Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4064/18.2T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
PRISÃO PREVENTIVA
FUNÇÃO JURISDICIONAL
PRISÃO ILEGAL
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - Para haver lugar condenação do Estado a indemnizar por prisão preventiva, em acção declarativa própria, o autor carece de demonstrar que se verifica uma qualquer das hipóteses tipificadas no art. 225º, nº1, do CPPenal;

II - Nem a Constituição nem a lei impõe o dever de indemnizar todo e qualquer arguido absolvido, ou que não tenha chegado a ser pronunciado, a quem anteriormente tenha sido aplicada a medida de prisão preventiva.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA e BB demandaram o Estado Português na presente ação declarativa,  pedindo a condenação do R. a pagar a quantia de € 60.000,00 a favor de cada um dos AA., acrescida de juros à taxa legal a partir da citação, ao abrigo do disposto no art. 225, n° 1, als. b) e c), do Código de Processo Penal.

           

Invocam, para tanto e em breve síntese, que, na sequência de diversos erros grosseiros do Juiz de Instrução Criminal, estiveram em prisão preventiva durante 181 dias, sob a imputação de abuso sexual da enteada do A. AA e filha da A. BB, acabando por ser libertados face a decisão de não pronúncia pela prática desses factos, decisão que veio a ser confirmada por Acórdão da Relação de Lisboa. Mais referem pretender fazer a prova da sua inocência para os efeitos de preenchimento da al. c) do nº 1 do art. 225 do C.P.P., invocando ainda que a prisão preventiva sofrida causou aos AA. profundos danos de natureza não patrimonial pelos quais devem ser ressarcidos.


O Réu contestou impugnando a factualidade alegada, concluindo pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.


Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente com a consequente absolvição do Réu, Estado Português, do pedido.


Inconformados, os AA apelaram, mas sem sucesso, pois que a Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e confirmou a sentença.

           

Ainda inconformados, os AA interpuseram recurso de revista excepcional, que foi admitida.           


Os Recorrentes concluem do seguinte modo a sua alegação:            

A) O recurso de revista tem por objecto a errada aplicação ao caso concreto do regime do art. 225.º, n.º 1-c) do CPP.

B) Os restantes segmentos – relativos ao indeferimento da apelação no que diz respeito aos erros grosseiros que se entendeu serem subsumíveis ao regime do art. 225.º, n.º 1-b) do CPP – não são objecto da presente revista. Não porque os ora Recorrentes tenham ficado convencidos com a argumentação da Relação, mas porque se admite que, em face da dupla conforme, não seriam susceptíveis de se enquadrar no regime da revista excepcional.

C) De qualquer forma, a consideração desses erros grosseiros cometidos, devidamente conjugadacom ademaismatériadadacomo assente, é também convocada para o efeito de avaliar se a situação dos autos se inscreve ou não no âmbito do regime do art. 225.º, n.º 1-c) do CPP.

D) O acórdão recorrido sustenta que não procede o fundamento da acção fundado no art. 225.º, n.º 1 do CPP, porque os AA. não teriam feito a prova de que não praticaram os crimes em apreço (nem no processo ao abrigo do qual estiveram presos preventivamente, nem nesta acção).

E) Os Recorrentes entendem que seria irrazoável e desproporcionado exigir aos AA. que tivessem de vir fazer, nesta acção, a prova – insofismável – da sua inocência. Essa seria, de resto, uma prova praticamente impossível.

F) O Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido de “Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, n.º 1, e 32.º, n.º 2, da Constituição, o artigo 225.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, interpretado no sentido de se não considerar que não foi agente do crime ou atuou justificadamente o arguido a quem foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo”. (cfr. acórdão n.º 284/2020, de 28.05.2020).

G) Louvando-nos nessa jurisprudência, defendemos, que o art. 225.º, n.º 1-c) do CPP, interpretado no sentido que o direito à indemnização, pelos danos sofridos por prisão preventiva imposta a quem veio a ser absolvido (ou nem sequerpronunciado), depende do titular do direito fazer prova – no processo em que foi absolvido ou na subsequente acção de indemnização – de que não praticou o crime que lhe fora imputado, como decidiu a Relação no acórdão recorrido, é inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32.º, n.º 2 da CRP, como julgou o TC no citado aresto, bem como do princípio da igualdade, como, nesse acórdão, consta da declaração de voto de COSTA ANDRADE.

H) Se assim é relativamente a quem foi absolvido in dubio pro reo, por maioria de razão, também é para quem, como acontece no caso dos autos, nem sequer foi pronunciado, por o juiz de instrução ter considerado que “seria muito mais provável a absolvição dos arguidos” do que a sua condenação, considerando a fragilidade dos indícios apurados.

I) Ademais, no caso em apreço, pode ainda convocar-se a fragilidade dos indícios, como resulta da incoerência das sucessivas declarações da alegada vítima, nos termos contantes do probatório, bem como da matéria factual subjacente aos três erros grosseiros identificados na apelação, supra reproduzidos, ou seja, a circunstância de, no decretamento da prisão preventiva, não ter sido expressamente invocada a existência de fortes indícios, a nulidade das declarações para memória futura (por falta de advogado dos arguidos) e da falta de efectivo reexame dos pressupostos da prisão preventiva, aquando dos reexames efectuados em 12/04/2016 e 01/07/2016.

J) Tudo considerado, não pode deixar de se concluir que, com elevada probabilidade, e para os efeitos desta acção, os ora Recorrentes não foram efectivamente os agentes do crime que lhes fora atribuído.

K) De qualquer forma, bastaria a circunstância de os arguidos não terem chegado a ser pronunciados, porque o juiz de instrução que decidiu a não pronúncia – decisão confirmada pela Relação de Lisboa – concluiu que, em face das manifestas incongruências do processo, não havia sequer condições para levar os ora Recorrentes a julgamento, defendendo que seria mais provável a sua absolvição do que a sua condenação, para se poder concluir que os ora Recorrentes têm direito a serem indemnizados ao abrigo do regime do art. 225.º, n.º 1-c) do CPP.

L) Com efeito, in casu, a decisão de não pronúncia, devidamente confirmada por um tribunal superior, assegura, para os efeitos do art. 225.º, n.º 1-c) do CPP, que se devem considerar que os ora Recorrentes não foram agentes do crime, tendo direito a ser indemnizados pelos danos sofridos a que foram submetidos.

M) Não é aceitável que quem nem chega a ser pronunciado tenha de vir a fazer a prova da sua inocência. E, no caso dos autos, isso seria de sobremaneira irrazoável.

N) O acórdão recorrido sustenta que não é inconstitucional “por violação do art.27, nº 5, da C.R.P., ou de qualquer outro preceito daquela Lei Fundamental, a norma constante da al. c) do nº 1 do artigo 225 do C.P.P. entendida no sentido de que não pode beneficiar da indemnização aquele que, não tendo sido pronunciado pelo crime que determinou a sua prisão preventiva, não logrou provar, designadamente na ação de indemnização, que não praticou o crime”.

O) Outrossim, os Recorrentes sustentam que tal entendimento normativo é inconstitucional, por violação do art. 27.º, n.º 5 da CRP, bem como dos princípios constitucionais           da presunção   da            inocência,        da proporcionalidade e da igualdade, uma vez que: i) quanto ao art. 27.º, n.º 5 da CRP, tal entendimento restringiria de uma forma irrazoável o dever de indemnizar que esse preceito legal estabelece a favor de quem foi injustificadamente privado da sua liberdade; ii) relativamente ao princípio da presunção da inocência, uma vez que, não tendo o arguido sido pronunciado, violaria tal princípio que, para o efeito de ser atribuída uma indemnização pela prisão preventiva, o lesado tivesse de provar positiva e adicionalmente a sua inocência; iii) relativamente ao princípio da proporcionalidade, porque, não tendo sequer havido pronúncia, não tem justificação razoável , estabelecer esse ónus (de provar a inocência) a cargo da vítima, iv) relativamente ao princípio da igualdade, porque, afastada irreversivelmente a responsabilidade penal do lesado no processo próprio, estabelecer esse ónus contra quem não foi pronunciado o ofenderia, uma vez que o ex-arguido foi libertado de tal ónus de forma absoluta, tendo o direito a ser tratado como todos os outros cidadãos.

DO MONTANTE INDEMNIZATÓRIO

P) Aqui chegados, devemos dar por estabelecido que os AA. têm direito a ser indemnizados, nos termos previstos no art. 225.º, n.º 1-c) do CPP.

Q) Na sentença de 1.ª instância, nessa parte confirmada pelo acórdão recorrido, deu-se como provado o seguinte:

«54. Os Autores sofreram intensamente com a situação de prisão preventiva a que foram sujeitos e com a interposição de recurso da decisão instrutória de 14.09.2016 pelo Ministério Público, que os fez temer por uma reviravolta processual que os pudesse levar novamente à prisão.

55. Mais revoltados se sentiram ao perceber que eramtotalmente impotentes perante tal acusação, em razão das declarações de CC.

56. A prisão preventiva dos Autores foi do conhecimento do meio familiar onde se inserem, pessoas que tomaram conhecimento de que as imputações que lhes eram dirigidas tinham a ver com abusos sexuais cometidos sobre a menor CC, enteada do Autor AA e filha da Autora BB.

57. Os Autores sentiram uma enorme vergonha pela situação em que se encontravam, temendo que as pessoas não acreditassem neles e os julgassem responsáveis por esses atos de abuso sexual.

58. Os Autores sentiram-se injustiçados e desesperados.

59. Os Autores recearam ir passar anos na prisão, com a comunidade a julgá-losresponsáveis por crimes que não assumiram cometer.

60. Os Autores sentiram uma grande revolta contra os poderes do Estado e uma grande descrença na vida.

61. O Autor foi agredido na prisão por um guarda prisional que veio a ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos; e pela prática de um crime de injúria agravada na pena de multa de 60 dias, à taxa diária de 10 euros.

62. Atualmente os Autores continuam a sofrer com a experiência por que passaram, a qual os traumatizou para o resto da vida.

63. Os Autores sentem que vão continuar a sofrer as sequelas da prisão a que foram submetidos.»


R) Ponderando esses factos, particularmente o intenso sofrimento de que os ora Recorrentes continuam a padecer, as trágicas consequências que isso teve para a sua vida pessoal e familiar, o sentimento de vergonha, injustiça, desespero e revolta que sentiram e sentem, julga-se adequado fixar a indemnização prevista no artigo 225.º, n.º 1-c) do CPP, em sede de danos não patrimoniais, no valor de €60.000,00 a cada um dos ora Recorrentes, considerando um valor médio de €10.000,00 por cada mês de prisão.


O Estado, representado pelo Ministério Público, contra alegou, pugnando pela improcedência do recurso e a confirmação do acórdão, tendo apresentado as seguintes conclusões:

- O Acórdão recorrido aplicou correctamente o disposto no art. 225º, nº 1 c) do C. Processo Penal, preceito este que não se revela inconstitucional por violação do princípio in dubio pro reo (art. 32º, nº 2 da CRP), nem por violação do princípio da igualdade (art. 13º, nº 1 da CRP) nem qualquer outro.

- Nenhuma indemnização é, pois, devida pelo Estado aos recorrentes.

- O Acórdão recorrido deve ser mantido, por não ter violado qualquer preceito legal ou princípio constitucional.

           

Dispensados os vistos, cumpre decidir.


///


Fundamentação.

No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:

1) Os ora Autores casaram um com o outro, na Conservatória do Registo Civil ..., em 19 de novembro de 2005.

2) A ora Autora é mãe de CC, nascida em .../.../1998; e de DD.

3) A Autora é natural de ..., Estado de Minas Gerais.

4) Os aqui Autores viveram, certo período de tempo, no Brasil, após o seu casamento, tendo vindo viver definitivamente para Portugal em 2007.

5) Mais tarde, juntaram-se aos Autores, os acima identificados CC e DD, com quem viviam na mesma casa; o que, no caso da CC, ocorreu cerca do ano de 2009 e, no caso de DD, mais tarde.

6) À data da sua gravidez, CC já tinha tido relações sexuais com três rapazes.

7) Pelo menos, em abril de 2015, os Autores tomaram conhecimento de que CC estava grávida, então, com 4/5 meses de gravidez, desconhecendo-se quem era o pai da criança.

8) Nessa sequência, a Autora decidiu encaminhar CC para uma instituição, tendo começado por levá-la à Ajuda de Mãe, que a reencaminhou para internamento na Santa Casa da Misericórdia ....

9) Já durante esse internamento, nasceu EE, em .../.../2015, filho de CC.

10) Em 19.05.2015, na Ajuda de Mãe, CC terá referido que o pai do bebé ainda não sabia que ela estava grávida, e que a gravidez era fruto de encontros pontuais que manteve com essa pessoa num curto espaço de tempo.

11) Em 26.05.2015, CC terá revelado, no atendimento da CPCJ ..., que o pai de EE era FF.

12) Em 29.06.2015, na Santa Casa da Misericórdia ..., CC terá dito — após ter sido perguntada pela psicóloga GG se EE seria filho do padrasto — que o ora Autor não era o pai da criança, mas sim o seu irmão DD.

13) Em 03.07.2015, terá confidenciado a uma auxiliar da instituição onde estava internada que a psicóloga GG a havia obrigado a dizer que era DD, o pai de EE, afirmando, novamente, que o pai de EE era FF.

14) Mais tarde, em 30.11.2015, no âmbito do processo de averiguação oficiosa da paternidade do menor EE (Processo n.° 3957/15...., a correr termos na Comarca ... — MP — ... — .... Central — Fam. Menores), CC torna a afirmar que o pai de EE era FF, com quem namoraria e com quem teria tido relações sexuais em 23 de dezembro de 2014, em casa deste.

15) Em 02.02.2016, na Santa Casa da Misericórdia ..., terá dito que o padrasto, ora A., AA, era o pai de EE.

16) Em 11.02.2016, na mesma instituição, terá ainda dito que a mãe, ora Autora, BB, tinha conhecimento dos abusos, porque os viu.

17) CC foi chamada a prestar declarações, na Polícia Judiciária, em 16.02.2016; e no Tribunal de Instrução Criminal, em declarações para memória futura, em 15.03.2016.

18) Nestas últimas declarações, CC manteve a versão dos factos segundo a qual o aqui Autor abusava dela sexualmente, do que a Autora teria conhecimento, nada fazendo para impedir que tais abusos ocorressem.

19) Em 16.03.2016, os aqui Autores foram detidos para serem presentes ao Juiz de Instrução Criminal, tendo, depois de prestarem declarações em 18.03.2016, sido ordenada a sua prisão preventiva, à ordem do NUIPC 90/16...., com fundamento na existência de indícios de abuso sexual perpetrado sobre a referida CC e perigo de fuga.

20) Essa situação de prisão preventiva foi mantida por despacho do Juiz de Instrução de 22.04.2016 e de 01.07.2016.

21) Por despacho de não pronúncia proferido em 14 de Setembro de 2016, confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa por Acórdão de 15 de Fevereiro de 2017 (que não se mostra ter sido alvo de recurso) vieram os autos a ser arquivados e os Autores restituídos à liberdade, por terem sido considerados não suficientemente indiciados os factos de que se mostravam acusados.

22) Em 20.09.2016, a Relação de Lisboa veio a julgar improcedente o recurso interposto pelos Autores, do despacho de 18.03.2016, que ordenara a prisão preventiva, mas tal aresto acabou por não ter efeitos práticos, uma vez que os AA. tinham sido restituídos à liberdade em 14.09.2016.

23) Os arguidos foram detidos em 16.03.2016, à ordem de um mandado de detenção, que não ostentava data.

24) Em sede de decisão que fixou a medida de coação em primeiro interrogatório de arguido detido, o Juiz de Instrução não se debruçou concretamente sobre este vício, constando da decisão: "tendo sido respeitadas as formalidades legais nenhuma invalidade foi cometida que cumpra declarar".

25) Os ali arguidos recorreram, em 6 e 7 de Abril de 2016, do despacho que decretou a prisão preventiva, invocando, no que ora releva: A desnecessidade de tais mandados, uma vez que os ali arguidos, em 09.03.2016, e depois de terem recebido ameaças telefónicas de CC, dizendo-lhes que "estavam lixados" porque ela tinha sido abusada por AA e iria contar tudo, fizeram um requerimento pedindo que lhes fossem imediatamente tomadas declarações, em face da gravidade das ameaças de CC; tal requerimento, apesar de datado de 09.03.2016, e nessa data recepcionado, só foi junto aos autos em 17.03.2016.

26) O Tribunal da Relação de Lisboa, em 20.09.2016, conclui que foram respeitados os critérios legais, não estando tais mandados feridos por qualquer vício.

27) Os aqui Autores e seu Ilustre mandatário não foram notificados para comparecer na sobredita diligência de "declarações para memória futura".

28) Do auto de declarações para memória futura, consta que esteve presente um defensor oficioso, Dr. HH, com substabelecimento com reserva de colega nomeada para o ato, II.

29) Do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-9-2016, certificado nos autos a fls. 465 a 478, consta, designadamente: "Conforme resulta dos autos fls. 144 dos presentes —, as declarações da ofendida foram prestadas na presença de defensor oficioso nomeado para representar e defender os arguidos, tendo-lhe sido dada palavra para inquirir a mesma, pelo que, não estão tais declarações feridas por nulidade que cumprisse ao Tribunal a quo declarar".

30) Conforme Substabelecimento certificado nos autos a fls. 423, datado de 15 de março de 2016, II, Advogada, declara substabelecer no seu Ilustre Colega, Dr. HH, Advogado, os poderes que lhe foram conferidos por nomeação para patrocinar FF nos autos sob o nº 90/16.....

31) Do teor do despacho que fixou a medida de coação prisão preventiva, não consta a expressão "fortes indícios".

32) Do teor da decisão judicial certificada nos autos a fls. 439 (verso)/440, datada de 22-4-2016, em que se decidiu manter a prisão preventiva aos aí arguidos não consta a expressão "fortes indícios".

33) Do teor da decisão judicial certificada nos autos a fls. 441, datada de 1-7-2016, em que se decidiu manter a prisão preventiva aos aí arguidos, consta: "Os arguidos (...) encontram-se sujeitos à medida de coação de prisão preventiva desde 18-3-2016, tendo-se considerado estar fortemente indiciada a prática (...) de:"

34) Do teor do Acórdão da Relação de Lisboa de 20 de setembro de 2016 certificado aos autos a fls. 465 a 478 não consta a expressão "fortes indícios".

35) Em 30-11-2015, no âmbito do processo de averiguação oficiosa da paternidade do menor EE (Processo n.° 3957/15...., a correr termos na Comarca ... — MP — ... — .... Central — Fam. Menores) CC, referiu que, em Março de 2015, teria mantido relações sexuais com JJ, altura em que estava já grávida, apesar de, então, ainda não o saber.

36) CC, nesse momento, referiu ainda que tinha a certeza que o pai de EE era FF, porque, além dele, a última vez que tinha tido relações sexuais com "outro indivíduo" teria sido em janeiro de 2014.

37) E aí concluiu dizendo que uma sua amiga, KK, com morada na (…)..., teria conhecimento de toda esta factualidade.

38) Em 02.02.2016, no âmbito desse processo de averiguação oficiosa da paternidade, foi ouvido FF que referiu que, tanto quanto se pode recordar, não se terá envolvido sexualmente com CC, "muito menos em sua casa", não excluindo totalmente a hipótese de um envolvimento, referindo poder estar embriagado na altura, uma vez que, segundo os relatos de CC, tudo se terá passado na altura das festas de fim de ano.

39) No dia 2-2-2016, em contexto de sessão de acompanhamento psicológico com a Psicóloga da Santa Casa da Misericórdia ..., CC terá indicado que EE era filho do ora Autor, fruto de violações deste.

40) No dia 11.02.2016, CC terá relatado àquela psicóloga que a ora Autora, BB, tinha conhecimento dos abusos sexuais, porque os teria visto.

41) Em 29 de março de 2016, CC afirma que era a ora Autora que a obrigava a ter relações sexuais com o padrasto, ficando a assistir na sala onde tudo aconteceria.

42) Em 3 de julho de 2015, CC terá dito a uma auxiliar que a psicóloga acima referida, a tinha obrigado a dizer que DD era o pai de EE; e que ela nunca teria relações sexuais com o irmão, "até porque ele é feio".

43) Assim que teve conhecimento deste facto, a Psicóloga GG conversou com CC, que disse que o pai de EE era FF e não DD.

44) Em 2 de fevereiro, CC referiu que os abusos levados a cabo pelo ora Autor eram frequentes à noite, independentemente de DD se encontrar ou não em casa.

45) Em sede de declarações para memória futura, CC prestou declarações durante cerca de 19 minutos; e, desses, cerca de 14 minutos, sobre os concretos factos que imputava aos ora Autores.

46) CC começou por referir que a primeira vez aconteceu quando estava sozinha em casa; mais tendo referido que das "outras vezes" acontecia "quando não estava quase ninguém em casa" ou quando "estava o irmão no quarto distraído a jogar computador".

47) Depois, refere que a mãe sabia porque "passava pela sala", "como se nada fosse".

48) Além disso, afirma que as relações sexuais forçadas pelo seu padrasto eram mais raras perto dos seus 13 anos, mas, que aconteceu muitas vezes até fazer 14 anos; mais referindo que eram mais frequentes em 2014, porque o padrasto acharia que ela sabia mais coisas; e mais tarde, que, essas situações, eram mais frequentes quando ainda tinha 13 anos; respondendo, depois, instada pela Senhora Procuradora, que era mais raro acontecer perto dos 13 anos.

49) E quanto à participação de sua mãe, a dado passo, referiu "via-a sempre a passar".

50) Do despacho de 18-3-2016, em que a Mma. Juiz de Instrução Criminal fixou as medidas de coação (certificado nos autos a fls. 429 a 435) quanto aos problemas de saúde de que o arguido “disse padecer”, consta, ademais, que este arguido terá dito que "foi acometido por um AVC e desde então faz medicação com anticoagulantes e medicação para a tensão arterial que o impossibilitam de ter uma erecção" e que disse ainda que "padecia de uma prostatite". Mais constando, desse despacho, que, os documentos que o arguido foi convidado a juntar e juntou "não permitem ter por fundadas as suas afirmações, mormente quanto aos problemas da próstata"; e que "em resultado da busca domiciliária, verificaram os investigadores que existiam inúmeros vestígios de sémen e objetos para satisfação sexual de ambos" (os arguidos) "no quarto da arguida e na sala onde o arguido pernoita e onde a ofendida diz que tiveram lugar os factos, reveladores de uma atividade sexual que" (os arguidos) "negaram".

51) Do "Auto de Busca e Apreensão" à residência dos arguidos, aqui Autores, datado de 18 de março de 2016 (certificado nos autos a fls. 293 a 294) consta a menção da apreensão de objetos de caráter "sexual"; e a menção à realização de exame pericial "ao sofá da sala onde o arguido referiu dormir".

52) Em 11 de abril de 2016, em depoimento prestado perante o Ministério Público, DD afirmou que, na sua opinião, era impossível, o AA, com o conhecimento da sua mãe, abusar sexualmente da sua irmã, porque "ele sempre nos deu carinho e amor de pai"; e que "a sua irmã, está a vingar-se pelo facto de a terem institucionalizado". Mais tendo afirmado, então, que, quando eram pequenos, por vezes, o ora Autor os obrigava a ajoelharem-se e a levantarem os braços; e que aquele mesmo Autor chamava DD de "macaco preto e filho da puta" o que DD disse não achar ofensivo e que também lhe chamava "velho chato e velho estúpido".

53) Em 29-4-2016 chegou aos autos o relatório pericial que conclui que o aqui Autor deve ser excluído da paternidade do filho de CC.

54) Os Autores sofreram intensamente com a situação de prisão preventiva a que foram sujeitos e com a interposição de recurso da decisão instrutória de 14.09.2016 pelo Ministério Público, que os fez temer por uma reviravolta processual que os pudesse levar novamente à prisão.

55) Mais revoltados se sentiram ao perceber que eram totalmente impotentes perante tal acusação, em razão das declarações de CC.

56) A prisão preventiva dos Autores foi do conhecimento do meio familiar onde se inserem, pessoas que tomaram conhecimento de que as imputações que lhes eram dirigidas tinham a ver com abusos sexuais cometidos sobre a menor CC, enteada do Autor AA e filha da Autora BB.

57) Os Autores sentiram uma enorme vergonha pela situação em que se encontravam, temendo que as pessoas não acreditassem neles e os julgassem responsáveis por esses atos de abuso sexual.

58) Os Autores sentiram-se injustiçados e desesperados.

59) Os Autores recearam ir passar anos na prisão, com a comunidade a julgá-los responsáveis por crimes que não assumiram cometer.

60) Os Autores sentiram uma grande revolta contra os poderes do Estado e uma grande descrença na vida.

61) O Autor foi agredido na prisão por um guarda prisional que veio a ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos; e pela prática de um crime de injúria agravada na pena de multa de 60 dias, à taxa diária de 10 euros.

62) Atualmente os Autores continuam a sofrer com a experiência por que passaram, a qual os traumatizou para o resto da vida.

63)Os Autores sentem que vão continuar a sofrer as sequelas da prisão a que foram submetidos.

64) Os sobreditos autos n° 90/16.... iniciaram-se com comunicação da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens ..., datada de 3-2-2016, sinalizando a situação de CC tendo em conta informação, nessa data, remetida pela comunidade em que aquela se encontrava inserida que evidenciava abuso sexual à menor CC por parte do padrasto.

65) Dessa comunicação constava, designadamente, que, na instituição, "a menor tem demonstrado instabilidade emocional e evidenciou sinais de recusa e/ou negligência para com o bebé" entretanto nascido, e que a aqui Autora manifestou vontade de ficar com o bebé, juntamente com o Autor, mas não pretendiam que a CC voltasse para casa.

66) Em 12.2.2016, a CPCJ dá conhecimento ao Ministério Público, que o fez constar em despacho, que a menor CC estava a ser conduzida ao Hospital ... devido a um surto de agressividade; e que gritava que a mãe sabia de tudo e assistia aos abusos sexuais do seu padrasto.

67) No relatório clínico desse episódio de urgência pode ler-se: episódio de auto e hétero-agressão na instituição com suposta ideação suicida por estrangulamento com atacadores no dia anterior, no próprio dia, episódio de ausência e auto-agressão, queimou a fotografia do filho.

68) Em 22.2.2016 o Ministério Público faz constar no processo que lhe foi dado conhecimento que a menor tentou o suicídio em 21.2.2016 e encontrava-se no hospital D. ..., tendo sido solicitado o envio urgente da documentação clínica.

69) Resultava do relatório do Hospital ..., para onde CC foi depois transferida, que na véspera terá escrito uma carta de despedida ao filho, realizado vários cortes no antebraço com uma lâmina e tentado o suicídio por enforcamento com atacadores, tendo sido proposto o internamento para contenção dos actos impulsivos.

70) No relatório de diligência externa elaborado pela Polícia Judiciária, com data de 16-2-2016, fez-se constar que:

a) aquando do acolhimento da CC esta indicava como pai do seu filho FF, com quem teria mantido relações sexuais consentidas em 30.12.2014;

b) em 2.2.2016 numa sessão de acompanhamento com a psicóloga revelou que EE era fruto de violações/abusos sexuais cometidos pelo padrasto AA;

e) mais revelou que esses crimes ocorreram desde os 13/14 anos e que a mãe os chegou a presenciar, nada fazendo para a proteger;

d) a psicóloga GG apontou alguns indicadores no comportamento da CC que evidenciam suspeitas de abuso sexual, a saber:

- dualidade de sentimentos perante a gravidez, ora manifestando desejo de ficar com o filho, ora rejeitando-o;

- sentimento de revolta e abandono relativamente à progenitora;

-sentimento de repulsa relativamente ao padrasto que sempre referenciou como maltratando-a e ao irmão;

-afirmações de traição do padrasto relativamente à mãe;

-ausência de referência ao FF;

e) em 10.2.1016 em sessão de terapia confidenciou que já realizou várias tentativas de suicídio;

f) em 11.2.2016 tem surto psicótico, agride funcionários e utentes da instituição, auto agride-se, concretiza ideação suicida, escreve uma mensagem ao filho, queima fotos suas de infância com a mãe e esconde os atacadores com os quais pretendia enforcar-se;

g) em 12.12.2016 tem novo surto.


71) Foi ainda mencionado no relatório de diligência externa da PJ que do contacto da CC com a mãe e o padrasto resultarão riscos para a estabilidade emocional e integridade física da menor.

72) Os inspectores da PJ fizeram, também, constar no relatório que se procedeu à inquirição da CC que tentou conter o choro mas nem sempre conseguiu e que aparentava encontrar-se em sofrimento emocional revelando fragilidade em situação de confronto com a mãe e o padrasto.

73) Do auto de inquirição da CC feita nesse dia 16 de fevereiro de 2016, perante a inspetora da Polícia Judiciária, LL, consta que CC refere que o pai do EE poderá ser uma de duas pessoas, o seu padrasto ou FF.

74) Mais constando que, com FF, manteve relações sexuais consentidas e que para além dele já mantivera relações sexuais com MM, mas, usaram preservativo; e que, para além destes dois parceiros sexuais, manteve relações sexuais contra sua vontade com o padrasto que foi o seu primeiro parceiro sexual que, em data que não sabe precisar, quando tinha 13 anos, o AA manteve consigo relações sexuais de cópula completa contra a sua vontade, sendo que este comportamento se repetiu muitas vezes ao longo dos anos, a última das quais em 29.12.2014.

75) E continuou declarando que a primeira vez ocorreu durante o período letivo, numa tarde em que mais ninguém estava em casa "eu estava no meu quarto a estudar, ele chegou lá e começou a despir-me...disse para eu ficar calada e para não contar a ninguém...depois apertou-me o pescoço, mandou-me para o chão e começou a fazer..."

76) E constando, ainda, desse auto de inquirição, que, ao longo do tempo foi sempre pedindo para ele não praticar tais atos, que começou a fechar a porta do quarto para o impedir de entrar e que as restantes práticas ocorreram sempre na sala, num sofá-cama ali existente onde o AA pernoitava há já alguns anos.

77) E prossegue nas suas declarações referindo que julga que a progenitora tem conhecimento porque "a mãe viu ele a fazer o que fazia sempre...ele em cima de mim", explicando que enquanto o padrasto mantinha consigo relações sexuais a mãe passava no corredor parava em frente à sala e "olhava para mim".

78) Em 18.2.2016 a psicóloga da Santa Casa da Misericórdia ... elabora relatório dirigido ao processo dando conta dos comportamentos e relatos por parte da CC que, de acordo com a referida profissional, indiciavam que a mesma podia ser vítima de abuso sexual, suspeita essa que foi confirmada pela CC.

79) Na referido relatório, elaborado com base na observação do comportamento da CC na instituição e das várias sessões com a psicóloga, é relatada a situação de grande instabilidade emocional em que a CC sempre esteve, a dificuldade em aceitar a gravidez e em estabelecer vínculo com o filho, a aparente necessidade de revelar algo e, após, a revelação de que o pai da criança é o seu padrasto que a obrigava a ter relações sexuais consigo, que os abusos ocorriam por norma na sala, no sofá onde o padrasto habitualmente dormia, e que eram frequentes à noite independentemente de a progenitora e o irmão estarem em casa ou não, e que a mãe tem conhecimento dos abusos por os ter presenciados e que gostaria de uma explicação por parte da mesma.

80) Mais é referido o comportamento da mãe perante a instituição, que numa ocasião quando lhe disseram que se iria aferir da paternidade do menor EE através de exames de ADN deitou a cabeça na mesa e de repente perguntou: "e se o meu marido adotar a criança?", reação que foi interpretada pela equipa da SCM como sendo suspeita.

81) E ainda é mencionado que a CC refere nunca mais querer ver a progenitora, mas pretender telefonar-lhe para obter uma explicação.

82) Em 23.2.2016 a PJ fez constar contacto com a CPCJ e o relato por parte da técnica NN das entrevistas em sede de processo de promoção em proteção à mãe e ao irmão da CC, que segundo a técnica revelaram sinais de disfuncionalidade na dinâmica do agregado familiar, e que durante a entrevista o irmão apresentou um olhar agressivo denotando tensão emocional e a Autora BB adotou comportamentos de preferência do marido em detrimento dos filhos, não revelando afetividade pela CC que não pretendia ver reintegrada no seu agregado familiar, pretendendo, sim, a adoção plena do filho da CC em conjunto com o marido. E faz referência à vontade de abandonar a ... e mudar-se para o ... ou ....

83) A perícia sobre a personalidade da CC, concluiu:

- que à menor, não foram observadas incapacidades, ao nível cognitivo dos seus processos mnésicos para conservar e reproduzir de forma coerente acontecimentos por si evidenciados, embora as suas características de personalidade e emocionais possam afetar a sua eficiência para relatar acontecimentos stressantes como parecem ser os em apreciação;

- que a menor tem capacidade para compreender, relatar e avaliar os factos.

84) Em sede de declarações para memória futura, prestadas perante a Mma. Juiz de Instrução Criminal em 16 de março de 2016, CC afirmou que a primeira vez que o seu padrasto, contra a sua vontade, teve relações sexuais com esta, CC tinha 13 anos de idade; que tinha acabado de chegar da escola e que estava no seu quarto; que o padrasto a chamou à sala, que lhe disse para não dizer nada, se não contava a toda a gente; que a despiu da cintura para baixo; que, se gritasse, a matava; e que, ele, baixou os seus boxers, fez penetrar o pénis na vagina daquela, com movimentos para a frente e para trás; que, nessa altura, nunca tinha estado com namorado; que teve dores e deitou sangue.”


///


 Fundamentação de direito.

Os AA intentaram a presente acção visando a condenação do Estado a  indemnizá-los por terem estado presos preventivamente durante 181 dias, como suspeitos de um crime de abuso sexual, sem que tenham chegado a ser pronunciados.

A acção improcedeu nas instâncias, tendo os AA interposto recurso de revista excepcional na qual, como emerge das conclusões com que rematam a sua alegação, questionam a aplicação ao caso concreto do regime da alínea c) do nº1 do art. 225º do CPPenal, que sustentam ser inconstitucional.

O Réu recorrido pronunciou-se pela improcedência da revista.

Vejamos então se o recurso merece provimento.


A responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas, tem consagração constitucional, estatuindo o art. 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP) que “O Estado e demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.”


Constituindo princípio constitucional o direito à liberdade e segurança, o art. 27º prevê no nº 5 que “a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.”


Este comando, como escrevem Vital Moreira e Gomes Canotilho, in Constituição da República Portuguesa anotada, I, pag. 430, constitui também fundamento constitucional quanto à responsabilidade do Estado por facto de função jurisdicional:

A Constituição prescreve, expressis verbis, a indemnização no caso de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade (mesmo quando decretada por um juiz) e nos casos de condenação injusta, como por hipótese de erro judiciário (arts. 27º/5 e 29º/6). Mas para além destes casos, deve valer o princípio geral da responsabilidade do Estado por facto da função jurisdicional sempre que das acções ou omissões ilícitas praticadas por titulares de órgãos jurisdicionais do Estado, seus funcionários ou agentes resultem violações de direitos, liberdades e garantias ou lesões de posições jurídico-subjectivas ( ex: prisão preventiva ilícita, prescrição de procedimento, não prolação de uma decisão jurisdicional num prazo razoável).


É nos casos de prisão preventiva – medida de coação em processo penal decretada por um juiz por fortes indícios de prática crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, admitia pelo art. 27º/3, alínea c) da CRP) – quando o arguido vem a ser absolvido em julgamento, que a questão da responsabilidade civil do Estado se coloca com particular acuidade.


De forma inovatória, o CPP de 1987, relativamente ao CPP de 1929, veio prever no art. 225º a possibilidade de indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada


O art. 225º, na redacção introduzida pela Lei nº 59/98 de 25.08, dizia:

1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização pelos danos sofridos com a privação da liberdade.

2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro.”


Em comentário a esta disposição, Castro e Sousa, citado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, anotado, 10ª edição, teceu as seguintes considerações:

“ (…) regula o Código a indemnização por privação de liberdade, distinguindo os pressupostos do respectivo arbitramento consoante esta seja ilegal ou injustificada. O nº1 do art. 225º respeita à reparação quando a privação de liberdade tiver sido manifestamente ilegal, dando assim cumprimento à injunção constante do nº5 do art. 27º da CRP (…). Por sua vez, o nº2 estabelece que a reparação arbitrar é extensiva aos casos de prisão preventiva formalmente legal mas que se vem a revelar injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia.”


A Lei nº 48/2007, de 29.09, alterou a redacção do art. 225º, que se mantém, dele passando a constar:

1. Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:

a) A privação for ilegal, nos termos do nº1 do art. 220º, ou do nº2 do art. 222º;

b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia;

c) Se comprovar que o arguido não foi o agente do crime ou actuou justificadamente; ou

d) A privação da liberdade tiver violado os nºs 1 a 4 do artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

2. Nos casos das alíneas b) e c) do número anterior o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade.


Ou seja, estendeu-se o direito a indemnização aos casos de  permanência na habitação, deixou de se exigir que prisão tenha sido manifestamente ilegal, bastando a constatação da sua ilegalidade, e reconhece-se o direito de indemnização a quem for absolvido por estar comprovadamente inocente ou tiver agido justificadamente.


Como referido no supra citado Acórdão da Relação do Porto de 08.05.2015, com a inovação traduzida na nova alínea c), pretendeu o legislador conceder também o direito a indemnização mesmo que não tenha havido ilegalidade ou erro grosseiro no decretamento da prisão preventiva: “o ter o arguido sofrido prisão por um crime que comprovadamente se veio a verificar não ter cometido é falha da máquina judicial que, independentemente das causas que a possam explicar e desde que estas não possam ser imputadas ao próprio arguido, reveste suficiente gravidade para que ele não deixe de ser compensado.”


Revertendo ao caso dos autos.


O acórdão recorrido considerou não se poder concluir que a privação da liberdade dos AA se tenha ficado a dever a um erro grosseiro, em face do que negou o direito de indemnização com base na alínea b) do art. 225º.


E também afastou o direito à indemnização com fundamento da alínea c) por não se ter provado que os AA não praticaram o crime por que foram indiciados, como ali se exige, não sofrendo de inconstitucionalidade a referida alínea c).

Para tanto ponderou a Relação:

(…) estabelece o nº 5 do mencionado art. 27 que: “A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.”

Este nº 5 do art. 27 da C.R.P. não impõe, por isso, o dever de indemnizar todo e qualquer arguido não pronunciado ou absolvido a quem haja sido anteriormente aplicada a medida de coação de prisão preventiva, visando apenas compensar, na verdade, situações de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade.

Por sua vez, uma prisão preventiva legal e devidamente fundamentada quanto aos respetivos pressupostos no momento em que é determinada, não deixa de o ser em virtude de o arguido que a ela foi sujeito não chegar a ser pronunciado ou vier a ser absolvido a final.

De todo o modo, como se refere no Ac. da RL de 30.9.2014 citado na sentença, a interpretação e aplicação da al. c) do nº 1 do art. 225 do C.P.P. suscita controvérsia, defendendo uns uma interpretação literal do preceito, por não ser de considerar a mesma contrária à Constituição, e defendendo outros que a norma é inconstitucional ao exigir que o arguido tenha de fazer prova, na ação de indemnização, de que não cometeu o crime ou que atuou justificadamente, uma vez que o arguido não tem que provar a sua inocência. Vejam-se, a propósito, o Ac. do TC nº 185/2010, de 12.5.2010, e o Ac. do TC nº 284/2020, 28.5.2020, que versam, em sentido diverso, sobre a sentença absolutória com fundamento no princípio in dubio pro reo.

Como também se diz no mesmo aresto de 30.9.2014, não se afigura muito razoável que o arguido tenha de provar, na ação de indemnização, que não cometeu o crime, até porque nem sempre será fácil fazê-lo, mas também seria pouco razoável que o Estado fosse condenado a indemnizar todos os arguidos presos preventivamente e que depois fossem absolvidos, ou – acrescentamos nós – não acusados ou não pronunciados.

Além do mais, o nº 5 do art. 27 da C.R.P. apenas prevê a obrigação de indemnizar do Estado se a privação da liberdade contrariar a Constituição e a lei, sendo a indemnização ao lesado “nos termos que a lei estabelecer” aqui se remetendo para a lei ordinária.

O legislador ordinário entendeu, por sua vez, que é devida a indemnização desde que se prove que o arguido não foi o agente do crime ou que atou justificadamente.

O legislador não estabeleceu, assim, que a concessão da indemnização ao sujeito a prisão preventiva dependeria da respetiva não acusação, não pronúncia ou absolvição final no processo-crime. Fez depender essa concessão da demonstração de que o arguido não foi o agente do crime ou que atou justificadamente.

E tal demonstração há-de ocorrer no próprio processo-crime ou, pelo menos, na ação de indemnização cível a interpor junto do tribunal competente, cabendo aí ao próprio lesado o ónus da prova quanto aos pressupostos de que depende o seu direito à indemnização, como decorre genericamente do disposto no art. 342, nº 1, do C.C., e como sucede no domínio da responsabilidade civil por ato ilícito (cfr. arts. 483 e 487 do C.C.).

Deste modo, e contra o defendido pelos apelantes, não consideramos inconstitucional, por violação do art. 27, nº 5, da C.R.P., ou de qualquer outro preceito daquela Lei Fundamental, a norma constante da al. c) do nº 1 do artigo 225 do C.P.P. entendida no sentido de que não pode beneficiar da indemnização aquele que, não tendo sido pronunciado pelo crime que determinou a sua prisão preventiva, não logrou provar, designadamente na ação de indemnização, que não praticou o crime.”


Os Recorrentes centram o recurso no que chamam a “errada aplicação” ao caso do regime do art. 225º, nº1, c), que reputam de inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32.º, n.º 2 da CRP, como julgou o Tribunal Constitucional no acórdão nº 284/2020, de 28.05.2020”.

Isto porque:

(…) Tal entendimento normativo violaria os princípios constitucionais da presunção da inocência, da proporcionalidade e da igualdade, uma vez que:

i) quanto ao art. 27.º, n.º 5 da CRP, tal entendimento restringiria de uma forma irrazoável o dever de indemnizar que esse preceito legal estabelece a favor de quem foi injustificadamente privado da sua liberdade;

ii) relativamente ao princípio da presunção da inocência, uma vez que, não tendo o arguido sido pronunciado, violaria tal princípio que, para o efeito de ser atribuída uma indemnização pela prisão preventiva, o lesado tivesse de provar positiva e adicionalmente a sua inocência;

 iii) relativamente ao princípio da proporcionalidade, porque, não tendo sequer havido pronúncia, não tem justificação razoável, estabelecer esse ónus (de provar a inocência) a cargo da vítima,

 iv) relativamente ao  princípio da    igualdade, porque afastada irreversivelmente a responsabilidade penal do lesado no processo próprio, estabelecer esse ónus contra quem não foi pronunciado o ofenderia, uma vez que o ex-arguido foi libertado de tal ónus de forma absoluta, tendo o direito a ser tratado como todos os outros cidadãos.


Vejamos.


Não suscita qualquer dúvida que não se verifica o fundamento da alínea c). Os AA não chegaram a ser pronunciados por se ter entendido que as provas recolhidas não eram suficientes para sustentar a condenação, sem que tenha sido feita a prova positiva de que os AA não praticaram os factos que lhes foram imputados.

Mas será a dita disposição inconstitucional? E na afirmativa deverá entender-se que aos AA assiste, sem mais, o direito a serem indemnizados pelo Estado pela prisão preventiva que sofreram?

A prisão preventiva, como restrição do direito constitucional à liberdade, é expressamente admitida no art. 27º, nº3, alínea b) da CRP.           

O Tribunal Constitucional, acórdão nº 85/2010 (Maria Lúcia Amaral), DR, II série de 13.09.2010, de 12.05.2019, não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 225º, nº2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de se não considerar injustificada a prisão preventiva aplicada a um arguido que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo. Lê-se na fundamentação deste acórdão:

“…não restam de que esta restrição (a prisão preventiva) goza de autorização constitucional expressa, constante da alínea b) do nº3 do art. 27º da CRP. Por outro lado, a sua existência revela-se necessária para a salvaguarda de outros valores constitucionalmente protegidos, como os da eficácia da justiça penal, da segurança, e, fundamentalmente, da própria liberdade individual dos demais membros da comunidade.”


Relativamente à indemnização por privação de liberdade, nem a Constituição nem a lei impõe que o Estado indemnize todas as pessoas sujeitas a prisão preventiva e que depois venham a ser absolvidas em obediência ao princípio do in dubio pro reo.           

É esta a posição dominante na jurisprudência do STJ, e isso mesmo foi reafirmado no Acórdão do STJ de 11.10.2011, P. 1268/03: “não é de aceitar a responsabilidade objectiva do Estado por actos praticados no exercício da função jurisdicional, em termos de abranger a prisão preventiva legal, efectuada e mantida sem erro grosseiro, (pelo menos em termos de direito constituído).”

Neste sentido decidiram também os Acórdãos de 29.06.2005 (P. 2490/2005), de 11.09.2008 (P. 1748/08), de 22.03.2011 (P. 5715/04), e os Acórdãos da Relação de Lisboa de 30.09.2014 ( P.2208/14), de 10.10.2017 (CJ, tomo 4, pag. 79),  e  Relação do Porto de 08.05.2015, (P. 1740/12).

Não se ignora que há quem defenda de jure condendo a responsabilidade civil do Estado em caso de prisão preventiva aplicada a um arguido que vem a ser absolvido por falta de provas (cf. João Aveiro Pereira, “A responsabilidade civil por actos jurisdicionais”, pag. 218/219, e Catarina Veiga, in que Estudos de Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, II, pag. 443 e ss.).

Mas não foi esta a opção do legislador, que fez condicionar o direito à indemnização à verificação de uma qualquer das hipótese tipificadas no nº1 do art. 225º do CPP.

É certo que numa pronúncia específica sobre o art. 225º, nº1, alínea c), o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 284/2020 de 25.05.2020, decidiu:

Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 13º, nº1 e 32º, nº2 da Constituição, o artigo 225º, nº1, alínea c) do Código de Processo Penal, na redacção da Lei nº 48/2007 de 29.08, interpretada no sentido de se não considerar que não foi agente do crime ou atuou justificadamente o arguido a quem foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dúbio pro reo.”


Considerou aquele Tribunal que “a exigência normativa de que o arguido absolvido com base no princípio in dúbio pro reo, para efeitos de lhe ser atribuída uma indemnização por prisão preventiva imposta no âmbito do processo criminal, prove positiva e adicionalmente à decisão absolutória sua inocência, sob pena de não o logrando fazer tal indemnização lhe ser recusada como se a sua culpabilidade ainda pudesse ser admitida, é incompatível com a mencionada garantia constitucional. A responsabilidade penal do arguido, uma vez afastada por via da absolvição, mesmo apenas fundada na presunção de inocência, não pode voltar a ser considerada num processo ulterior.”


Para o Tribunal Constitucional a exigência de que se dê como provado que o arguido não foi o agente do crime, ou actuou justificadamente, para efeitos da indemnização por danos sofridos com a prisão preventiva, desqualifica a decisão de absolvição fundada no princípio in dubio pro reo, sendo atentatória dos princípios da igualdade (art. 13º) e presunção de inocência (art. 32º, nº2), da C.R.P..

Como se sabe, o efeito da declaração de inconstitucionalidade de uma norma, com força obrigatória geral (art. 281º, nº3 da CRP), é a sua anulação e a repristinação da norma que por ela tenha sido revogada.

Como a norma da alínea c) é inovadora, desaparecida ela do ordenamento jurídico subsistem como fundamentos de indemnização as situações previstas nas alíneas a), b) e d) do nº1 do art. 225º, sem que possa concluir-se da declaração de inconstitucionalidade formulada pelo Tribunal Constitucional que o Estado fica sempre constituído na obrigação de indemnizar o arguido que sujeito a prisão preventiva vem, a final, a ser absolvido.

O próprio acórdão nº 284/2020 do TC não se afasta deste entendimento como se vê do seguinte excerto da sua fundamentação:

“Nem o artigo 27º, nº5, da Constituição nem o art. 5º§5º da CEDH impõem o dever de indemnizar todo e qualquer arguido absolvido a quem anteriormente tenha sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva. Com efeito, estes preceitos são claros no sentido de apenas visarem a compensação de situações de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade (…).”

Por outro lado, como bem refere a Ilustre Procuradora-Geral-Adjunta nas contra alegações “não se trata, no âmbito da acção, de fazer recair o ónus da prova da “inocência” sobre a “vítima”, o que na perspectiva dos Recorrentes não seria “razoável”, violando o princípio da proporcionalidade (art. 18º, nº1 do CRP). Trata-se da aplicação do princípio geral segundo o qual o ónus de provar factos constitutivos de um direito recai sobre quem o invocou. Não se pode transpor para o processo civil a figura da “vítima”, muito menos se ela se refere a quem, no processo penal, figurava como arguido. O mesmo se diga da transposição do conceito de “inocência”.”

(…).

Se o princípio da presunção de inocência (art. 32º, nº 2 da CRP) se estendesse à própria acção de indemnização (e é verdadeiramente essa, a das repercussões externas à decisão de absolvição/não pronúncia, a base da análise feita pelo TC) criar-se-ia uma verdadeira presunção contra o Estado, ainda que este tenha agido no estrito cumprimento das normas relativas à aplicação de medida de coacção, ou seja, sem culpa.

O Estado responderia, pois, pelo risco da própria actividade - pública que constitucionalmente lhe é cometida.

Assim, o Autor na acção beneficiaria como que de uma dupla presunção, em detrimento do Estado, o que, para este, também poderia ser considerado desproporcional.

A este propósito, veja-se a fundamentação constante do Acórdão do TC nº 185/2010, de 13-09, com a qual se concorda.”

Assim também entendemos.


E como os AA não lograram provar qualquer dos fundamentos em que basearam o pedido de indemnização, prova essa que lhes competia (art. 342º, nº1 do Cód. Civil), a acção não podia deixar de improceder, como decidiram as instâncias.

Com o que improcedem na totalidade as conclusões do recurso.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.


Lisboa, 02.02.2023


Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo

Tibério Nunes da Silva