Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7070/17.0T8VNF.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: REVISTA
ADMISSIBILIDADE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
FACTOS PESSOAIS
Data do Acordão: 07/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / CUSTAS, MULTAS E INDEMNIZAÇÃO / MULTAS E INDEMNIZAÇÃO / RESPONSABILIDADE NO CASO DE MÁ-FÉ, NOÇÃO DE MÁ-FÉ – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / DECISÕES QUE ADMITEM RECURSO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / OBRIGAÇÕES DO LOCATÁRIO / RESTITUIÇÃO DA COISA LOCADA / INDEMNIZAÇÃO PELO ATRASO NA RESTITUIÇÃO DA COISA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 542.º, N.ºS 2, ALÍNEA B) E 3 E 629.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1045.º.
Sumário :
I. Tendo o acórdão recorrido: julgado parcialmente procedente a apelação, anulando a decisão de condenação da ré como litigante de má-fé, com fundamento em nulidade por violação do princípio do contraditório; e, em substituição da 1ª instância, reapreciado a questão, proferindo nova condenação da ré por litigância de má-fé; nos termos do art. 542º, nº 3, do CPC, tal decisão é susceptível de impugnação pelo que o presente recurso é admissível, circunscrito à apreciação da referida questão.

II. Confirmando-se encontrar-se preenchido o pressuposto do art. 542º, nº 2, alínea b), do CPC, uma vez que a ré negou factos pessoais que não podiam deixar de ser do seu conhecimento e que vieram a provar-se, actuando assim dolosamente, é de manter a sua condenação como litigante de má-fé.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. AA, S.A.. intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, Unipessoal, Lda., peticionando a condenação da R. a pagar-lhe:

a) A quantia de € 25.148,45 (vinte e cinco mil, cento e quarenta e oito euros e quarenta e cinco cêntimos), correspondente ao remanescente da factura nº FA 2015/2…1, e das facturas FA2016/…, FA2016/3…, FA2016/…1, FA2016/…8, FA2016/6…, FA 2016/7…, Factura 00001/3…7 e Factura nº (7..0)2014.000… que respeitam a rendas vencidas, a energia eléctrica consumida, a comparticipação nas despesas com os serviços de segurança contratados dos quais beneficiou, valores a que se obrigou contratualmente, a despesas de remoção dos bens/sucatas que abandonou nas instalações da A. aquando da sua entrega pela R. e ainda à aquisição das máquinas pertencentes ao imobilizado da A.;

b) Os juros vencidos desde a data de vencimento das facturas até à data da entrada da presente acção, os quais, até ao momento, se contabilizam em €4.336,96 (quatro mil trezentos e trinta e seis euros e noventa e seis cêntimos) e os juros vincendos sobre os valores em dívida até integral e efectivo pagamento, à taxa legal dos juros comerciais.  

Alegou, para tal, que vendeu três máquinas à R., pelo preço total de €18.450,00, dos quais esta apenas pagou a quantia de € 5.000,00.

Mais alegou que, tendo dado de arrendamento à R. parte de prédio que identifica, denunciou tal contrato de arrendamento com efeitos no dia 29 de Fevereiro de 2016, sendo que a R. apenas lhe entregou o arrendado em 15 de Abril de 2016, concluindo dever-lhe a R. o valor em dobro da renda em vigor no último mês de contrato (a qual ascendia a € 1.980,25).

Prosseguiu dizendo que, aquando dessa entrega, a R. devia à A. diversas quantias relacionadas com serviços de vigilância e fornecimento de electricidade, contraídas no âmbito do contrato de arrendamento, conforme facturas que juntou.

Por fim, alegou que a R. deixou abandonadas máquinas velhas e sucatas numa área de um outro pavilhão, que a A. se viu obrigada a retirar com recurso à contratação de equipamento de grande porte. Posteriormente, em 15 de Abril de 2016, aquando da entrega das instalações à A., a R. voltou a deixar, dentro das instalações, os mesmos bens que já antes havia abandonado, obrigando novamente a A. a contratar os serviços de terceiro para remover tais bens, em tudo o que despendeu a quantia de € 1.230,00, que reclama da R.

A R. contestou alegando que apenas levantou as duas autoclaves Pozzi, no valor de € 2.500,00 cada uma, e que pagou, em Março de 2016, as máquinas entregues, nada devendo à A.

Continuou dizendo que as rendas devidas pelos arrendamentos tinham o valor de € 1.600,00 e de € 250,00 mensais e que, no fim-de-semana de 7 e 8 de Novembro de 2015, a A. entrou no segundo espaço arrendado, sem autorização da R. e contra a sua vontade, sem vestígios de arrombamento, tendo retirado um secador de malha, que carregou num percurso de 500 metros, descarregando-o num espaço coberto adjacente ao primeiro pavilhão arrendado à A., danificando a estrutura da máquina, apoios, almofadas laterais, tubagem e motores, sendo que só com a desmontagem da máquina se poderá ter noção correcta de outros danos infligidos para além daqueles que são visíveis.

Mais afirmou que a A. danificou o telhado do espaço onde a máquina foi colocada, impossibilitando a retirada da mesma aquando da entrega das instalações arrendadas pela R. à A. e que, após a saída da R. do espaço arrendado, a A. fez desaparecer tal máquina, a qual havia sido adquirida pelo preço de € 10.000,00 e teria, depois de intervencionada, um valor de venda de cerca de € 100.000,00.   

Ademais, alegou que, na sequência de reclamações efectuadas por causa de inundações decorrentes dos telhados estarem danificados, a A. começou a efectuar cortes de energia eléctrica, ficando a R. com os trabalhos paralisados, pelo que terminou deduzindo pedido reconvencional onde reclamou da A. quantia nunca inferior a € 30.000,00, relegando o valor a fixar para “execução de sentença”, por não se encontrar na posse da máquina “supra referida”.

A A. replicou, reafirmando ter vendido e entregue à R. três máquinas, que as máquinas foram abandonadas pela R. e que, face à necessidade de fazer obras de conservação, as mesmas foram retiradas depois de a A. instar a R. a fazê-lo durante mais de um ano.  

Mais alegou que, na comunicação feita pela R. em 20 de Julho de 2015, não é referida qualquer secadeira e que tudo o que a A. removeu para o alpendre coberto foi depois removido para a sucata cerca de um ano após a entrega das chaves do locado, tendo estado, até Janeiro de 2017, à disposição da R.

Terminou concluindo pela improcedência do pedido reconvencional, peticionando ainda a condenação da R. como litigante de má-fé em multa e indemnização a arbitrar pelo Tribunal.

Fundamentou a A. esta sua pretensão no facto de, alegadamente, a R., através do pedido de indemnização formulado com base na alegada danificação do secador de malha por ela deixada no locado, estar a tentar obter um benefício a que sabia não ter direito, “numa tentativa de enriquecimento ilícito à custa da A.” porquanto “ao abandonar as instalações da A. a R. apenas levou consigo os bens que lhe convinha e tinham algum valor, deixando para trás aqueles cuja remoção não era compensatória, face ao seu diminuto ou nulo valor”.

A R. não respondeu ao pedido de condenação em litigância de má-fé.


Por sentença de fls. 129 foi proferida a seguinte decisão:

Por tudo o exposto, decido:  

a). julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenar a Ré, BB, Unipessoal, Lda., a pagar à Autora a quantia de € 24.831,25 (vinte e quatro mil, oitocentos e trinta e um euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, calculados às taxas legais sucessivamente emergentes do disposto no artigo 559º do Código Civil, e até integral pagamento, desde: i). o dia 26 de Janeiro de 2016 sobre a quantia de € 13.450,00 (treze mil, quatrocentos e cinquenta euros); ii). o dia 21 de Dezembro de 2015 sobre a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros); iii). o dia 5 de Janeiro de 2016 sobre a quantia de € 1.980,25 (mil novecentos e oitenta euros e vinte e cinco cêntimos); iv). o dia 14 de Março de 2016 sobre a quantia de € 3.960,50 (três mil, novecentos e sessenta euros e cinquenta cêntimos); v). o dia 11 de Abril de 2016 sobre a quantia € 3.960,50 (três mil, novecentos e sessenta euros e cinquenta cêntimos); vi). o dia 7 de Novembro de 2017 sobre a quantia de € 1.230,00 (mil, duzentos e trinta euros), absolvendo-a no mais que vinha peticionado;

b). julgar a reconvenção totalmente improcedente e, em consequência, absolver a Autora do pedido reconvencional;

c). condenar a Ré como litigante de má fé na multa de 8 (oito) UC e, bem assim, no pagamento de uma indemnização à Autora no montante de € 800,00 (oitocentos euros).”


Inconformada, a R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de fls. 220 a impugnação da matéria de facto foi julgada improcedente e, a final, foi proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:

- Julgar parcialmente procedente a apelação, anulando a sentença recorrida no que tange à condenação por litigância de má fé e mantendo-a em tudo o mais;

- Condenar a Ré como litigante de má fé no pagamento de multa que se fixa em 8 UC.”


2. Vem a R. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“1 - O acórdão dos autos é nulo por absoluta falta de pronúncia às premissas das conclusões 1 a 1.7.

2 – A recorrente não deduziu pretensão infundada.

3 – A primeira discordância do acórdão recorrido passa por referir que o não lograr provar não é litigar de má-fé.

3.1 - O não lograr provar leva ao insucesso da pretensão.

3.2 - Ao deduzir contestação a recorrente tinha consciência de que teria de provar os factos constantes da mesma para que a mesma fosse julgada procedente.

3.3 – A recorrente não deduziu pretensão infundada ou alterou a verdade dos factos. Senão vejamos:

3 – Das declarações de parte e da declaração das testemunhas da autora somos levados à conclusão que a máquina não foi entregue e que a caixa de comando da mesma, nunca foi entregue, ainda se achava encastrado na parede e por último, que a máquina sem tal comando não funciona.

4 – Nenhuma censura merece o comportamento do opoente, nos termos art. 542 CPC

5 – A “nova” condenação da recorrente como litigante de má-fé, uma vez que a condenação da recorrente como litigante de má fé foi revogada pelo Tribunal recorrido,

6 – A condenação de má-fé ora aplicada teria de ser precedida de audição da parte a sancionar, sob pena de se violar o princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisão-surpresa, cometendo-se nulidade que influi na decisão da causa, sendo que tal omissão infringe os princípios constitucionais da igualdade, do acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa.

Termos em que deve ser julgado a presente revista ser julgada procedente por provada e a recorrente absolvida da condenação como litigante de má-fé”


         A Recorrida contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

“- Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

- Conforme resulta do Acórdão Recorrido “a parte tem o dever de não deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a decisão da causa; de não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão; de não praticar omissão grave do dever de cooperação, tal como ele resulta do disposto nos arts. 266º e 2664 [sic].

- Se, intencionalmente, ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, a parte violar qualquer desses deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeito a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má fé»

- Quando houverem que fazer valer os direitos em juízo, têm as partes de agir com verdade e probidade: sobre elas impende, com efeito, «o dever de, conscientemente, não formular pedidos ilegais, não articular factos contrários à verdade, nem requerer diligências meramente dilatórias». Sobre as partes impende, ao cabo e ao resto, um dever geral de boa fé

- A violação deste dever de verdade e probidade constitui litigância de má fé,

- Porém para a condenação como litigante de má fé tal implica o exercício do contraditório que foi exercido aquando do recurso apresentado no Tribunal da Relação

- A entrega do locado foi voluntária

- A Recorrente através do pedido de indemnização formulado com base na alegada danificação do secador de malha por ela deixada no arrendado, estar a tentar obter um benefício à que sabia não ter direito, “numa tentativa de enriquecimento ilícito à custa da Recorrida”

- Na verdade a Recorrida quando abandonou as instalações e procedeu à entrega efectiva apenas levou consigo os bens que lhe convinha e tinham algum valor, deixando para trás aqueles cuja remoção não era compensatória, face ao seu diminuto ou nulo valor.

- A parte que nega factos pessoais que não podiam deixar de ser do seu conhecimento e que vieram a provar-se, litiga com dolo caracterizador da litigância de má fé.

- Pelo que não merece qualquer reparo a condenação da Recorrente como Litigante de Má fé no pagamento de multa que se fixou em 8 UC.

- Assim, a douta decisão do Tribunal “a quo” deve ser mantida nos seus precisos termos.”


      Por acórdão da conferência de fls. 265 a Relação deu como não verificadas as invocadas nulidades.


3. Suscitou-se dúvida sobre a admissibilidade do presente recurso por, estando em causa unicamente a decisão de condenação do réu por litigância de má-fé, autónoma em relação ao objecto principal da acção, se admitir que fora já assegurado um grau de recurso, tal como imposto pelo art. 542º, nº 3, do CPC, e não estar preenchido o pressuposto geral de recorribilidade do valor mínimo de sucumbência (art. 629º, nº 1, do CPC).

     Notificadas as partes, veio a Recorrente declarar que a decisão de condenação como litigante de má-fé do acórdão recorrido não foi ainda reapreciada em sede recursória, uma vez que a condenação por litigância de má-fé da sentença foi anulada pela Relação.

      Efectivamente, o acórdão recorrido julgou parcialmente procedente a apelação, anulando a decisão de condenação da R. como litigante de má-fé, com fundamento em nulidade por violação do princípio do contraditório; e, em substituição da 1ª instância, reapreciou a questão, proferindo nova condenação por litigância de má-fé.

      Assim sendo, nos termos do art. 542º, nº 3, do CPC, tal decisão é susceptível de impugnação pelo que o recurso é admissível, circunscrito à apreciação da decisão de condenação da R. como litigante de má fé.


4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias):

1. A Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto social o exercício da indústria e comércio de fios têxteis, tecidos e acabamentos, do comércio por grosso de têxteis e bens do consumo, do estudo, planificação e realização de actividades industriais e comerciais que sejam complementares, subsidiárias ou acessórias das referidas e gestão de parques industriais, bem como compra e venda, revenda, e administração de bens móveis e imóveis, e respectiva prestação de serviços – cfr. documento de fls.9 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

2. Por sua vez a Ré é uma sociedade comercial que tem por objecto social o comércio por grosso, importação, exportação, fabrico e montagem de máquinas para a indústria têxtil, de vestuário e de calçado e para outras indústrias transformadoras, instalação, manutenção, reparação e assistência técnica e representação de marcas – cfr. documento de fls.15 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

3. A Autora é proprietária e possuidora do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito no Lugar …, freguesia de …, concelho de …, descrito no Registo Predial sob o n.º 51673 e inscrito sob o artigo matricial n.º 346, conforme certidões do registo predial e matricial de fls.20 a 23 verso.

4. Por contrato de arrendamento celebrado em 15 de Fevereiro de 2011, a A. declarou dar de arrendamento à R., que declarou tomar, uma parte do prédio acima descrito, mais concretamente “a área de aproximadamente 1.170 m2 no armazém assinalada na planta que constitui o anexo I, destinada a produção industrial (parte do prédio urbano com registo predial n.º 51673 e inscrição matricial n.º 346)”, – cfr. documento de fls.24 e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

5. Acordaram as partes que a R. pagaria à A. uma renda mensal no valor de 1.600,00 €, actualizada anualmente em função dos coeficientes publicados para o efeito.

6. Ficou ainda estabelecido na cláusula 7ª no referido contrato, que a A. se obrigava “(…) a fornecer à 2ª contraente todo o ar comprimido que esta necessite para o funcionamento das suas máquinas, assim como a permitir-lhe o consumo de energia e água necessária ao funcionamento da Fábrica (…)” – cfr. documento de fls.24 e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

7. Em 10 de Fevereiro de 2015, por carta registada enviada pela A. e recebida pela R, foi comunicada a denúncia/oposição da A. à renovação do contrato de arrendamento celebrado, com produção dos seus efeitos em 29 de Fevereiro de 2016 – cfr. documento de fls.32 e seg., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

8. Foram enviadas pela A. à R. várias comunicações em diversas ocasiões desde 19 de Janeiro de 2015 até 23 de Maio de 2016 – cfr. documento de fls.27 verso a 31 verso, de fls.33 verso a 44 e de fls.89 verso a 92, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

9. A Autora, antes denominada de CC, S.A., alterou a sua denominação para AA, S.A., em 10 de Novembro de 2014.

10. No supra referido contrato de arrendamento A. e Ré acordaram ainda que “São da responsabilidade da 2ª contraente o pontual pagamento dos aludidos consumos, designadamente de electricidade, água, vapor e serviços comuns tais como vigilância, limpeza de áreas comuns e outros sob pena de interrupção do respectivo fornecimento.”, conforme cláusula 8ª do documento de fls.24 e seg.

11. Em Outubro de 2014 a Ré, no exercício da sua actividade comercial, adquiriu à A. as seguintes três máquinas descritas na factura nº (7..0)2014.000…, emitida em 15.10.2014 e com vencimento em igual data, pelo preço de € 18.450,00: a) Uma Autocalve, marca Pozzi, modelo B; b) Uma Autocalve, marca Pozzi, modelo B; c) Uma Máquina de tingir Obermayer nº 7.

12. Tais máquinas foram entregues e a factura enviada à R. que as recebeu e delas não reclamou.

13. Até à presente data, a Ré apenas pagou, por conta desse preço e em 23 de Março de 2015, o valor de € 5.000,00.

14. Não obstante ter sido interpelada para restituir o arrendado no dia 29 de Fevereiro de 2016, a Ré entregou as chaves do locado em 15 de Abril de 2016.

15. A R. não pagou a quantia de 250,00€, correspondente a parte da Factura FA 2015/2…1 no valor de 1.980,25 € emitida em 21-12-2015, e com vencimento na mesma data, referente à renda do mês de Janeiro de 2016, da qual a R. liquidou a importância de 1.730,25€.

16. A R. não pagou a quantia de 1.980,25 €, correspondente à Factura FA 2016/… no valor de emitida em 05-01-2016 e com vencimento na mesma data, referente à renda do mês de Fevereiro de 2016.

17. A R. não pagou a quantia de 3.960,50 € correspondente à Factura FA 2016/3…, emitida em 14-03-2016 e com vencimento na mesma data, referente à renda do mês de Março de 2016, acrescida do valor da indemnização a que alude o artigo 1045º do CC.

18. A R. não pagou a quantia de 3.960,50 € referente à Factura FA 2016/…1, emitida em 11-04-2016 e com vencimento na mesma data, referente à renda do mês de Abril de 2016, acrescida do valor da indemnização a que alude o artigo 1045º do CC.

19. A Ré não pagou a quantia de 307,50 €, correspondente à Factura FA 2016/…8, emitida em 31-03-2016 e com vencimento na mesma data, referente a serviços de vigilância prestados pela Autora à Ré no mês de Março de 2016.

20. A Ré não pagou a quantia de 3,23 €, correspondente à Factura FA 2016/…3, emitida em 22-04-2016 e com vencimento na mesma data, referente a serviços de electricidade prestados no mês de Março de 2016.

21. A Ré não pagou a quantia de 6,47 € correspondente à Factura FA 2016/7… emitida em 05-05-2016 e com vencimento na mesma data, referente a serviços de electricidade prestados pela Autora à Ré no mês de Abril de 2016.

22. Para além da área referida no contrato de arrendamento celebrado entre A. e R. esta ocupou também uma outra área localizada noutro pavilhão do prédio da A..

23. A Ré aceitou desocupar essa outra área entregando-a à A. e daí retirou os bens e equipamentos que lá se encontravam armazenados com excepção do referido em I.25.

24. A Ré transportou tais bens e equipamentos para o corredor amplo fronteiro às instalações que havia arrendado, o qual R. isolou, vedando-o a toda a volta, por forma a ficar afecto ao seu uso exclusivo.

25. A Ré deixou no local referido em I.23 quatro módulos de uma máquina.

26. A A. retirou os módulos deixados no local pela R. e para os quais era necessário a contratação da utilização de equipamento de grande porte.

27. O que fez depositando tais módulos debaixo de um alpendre existente nas instalações pertencentes à A. e que é contíguo às instalações arrendadas à R.

28. Em 15 de Abril de 2016, aquando do referido em I.14, a R. voltou a deixar no alpendre onde se encontravam depositados, aqueles mesmos módulos que anteriormente havia deixado noutra parte do prédio.

29. O que levou a A., uma vez mais, a contratar os serviços de terceiro para que efectuasse a sua remoção, em Janeiro de 2017, desta vez para a sucata.

30. O que fez numa e noutra ocasião, só depois de repetidamente ter instado a R. para que procedesse à retirada da totalidade dos bens que lhe pertenciam e havia deixado nas instalações da A.

31. Até à data referida em I.29, os bens estiveram sempre à disposição da Ré.

32. A A. suportou o custo da remoção referida em I.29 no valor de 1.230,00€, conforme factura nº 00001/3…7 emitida em 11-01-2017, com vencimento na mesma data.

33. O referido em I.26 e I.27 foi feito num fim de semana, em dia não concretamente apurado de Novembro de 2015 e em momento posterior ao referido em I.23.

34. Para tal, a A. entrou, sem vestígios de arrombamento, na área referida em I.22.

35. A Ré participou à sua seguradora DD a entrada de água da chuva através da cobertura, no dia 20 de Outubro de 2015.

36. O seguro de recheio celebrado pela R. não cobria a situação referida em I.35 por imputar a entrada de água da chuva ao deficiente estado de conservação do telhado do edifício.

37. Numa inspecção às instalações arrendadas à R., a A. descobriu que existia um cabo que, através dessas instalações, permitia o fornecimento de energia eléctrica a terceiros através do contador da A.

38. Em 2 de Novembro e em 18 de Novembro de 2015, a A. deu conhecimento do referido em I.37 à Ré para que esta pusesse termo tal situação, conforme missivas de fls.89 verso e seg. e de fls.91 e seg. (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

39. O espaço referido em I.22 foi dado de arrendamento à Ré pela Autora, data não concretamente apurada, contra o pagamento de € 250,00.

40. No ano de 2016 e fruto das sucessivas actualizações mensais, o valor da renda ascendia a € 1.980,25. 

Ao invés, foram considerados não provados os seguintes factos:

1. A R. apenas levantou as duas autoclaves Pozzi, no valor de € 2.500,00, cada uma.

2. A R. nunca levantou a máquina Obermayer n.º 7, no valor de € 10.000,00.

3. Em Março de 2016, a R. pagou as máquinas entregues pela autora.

4. O referido em I.39 ocorreu em Dezembro de 2012.

5. O valor de € 250,00 foi englobado na factura da renda.

6. A operação referida em I.26 e I.27 danificou os módulos da máquina (secadeira de malha Babcook), nomeadamente a estrutura da máquina (parte de baixo e de cima), os apoios, as almofadas laterais, a tubagem e os motores.

7. Só quando tal máquina for desmontada é que a R. poderá ter noção correcta de outros danos infligidos e não visíveis.

8. Para colocar tal máquina naquele espaço a A. danificou o telhado do alpendre e impossibilitou a retirada da máquina aquando da entrega das instalações arrendadas pela R. à A.

9. A máquina (secadeira de malha Babcook) foi adquirida pelo preço de € 10.000,00.

10. Depois de intervencionada a máquina atinge preço para venda de cerca de € 100.000,00.

11. Os locais arrendados à R., na sequência de mau tempo, ficaram com os telhados danificados.

12. O que começou a causar inundações nos armazéns arrendados à R.

13. A R. reclamou de tal situação perante a A., sem nenhum resultado.

14. Quando a R. começou a efectuar tais reclamações, a R. ficou desprovida de energia eléctrica em consequência de cortes de energia levados a efeitos pela A..

15. Tais cortes eram recorrentes.

16. Tais cortes chegaram a prolongar-se por dois ou três dias.

17. Tais cortes visavam a desocupação dos espaços arrendados.

18. Tendo a R. de se socorrer de geradores para não ter os seus trabalhadores impossibilitados de trabalhar e para poder receber os seus clientes e fornecedores.

19. O referido de II.6 a II.18 gerou prejuízos à R. em montante nunca inferior a € 30.000,00.

20. O referido em I.23 ocorreu por acordo verbal celebrado entre A. e Ré.

21. O referido em I.26 e I.27 foi feito contra a vontade e sem autorização da Ré.


5. A Recorrente suscita as seguintes questões:

- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto às conclusões 1 a 1.7 do recurso de apelação;

- Falta de fundamento para a condenação da R. como litigante de má-fé;

- Violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisões surpresa, da condenação da R. como litigante de má-fé, incorrendo-se assim em desrespeito dos princípios constitucionais da igualdade, do acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa.


Compulsada a apelação, verifica-se que as conclusões 1 a 1.7 incidem exclusivamente sobre a impugnação da matéria de facto a respeito da facturação no âmbito das relações do contrato de arrendamento celebrado entre as partes. Ora, o fundamento da condenação por litigância de má-fé consiste na censura do comportamento da R. ao, a respeito da entrega da máquina Obermayer pela A., ter negado factos pessoais que não podiam deixar de ser do seu conhecimento.

Verifica-se pois que a alegada nulidade não tem qualquer conexão com a questão da condenação por litigância de má-fé, à qual, como supra enunciado (ponto 3 do presente acórdão) se circunscreve o objecto do recurso de revista.

Conclui-se, assim, pelo não conhecimento da alegada nulidade.


6. Quanto à apreciação da questão da condenação por litigância de má-fé importa ter presente o processado:

- Tendo a R. deduzido pedido reconvencional de condenação da A. a pagar-lhe indemnização por danos causados a bens que àquela R. pertenciam, replicou a A. opondo-se a tal pretensão e peticionando a condenação da R. no pagamento de multa e de indemnização por litigância de má-fé, uma vez que os bens em causa foram pela mesma R. abandonados no locado;

- A sentença condenou a R. ao pagamento de multa e de indemnização por litigante de má-fé com fundamento em censura do seu comportamento, a respeito da entrega da máquina Obermayer pela A., ao ter negado factos pessoais que não podiam deixar de ser do seu conhecimento;

- Em sede de apelação a R. suscitou a nulidade desta decisão por violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisões surpresa;

- A Relação reconheceu o invocado vício, anulando a decisão de condenação da R. como litigante de má-fé; e, em substituição da 1ª instância, apreciando oficiosamente a verificação dos pressupostos da litigância de má-fé e proferindo, com fundamento idêntico ao da 1ª instância, decisão de condenação da R. ao pagamento de multa como litigante de má-fé.


Inconformada, vem a R. Recorrente invocar as questões supra indicadas:

- Falta de fundamento para a sua condenação como litigante de má-fé;

- Violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisões surpresa, da sua condenação como litigante de má-fé, incorrendo-se assim em desrespeito dos princípios constitucionais da igualdade, do acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa.

Vejamos.


6.1. Quanto à alegada violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisões surpresa, a simples descrição do processado, revela não ter a Recorrente razão. Se é certo que, na 1ª instância, não lhe fora dada oportunidade de se pronunciar sobre o concreto fundamento pelo qual a sentença a condenou como litigante de má-fé – o que foi reconhecido pelo acórdão da Relação com a consequente anulação da decisão da sentença, nesta parte – já o mesmo não sucede a respeito da nova decisão de condenação como litigante de má-fé, proferida pela Relação. Com efeito, havendo identidade de fundamento de uma e outra condenação, tiveram as partes ocasião de sobre ele se pronunciarem nas alegações e contra-alegações da apelação, o que, aliás, fizeram a fls. 194v e segs. e a fls. 211, respectivamente.

Conclui-se, assim, não se verificar a alegada violação do princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisões surpresa e, em consequência, não existir desrespeito dos invocados princípios constitucionais da igualdade, do acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa.


6.2. Quanto à questão da alegada falta de fundamento para a condenação da R. como litigante de má-fé vejamos o teor da fundamentação da decisão da Relação:


“Por último, anulada que foi a decisão da primeira instância no que tange à litigância de má fé e não tendo, por outro lado, ocorrido qualquer alteração à matéria de facto considerada, impõe-se a este tribunal, ponderar, em substituição da primeira instância, a questão da eventual violação do dever de verdade e probidade a que alude a própria Recorrente.

   Com efeito, forçoso é reconhecer que, provado que a máquina Obermayer foi entregue pela Autora à Ré (cfr. ponto I.12 dos factos provados), quando a Ré alegava o contrário, ou seja, que nunca tinha levantado tal máquina e que pagou o preço das máquinas que lhe foram entregues (cfr. artigos 6º e 7º da douta contestação), demonstrado foi um facto incompatível com a versão trazida aos autos pela Ré, de onde se conclui pela inveracidade do, a este respeito, alegado.

E o comportamento da Ré não pode deixar de se considerar censurável, porquanto a ré negou factos pessoais que não podiam deixar de ser do seu conhecimento e que vieram a provar-se, litigando, pois, com dolo caracterizador da litigância de má fé.

Ora, “como resulta do disposto no artigo 456º.nº1, do C.P.C., a condenação em multa como litigante com má fé não depende de pedido da parte, podendo/devendo, como é evidente, o Tribunal efectuá-la desde que se verifiquem os respectivos pressupostos” – cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 20.11.2014 (Relator Jorge Teixeira).

Estabelece o art. 27º nº 3 do Regulamento das Custas Processuais que, nos casos de condenação por litigância de má fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC.

E, segundo o nº 4 do referido artigo, “o montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste”.

No caso, a má fé processual em causa conduziu à necessidade de um significativo labor acrescido no que concerne à instrução do processo e à decisão relativa à matéria de facto, pelo que, estando em causa uma sociedade comercial e não resultando dos autos uma especial vulnerabilidade económica da mesma, decide-se fixar a multa a aplicar à Ré em 8 UC, valor que, tendo em conta a amplitude da moldura legalmente prevista, se considera adequado, não havendo risco, face ao seu reduzido montante, de ter sérias repercussões no património da Ré, sendo ainda certo que “o caráter desmotivador da aplicação da sanção”, também não permite que o valor da multa seja “irrisório”. (Acórdão da Relação de Lisboa de 08.03.2017).”


        Dispõe o nº 2 do art. 542º do Código de Processo Civil o seguinte: “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: (…) b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; (…)”.


Vejamos.

Compulsada a contestação, constata-se que, nos respectivos artigos 6º e 7º, a R. alegou que “nunca levantou a máquina Obermayer nº 7, no valor de € 10.000,00” e que “em Março de 2016 pagou as máquinas entregues e levantadas pela autora”


Ora, foram dados como provados os seguintes factos:

11. Em Outubro de 2014 a Ré, no exercício da sua actividade comercial, adquiriu à A. as seguintes três máquinas descritas na factura nº (7…0)2014.000…, emitida em 15.10.2014 e com vencimento em igual data, pelo preço de € 18.450,00: a) Uma Autocalve, marca Pozzi, modelo B; b) Uma Autocalve, marca Pozzi, modelo B; c) Uma Máquina de tingir Obermayer nº 7.

12. Tais máquinas foram entregues e a factura enviada à R. que as recebeu e delas não reclamou.


       Da motivação da sentença, a fls. 138v e segs. resulta que a entrega das três máquinas indicadas no facto 11 se fundou, em larga medida, na carta de fls. 37, endereçada pela R. à A. Deste modo, confirma-se encontrar-se preenchido o pressuposto do art. 542º, nº 2, alínea b), do CPC, uma vez que a R. negou factos pessoais que não podiam deixar de ser do seu conhecimento e que vieram a provar-se, actuando assim dolosamente pelo que é de manter a sua condenação como litigante de má-fé no pagamento de multa no valor fixado, o qual não foi impugnado autonomamente.


7. Pelo exposto, decide-se:

a) Não tomar conhecimento da alegada nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto às conclusões 1 a 1.7 do recurso de apelação;

b) No mais, julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão do acórdão recorrido de condenação da R. como litigante de má-fé no pagamento da multa no valor fixado.


Custas pela Recorrente.


Lisboa, 4 de Julho de 2019


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho