;
bb) O arguido tem antecedentes criminais;
cc) O arguido foi condenado:
1. Por sentença proferida em 31.07.1998 no processo sumário n.º 102/98, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Círculo e de Comarca de Gondomar, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de 500$00, pela prática, em 30.07.1998, de um crime de condução ilegal;
2. Por sentença proferida em 29.02.2000 no processo sumário n.º 50/2000, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Círculo e de Comarca de Gondomar, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 500$00, pela prática, em 08.02.2000, de um crime de condução ilegal;
3. Por acórdão proferido em 07.06.2000, no processo comum colectivo n.º 46/00, da 2.ª Vara Criminal do Porto, na pena de 10 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, pela prática, em 03.02.1995, de um crime de furto qualificado, tendo sido por despacho datado de 08.01.2003, revogada a suspensão da execução da pena de prisão;
4. Por acórdão proferido em 25.10.2001 no processo comum colectivo n.º 86/2001, da 2.ª Vara mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, na pena de 6 anos e 10 meses de prisão e 30 dias de multa à taxa diária de 1.000$00, pela prática, em 03.10.2000, de um crime de tráfico de estupefacientes, um crime de corrupção activa e um crime de dano;
5. Por sentença proferida em 24.03.2003 no processo comum singular n.º 1557/99.2 PEGDM, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Círculo e de Comarca de Gondomar, na pena de 14 meses de prisão, pela prática, em 12.10.1999, de um crime de furto, sendo que esta pena foi englobada em cúmulo jurídico com a pena aplicada no proc. 48/00.5 ggvng da 2.ª Vara de Vila Nova de Gaia, sendo a pena única fixada em sete anos e quatro meses de prisão e 30 dias de multa à taxa diária de € 4,99, por decisão proferida em 21.10.2003, sendo que a pena de multa foi já declarada extinta pelo pagamento.

E são os seguintes os Factos não provados:

Com interesse para a discussão da causa não se provou que:

1. Nas circunstâncias descritas em l) e n) o ofendido CC desconhecia que a arma que o arguido trazia era de fogo e pensava que a mesma era de alarme.

É a seguinte a motivação da decisão de facto:
“A convicção do Tribunal quanto à prova da matéria de facto provada assentou nas declarações do arguido, conjugadas com o depoimento das testemunhas que depuseram em audiência, bem como com a prova documental e pericial junta aos autos.
*
Assim, temos que, em sede de prova documental e pericial, consta dos autos: fotografias de fls. 6 e 7; auto de apreensão de fls. 8; pesquisas de fls. 12, 21 a 23; fax de fls. 14; relatório de fls. 50; auto de apreensão de fls. 25; auto de denúncia por furto/roubo de fls. 51; auto de notícia de fls. 54; informação de fls. 70; aditamento de fls. 72; episódio de urgência de fls. 108 a 111; termo de entrega de fls. 115; relatório de exame pericial de fls. 117 a 127; processo clínico de fls. 132 a 161; pesquisa de fls. 164; informação de fls. 169 e 170; documentação clínica de fls. 247 a 267; documentação clínica de fls. 278 e 279; relatório médico de fls. 284;
Considerou-se, ainda:
- Auto de visionamento de imagens de fls. 27 a 47, que descrevem a sequência de acontecimentos no dia, hora e local onde os factos ocorreram, sendo que as imagens em apreço, conjugadas com as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência, foram relevantes para compreender a dinâmica dos factos, nos termos que infra se descreverão.
Fotogramas 9 e 10 – o arguido abre inicialmente a porta da frente do lado do pendura e aí efectua um diálogo com os ocupantes – nota: não se vê o arguido a mexer no porta-luvas – aliás, ele não introduz sequer a cabeça no interior da viatura;
Fotogramas 14 a 16, 18 e 19 – o arguido, após procurar algo na carrinha em que se fazia transportar volta ao carro do ofendido e aí abre a porta traseira vendo-se que leva algo na mão direita, sendo que, enquanto dialoga com o ocupante traseiro parece ameaça-lo com a mão direita – nota: o fotograma 19 parece indicar que o arguido apontou efectivamente a pistola que trazia na direcção da barriga do ocupante traseiro;
Fotogramas 20, 21, 22, 24 a 30 – ofendido e arguido envolvidos, sendo que o arguido chega a disparar pelo menos três vezes para o chão e ainda assim o ofendido investe sobre ele e por fim desfere um pontapé ao nível da cabeça do arguido e no momento seguinte o ofendido é atingido;
Fotogramas 31 a 34 – o arguido vai-se embora.
- A perícia de avaliação de dano corporal em direito penal de fls. 240 a 244 e 356 a 367 – no qual se concluiu que as lesões apresentadas pelo ofendido CC integravam os efeitos previstos nas alíneas a) a c) do art. 144.º do CP e as lesões traumáticas resultantes da ofensa eram, por si só, idóneas para poderem provocar a morte do ofendido, assim como de originar uma situação de perigo para a vida do mesmo, o que não aconteceu devido à imediata e tempestiva conduta médico-cirurgica em tempo empreendida, sendo que tudo indica que o disparo foi efectuado a curta distância e o trajecto foi da esquerda para a direita, de baixo e ligeiramente para cima, tendo resultado, em concreto, perigo para a vida do ofendido;
- Autos de reconhecimento presencial de fls. 311, 312, 313, 314 e 315 (este não foi conclusivo) – que obedecem aos requisitos legais constantes do art. 147.º do CPP, sendo que, nos quatro primeiros foi o arguido reconhecido como tendo sido interveniente na situação em apreço nos autos.
*
- O arguido prestou declarações e apresentou a sua versão dos acontecimentos, referindo que: efectivamente no momento e local em questão nos autos, ao passar junto do carro do ofendido, os dois ocupantes estavam a meter-se com ele e um disse-lhe “o que é que queres, filho da puta”; os dois ocupantes estavam de vidro aberto e a rir, pareciam bêbados e perguntou-lhes porque é que se estavam a rir; pela resposta do ocupante dirigiu-se à carrinha e foi buscar a sua pistola; é mentira que os ocupantes da viatura do ofendido lhe tenham respondido do modo que consta da acusação; a arma que está descrita nos autos é sua e sabia que não a podia ter, mas tinha-a comprado há 3 anos em Lisboa, e como é feirante tinha a arma consigo; aproximou-se da viatura, abriu a porta traseira, e mostrou a arma que tinha na mão direita com o braço escondido junto ao corpo e disse “chama lá agora filho da puta”, mas não encostou a arma à barriga; de repente o ofendido apareceu e deu-lhe um pontapé na mão, e na cabeça e um murro; inicialmente como estava agachado, o ofendido deu-lhe um pontapé no braço e depois um empurrão contra a porta; disparou um tiro para o chão quando o ofendido ia na sua direcção; de seguida, o ofendido deu-lhe um murro na face, um pontapé no braço esquerdo e um pontapé na mão direita que empunhava a arma, tendo de seguida efectuado mais dois disparos para o chão; o ofendido deu-lhe um pontapé na cabeça e quando lhe ia para dar um murro na face com o braço esquerdo efectuou um disparo na direcção do braço do ofendido; estava com medo que os outros dois ocupantes saíssem do carro; se o quisesse matar tinha-o feito pois estava a menos de um metro dele; encostou a pistola ao braço e fez pontaria; os outros indivíduos só saíram do carro no momento do disparo; eram todos mais altos que ele – 1,63 m - e sentiu receio.
Ora, estas declarações do arguido foram negadas pela demais prova produzida em audiência. Na verdade, os fotogramas existentes nos autos contrariam a versão do arguido. Com efeito, o fotograma 19 – a fls. 40 – mostra claramente que o arguido estava a apontar o que se veio a apurar ser uma arma ao passageiro que seguia na parte traseira do veículo do ofendido, não sendo verdade o que o arguido disse que apenas trazia a arma estendida junto ao corpo. De igual modo, verifica-se que a primeira abordagem do ofendido foi de dar um murro no arguido, empurrando a porta do seu carro – como se constata a fls. 41 -, sendo que o arguido não estava agachado como afirmou e o ofendido não lhe deu inicialmente um pontapé. Constata-se dos fotogramas existentes nos autos e supra descritos que os ocupantes da viatura do ofendido saíram da mesma logo no início da contenda, pelo que não tem qualquer razão de ser a justificação do arguido no sentido de que atingiu o ofendido porque tinha medo que os dois ocupantes saíssem da viatura. Por fim, resulta expressamente dos fotogramas 29 e 30 – fls. 45 – que o ofendido tinha acabado de desferir um pontapé na zona da cabeça do arguido quando este o atingiu com o tiro que quase o matou, uma vez que se constata que entre esses dois fotogramas decorreu apenas cerca de meio segundo, o que afasta a veracidade das declarações do arguido, ou seja, pela análise dos fotogramas e segundo as regras da experiência comum o ofendido não podia estar a tentar dar um murro no arguido quando foi atingido. E, note-se que o arguido não encostou certamente a pistola ao braço do ofendido quando disparou atentas as lesões que este sofreu, e que se poder ler a fls. 243, designadamente porque ainda que admitindo que o projéctil entrou pelo braço, a verdade é que o mesmo atingiu o tórax, pelo que o arguido não encostou a arma ao braço e disparou, uma vez que o disparo foi feito a curta distância mas não encostado. Caso se admitisse que o arguido encostou a arma então menos sentido faria a versão do mesmo de que não quis matar o ofendido uma vez que o projéctil atingiu mais do que o braço.
Por todos estes motivos, o depoimento do arguido não se revelou credível.
- Por seu turno, o ofendido também não foi credível no seu depoimento, revelando-se confuso e parcial e tentando apenas demonstrar que teve uma conduta perfeita e que em nada contribuiu para o sucedido, o que não corresponde à verdade.
Assim, o ofendido referiu que: ia com dois amigos, DD e EE; quando estava no guichet de pré-pagamento o arguido ao passar por si disse-lhe algo em tom de gozo; estava a pagar e viu que o arguido abriu a porta do seu carro e estava a meter-se com os seus amigos, sendo que o arguido estava a mexer no porta-luvas, na parte da frente do carro – isto não corresponde à verdade, como foi referido pela testemunha DD e como se pode constatar pelos fotogramas de fls. 36 e 37 -; dirigiu-se ao seu carro para fazer o abastecimento e aí empurrou o arguido para que este se fosse embora, mas não o fez com violência – isto também não corresponde à verdade como se constata no fotograma 21 de fls. 41 -; o arguido não se afastou e cerca de 20 segundo depois efectuou o primeiro disparo para o chão; não fugiu; pensou mesmo que se tratava de uma arma de fogo verdadeira; o arguido deu mais 2 ou 3 disparos que passaram pelo meio das pernas deles, ou seja, eram disparos para o chão mas na direcção deles, que os podiam ter atingido, tendo sido um acto de intimidação gratuita; tentou tirar a arma ao arguido e queria segurá-lo; admite que tenha desferido um pontapé no arguido, mas acha que nem lhe acertou e se deu mais não se lembra – esta parte do depoimento do ofendido foi completamente infirmada pela prova produzida em audiência e pelos fotogramas juntos aos autos.
O ofendido referiu, ainda, que quando o arguido disparou na sua direcção cruzou o braço esquerdo à frente do peito porque se apercebeu que ia ser atingido, como reflexo de protecção – o seu tronco estaca de frente para o arguido mas encolheu-se e colocou-se de lado para que a parte do corpo exposta fosse menor - mas não sabe onde o tiro o atingiria, sendo que o arguido estava a cerca de dois metros de si e de lado, tendo disparado na diagonal. Note-se que nesta parte, o depoimento do ofendido é mais verosímil que a versão apresentada pelo arguido e corresponde às lesões que o ofendido apresentava após os factos e que este descreveu do seguinte modo: o projéctil entrou junto ao cotovelo do braço do lado esquerdo, saiu pelo antebraço e voltou a entrar junto ao tórax.
CC afirmou, ainda, que: quando o arguido disparou a luta já tinha acabado, tendo havido um afastamento ligeiro, (isto é negado pelo fotograma 29), e viu que o arguido apontou a arma e recuou, tendo pensado que iria morrer; houve 3 disparos de intimidação; mede 1,83 m e os seus amigos eram da sua altura; vinham da festa do colete encarnado em Vila Franca de Xira, mas não tinham bebido, quanto muito talvez uma imperial; ficou com adrenalina por se ver numa situação de aperto, sendo que a actuação do arguido o deixou nervoso; o arguido parecia estar a gostar da situação, por estar em superioridade, com uma arma na mão, e após os factos foi para o seu carro e foi-se embora dizendo “toma lá que é bem feito”.
Com as ressalvas efectuadas, o ofendido mereceu credibilidade quanto ao modo como foi atingido pelo disparo efectuado pelo arguido, bem como quanto à postura e conduta do arguido, porém não foi verdadeiro quanto ao modo como agiu e ao facto de estar exaltado e a provocar o arguido.
- Por fim, a testemunha DD foi objectiva e imparcial e mereceu-nos inteira credibilidade pelo modo como depôs e pelo seu conteúdo que foi corroborado pelo prova documental e pericial junta aos autos. Assim, DD afirmou que: seguia na viatura do ofendido, à frente, no lado do pendura e o seu irmão – EE – ia atrás de si; estava virado para trás, a falar com o seu irmão e de repente a sua porta e o arguido perguntou-lhes se queriam alguma coisa, tendo respondido como consta da acusação; o arguido afastou-se e de repente a porta do lado do irmão foi aberta pelo arguido que apontou a arma que tinha na mão ao abdómen do seu irmão – algo que viu claramente – e o arguido perguntou se queriam alguma coisa e o irmão não se mexeu; o CC apareceu a correr e empurrou a porta contra o arguido, ao que o arguido recuou e não sabe se se “embrulharam”, mas de repente ouviu um disparo e percebeu que era munição real; tentou afastar o CC porque viu que era fogo real enquanto metia a mão à frente do arguido para se acalmar; ouviu um tiro e quando olhou para trás viu que o CC tinha sido atingido; o CC disparou para o chão o que pensou serem tiros de aviso; pensa que se o CC não tivesse insistido nada disto teria acontecido; o CC cegou; o arguido efectuou o disparo a cerca de 2 metros de si; o CC estava atrás de si, para o seu lado esquerdo, e quando o viu reparou que ele estava com o braço encolhido e que tinha sido atingido; o CC no exacto momento em que foi atingido não estava a investir sobre o arguido pois tinha acabado de o separar; o CC não estava a tentar desferir qualquer murro no arguido; disse várias vezes ao CC que a arma era verdadeira; estava só a tentar separar, pelo que o medo que o arguido disse por serem 3 não faz sentido; a atitude de separar o ofendido do arguido já a tinha tomado 5 ou 6 vezes antes mas oCC sempre voltava a investir; estava a 2 metros do arguido e o CC a 2 metros dele; o CC estava a tentar agredir o arguido; mede 1,83 m e o irmão é mais alto; avisou o CC para estar quieto; o arguido quando disparou para o chão, para a sua frente, percebeu que o seu objectivo não era matar; se o CC não tivesse agido como agiu a situação talvez se tivesse estabilizado; não bebem; o arguido não mexeu dentro do carro; o arguido não teve hipótese de se ir embora porque o CC estava sempre a investir; o arguido, após o disparo foi-se embora na sua carrinha.
*
Perante todos estes depoimentos e a prova documental junta aos autos importa considerar assente a factualidade descrita na acusação, nos precisos termos que se deixaram exarados. Com efeito, ainda que se dê como assente que o ofendido actuou de algum modo temerário, investindo contra o arguido, a verdade é que o arguido ao agir do modo descrito não se estava a tentar defender mas sim pretendeu atingir o ofendido, como conseguiu, sendo que ao disparar para uma zona do corpo do ofendido onde se encontram alojados órgãos vitais, o mesmo quis tirar a vida ao ofendido, o que apenas não aconteceu porque os cuidados médicos foram tempestivos e lograram salvar o ofendido.
Em face do que fica dito dúvidas se não suscitam de que a prova testemunhal, pericial e documental produzida nestes autos, analisada à luz das regras da experiência comum nos termos que se deixaram exarados permite considerar como provada a factualidade descrita na acusação.
Note-se que o arguido efectuou 3 disparos para o chão, o que denotava que apenas queria amedrontar o ofendido, porém, em face da última actuação do ofendido o mesmo efectuou um disparo para uma zona próxima do coração do ofendido, o que demonstra claramente que o mesmo alterou a sua intenção, deixando de pretender amedrontar para passar a querer matar.
Por fim, a actuação do arguido, ao abandonar o local sem qualquer actuação de arrependimento ou de preocupação com a pessoa que tinha acabado de atingir denota que para o mesmo era indiferente o resultado da sua actuação.
Note-se ainda que o arguido estava claramente a agir de modo agressivo e violento, tendo-se deslocado à sua viatura para ir buscar a sua arma munida com projecteis e apta a disparar, num acto deliberado de violência, e posteriormente apontou aquela arma à barriga de uma pessoa que nem conhecia. É certo que o ofendido foi temerário, porém nada justifica a actuação do arguido que estava numa situação de um para um – pois os dois ocupantes nada fizeram – e com a superioridade conferida por uma arma, não se podendo aceitar uma versão de defesa.
*
Os antecedentes criminais do arguido mostram-se certificados a fls. 427 a 433;
As condições pessoais e económicas do arguido foram confirmadas por este.
*
Não se provou a factualidade vertida no ponto 2.2. porquanto a mesma não resultou demonstrada com a certeza necessária em sede de audiência de julgamento, nos precisos termos que se deixaram exarados, supra, uma vez que o próprio ofendido a negou.

OS FACTOS E O DIREITO:

Como é sabido e resulta claro do estatuído no artigo 434º do CPP, o recurso para este Supremo Tribunal é restrito á matéria de direito, embora o STJ possa conhecer dos vícios do artigo 410º-2 do CPP por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.

Ora, da análise do acórdão recorrido, do respectivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo (designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo, designadamente em julgamento ou, como diz Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, III, pág. 339 “ … vedada a consulta a outros elementos do processo, nem é possível a consideração de quaisquer outros elementos que lhe sejam externos. É que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida. …”) não se indicia a existência de qualquer um daqueles vícios.

Assim, a matéria de facto fixada pelas instâncias está definitivamente assente.

Por outro lado, como decorre do artigo 412º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido, que se define o âmbito do recurso.

É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (exceptuadas as questões de conhecimento oficioso).
Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal - acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no DR, I Série - A, nº 298, de 28-12-1995 (e BMJ 450, 72), que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, nº 2 e 410º, nº 3, do CPP - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido (artigo 412º, nº 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

Cumpre agora apreciar e decidir as questões suscitadas neste recurso e atrás elencadas.

1ª Questão:

O acórdão recorrido é nulo por falta ou insuficiente fundamentação quanto á intenção de matar ou quanto à intenção de se defender?

Alega o recorrente que o tribunal dá como provada a intenção de matar exclusivamente com base no facto provado na alínea o) ou seja no facto provado que “no momento do disparo o arguido abandonou a ideia de se defender e quis matar o ofendido”.
Por isso, refere o acórdão recorrido, não pode falar-se em situação de legítima defesa – ainda que em excesso – ou direito de necessidade.
Sendo assim, no entender do recorrente o acórdão é nulo por falta ou insuficiente fundamentação da intenção de matar ou da intenção de se defender.

Apreciando:

Nos termos do artigo 379º-1-a) do CPP, “É nula a sentença que não contiver as menções referidas no artigo 374º-2 e 3-b)”.

E, estatui o artigo 374-2, do mesmo diploma legal que “Ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Na fundamentação da sentença é agora obrigatória a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do exame crítico das provas.

A fundamentação não se satisfaz com a enumeração dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento e dos que serviram para fundamentar a sentença.

É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral, da correcta aplicação da justiça no caso concreto.

A este respeito, refere Marques Ferreira in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 229-230: “ … Estes motivos de facto que fundamentam a decisão, não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados.
…. A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso, conforme impõe inequivocamente o artigo 410º-2.
… E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade …”.

A razão de ser da exigência da exposição, ainda que concisa, dos meios de prova, é não só permitir aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, como assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova; é necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção. E a indicação das provas que serviram para formar a convicção apenas é obrigatória na medida do que é necessário (Ac. STJ de 29.06.1995, CJ Acs. STJ, III, tomo 2, 254).

O exame crítico das provas, a que faz referência o nº2 do artigo 374º do CPP, em sede de fundamentação da sentença, consiste tão somente na indicação das razões que levaram a que determinada prova tenha convencido o tribunal – ac. STJ de 24.06.1999, Proc. 457/99-3ª, SASTJ nº 32, 88.

A lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível, devendo também não ser esquecido que o convencimento é de cada um dos juízes e jurados que constituem o colectivo ou júri (artigo 365º-3 do CPP) – ac. STJ de 30.06.1999, Proc. 285/99-3ª; SASTJ nº 32, 92).

Tendo presente tudo o que se deixa dito e analisando o acórdão recorrido, verifica-se que o tribunal fez uma análise criteriosa da prova, justificou e avaliou a razão de ciência das testemunhas ouvidas e enumera os elementos de prova de que se socorreu.
A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artigo 127º do CPP). E a regra da livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária ou discricionária da prova.
O tribunal a quo fundamentou suficientemente o processo lógico com base no qual formou a sua convicção sobre os factos provados e não provados.
O fundamental é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado.
Como se refere na decisão recorrida, “A convicção do Tribunal quanto à prova da matéria de facto provada assentou nas declarações do arguido, conjugadas com o depoimento das testemunhas que depuseram em audiência, bem como com a prova documental e pericial junta aos autos.
Considerou-se, ainda:
- Auto de visionamento de imagens de fls. 27 a 47, que descrevem a sequência de acontecimentos no dia, hora e local onde os factos ocorreram, sendo que as imagens em apreço, conjugadas com as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência, foram relevantes para compreender a dinâmica dos factos, nos termos que infra se descreverão.
… A perícia de avaliação do dano corporal em direito pena l de fls. 240 a 244 e 356 a 367 – no qual se concluiu que as lesões apresentadas pelo ofendido CC integravam os efeitos previstos nas alíneas a) a c) do artigo 144º do CP e as lesões traumáticas resultantes da ofensa eram, por si só, idóneas para poderem provocar a morte do ofendido, assim como de originar uma situação de perigo para a vida do mesmo, o que não aconteceu devido à imediata e tempestiva conduta médico-cirurgica em tempo empreendida, sendo que tudo indica que o disparo foi efectuado a curta distância e o trajecto foi da esquerda para a direita, de baixo e ligeiramente para cima, tendo resultado, em concreto, perigo para a vida do ofendido (sublinhado nosso);
O arguido prestou declarações e apresentou a sua versão dos acontecimentos, referindo…
… Ora, estas declarações do arguido foram negadas pela demais prova produzida em audiência. Na verdade, os fotogramas existentes nos autos contrariam a versão do arguido …
… Por todos estes motivos, o depoimento do arguido não se revelou credível.
- Por seu turno, o ofendido também não foi credível no seu depoimento, revelando-se confuso e parcial e tentando apenas demonstrar que teve uma conduta perfeita e que em nada contribuiu para o sucedido, o que não corresponde à verdade.
Com as ressalvas efectuadas, o ofendido mereceu credibilidade quanto ao modo como foi atingido pelo disparo efectuado pelo arguido, bem como quanto à postura e conduta do arguido …
…- Por fim, a testemunha DD foi objectiva e imparcial e mereceu-nos inteira credibilidade pelo modo como depôs e pelo seu conteúdo que foi corroborado pelo prova documental e pericial junta aos autos … “ - cfr. fls. 543 a 548 do acórdão recorrido.

Decorre do exposto que a intenção de matar está suficientemente justificada.

Trata-se de facto considerado provado – como os demais provados - com base nos meios de prova produzidos e indicados claramente no processo e face ao exame crítico da prova – de que transcrevemos acima algumas partes por elucidativas – que explicita o processo de convicção e indica as razões que levaram a que o tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido, porque é que certas provas são mais credíveis que outras, servindo de substrato lógico-racional da decisão.

A referida fundamentação indica os elementos que foram tidos em consideração e que, objectivamente ponderados e valorados à luz das regras da experiência comum, mostram que a decisão se ancorou no bom senso, à margem de qualquer arbítrio do julgador.

Não vemos que a fundamentação daquele facto provado tenha consistido apenas na mera remissão para os factos provados.
A fundamentação desse facto foi feita conjuntamente com os demais, tendo sido indicadas as provas produzidas e feito o exame crítico desta.

Acresce que, como atrás se disse, “A lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível, devendo também não ser esquecido que o convencimento é de cada um dos juízes e jurados que constituem o colectivo ou júri (artigo 365º-3 do CPP)” – ac. STJ de 30.06.1999, Proc. 285/99-3ª; SASTJ nº 32, 92).

Aliás, a conclusão da instância é harmónica com o instrumento utilizado, uma arma de fogo, com a curta distância a que o disparo fatal foi efectuado, após o ofendido ter agredido o arguido com um pontapé na cabeça, com a região corporal atingida, os efeitos do disparo e a gravidade das lesões provocadas.

Na verdade, a intenção de matar resulta alicerçada em todos os elementos referidos e que resultam dos factos provados (maxime os provados na alínea o) e da fundamentação.

Aquele facto não resulta apenas do que consta da alínea o) da matéria assente, mas também da conjugação desse facto com os demais provados e com a fundamentação, como acima se deixou dito, não podendo nunca esquecer-se que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (artigo 127º do CPP).

dd) O disparo foi feito a curta distância do ofendido (alínea p); o arguido apontou a arma na direcção do lado esquerdo do tórax do ofendido (alínea p); o projéctil atingiu o braço esquerdo bem como o lado esquerdo do abdómen do ofendido (alínea q); acabando por ficar alojado no tecido celular subcutâneo da região lombar (alínea q); provocando-lhe em consequência, lesões das quais se destacam ferida transfixiva do membro superior esquerdo, isquémia aguda do mesmo membro - lesão da artéria umeral esquerda – e traumatismo perfurante tóraco-abdominal esquerda (alínea r); Lesões essas de que resultaram as seguintes sequelas:- cicatrizes, parastesias nos três primeiros dedos da mão esquerda e ligeira diminuição da força (alínea s); Com a conduta descrita pretendia o arguido tirar a vida ao ofendido (alínea t), o que apenas não logrou fazer por razões alheias à sua vontade, designadamente por o projéctil não ter atingido nenhum dos órgãos vitais do ofendido, apesar da zona atingida e o mesmo ter sido assistido em tempo útil no hospital (alínea t); Sabia por outro lado o arguido que o disparo que fez, na direcção da parte esquerda do tórax e abdómen do ofendido, atentas as zonas que pretendia e quis atingir, era susceptível de produzir a sua morte (alínea w); Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de tirar a vida ao ofendido, o que apenas não logrou alcançar, como se disse, por razões alheias à sua vontade (alínea x); Sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei (alínea y).

Concluímos, portanto, inexistir a alegada nulidade de fundamentação do acórdão.

Aliás, diga-se, neste segmento do recurso o recorrente pretende de certo modo expressar a sua discordância em relação ao que ficou provado a propósito da intenção de matar que o tribunal a quo deu como provada.

Da motivação respectiva resulta claro que o arguido discorda dessa parte da matéria de facto assente, designadamente da intenção de matar que foi dada como provada.

Ora, estando em causa a determinação da intenção do agente, não cabe no âmbito do presente recurso uma tal reapreciação, por estar em causa matéria de facto, como a jurisprudência tem entendido, indicando-se alguns dos acórdãos em que tal posição tem sido assumida:
03-05-1991, BMJ 407, 130 – A indagação da intenção do agente, no que respeita à amplitude das ofensas corporais, é essencialmente matéria de facto, que se impõe ao STJ.
05-05-1993, CJSTJ 1993, tomo 2, pág. 220 - A determinação da intenção do agente é matéria de facto, encontrando-se por isso subtraída aos poderes de cognição do STJ.
21-04-1994, processo n.º 46310 – Pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar, a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial e a aplicação do princípio in dubio pro reo.
30-05-1996, processo n.º 208/96, BMJ 457, 144 – A questão da intenção de matar é matéria de facto que o Supremo não pode sindicar (artigo 433º do CPP).
04-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 222 - A intenção criminosa constitui matéria de facto, pelo que não tendo sido invocado nem se vislumbrando qualquer dos vícios enumerados no n.º 2 do artigo 410º do CPP há que respeitar integralmente a decisão do colectivo.
2-10-1996, processo n.º 46679-3ª, in SASTJ, Outubro 1996, n.º 4, pág. 69 - Sendo a intenção criminosa matéria de facto, compete à 1ª instância apurá-la, para que o STJ ao reexaminar a matéria de direito possa decidir se a matéria de facto está ou não bem integrada penalmente.
06-11-1996, processo n.º 724/96 - 3ª – A intenção é um acontecimento do foro interno do agente e não um acontecimento do mundo que lhe é exterior; não deixa, por causa disso, de ser matéria de facto, susceptível de ser apreendida com recurso a factos indiciários a partir dos quais se possam extrair presunções judiciais geradoras de uma suficiente convicção positiva sobre a sua verificação.
13-11-1996, processo n.º 48510-3ª, SASTJ, Novembro 1996, n.º 5, pág. 70 - A intenção criminosa integra matéria de facto, sendo o respectivo apuramento da competência exclusiva dos tribunais de instância.
18-12-1997, processo n.º 930/97-3ª, BMJ 472, 185 – A intenção de matar constitui matéria de facto subtraída aos poderes de cognição do STJ. Como matéria de facto que é pode o veredicto do tribunal recorrido quanto a essa intenção, sofrer de algum dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do CPP e nessa medida ser objecto de recurso.
21-01-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 201 – A intenção de matar constitui matéria de facto da competência das instâncias.
10-10-2007, processo 3315/07-3ª - A intenção de matar, enquanto matéria de facto, captada através dos meios de prova que desfilaram perante o tribunal da 1ª instância, com os quais manteve imediação e oralidade, escapa à sindicância deste STJ.
17-01-2008, processo n.º 607/07-5ª - A intenção de matar é matéria de facto que escapa à censura do STJ enquanto tribunal de revista, pois pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar, a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial e a aplicação do princípio in dubio pro reo. A intenção de matar constitui matéria de facto a apurar pelo tribunal face à diversa prova ao seu alcance e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
03-04-2008, processo n.º 132/08-5ª – neste ponto … da intenção de matar estamos em pleno campo de discussão de matéria de facto, o que fica de fora da competência cognitiva do STJ.
12-06-2008, processo n.º1782/08-3ª - A intenção de matar, integrando matéria de facto, há-de derivar de factos dos quais se infira a sua verificação, o mesmo acontecendo para integração da intenção de defesa.
16-10-2008, processo n.º 2851/08-5ª - O apuramento de existência ou não de intenção de matar é matéria de facto. Não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto.
22-10-2008, processo n.º 3274/08-3ª – Se o recorrente nas conclusões que formula, discorda da factualidade assente, nomeadamente de ter sido considerada provada a intenção de matar, encontramo-nos no domínio da matéria de facto, cujo conhecimento está excluído dos poderes do STJ.
E ainda acórdãos do STJ de 16-01-1990, processo n.º 40296, de 30-10-1991, processo n.º 42061, 11-02-1993, processo n.º 43146, de 06-05-1993, processo n.º 43503, de 21-05-2008, processo n.º 678/08-3ª.

Portanto, neste recurso para o STJ, não é possível discutir a matéria de facto a não ser nos termos e limites atrás expostos (conhecimento oficioso dos vícios do artigo 410º-2 do CPP).

A reapreciação da decisão sob recurso há-de, como princípio, confinar-se à matéria de direito, salvo se, a título excepcional, se tornar imperativo para o conhecimento da matéria de direito a ampliação da matéria de facto, a correcção de evidentes erros ou a remoção de contradição insanável entre os factos e a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, caso em que este Supremo Tribunal ordena o reenvio – artigos 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) e 426.º, do CPP.

Mas, ainda assim, mantendo-se no estrito âmbito da reserva de competência e do indispensável pressuposto de que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.

A única hipótese de o STJ sindicar matéria de facto é através da análise da existência de vícios decisórios, previstos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º do CPP, sendo esse reexame feito por iniciativa própria, ocorrendo uma tal intervenção apenas, como atrás se disse, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa própria, se se vier a concluir que por força da existência de qualquer dos vícios referidos não pode chegar a uma correcta solução de direito.

Esse exame terá sempre o limite incontornável de ser restrito à análise do texto da decisão recorrida, por si só considerada ou em conjugação com as regras de experiência comum.

O erro de julgamento não é sindicável pelo STJ pois esse erro não se confunde com o vício decisão.
O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então, o inverso e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127º do CPP.

Os vícios do n.º 2 do artigo 410º do CPP são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.
Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).

Os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no citado normativo - artigo 127.º do CPP.

Não incidindo o recurso sobre prova documentada nem se estando perante prova legal ou tarifada não se pode sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida é afinal querer impugnar a convicção do tribunal, esquecendo a citada regra.

Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.

O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.

Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto.
Só com o âmbito restrito consentido pelo artigo 410º, nº 2, do CPP, com o incontornável pressuposto de que o vício há-de derivar do texto da decisão recorrida, o STJ poderá avaliar, nos casos em que considere imperioso o reexame, da subsistência dos vícios da matéria de facto.

Ora Tribunal Colectivo de Vila Franca de Xira exprimiu o conjunto de razões pelas quais se convenceu de que o arguido agiu do modo descrito e com intenção de matar, mostrando-se explicitado o processo lógico - racional que levou os julgadores a concluir pela intenção de matar por parte do arguido e pela sua actuação com dolo directo.

E o Tribunal Colectivo é soberano na indagação da matéria de facto e, ao descrevê-la, tem que aceitar-se que a descreve porque em sua consciência e convicção a aceita como verdadeira tal como a descreve.

Não se pode perder de vista que as provas são apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do CPP, sendo que aquelas regras correspondem àquilo que normalmente sucede, (ao id quod plerumque accidit, autênticos critérios generalizantes e tipificados de inferência factual, embora também índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, oferecendo probabilidades conclusivas - cf. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, págs. 67-68, e Os Princípios Fundamentais do Direito Processual Criminal, pág. 42 e ss; - cfr. supra referido acórdão de 10-10-2007, processo n.º 3315/07-3ª.

Ora, analisado o texto da decisão nos termos referidos, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo (designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo, designadamente em julgamento ou, como diz Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, III, pág. 339 “ … vedada a consulta a outros elementos do processo, nem é possível a consideração de quaisquer outros elementos que lhe sejam externos. É que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida. …”) não se indicia a existência de qualquer um daqueles vícios.

E, se o recorrente discordava da matéria de facto assente, poderia/deveria ter interposto recurso para a Relação, podendo assim discutir tal matéria.
Na verdade, quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas, uma: se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, dirige o recurso directamente para o STJ; ou, se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, mas também a matéria de facto, dirige-o à Relação, caso em que, da decisão desta, se não for irrecorrível nos termos do artigo 400º do CPP, poderá recorrer para o STJ. Só que, nesta última hipótese, o recurso, agora restrito á matéria de direito, não pode abranger o conhecimento de eventuais erros das instâncias na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais (cfr. AC. STJ de 08.07.2004, Proc. 2489/04 – 5ª).
Neste mesmo sentido cfr. Curso de Processo Penal, 2ª ed. , III, 371, do Prof. Germano Marques da Silva e Maia Gonçalves, CPP Anotado, pág. 937.

Ora, ao interpor este recurso directamente para o STJ o arguido aceitou a matéria de facto provada, não podendo agora questioná-la.

Por isso, o recurso improcede com este fundamento.

2ª questão:

Os factos provados mostram que o arguido agiu em legítima defesa ou excesso de legítima defesa?

O arguido/recorrente entende que, nas circunstâncias concretas do caso consideradas provadas, a qualquer cidadão comum prudente, que estivesse na posição do recorrente, não era possível agir de outro modo, com outro meio, sendo normal um estado de perturbação e medo. Pois está provado que a vítima não se atemorizou com os tiros (três) de intimidação para o chão, atacando o arguido por três vezes, na cabeça, tronco e membros. Aliás, só consegue fazer parar as investidas do ofendido com o 4º tiro, imediatamente após um pontapé na cabeça de que foi alvo. Não se demonstrou que o arguido após ter sofrido as agressões físicas, tivesse ao seu alcance outro meio de defesa. Portanto, o arguido agiu em legítima defesa ou, quando muito, em excesso de legítima defesa, que o tribunal não considerou.

Quid júris?

É essencial a análise da decisão recorrida para que se possa concluir sobre o processo lógico que foi seguido para considerar a matéria de facto como provada.

No acórdão recorrido, depois de se ter concluído que dos factos provados resulta que o arguido praticou todos os actos que preenchem o tipo de crime de homicídio na forma tentada diz-se expressamente:
Note-se que, em face da factualidade assente, não se pode falar em qualquer situação de legítima defesa – ainda que em excesso – ou direito de necessidade, uma vez que não se provou que o arguido tivesse actuado do modo descrito como meio para repelir uma agressão actual e ilícita ou para proteger interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiros, uma vez que se provou que no momento do disparo o arguido abandonou a ideia de se defender e quis matar o ofendido”.

Não há qualquer dúvida que, face ao Código Penal vigente (redacção do DL 48/95, de 15 de Março) – no domínio do qual foi proferida a decisão recorrida, datada de 02 de Dezembro de 2008 - a legítima defesa é uma causa de exclusão da ilicitude (cfr. artigo 31º-2-a) do CP).

A legítima defesa é uma causa de exclusão da ilicitude, resultando da sua integração que o facto típico não é punível porque a sua ilicitude é excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade - artigos 31º, n.º 1 e n.º 2, alínea a) e 32º do Código Penal.

A consagração legal da legítima defesa no Código Penal mais não é do que a explicitação do princípio constitucional fixado no artigo 21º, da CRP, que estabelece que “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.

A legítima defesa apresenta-se como uma causa de exclusão da antijuridicidade do facto, tendo por base uma prevalência que à ordem jurídica cumpre dar ao justo sobre o injusto, à defesa do direito contra a sua agressão, ao princípio de que o direito não deve recuar ou ceder nunca perante a ilicitude.

Independentemente das dúvidas que possam existir sobre a questão de saber que bens ou interesses estritamente individuais é que se devem considerar incluídos no direito de legítima defesa, cremos todos concordarem que ali se incluem a vida, a integridade física, a saúde, a liberdade, o domicílio e o património (neste sentido, cfr. Taipa de Carvalho, A legítima defesa, 1995, pág. 318).

Constitui legítima defesa, nos termos do artigo 32.º do Código Penal, o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão ilícita ou antijurídica, enquanto ameaça de lesão de interesses ou valores, não pré-ordenada – ou seja, com o fito de, sob o manto da tutela do direito, obter a exclusão da ilicitude de facto integrante de crime –, actual, no sentido de, tendo-se iniciado a execução, não se ter verificado ainda a consumação, e necessária, ou seja, quando o agente, nas circunstâncias do caso, se limite a usar o meio de defesa adequado – menos gravoso, por a todo o direito corresponderem «limites imanentes» – a sustar o resultado iminente – cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, págs. 45 e 59.

São pressupostos da legítima defesa: a actuação em defesa de uma agressão e o elemento subjectivo a que a doutrina dá o nome de animus defendendi.

São requisitos da agressão: a ilegalidade, a actualidade e a falta de provocação e requisitos da defesa: a impossibilidade de recurso à força pública, a necessidade e a racionalidade do meio.

A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão, e em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir. Deve ajuizar-se objectivamente e ex ante, na perspectiva de um terceiro prudente colocado na situação do arguido – cfr. acórdão do STJ de 18-12-96, processo n.º 115/96-3ª – n.º 6, Dezembro 96, pág. 69.

Um dos elementos constitutivos da legítima defesa é o agente ter praticado o facto para repelir a agressão actual e ilícita de que está a ser sujeito passivo, ou seja, que tenha agido com o intuito de defesa. Não se verifica a figura da legítima defesa quando o tribunal dá como provado que o arguido agiu com o intuito de ofender corporalmente o ofendido (sublinhado nosso) – acórdão do STJ de 16-04-1997, processo n.º 1255/96-3ª, SASTJ, n.º 10, Abril de 1997, pág. 97.

Como se pode ler no acórdão do STJ de 13-12-2001, processo n.º 3067/01-5ª, CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 242, “A legítima defesa pressupõe a ilicitude da agressão e que o acto agressivo, tal como o conceito de ilícito jurídico em geral e o conceito jurídico penal de ilícito se defina pelo desvalor da conduta, podendo esta assumir a forma de acção ou omissão.

A legítima defesa pressupõe ainda que o ilícito da agressão seja doloso.

Essa agressão deve ser actual (no sentido de estar a realizar-se, em desenvolvimento ou iminente) e ilícita (no sentido de o seu autor não ter o direito de a praticar, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou tratar-se de um inimputável)

A agressão inicia-se - já é actual – quando, colocando-nos numa perspectiva jurídico penal, a pudermos considerar como acto de execução de uma determinada tentativa.

Sendo função da legítima defesa apenas o impedir ou repelir a agressão, compreende-se e exige-se que o defendente só utilize o meio considerado, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente para suster a agressão

Defesa circunscrita ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor (aqui se inclui, como requisito da legítima defesa -como refere Maia Gonçalves, CP anotado, pag. 167 – “a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspecto da necessidade do meio. Trata-se de afloramento do princípio de que deve ser a força pública a actuar, quando se encontra em posição de o poder fazer, sendo a força privada subsidiária e este requisito continua a ser exigido pela CRP – artigo 21º, in fine. Não pode porém, ser imposto ao agredido defendente o uso de meios desonrosos, v.g. a fuga, quando sejam meio adequado para evitar a agressão, tanto mais que isso precludiria também a função de prevenção geral da legítima defesa. Assim entende a doutrina autorizada – cfr. Direito Penal do Prof. Figueiredo Dias, Tomo I, pág. 396-397), havendo também jurisprudência neste sentido”.

A acção ou o acto de defesa que visa impedir ou repelir a agressão, deve limitar-se á utilização do meio ou meios suficientes para evitá-la ou neutralizá-la.

E por meio utilizado deve entender-se não só o instrumento, objecto ou arma, mas também o próprio tipo de defesa.

Por isso, para se averiguar da adequação do meio de defesa, deve ter-se em consideração as circunstâncias concretas de cada caso (designadamente o bem ou interesse agredido, o tipo e intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de actuar, a capacidade física do agressor, a capacidade física do agredido e os meios de defesa disponíveis).

Trata-se de um juízo objectivo, segundo o exame das circunstâncias concretas de cada caso, feito por um homem médio colocado na situação do agredido.

Como se refere no Ac. do STJ de 19.07.2006, Proc. 1932-3ª “O juízo sobre a adequação da defesa e dos meios de defesa, é um juízo objectivo e ex ante, no sentido de que o juiz se terá de colocar na posição que assumiria uma pessoa prudente perante as circunstâncias concretas ocorrentes”.

Meios adequados para impedir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes e eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor, serão considerados desnecessários e, assim, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido. Portanto, a necessidade da acção (eficaz) e que, havendo vários meios adequados à sua disposição, ele utilize o menos gravoso para o agressor.

Para o acórdão de 07-06-2006, processo n.º 1174/06-3ª, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 207, “A legítima defesa não abdica, no plano objectivo, de um facto, uma agressão actual, em execução, em desenvolvimento, ilícita, por contrária à lei, portadora de demérito aos olhos do legislador, lesiva de bens ou valores jurídicos (pessoais ou patrimoniais) dignos de protecção à face da ordem jurídica, na titularidade do ofendido ou de terceiro, de o contrafacto, defensivo, ser carregado do intuito de defesa (“animus defendendi) e necessário, por adequado a acautelar os interesses do visado, tendo em conta a valoração das circunstâncias do caso concreto, inclusive a impossibilidade de recurso à força pública, pois a ser de outro modo poder-se-ia cair no recurso à vindicta privada”.

Como se extrai do acórdão de 12-06-2008, processo n.º1782/08-3ª, “Sem previsão na lei, a legítima defesa não dispensa a verificação do pressuposto de impossibilidade de recurso à autoridade pública, atenta a sua natureza subsidiária face à defesa actuada pelos órgãos do Estado, e do animus defendendi, requisitos não enunciados no CP de 82, em contrário da versão de 1886, mas de que a jurisprudência não abdica.

Essencial, pressuposto estrutural, à legítima defesa, é mesmo o animus defendendi, a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima: o facto típico levado a cabo pelo defendente há-de destinar-se a prevenir uma agressão ilícita actual.

Relativamente ao elemento subjectivo (o animus defendendi), entendemos – com grande parte da doutrina e da jurisprudência – ser exigível o intuito ou a vontade de defesa por parte do defendente (embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, p. ex. indignação, vingança e ódio - v.g. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, 46; Figueiredo Dias, Leal Henriques/Simas Santos, CP anotado, pág. 335 - e acórdãos do STJ in Processos 41982, 42682 e 42837 in www.dgsi.pt) – (Sabemos, porém, que parte da doutrina entende que o elemento subjectivo da acção de legítima defesa restringe-se á consciência da situação de legítima defesa, ou seja, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação. Assim, face a uma agressão actual e ilícita, deve ter-se por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários para a sua defesa - Taipa de Carvalho, A legítima defesa, 1995, pág. 318; Cavaleiro de Ferreira e Fernanda Palma, A justificação por legítima defesa como problema de delimitação de direitos, 1990, pág. 611).

A intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser a resultante de factos objectivos que a indiciem; tal como a intenção de matar, integrando matéria de facto, há-de derivar de factos dos quais se infira”.

Por outro lado, não haverá causa de exclusão por ilicitude, segundo o disposto no art. 32º do CP, nos casos do agente fraudulentamente, se ter colocado na situação objectiva de legítima defesa mediante provocação deliberada e tendo desencadeado o ataque neste sentido, (anotação ao art. 32 dos Códigos Penais de Maia Gonçalves, 156 e sgsts. e de Leal Henriques e Simas Santos, I Vol., 801 e sgsts).

Vistos estes ensinamentos e voltando ao caso em apreço, deve recordar-se que estão provados – com interesse para a decisão deste segmento – os seguintes factos:

- Ao passar junto do veículo do ofendido CC, no interior do qual permaneciam DD e EE, o arguido reparou que ambos se estavam a rir e de imediato pensou que estavam a gozar com ele (alínea d);
- Então, abeirou-se do veículo e depois de abrir a porta da frente do lado do passageiro, abordou DD, dizendo-lhe “queres alguma coisa? Sai cá para fora” (alínea e);
- DD respondeu ao arguido que não estavam a falar com ele e pediu-lhe que se fosse embora, pois não queria confusões (alínea f);
- O arguido afastou-se do veículo, porém dirigiu-se ao veículo automóvel Renault Trafic de matrícula 46-19-XO que conduzira até ali e depois de abrir uma das portas, retirou do seu interior uma pistola de marca desconhecida, de calibre 7,65 mm, que não foi possível apreender (alínea g);
- De seguida, aproximou-se de novo do veículo do ofendido, levando a arma na mão (alínea h);
- Aí chegado, abriu a porta, junto da qual se encontrava sentado EE e encostou-lhe a arma à barriga, ao mesmo tempo que dizia: “Então agora não dizes nada? Fala lá agora”(alínea i);
- Nesse preciso momento o ofendido CC regressava do guiché e apercebendo-se que o arguido estava a incomodar os seus amigos aproximou-se do mesmo e desferiu um empurrão na porta do veículo e, consequentemente, no arguido (alínea j);
- Surpreendido, o arguido recuou, e quando viu que o CC caminhava na sua direcção, apontou a arma para o chão e fez um disparo de intimidação (alínea k);
- O ofendido CC aproximou-se do arguido e desferiu-lhe um murro e um pontapé no braço para o obrigar a largar a arma (alínea l);
- Nesse momento, o arguido desferiu outros dois disparos para o chão (alínea m);
- Logo de seguida e sempre com o mesmo propósito, o ofendido desferiu um pontapé na cabeça do arguido (alínea n);
- Momento em que o arguido decidiu deixar de se defender das agressões e decidiu matar o CC (alínea o);
- Assim, na execução desse desígnio, e estando a uma curta distância do ofendido, o arguido apontou a arma na direcção do lado esquerdo do seu tórax, após o que premiu o gatilho, efectuando um disparo (alínea p);
- Vindo o projéctil a atingir o braço esquerdo bem como o lado esquerdo do tórax e abdómen do ofendido, acabando por ficar alojado no tecido celular subcutâneo da região lombar (alínea q).
- Com a conduta descrita pretendia o arguido tirar a vida ao ofendido, o que apenas não logrou fazer por razões alheias à sua vontade, designadamente por o projéctil não ter atingido nenhum dos órgãos vitais do ofendido, apesar da zona atingida e o mesmo ter sido assistido em tempo útil no hospital (alínea t);
- Sabia por outro lado o arguido que o disparo que fez, na direcção da parte esquerda do tórax e abdómen do ofendido, atentas as zonas que pretendia e quis atingir, era susceptível de produzir a sua morte (alínea w);
- Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de tirar a vida ao ofendido, o que apenas não logrou alcançar, como se disse, por razões alheias à sua vontade (alínea x);
- Sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei (alínea y).”

Destes factos assentes, não pode haver dúvidas que, por um lado, foi o arguido quem deu origem á situação em causa, pois foi ele quem, se abeirou do veículo (do ofendido CC) onde estavam DD e seu irmão EE, abordando o DD perguntando-lhe “queres alguma coisa?”.
E porque o referido DD lhe respondeu que não estavam a falar com ele, que se fosse embora, o arguido afastou-se e dirigiu-se ao veículo que ele conduzia (Renault Trafic).

Poderia, então, o arguido ter-se metido no carro e afastado do local, seguindo o seu destino.
Mas não foi isso que fez.
O arguido, retirou do Renault Trafic uma pistola e voltou ao veículo do CC, com aquela arma na mão.
Ali chegado, abriu a porta e encostou a arma à barriga do EE.

Até este momento, não se vislumbra a existência de qualquer agressão actual e ilícita relativamente a quaisquer interesses do arguido.

Ora, naquele preciso momento o ofendido CC que regressava ao seu veículo, apercebendo-se que o arguido estava a incomodar os seus amigos aproximou-se e desferiu um empurrão na porta do carro e, consequentemente, no arguido.
Este, após ter recuperado da surpresa do aparecimento do CC, ao ver que este caminhava na sua direcção, fez um disparo para o chão, de intimidação.
O CC desferiu-lhe um murro e um pontapé no braço para o obrigar a largar a arma e o arguido fez mais 2 disparos para o chão.
Logo de seguida o CC – sempre com o propósito de obrigar o arguido a largar a arma – desferiu um pontapé na cabeça do arguido.
Então, neste momento, o arguido deixou de se defender das agressões e decidiu matar o CC (sublinhado nosso) e, estando a curta distância deste, apontou a arma na direcção do tórax e disparou mais um tiro, atingindo o CC no braço esquerdo bem e no lado esquerdo do tórax e abdómen, acabando o projéctil por ficar alojado no tecido celular subcutâneo da região lombar.
O arguido pretendia tirar a vida ao ofendido, o que apenas não logrou fazer por razões alheias à sua vontade (alínea t) dos factos provados).

Desta sequência de factos, resulta que o arguido ao ser agredido a murro e a pontapé pelo ofendido CC reagiu, fazendo uso imediato da arma que empunhava, disparando primeiramente 3 tiros para o chão para intimidar o seu agressor CC que pretendia obrigá-lo a largar a arma.
Porém, porque o arguido não largava a arma, o CC desferiu-lhe um pontapé na cabeça e então o arguido “decidiu deixar de se defender das agressões e decidiu matar o CC”.
E, na execução desse desígnio, a curta distância do ofendido, apontou a arma ao tórax e disparou atingindo-o no lado esquerdo do tórax e abdómen, bem sabendo que o disparo que fez, atentas as zonas do corpo pretendia e quis atingir era susceptível de produzir a morte do ofendido, tendo agido livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Sendo assim, constata-se que o arguido, ao deter e empunhar a arma de fogo, municiada e apta a disparar, estava claramente em superioridade em relação ao CC que o agredia mas apenas a murro e pontapé, sem utilização de qualquer objecto ou instrumento.

É verdade que o arguido fez 3 disparos para o chão e que, apesar disso, o CC continuou a agredi-lo com o propósito de o desarmar.

Mas, perante isso, bem poderia o arguido ter-se defendido também apenas a murro (utilizando até a própria arma que segurava, e que tornaria o murro com ela desferido, muito mais violento) e a pontapé pois o agressor era apenas uma pessoa, as agressões eram também apenas a murro e a pontapé e a testemunha DD fez e fazia várias tentativas para separar o arguido e ofendido, nunca tendo dado mostras de se juntar ao ofendido CC na agressão àquele.

Mas, para além disso, o arguido também poderia ter pedido auxílio no próprio posto de abastecimento de combustíveis, onde os factos tiveram lugar.

Ou ainda (o arguido) poderia mesmo abandonar o local no seu veículo ali parado, facto que, atento o circunstancialismo descrito não constituiria nenhuma desonra para ele.
Como ser refere no acórdão do STJ de 13-12-2001, CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 245, “ (…) o certo é que o recorrente, tendo ali o veículo automóvel mesmo ao lado, com a maior facilidade poderia ter usado dele para se proteger e, mesmo, afastar-se dali”; no mesmo sentido, acórdão de 07-06-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 209.

Ora, o arguido não adoptou nenhuma daquelas condutas.
Antes utilizou de imediato a arma que tinha ido buscar ao carro e que empunhava e que nunca largou.

E não se diga, como o recorrente que “o arguido não teve hipótese de se ir embora porque o CC estava sempre a investir” (motivação, mas não levado às conclusões).
E isto pela simples - mas decisiva - razão de que tal factualidade não está provada, não constando do elenco dos factos assentes.

Portanto, no caso concreto para o arguido AA não era necessária uma acção defensiva perante as circunstâncias que o próprio criou e o uso de armas de fogo não era meio idóneo nem o menos prejudicial para as ofensas/agressões que o ofendido lhe desferiu para o obrigar a largar a arma.

Por outro lado, está provado que o arguido, a partir do momento em que foi agredido pelo CC com um pontapé na cabeça, decidiu matar aquele.
E foi com essa intenção que efectuou o 4º disparo.
Agiu com dolo directo pois age com dolo directo quem prevê e pretende intencionalmente a realização do facto criminoso.
Não teve, nessa ocasião, qualquer outra intenção, que não fosse a de tirar a vida ao seu agressor CC, o que só não aconteceu por razões alheias à sua vontade.

Sendo assim, não existem os pressupostos da legítima defesa atrás referidos pois falta desde logo o intuito de defesa por parte do arguido que, pelo contrário, ao efectuar o último disparo, agiu com intenção de tirar a vida ao seu agressor.
E, mesmo para quem dispense tal requisito, a verdade é que o disparo feito pelo arguido na direcção do tórax e abdómen da vítima, independentemente da intenção daquele, objectivamente não eram absolutamente necessários e indispensáveis à sua defesa.
Bastaria, para tanto e como se disse, que o arguido se defendesse também a murro e pontapés ou tivesse pedido auxílio no posto de abastecimento de combustíveis onde os factos ocorreram.

Decorre do exposto que embora os primeiros disparos tivessem sido efectuados com animus defendendi (pois foram feitos para intimidar e travar o ímpeto ofensivo da vítima que avançava para o arguido, agredindo-o a murro e pontapé), o último - e único - disparo que atingiu o ofendido CC foi feito com intenção de matar, com intenção de tirar a vida a este.

Por isso, não pode excluir-se a ilicitude da conduta do arguido.

E, não havendo, como concluímos que não há, legítima defesa, não há excesso de legítima defesa.

Na verdade, estatui o artigo 33º-1 do CP que “Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada.”
E, nos termos do nº 2 do mesmo normativo “O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis”.

Com a revisão do CP levada a cabo pelo DL 48/95, de 15 de Março, consagra-se expressamente que o acto praticado com excesso de legítima defesa é ilícito, ao contrário do acto praticado em legítima defesa, pois esta afasta a ilicitude.
A questão do excesso de legítima defesa está estruturado com base na teoria da culpa (já anteriormente seguida por Eduardo Correia e Cavaleiro de Ferreira).
Como refere Maia Gonçalves, CP pág. 171 “A alusão a “excesso nos meios empregados” foi introduzida pela Comissão Revisora e destinou-se a eliminar dúvidas, consignando-se, expressamente e de harmonia com a doutrina dominante e mais representativa, que só há excesso em relação aos meios e que, portanto, o próprio excesso pressupõe uma situação em que se verifica todo o condicionalismo de uma situação de legítima defesa; somente aquele que nessa situação se encontra usa meios excessivos e que não se justificam para se defender”.

Portanto, para que haja excesso de legítima defesa, têm que verificar-se os requisitos da legítima defesa.

No tocante ao excesso de legítima defesa, há que notar que tal figura consiste numa acção que, pressuposta uma situação de legítima defesa, se materializa na utilização de um meio desnecessário para repelir a agressão.

Não havendo agressão actual e ilícita, não há excesso de legítima defesa.

Para Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Verbo, 1985, I volume, pág. 99, “O excesso de legítima defesa (que melhor se denominaria «excesso na defesa») só tem lugar quando se verificam os pressupostos da defesa, isto é, quando se verifica uma agressão ilícita e actual”.

A figura do excesso (de legítima defesa) pressupõe a existência de uma real “situação de legítima defesa”, e não uma mera suposição ou representação do agente da existência de uma tal situação - Américo Taipa de Carvalho, A legítima defesa , 1995, Coimbra Editora , pág. 367

Sem actuação em legítima defesa, de excluir é actuação com excesso, como, entre outros, se decidiu nos acórdãos deste STJ de 12-06-1997, in CJSTJ1997, tomo 2, pág. 238, de 27-01-1988, BMJ 373/317 (o excesso de legítima defesa pressupõe os requisitos da legítima defesa, excedendo-se o réu nos meios), de 19-04-1989, BMJ 386/222, neste se afirmando que o excesso diz, apenas, respeito aos meios necessários para repelir a agressão, não aos requisitos iniciais de legítima defesa, dos quais se não pode abdicar, de 07-06-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 209, donde se extrai que a falta de legítima defesa afasta o excesso de meios, o excesso de legítima defesa, por natural inconciabilidade, nos termos do artigo 33º , n.º 1 do C Penal.
No caso em apreciação, o arguido não actuou com excesso de legítima defesa por não se verificar um dos pressupostos da legítima defesa: o animus defendendi.

Improcede, assim, a pretensão do recorrente em ver declarada a verificação de legítima defesa excessiva.

No caso em apreço, está provado que o arguido agiu com intenção de matar o seu agressor, não tendo intenção de se defender (o arguido decidiu deixar de se defender das agressões e decidiu matar o CC – alínea o) dos factos provados; e na execução desse desígnio apontou a arma na direcção do lado esquerdo do seu tórax (do ofendido), após o que premiu o gatilho, efectuando um disparo, atingindo o tórax e o abdómen do ofendido, provocando-lhe as lesões descritas e examinadas – alíneas p), q) e r) dos factos provados; sendo que com essa conduta o arguido pretendia tirar a vida ao ofendido o que apenas não logrou fazer por razões alheias à sua vontade – alínea t) dos factos provados).

Portanto, não pode haver excesso de legítima defesa.

Por isso, o recurso improcede com este fundamento.

3ª Questão:

A pena respeitante ao crime de homicídio simples na forma tentada, deveria ser especialmente atenuada e, por isso, não deveria ser superior a 2 anos de prisão? E, por isso, a pena aplicada em cúmulo (com o crime de detenção de arma proibida) deveria quedar-se pelos 3 anos e 10 meses de prisão?

Entende o recorrente que a pena aplicada (quanto ao crime de homicídio na forma tentada) deveria ser especialmente atenuada face às circunstâncias do caso concreto, na medida em que o recorrente agiu a uma forte solicitação da própria vítima a ponto de ter referido nos dizeres do próprio ofendido “toma lá que é bem feito”.
Bem como pelo facto de anteriormente ao disparo que atingiu a vítima, ter sofrido agressões físicas na cabeça, tronco e membros.

Sendo assim, pretende o recorrente aquela atenuação já fora do campo de aplicação do artigo 33º, n.º 1 do Código Penal, fora de um quadro de excesso de legítima defesa, antes apoiada nos factores referidos: pelo facto de o recorrente ter agido a uma forte solicitação da própria vítima a ponto de ter referido nos dizeres do próprio ofendido “toma lá que é bem feito”; e pelo facto de anteriormente ao disparo que atingiu a vítima, ter sofrido agressões físicas na cabeça, tronco e membros

Preceitua o artigo 72º-1 do CP que “O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”.
E, nos termos do nº 2 do mesmo normativo, “Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta”.
E, nos termos do nº 3 do citado preceito legal “Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo”.

Em anotação a este artigo Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal, I, consideram: “Seguiu-se neste art. 72º o caminho de proceder a uma enumeração exemplificativa das circunstâncias atenuantes de especial valor, para se darem ao juiz critérios mais precisos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral de avaliação.

Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.
Em relação à versão originária de 1982 a expressão do nº 1 do então artigo 73º «O tribunal pode atenuar» foi substituída por «O tribunal atenua», tendo sido aditada a alternativa final «ou a necessidade da pena».

Este aditamento veio esclarecer que o princípio basilar que regula a atenuação especial é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção.

Esclarece Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 302/307, a propósito do paralelismo entre o sistema (ou o «modelo») da atenuação especial do artigo 72º e o sistema da determinação normal da pena previsto no artigo 71º, que tal paralelismo é só aparente, pois enquanto no procedimento normal de determinação da pena são princípios regulativos os da culpa e da prevenção, na atenuação especial tudo se passa ao nível de uma acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, e, portanto em último termo, ao nível do relevo da culpa, pelo que seriam irrelevantes as exigências da prevenção, o que não ocorre face a alguns dos exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuante contida na cláusula geral do nº 1 do artigo 72º, ou seja, das situações aí descritas só significativas sob a perspectiva da necessidade da pena (e, por consequência, das exigências da prevenção), concluindo no § 451: princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção.
A atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto resultante da actuação da (s) atenuante (s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
Daí – e continuamos a citar - estarmos perante um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa, com redução de um terço no limite máximo da moldura prevista para o facto e várias hipóteses na fixação do limite mínimo.

Adianta o Mestre de Coimbra, in Direito Penal Português, As Consequências …, II, § 453, pág. 306, a propósito das circunstâncias descritas nas alíneas do artigo 72º, nº 2, do Código Penal, que constituem exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuada contida na cláusula geral do artigo 73º, nº 1 (actual artigo 72º) que: «passa-se aqui algo de análogo – não de idêntico - ao que sucede com os exemplos-padrão: por um lado, outras situações que não as descritas nas alíneas do nº 2 do art. 72º podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas naquelas alíneas não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, só o possuindo se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido». E conclui que a acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena.

Espelham estes ensinamentos vários arestos deste Supremo Tribunal, de que são exemplos os seguintes acórdãos:

A atenuação especial da pena deverá ter lugar quando na imagem global do facto e de todas as circunstâncias envolventes, a culpa do arguido e a necessidade da pena se apresentem especialmente diminuídas. Ou, por outras palavras, quando o caso não é o caso normal suposto pelo legislador ao estatuir os limites da moldura correspondente ao tipo de facto descrito na lei e antes reclama, manifestamente, uma pena inferior (ac. STJ de 29.04.1998, CJ Acs STJ, VI, tomo 2, 191).

Como se expressou o acórdão do STJ, de 23-02-2000, processo nº 1200/99-3ª, SASTJ, nº 38, pág. 75, «É na acentuada diminuição da ilicitude e/ou da culpa e/ou das exigências da prevenção que radica a autêntica ratio da atenuação especial da pena. Daí que, as circunstâncias enunciadas no nº 2 do artigo 72º do Código Penal, não sejam as únicas susceptíveis de desencadear tal efeito, nem este seja consequência necessária ou automática da presença de uma ou mais daquelas circunstâncias».
No acórdão de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 220, pode ler-se: a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, considerando-se como antiquada a solução de consagrar legislativamente a cláusula geral de atenuação especial como válvula de segurança, pois que dificilmente se pode ter tal solução por apropriada para um Código como o nosso, “moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas”, seguindo-se aqui a lição constante do § 465 da referida obra.

No acórdão de 03-11-2004, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 217 refere-se: “Justifica-se a aplicação do instituto de atenuação especial da pena, que funciona como instrumento de segurança do sistema nas situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo”.

E no acórdão de 25-05-2005, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 207: “A atenuação especial da pena só pode ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, seja pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena - vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas”.

Como se extrai do já citado acórdão de 07-06-2006, processo n.º 1174/06 - 3.ª Secção, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 207, “A atenuação especial da pena depende do concurso de circunstâncias anteriores, posteriores ou concomitantes ao crime, que façam diminuir de forma acentuada a culpa, a ilicitude e a necessidade de pena, elencando de forma não taxativa o n.º 2 do art. 72.º do CP os seus factos-índices, ligados a uma imagem global do facto favorecente do agente criminoso.

O verdadeiro pressuposto material da atenuação são exigências de prevenção, na forma de reprovação social do crime e restabelecimento da confiança na força da lei e dos órgãos seus aplicadores e não apenas a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
Ao decréscimo ligeiro da pequena e média criminalidade, entre nós, contrapõe-se um aumento da criminalidade violenta, mediante o recurso a armas de fogo, em situações manifestamente ilegais, como o caso “sub júdice” confirma; impõe-se uma pena, com efeito dissuasor, fora do quadro da atenuação especial, em nome de fortes e sentidas necessidades de prevenção geral, sendo certo que nem a culpa, nem a ilicitude ou as necessidades da pena se mostram esbatidas de forma acentuada.

Nessa esteira, podem ver-se ainda os acórdãos de 05-02-1997, processo n.º 47885-3ª, SASTJ, n.º 8, Fevereiro 1997, pág. 77; de 07-05-1997, BMJ 467, 237; de 29-04-1998, CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 191; de 24-03-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247; de 07-10-1999, BMJ 490, 48; de 10-11-1999, processo 823/99, SASTJ, nº 35, 74; de 18-10-2001, processo 2137/01-5ª, SASTJ, nº 54, 122; de 28-02-2002, processo n.º 226/02 - 5ª; de 18-04-2002, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 178; de 22 -01- 2004, CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 183; de 20-10-2004, processo n.º 2824/04 - 3ª; de 06-10-2005, processo n.º 2632/05 - 5ª; de 17-11-2005, processo n.º 1296/05 - 5ª; de 07-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 229; de 15-12-2005, processo n.º 2978/05 - 5ª; de 06-06-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 204; de 07-12-2006, processo n.º 3053/06 - 5ª; de 21-12-2006, processo n.º 4540/06 - 5ª; de 08-03-2007, processo n.º 626/07 - 3ª; de 06-06-2007, processos n.ºs 1403/07 e 1899/07, ambos da 3ª secção e processo n.º 1603/07-5ª; de 14-06-2007, processos n.ºs 1895/07 e 1908/07, ambos da 5ª secção; de 21-06-2007, processo n.º 1581/07 - 5ª; de 28-06-2007, processo n.º 3104/06 - 5ª; de 12-09-2007, processo n.º 2702/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3265/07 - 3ª; de 07-11-2007, processo n.º 3225/07 - 3ª; de 28-11-2007, processo n.º 3981/07 - 3ª; de 05-12-2007, processo n.º 3266/07 - 3ª; de 16-01-2008, processos n.ºs 4638/07 e 4837/07, ambos da 3ª secção; de 23-01-2008, processo n.º 4560/07 - 3ª; de 13-03-2008, processo n.º 2589/07-5ª; de 26-03-2008, processos n.ºs 105/08 e 306/08-3ª; de 17-04-2008, processo n.º 4732/07 - 5ª; de 30-04-2008, processo n.º 1220/08 - 3ª; de 03-07-2008, processo n.º 1226/08 - 5ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08-3ª.

Na análise a fazer há que ter uma visão integral do facto, atender ao pleno das circunstâncias que enformaram os factos, salientando-se tudo o que o Tribunal Colectivo deu por provado e considerando-o na sua globalidade e inter relação, o que tudo conduz a que se esteja face a uma actuação em que o arguido agiu com o propósito de matar o ofendido o que só não sucedeu por motivos estranhos à vontade daquele.

No caso em apreço, na imagem global do facto e de todas as circunstâncias envolventes, nem a culpa nem a necessidade da pena se apresentam especialmente diminuídas.

Com efeito, o ilícito praticado pelo arguido reveste extrema gravidade.
O bem vida é o bem supremo.
O juízo de censura, no caso, é muito elevado.
A ilicitude muito intensa e é enorme o desvalor social da acção praticada.
Só por razões alheias à vontade do arguido – designadamente em virtude da pronta assistência médica - é que o arguido não tirou a vida ao ofendido.
O arguido quis matar o ofendido.

Acresce que os actos que o arguido praticou foram manifestamente desproporcionados, face à reacção da vítima.
Ora, o que se exige para a atenuação especial é que exista uma certa proporção entre o acto que motiva o crime e o crime praticado, o que no caso se revela inexistente, não se vislumbrando poder estabelecer qualquer relação de proporcionalidade entre as agressões do ofendido ao arguido e a conduta deste ao tentar matar o CC, pois o acto de matar tem na ordem jurídica um valor desproporcionalmente maior em relação às agressões.
Qualquer provocação para ser relevante nesta sede teria de ser injusta e proporcional à reacção, mas os factos provados embora possam integrem uma actuação censurável da vítima, o mesmo não tem nem intensidade suficiente para despoletar uma tal reacção do arguido nem demonstram que o arguido fosse colocado face a um quadro de condições fortemente limitativas da sua liberdade de agir e de reflectir - como refere o STJ, no acórdão de 11-10-1988, BMJ 380, 557 “ Nenhum motivo pode apresentar-se proporcional ao homicídio”.

Finalmente não ficou provado que o arguido tivesse com medo.

Por outro lado, os actos praticados pelo ofendido revestem um grau de ilicitude médio e o dolo, directo, reveste uma intensidade média.

Como referido supra, a medida constitui uma válvula de segurança do sistema que permite responder a casos especiais ou extraordinários, a circunstâncias excepcionais que não possam ser valoradas com justiça no âmbito da moldura penal normal, o que não ocorre no caso em apreço.

Assim sendo, não se justifica a pretendida atenuação especial da pena.

E a medida da pena aplicada, respeitante ao crime de homicídio na forma tentada, revela-se adequada e justa.
Na verdade, nos termos do artigo 71º nº 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Toda a pena tem, como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.
Daí que não haja pena sem culpa - nulla poena sine culpa.
Mas, por outro lado, a culpa constitui também o limite máximo da pena – (cfr. Ac STJ de 26.10.00 in Proc. 2528/00, desta 3ª Secção: “a culpa jurídico-penal traduz-se num juízo de censura que funciona, a um tempo, como um fundamento e um limite inultrapassável da medida da pena”).
Isto mesmo resulta claro do estatuído no artigo 40º-2 do C.P.: em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Além disso, há que atentar nas exigências de prevenção, quer geral, quer especial.
Com o recurso à prevenção geral busca-se dar satisfação aos anseios comunitários da punição do caso concreto, tendo em atenção de igual modo a necessidade premente da tutela dos bens e valores jurídicos.
Com o apelo à prevenção especial aspira-se em conceder resposta às exigências da socialização (ou ressocialização) do agente delitivo em ordem a uma sua integração digna no meio social” (Cfr. Ac. desta 3ª Secção deste Supremo Tribunal, de 26.10.00, in processo nº 2528/00).

Citando Figueiredo Dias (obra supra citada, pág. 214) “ … a culpa e prevenção são, assim, os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena”.
E, mais adiante (pág. 215) “ …a exigência legal de que a medida da pena seja encontrada pelo juiz em função da culpa e da prevenção é absolutamente compreensível e justificável. Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limita de forma inultrapassável as exigências de prevenção …”.

A este respeito, é pertinente citar aqui o acórdão do STJ de 1/03/00, in processo nº 53/2000, desta 3ª Secção “ … a culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, os seus limite mínimo e máximo absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade da protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo, este logicamente não pode ser outro que não o mínimo da pena que, em concreto, ainda realiza, eficazmente, aquela protecção … se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e, se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura legal – a moldura da pena legal aplicável ao caso concreto (moldura de prevenção) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social …”.

Por seu turno, estatui o nº 2 do mesmo artigo 71º do CP que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Importa ter em atenção a moldura penal correspondente ao crime em questão, praticado pelo arguido/recorrente:

- 1 crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 23º-2 e 73º-1 do C.P.: pena de prisão de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão.

Por outro lado, importa também ter presente que, quanto à medida desta pena parcelar, a decisão recorrida refere expressamente:
“Na determinação da medida concreta da pena, e atento o disposto no art°. 71°, n° 2, do Cód. Penal, importa considerar:
- O grau de ilicitude do facto, que se nos afigura mediano, atendendo, designadamente, ao modo como o arguido actuou e ao motivo pelo qual agiu;
- O dolo do arguido, que reveste a modalidade de dolo directo, de intensidade mediana;
As condições pessoais e a situação económica do arguido, supra descritas.

O arguido tem antecedentes criminais pela prática de crimes de diversa natureza.
Há que ponderar, ainda, as exigências de prevenção geral e especial, sendo as necessidades de prevenção geral, elevadas, numa sociedade em que se assiste a um constante aumento da criminalidade, que conduz, necessariamente a um incremento da insegurança que se verifica actualmente, com todas as consequências e sequelas, daí decorrentes. As necessidades de prevenção especial afiguram-se elevadas atento em especial os antecedentes criminais do arguido e o facto de o mesmo não ter demonstrado arrependimento”.

Resulta do exposto que na medida das penas aplicadas no acórdão recorrido foram considerados sinteticamente em relação a ambos os crimes, o grau de ilicitude e intensidade do dolo medianos, as condições pessoais e a situação económica que ficaram provadas, ainda os antecedentes criminais com crimes da mesma natureza; as razões de prevenção geral e de prevenção especial foram consideradas elevadas com antecedentes criminais e sem demonstração de arrependimento no crime de homicídio tentado e mediano no crime de detenção de arma proibida e por isso foram fixados as penas em 4 anos e 8 meses de prisão autoria do crime de homicídio tentado e 2 anos e 6 meses do crime de detenção de arma proibida.

Para a medida da pena o arguido não apresenta fundamentos, mas o mesmo na data da prática dos factos tinha 27 anos, não confessou (excepto quanto à arma) nem se mostrou arrependido, embora tivesse querido tirar a vida ao ofendido CC e apesar da sua idade tem um passado criminal, que terá iniciado aos 16 anos, não sendo apresentadas perspectivas de socialização a curto ou médio prazo.

Ponderando, pois, tudo o exposto – designadamente a culpa do arguido, as exigências de prevenção especial e geral, a elevada ilicitude dos factos, o modo de execução dos mesmos, a gravidade das suas consequências, a forte intensidade do dolo (directo), a respectiva moldura penal abstracta, a personalidade do arguido manifestada nos factos, as suas condições pessoais e económicas e os antecedentes criminais – consideram-se adequadas e justas as penas parcelares aplicadas, respectivamente de prisão de 4 anos e 8 meses (relativa ao crime de homicídio na forma tentada) e prisão de 2 anos e 6 meses (relativa ao crime de detenção de arma proibida).

Por isso, mantêm-se tais penas.

Relativamente á pena a fixar em cúmulo jurídico, há que ter em conta, no seu conjunto, os factos e a personalidade do agente (artº 77º-1 do CP).

De acordo com Figueiredo Dias (obra supra citada, pág. 291), o conjunto dos factos fornecerá “ … a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.
Na avaliação da personalidade – unitária – do agente, relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuír á pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização). … “.

Por outro lado, a pena (única) aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artº 77º-2 do CP).

No caso, o arguido/recorrente AA foi condenado nos seguintes crimes e penas parcelares:

- 4 anos e 8 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º e 131º, do Código Penal;
- 2 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 275º-1, do Código Penal.

Assim sendo e face ao que acima se deixou dito, no caso do recorrente a pena aplicável tem como limite mínimo 4 anos e 8 meses de prisão (a mais elevada das penas concretamente aplicadas) e como limite máximo 7 anos e 2 meses de prisão (soma material das penas concretamente aplicadas aos dois crimes).

Ora, ponderando os factos e a personalidade do arguido, diz-se no acórdão recorrido:

Quanto ao crime de homicídio tentado:

“ … O grau de ilicitude do facto, que se nos afigura mediano, atendendo, designadamente, ao modo como o arguido actuou e ao motivo pelo qual agiu;
O dolo do arguido, que reveste a modalidade de dolo directo, de intensidade mediana;
As condições pessoais e a situação económica do arguido, supra descritas.

O arguido tem antecedentes criminais pela prática de crimes de diversa natureza.
Há que ponderar, ainda, as exigências de prevenção geral e especial, sendo as necessidades de prevenção geral, elevadas, numa sociedade em que se assiste a um constante aumento da criminalidade, que conduz, necessariamente a um incremento da insegurança que se verifica actualmente, com todas as consequências e sequelas, daí decorrentes. As necessidades de prevenção especial afiguram-se elevadas atento em especial os antecedentes criminais do arguido e o facto de o mesmo não ter demonstrado arrependimento”.

Quanto ao crime de detenção de arma proibida:

… Há que ponderar:
- O grau de ilicitude do facto, que se nos afigura mediano.
- O dolo do arguido, que reveste a modalidade de dolo directo, de intensidade mediana;
As condições pessoais e a situação económica do arguido.

O arguido tem antecedentes criminais pela prática de crimes de natureza diversa.
O arguido confessou os factos relativos à detenção de arma proibida.
Há que ponderar, ainda, as exigências de prevenção geral e especial, sendo as necessidades de prevenção geral, muito elevadas, numa sociedade em que se assiste a um constante aumento da criminalidade, que conduz, necessariamente a um incremento da insegurança que se verifica actualmente, com todas as consequências e sequelas, daí decorrentes.
As necessidades de prevenção especial afiguram-se medianas”.

Ponderando, pois, tudo o que se deixa dito e tendo ainda em conta não só a gravidade da conduta do arguido/recorrente, o número e o tipo de crimes cometidos, que não manifestou arrependimento e que, no caso, a matéria apurada é insuficiente para formular um juízo de prognose social favorável e que a pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa (cfr. artº 40º-2 do Código Penal), temos por adequada e justa a pena unitária fixada, de 5 anos e 10 meses de prisão aplicada em cúmulo que, como se viu, oscilava entre um mínimo de 4 anos e 8 meses de prisão e um máximo de 7 anos e 2 meses, situando-se, ainda assim, mais próximo do limite mínimo.

Por isso, se mantém aquela pena única.

O recurso improcede, também neste segmento.

DECISÃO

Nos termos expostos acorda-se em:

Negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

Lisboa, 22 de Abril de 2009

Fernando Fróis (Relator)
Henriques Gaspar