Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
542/13.8T2AVR.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
PRESSUPOSTOS
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 671.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º.
Sumário :
1. A alteração do conceito de dupla conformidade, enquanto obstáculo ao normal acesso em via de recurso ao STJ, operada pelo actual CPC (mandando atender a uma diferença essencial nas fundamentações que suportam a mesma decisão das instâncias), obriga o intérprete e aplicador do direito a – analisada a estruturação lógico argumentativa das decisões proferidas pelas instâncias, coincidentes nos respectivos segmentos decisórios - distinguir as figuras da fundamentação diversa e da fundamentação essencialmente diferente.

2. Não é qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido, relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica por ele assumida para manter a decisão já tomada em 1ª instância, que justifica a quebra do efeito inibitório quanto à recorribilidade, decorrente do preenchimento da figura da dupla conforme.

3. Só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento  jurídico perfeitamente diverso e  radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância – não preenchendo esse conceito normativo o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA e mulher, BB, apelaram da sentença que julgou improcedente a acção, processada na forma ordinária, que intentaram contra CC - Energias, S.A., na qual - com fundamento nos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreram por virtude da denúncia infundada, pela última, do contrato de prestação de serviços concluído entre aquela e o primeiro – pediam a condenação da última a pagar-lhes a quantia de € 42 500,00 ou, ao menos, a de 30 016,33 e a compensação, nesta indemnização da quantia de € 9 911,41 que devem à demandada.

No recurso interposto, começaram os apelantes por impugnar a decisão proferida acerca da matéria de facto: porém, a Relação, reponderando tal julgamento, considerou inexistir erro na apreciação das provas, concluindo, por isso, que não havia fundamento bastante para introduzir no quadro factual, fixado pela sentença recorrida, as alterações propugnadas pelos recorrentes.

Passando a pronunciar-se sobre os aspectos jurídicos do litígio, o acórdão recorrido começou por qualificar o contrato em causa como comissão comercial, em estrita consonância, aliás, com a sentença apelada.

Relativamente ao aspecto fulcral do litígio – a licitude da cessação de tal contrato, determinada pela recorrida, discutindo-se se se trataria de denúncia formulada sem respeito pelo prazo de pré aviso consagrado na cl. 6ª do contrato, ou antes de rescisão operada ao abrigo da cl. 7ª, al. a) da dita relação contratual – a sentença apelada havia considerado que a respectiva cessação encontrava suporte na referida cl. 7ª a), assentando no desaparecimento das condições que permitiam a continuação da exploração da estação de serviços em causa, em consequência da determinação da R. CC em alienar o referido posto de combustível, em consequência da perda de rentabilidade do negócio – entendendo ainda  que fora respeitado o princípio da boa fé contratual, não tendo existido uma cessação imotivada do contrato que pudesse originar um direito de indemnização, nomeadamente o decorrente da cláusula penal estipulada na cl. 6ª , segundo §.


2. Sobre esta matéria essencial à dirimição do litígio considerou a Relação no acórdão recorrido:

Admita-se, no entanto, que, realmente, quem detinha a qualidade de mandatário/comissário era o apelante – e só ele, dado que, patentemente, o seu cônjuge, não teve, na conclusão do contrato, a mínima intervenção.

Como se observou, a sentença impugnada concluiu pelo carácter motivado da extinção do contrato, motivação que, segundo aquele acto decisório, decorre da razão determinante da venda do posto: a perda de rentabilidade do negócio. Perda que se subsumiria à previsão da cláusula 7.ª al. a) do contrato, de harmonia com a qual à apelada assistiria o direito de rescindir, a qualquer momento, sem qualquer indemnização da contraparte, o contrato, se não estivessem reunidas as condições que permitissem a continuação da exploração, por ela, da estação de serviço.

Segundo os apelantes, um declaratário normal, colocado na sua posição, interpretaria a cláusula como relativa a situações imprevisíveis, anormais, irregulares ou de força maior, a quaisquer situações desconhecidas e não controláveis pelos outorgantes. Qualquer outra interpretação teria de ser afastada dado que um homem normal colocado na posição dos autores não iria fazer investimentos e assumir obrigações sabendo que a contraparte podia matar o contrato a qualquer momento, devendo a questão ser analisada a partir da equivalência das prestações, equiparando os direitos a rescindir o contrato por parte da recorrida com os direitos dos autores, como forma de dar conteúdo concreto à cláusula.

De harmonia com o grande princípio da interpretação negocial - dominado pela conhecida doutrina da impressão do destinatário - o sentido decisivo com que a declaração há-de valer é que aquele que se obtém do ponto de vista de um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante (artº 236 nº 1 do Código Civil). Deve, pois, tomar-se o declaratário efectivo, nas condições reais em que se encontra e, presumindo que é uma pessoa razoável e normal, medianamente instruída e diligente, verificar o sentido que objectivamente atribuiria à declaração de vontade inserta naquela cláusula.

À luz deste critério, a apontada cláusula deve ser entendida com o sentido de permitir a desvinculação da apelada sempre que ocorresse qualquer circunstância superveniente que, objectivamente, alterasse, em termos tais, as condições, v.g. económicas, de exploração da estação de serviço, que não permitisse, de harmonia com critérios de racionalidade, a continuação, por aquela, dessa actividade – sempre que se verificasse qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, não lhe fosse exigível a continuação da relação contratual, i.e., todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim.

O resultado interpretativo que, de todo, a cláusula não comporta, é o que a reduza a factos exteriores a qualquer dos contraentes – desde logo porque, patentemente a cláusula foi disposta em favor de um só deles - a apelante - e muito menos a casos fortuitos ou de força maior. É o que decorre da análise do conteúdo destes dois últimos conceitos. A doutrina mais clássica caracterizava de forma idêntica as duas figuras. Assim, o caso fortuito, em sentido lato, compreenderia todos os factos produtivos da impossibilidade de cumprir que o devedor, atendo o grau de diligência a que deva considerar-se obrigado, não possa evitar . Apesar da multiplicidade de critérios adiantados para fazer o distinguo entre ambos , a doutrina orienta-se, praticamente, pelo conceito clássico de caso fortuito – considerado sobretudo na perspectiva da imprevisibilidade do facto – e destacando na força maior a ideia de inevitabilidade do efeito – guerra, terramoto, naufrágio, bombardeamento, tempestade. Na força maior caberiam, de modo especial, os impedimentos resultantes de forças da natureza – o abalo sísmico, a inundação grave, etc. – ou de actos insuperáveis da autoridade pública ou mesmo de particulares – a realização de obras públicas de demolição ou desaterro, a ocupação militar, etc. A força maior caracterizar-se-ia, portanto, pelo carácter irresistível, inevitável, da causa do facto: o facto ocorre devido a uma força superior à qual não se pode resistir, ainda que seja previsível: guerra, inundação, sismo, ou acto de autoridade – factum principis. Como quer que seja, as notas individualizadoras das duas figuras apontam classicamente para a consideração de um evento exterior, imprevisível e irresistível. Assim, por exemplo, chama-se a atenção para a total imprevisibilidade do facto, a imprevisibilidade do efeito e a inevitabilidade – de efeitos – do facto ocorrido .

Abstraindo do facto de qualquer destes conceitos não encontrar no texto da cláusula um mínimo de correspondência, reduzir a cláusula a casos fortuitos ou de força maior, seria torná-la irrelevante, dado que, resultando do caso fortuito ou de força maior uma impossibilidade – superveniente - objectiva, absoluta, total e definitiva de cumprimento, a obrigação que, do contrato emerge para a apelada, extinguir-se-ia, desonerando-a da sua prestação, sem incorrer em qualquer responsabilidade, dado que, nesta hipótese, o dever de prestar não se converte num dever de indemnização (artºs 790 nº 1 e 795 nº 1 do Código Civil). Num tal conjuntura, a cláusula seria inútil dado que se limitaria a estabelecer a favor da apelante um direito de desvinculação que decorre linearmente – tanto para aquela como para os apelantes - das regras gerais, sendo desprovido de sentido estipular, por via convencional, um direito de rescisão, revogação ou resolução de um contrato cujas obrigações, por simples aplicação daquelas regras, se consideram extintas.

Em qualquer caso, dado que é típico das sociedades comerciais o intuito lucrativo, pelo que a sua gestão deve ser orientada para obtenção de lucro - entendido como a diferença entre o custo e a receita da actividade económica da sociedade – a sua ausência e, a fortiori, resultados negativos, configuram decerto motivo que não permite – de harmonia com critérios de racionalidade empresarial - a continuação da actividade económica correspondente.

Sendo isto exacto, não vale aqui argumentar com o critério interpretativo fundado no equilíbrio das prestações – manifestação relevante da justiça comutativa no contexto da autonomia privada – de harmonia com o qual, existindo, por aplicação do grande princípio da interpretação negocial, mais do que um sentido possível para a declaração negocial, o sentido relevante é aquele que conduzir ao maior equilíbrio de efeitos entre as partes. É que a interpretação que se mova para o equilíbrio das prestações só deve ocorrer quando a declaração comportar vários sentidos possíveis, o que, pelas razões apontadas, não é o caso (artº 237 do Código Civil).

Como se notou, o contrato em apreço é marcado pela reciprocidade, dado que é um contrato de troca para a prestação de serviço. Simplesmente reciprocidade – como também se sublinhou - não é sinónimo de equivalência objectiva e perfeita: o valor relativo das prestações e dos riscos é um problema que o direito abandona à lógica do comércio privado e do mercado, contentando-se em assegurar o efectivo consenso entre as partes e em garantir que esse consenso não foi viciado nem obtido de forma abusiva. No caso, não se mostra adquirido para o processo qualquer facto que permita concluir pela ausência de consenso das partes quanto àquela cláusula – ou a qualquer outra – ou que esse consenso foi obtido com abuso ou ferido com qualquer vício. Um empresário prudente e ordenado deveria, em face dela, ajustar a dimensão e o nível do seu investimento, sendo certo que de um aspecto que, na espécie, o contrato estava sujeito a uma duração relativamente reduzida – um ano – e, de outro, que o modelo do negócio, consistia na disponibilização pela apelada de um estabelecimento – com todos os seus elementos materiais e imateriais – em pleno funcionamento, limitando-se a prestação da contraparte à gestão e controlo da respectiva actividade, que não exige a realização de investimentos elevados – que, de resto, não foram alegados nem objecto de concretização adequada.

E a duração do contrato é relevante num outro plano. Um dos danos reparáveis alegados pelos recorrentes consiste nas dívidas que contraíram em vista do contrato concluído, decorrendo o prejuízo não na contracção da dívida como tal, mas da exclusão da possibilidade da sua amortização, decorrente da extinção do contrato. O prejuízo não está, pois, nas despesas como tais, mas antes na perda da possibilidade de obter a compensação económica que existiria no caso de cumprimento do contrato, avaliada pelos dispêndios efectuados. Em tal caso – dado que tais dívidas teriam sido igualmente contraídas independentemente da violação do contrato, caso este tivesse sido cumprido, pelo que faltaria a relação de causalidade entre elas e o evento que obriga à reparação – caberia aos apelantes a demonstração de que caso o contrato só cessasse na data convencionada, conseguiriam cobri-las com os ganhos obtidos, ponto que também nem sequer mereceu dos apelantes uma alegação adequada.

Como quer que seja – e admitindo que os apelantes ou, pelo menos o apelante, tinha, efectivamente, a qualidade de mandatário/comissário – exacto é que, a redução da rentabilidade económica da exploração do posto ou da estação de serviço é subsumível à previsão da cláusula que autoriza a desvinculação da apelada, sem a sua constituição no dever de indemnizar a contraparte, conclusão que sempre importaria a improcedência dos pedidos – principal e subsidiário – que formularam.

Deve notar-se, por último, que o pedido subsidiário sempre improcederia, seja por falta de prova do dano reparável – o que é patente no tocante aos danos não patrimoniais e ao dano resultante do abandono pela apelante do seu emprego – ou de que esse dano foi produzido na sua esfera jurídica – caso do prejuízo resultante do pagamento indemnização por cessação do contrato de trabalho do operador do posto que foi suportada pela sociedade comercial – quer, enfim, por ausência da prova de uma ligação imediata das despesas alegadas com o contrato ou da sua necessidade para conclusão ou cumprimento dele – i.e., de uma relação causal entre o dano e a cessação do contrato – como sucede no tocante ao dano da contracção, pelos recorrentes como garantes, das dívidas bancárias (artºs 342 nº 1, 346, in fine, e 563 do Código Civil).

Estas razões – se outras não houvesse – são suficientes para mostrar que o recurso não dispõe de bom fundamento.


Daqui decorre que o acórdão recorrido:

- negou provimento à apelação, confirmando, por isso, inteiramente o sentido decisório acolhido na sentença apelada;

- para alcançar o juízo de improcedência do recurso, moveu-se fundamentalmente nos mesmos plano e enquadramento normativo que haviam estado subjacentes à sentença, nomeadamente aceitando a qualificação jurídica da relação contratual litigiosa e extraindo fundamento para a lícita cessação daquela da cl. 7ª a) , onde se prescrevia que a sociedade recorrida podia rescindir o contrato, em qualquer momento do decurso do período de vigência deste, se não estivessem reunidas as condições que permitissem a continuação da exploração da estação de serviço em causa pela CC – aí enquadrando a situação emergente da decisão desta entidade de vender a referida estação de serviço, em consequência de perda de rentabilidade do negócio;

- assentando, deste modo, sentença e acórdão numa fundamentalmente idêntica ratio decidendi, a única diferença de fundamentação que se vislumbra radica na circunstância de a Relação ter aprofundado e reforçado as razões jurídicas que já suportavam a sentença proferida em 1ª instância, reforçando a argumentação jurídica que conduzia à licitude da rescisão do contrato e à consequente improcedência das pretensões indemnizatórias formuladas pelos AA. – fazendo-o, desde logo, em resposta à argumentação esgrimida pelos apelantes na respectiva alegação; e assim considerou o acórdão recorrido que :

- a referida cl. 7ª a) nunca poderia, segundo os cânones interpretativos da declaração negocial, ser entendida como pretendendo reportar-se apenas a casos fortuitos ou de força maior, totalmente independentes da vontade das partes;

- o critério do equilíbrio das prestações não poderia conduzir a diferente interpretação da dita cláusula contratual, já que nenhum facto processualmente adquirido permite duvidar da ausência de consenso no respectiva estipulação, nem a verificação de qualquer abuso ou vício da vontade;

- não se mostra demonstrada qualquer relação causal entre o prejuízo invocado, consistente em os apelantes terem contraído dívidas na óptica da manutenção do contrato, ficando excluída com a rescisão a possibilidade da respectiva amortização até ao normal termo deste, recaindo naturalmente sobre o A. o ónus da prova deste nexo causal.


3. É desta decisão que vem interposta a presente revista normal, sustentando os recorrentes que a Relação teria negado provimento ao recurso com fundamento essencialmente diverso do tribunal da sentença .

A recorrida suscitou, a fls. 443, a questão prévia da admissibilidade do recurso, já que, não existindo voto de vencido expresso no acórdão de que se recorre, nem existindo fundamentação diversa da constante da decisão de 1ª instância, se encontraria prejudicado o recurso interposto.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 447, por se considerar que a confirmação da sentença ocorreu com uma fundamentação não inteiramente homótropa à sustentada em 1ª instância.


4. Pelo relator, foi proferido o seguinte despacho:

Analisadas ambas as decisões e as respectivas fundamentações, afigura-se que se não se verifica no acórdão da Relação qualquer fundamentação essencialmente diferente que – ao abrigo do preceituado no nº 3 do art. 671º do CPC – permita afastar a verificação da dupla conformidade das decisões de mérito proferidas pelas instâncias, perfeitamente coincidentes quanto aos respectivos segmentos decisórios .

Esta alteração do conceito de dupla conformidade, enquanto obstáculo ao normal acesso em via de recurso ao STJ, operada pelo actual CPC, obriga o intérprete e aplicador do direito – analisada a estruturação lógico argumentativa das decisões proferidas pelas instâncias, coincidentes nos respectivos segmentos decisórios - a distinguir as figuras da fundamentação diversa e da fundamentação essencialmente diferente: não é, na verdade, qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido, relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica assumida pela Relação para manter a decisão já tomada em 1ª instância, que justifica a quebra do efeito inibitório quanto à recorribilidade, decorrente do preenchimento da figura da dupla conforme.

É necessário, na verdade, que estejamos confrontados com uma modificação qualificada ou essencial da fundamentação jurídica em que assenta, afinal, a manutenção do estrito segmento decisório – só aquela se revelando idónea e adequada para tornar admissível a revista normal.

Note-se que este regime normativo (que sucedeu ao inicialmente editado pelo DL 303/07, estabelecendo a absoluta irrelevância da fundamentação para aferir da existência ou inexistência de dupla conforme) destina-se a permitir ao STJ sindicar, em revista normal, o decidido pela Relação nos casos em que – sendo coincidentes os segmentos decisórios da sentença apelada e do acórdão proferido na apelação – a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente  inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento  jurídico perfeitamente diverso e  radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância.

Por outro lado – e como se considerou, por exemplo, no acórdão proferido pelo STJ em 10/2/05, no P. 6543/13.9YYPRT-A.P1-A.S1:

1. Confirmando a Relação a decisão de 1ª instância, sem qualquer voto de vencido, a admissibilidade do recurso de revista está dependente do facto de ser empregue fundamentação substancialmente diferente (art. 671º, nº 3, do CPC de 2013)

2. Tal não sucede quando a Relação se limita a reforçar, em termos cumulativos ou subsidiários, a fundamentação empregue pela 1ª instância.

Ou seja: não constitui fundamentação essencialmente diferente o mero reforço ou aprofundamento das razões jurídicas que já haviam ditado a sucumbência do recorrente em 1º instância.

Ora, não parece efectivamente ocorrer, no caso dos autos, qualquer alteração estrutural ou essencial de fundamentação, movendo-se o acórdão da Relação no âmbito das mesmas razões fundamentais de direito que já haviam ditado a sucumbência dos AA. em 1ª instância – assentando a licitude da rescisão antecipada do contrato de comissão celebrado entre as partes no direito potestativo que a cl. 7ª a) conferia à recorrida, face à deliberação de venda do posto de combustíveis ditada pela  inviabilidade económica da respectiva exploração comercial ; e, por outro lado, o aprofundamento ou reforço da argumentação de direito ínsita na sentença apelada – ditada pela necessidade de responder adequadamente à alegação dos recorrentes, mas assentando essencialmente na mesma ratio decidendi fundamental – não é susceptível de abrir a via da revista normal, face à total coincidência dos segmentos decisórios e à fundamental sobreposição dos argumentos jurídicos utilizados como ratio decidendi por sentença e acórdão.


Nestes termos e ao abrigo do disposto no art. 655º do CPC convido os recorrentes a pronunciarem-se, querendo, sobre a questão prévia da recorribilidade.


5. Os recorrentes pronunciaram-se sobre a questão prévia da recorribilidade através do requerimento de fls. 268 e segs., sustentando que – comparadas as decisões proferidas em 1ª instância e na Relação – deveria considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente, susceptível de permitir o normal acesso ao STJ – tendo o relator julgado procedente a questão prévia suscitada:

Saliente-se que – no regime do novo CPC – não basta a existência de alguma diferença de fundamentos – traduzida na não absoluta e total coincidências das fundamentações das coincidentes decisões das instâncias - para ficar aberta a via do recurso para o STJ, precludindo o efeito limitativo decorrente da dupla conforme: como decorre da letra da lei, é necessário que essa diferença de fundamentações seja qualificada, consistindo numa diferença fundamental ou essencial na via jurídica seguida para estruturar a decisão.

Não se considera que tal ocorra na concreta situação dos autos.

Em primeiro lugar, importa realçar que os dois aspectos inovatórios  que o acórdão da Relação teria, segundo os recorrentes, introduzido  na sentença apelada se revelam perfeitamente irrelevantes para a decisão efectivamente alcançada e respectiva ratio decidendi.

Na verdade, a Relação começa por referir, de passagem, que poderiam considerar-se, desde logo, duas boas razões adicionais e inovatórias para julgar o recurso improcedente:

No contexto da apreciação da impugnação deduzida pelos recorrentes contra a decisão da questão de facto, tornaram-se patentes duas boas razões, suficientes por si, para julgar o recurso improcedente: o facto de a qualidade de parte no contrato de comissão suprimido radicar não nos recorrentes mas na sociedade comercial entretanto constituída por ambos; a circunstância de o encargo da prova sobre o carácter injustificado – e portanto, da ilicitude - da extinção do contrato recair sobre os apelantes e de para o processo se mostrarem adquiridos factos susceptíveis de justificar essa extinção e não factos de significado inverso.


Porém, logo de seguida, abandona tal nova e eventual via argumentativa, para concluir:

Admita-se, no entanto, que, realmente, quem detinha a qualidade de mandatário/comissário era o apelante – e só ele, dado que, patentemente, o seu cônjuge, não teve, na conclusão do contrato, a mínima intervenção - passando, de seguida, nesta óptica, a pronunciar-se sobre as questões já abordadas em 1ª instância.

Ou seja: a referida e hipotética via alternativa e inovatória para rejeitar a procedência do recurso acaba por se configurar como mero obter dictum, enunciado e logo abandonado, sem o menor relevo na real e efectiva ratio decidendi do acórdão recorrido.

O outro aspecto inovatório, traduzido numa correcção feita pela Relação a uma afirmação contida lateralmente na sentença, consistiu em se afirmar no acórdão recorrido que:

Esta última consideração (a deque, a ter existido uma cessação imotivada do contrato, poderia dar lugar a indemnização, embora a mesma, caso existisse, não seria a genericamente prevista no art. 245º do Código Comercial mas sim a que foi estipulada convencionalmente na cláusula 6ª, segundo parágrafo, dado que as partes, expressamente, estabeleceram uma cláusula penal)  não é exacta, dado que – como se mostrou já - a pena foi convencionada para o caso de violação da obrigação de pré-aviso - mas apenas por parte do mandatário/comissário. Ela não é, por isso, aplicável no caso de a violação daquela obrigação proceder do seu parceiro contratual: nesta hipótese a indemnização eventualmente devida é a que decorre das regras legais conformadoras do contrato – e a prova do dano reparável vincula aquele contraente.

Trata-se, também aqui – e como é evidente – de um mero obter dictum, já que ambas as decisões afastam o referido carácter imotivado e ilícito da rescisão, tornando, por isso, absolutamente irrelevante o hipotético problema do critério de cálculo da indemnização da A.- obviamente prejudicado pela improcedência da pretensão por ela formulada.


Reitera-se que se não vislumbra qualquer alteração substancial da fundamentação das duas decisões proferidas pelas instâncias: na realidade, estas, para alcançarem o juízo de improcedência da pretensão formulada, moveram-se fundamentalmente nos mesmos plano e enquadramento normativo, nomeadamente aceitando a mesma qualificação jurídica da relação contratual litigiosa e extraindo fundamento para a lícita cessação daquela da cl. 7ª a) , onde se prescrevia que a sociedade recorrida podia rescindir o contrato, em qualquer momento do decurso do período de vigência deste, se não estivessem reunidas as condições que permitissem a continuação da exploração da estação de serviço em causa pela CC – aí enquadrando a situação emergente da decisão desta entidade de vender a referida estação de serviço, em consequência de perda de rentabilidade do negócio.

Saliente-se que a perda de rentabilidade do negócio e o seu relevo na decisão da R. de vender o posto de abastecimento resulta efectivamente da factualidade provada, sendo assim factos processualmente adquiridos, o que naturalmente prejudica qualquer discussão relevante acerca do ónus da prova dessa mesma factualidade:

21 – Desde 2008 que se vinha a verificar uma descida de rentabilidade do negócio que era desenvolvido no posto de abastecimento dos autos, ocorrendo descidas sucessivas de vendas de combustível e das respectivas margens comerciais (art. º da contestação).

22 – Em função desse facto, a ré começou a reorientar estratégias para se posicionar no mercado, tendo iniciado a internacionalização e passado a desenvolver negócios em Moçambique (arts.35º e 38º da contestação).

23 – Na sequência da estratégia comercial desenvolvida pelos accionistas da ré, face aos números das vendas de combustíveis a retalho, com perdas de rentabilidade, o posto de abastecimento dos autos, entre outros que a ré possuía, foi colocado à venda, venda que veio a ser concretizada em Julho de 2010, à empresa DD, a qual contactou a ré tendo em vista a aquisição dos postos em apreço (arts. 26º, 39º, 40º, 46º e 47º da contestação).

24 – As negociações entre a ré e a DD foram balizadas por fortes regras de sigilo e de confidencialidade que impediam qualquer das duas de divulgar o teor das negociações que se iniciaram quanto à venda dos postos (art. 27º da contestação).

25 – Os autores tinham conhecimento, desde os inícios de 2010, que o posto de abastecimento de combustível tinha sido colocado à venda, sabendo ainda que vinha ocorrendo uma descida de rentabilidade do negócio (arts 50º, 58º, 72º, 73º, 74º, 75º, 76º, 77º e 116º da contestação).

E, assim sendo, o reforço argumentativo constante do acórdão proferido pela Relação, fundamentando a interpretação da dita cláusula contratual em que se considera fundado o direito de rescisão ( e não de resolução do contrato),  em resposta, aliás, às objecções formuladas pelos recorrentes – não pode qualificar-se como traduzindo o apelo a uma fundamentação essencialmente diferente, que quebre o efeito restritivo do acesso ao STJ, decorrente da figura da dupla conforme.

Nestes termos e pelos fundamentos apontados julga-se procedente a questão prévia da recorribilidade, não se conhecendo do objecto do recurso, nos termos do art. 655º do CPC.

Custas pelos recorrentes.


6. Os reclamantes vieram reclamar para a conferência, através do requerimento de fls. 499/501, em que reiteram a sua anterior posição, sustentando a existência de fundamentação essencialmente diferente entre as decisões proferidas nos autos e alegando que a admissibilidade da revista seria imposta pelo princípio da tutela judicial efectiva, com assento no art. 20º da Constituição, cabendo ao STJ uma busca incessante da justiça material, incompatível com a limitação da admissibilidade da revista com base em argumentos formais.

Considera-se, porém, manifestamente improcedente a reclamação apresentada.

No que respeita à existência ou não de fundamentação essencialmente diferente entre a sentença apelada e o acórdão recorrido, adere-se inteiramente à argumentação expendida no despacho que considerou procedente a questão prévia da recorribilidade – sendo manifesto, aliás, que na sua argumentação os reclamantes confundem os conceitos de fundamentação diferente e de fundamentação essencialmente diferente, como instrumento para, no âmbito da figura da dupla conforme, delimitar as possibilidades de acesso ao STJ, perante decisões inteiramente sobreponíveis, nos respectivos segmentos decisórios: não basta, para quebrar o limite à recorribilidade decorrente da regra da dupla conforme, identificar uma qualquer alteração ou nuance na fundamentação jurídica acolhida no acórdão recorrido, sendo indispensável que se trate de uma alteração ou modificação qualificada da base jurídica da decisão, resultante do apelo a um diferente enquadramento normativo do pleito : não cabem, pois, seguramente no referido conceito de fundamentação essencialmente diferente os casos em que – movendo-se inquestionavelmente a Relação, no que respeita à efectiva ratio decidendi do acórdão proferido, no campo dos mesmos institutos ou figuras jurídicas – se limita a aditar um mero reforço argumentativo no que toca à idêntica solução jurídica do pleito que alcançou.

Por outro lado, não é exacto que possa inferir-se do direito fundamental de acesso à justiça, plasmado no art. 20º da Constituição, um amplo direito de acesso a um terceiro grau de jurisdição a exercitar pelo STJ, sem que ao legislador e à jurisprudência seja legítimo delimitar ou filtrar, em termos proporcionais e adequados, os litígios em que deva intervir em via de recurso ainda o STJ: na verdade, o acesso à justiça e a tutela judicial efectiva bastam-se com a obtenção de uma decisão jurisdicional, em tempo útil, sobre os litígios de direito privado, sendo certo que no caso a sentença proferida foi objecto de reapreciação pela 2ª instância, que manteve inteiramente o sentido decisório questionado pelo recorrente; ora, não está seguramente compreendido naqueles princípios fundamentais um direito de aceder ao STJ sempre que a parte vislumbre alguma nuance ou alteração menor na fundamentação jurídica seguida pelas instâncias.

Note-se, por outro lado, que a regra da dupla conforme, tal como se mostra delineada no actual CPC, não pode perspectivar-se como traduzindo a imposição de um limite formal à recorribilidade: na verdade, ela não se consubstancia em qualquer regra de forma, tendo antes a ver com a substância das decisões proferidas nos autos, delimitando a acesso ao STJ, em revista normal, em função da identidade essencial das decisões e respectivos fundamentos, proferidas anteriormente nos autos, vedando o acesso a um terceiro grau de jurisdição nos casos em que a fundamental coincidência do unanimemente decidido na 1ª instância e na Relação torna plausível a adequação e legalidade substantiva da solução normativa alcançada para o litígio.


Nestes termos e pelos fundamentos apontados indefere-se a presente reclamação, confirmando inteiramente o despacho que teve por inadmissível o recurso de revista.


Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.


Lisboa, 09 de Julho de 2015


Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor