Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P1938
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: RECURSO
MOTIVAÇÃO
CRIME
DECISÃO INSTRUTÓRIA
DESPACHO DE PRONÚNCIA
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
Nº do Documento: SJ200506160019385
Data do Acordão: 06/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8246/04
Data: 05/18/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : I - Sem prejuízo do respeito pela lei processual, importa dar o devido relevo a um são princípio de responsabilização de cada qual pelos actos que lhe competem, decerto mais eficaz que qualquer convite ou condescendência com a prática de actos menos ortodoxos do ponto de vista legal. Sobretudo, quando, como no caso, não obstante, ao tribunal se afigura ser possível atingir o âmago do objecto recursivo. E mais, se do eventual prolongamento do processado viesse a resultar prejuízo para a situação processual do arguido.
II - Nesta óptica, o assistente recorrente que não atenta convenientemente na exigência legal de formular conclusões claras, precisas e sintéticas, sujeita-se, por vontade própria, às eventuais nefastas consequências que podem advir da circunstância de o tribunal ser colocado perante as dificuldades acrescidas de ter de desvendar o autêntico «segredo escondido» que, muitas vezes, constitui a tarefa de deslindar em que consiste a verdadeira pretensão do recorrente.
E se dessa dificuldade acrescida em que o tribunal é ilicitamente colocado resultar um imperfeito conhecimento do objecto do recurso, o recorrente só de si poderá queixar-se. Sibi imputet.
III - No crime de prevaricação ou denegação de justiça, qualquer que seja a correcta incriminação dos factos - n.º 1 ou 2, do artigo 369.º do Código Penal - sempre o tipo subjectivo se haverá de ter como doloso, na certeza de que as situações ali tipificadas não se compaginam sequer com a forma mais débil do agir doloso que o dolo eventual traduz.
IV - Se os factos provados podem deixar alguma dúvida sobre o esmero técnico de algumas decisões proferidas pelo juiz arguido, mas não é lícito, apesar disso, da sua avaliação global extrair a conclusão minimamente consistente de que nos casos em que porventura tenha errado, o tenha feito intencionalmente ou, sequer, que necessariamente assim devesse ser entendido, então, importará lavrar despacho de não pronúncia.
V - Sobretudo se o assistente não consegue adiantar, sequer, um hipotético móbil para o pretenso crime em causa e se tiver em conta que, qualquer que seja o juiz, deve beneficiar da presunção hominis de integridade funcional.
VI - A simples sujeição de alguém julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não, em certas circunstâncias, mesmo, um vexame.
VII - Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art.º 3.º daquela Declaração e 27.º da Constituição da República).
VIII - E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. No processo de inquérito em que é arguido o juiz de direito MCGV, o Desembargador que presidiu à instrução proferiu o seguinte despacho:
«GSMR entretanto constituído assistente (cfr. fls. 408), inconformado com o despacho de arquivamento do inquérito, proferido de fls. 338 - 342, pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta, requereu, em tempo, a abertura da presente fase instrutória [cfr. fls. 374-393, dando, após convite - cfr.fls. 408-410 - cumprimento ao disposto no art° 287.º, n. ° 2, relativamente ao art° 283°, n. ° 3, als. b) e c), ambos do C.P.P.), com vista à pronúncia do arguido MCGV, identificado nos autos, pelos factos descritos de fls. 426-436 e pela prática de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art° 369°, n. ° 1 e 2, do C.P. Requereu diversas diligências instrutórias.
De tais diligências, a única que se teve por necessária foi o interrogatório do arguido (cfr. fls. 437), que consta de fls.440 - 443.
O arguido juntou os documentos que constituem fls.446 - 493.
Pelo assistente, aquando do debate instrutório, foram juntos os documentos que constituem fls. 496 - 538.
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio.
Não existem nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa na presente fase processual.
Realizado o necessário debate instrutório, cumpre decidir.
Dos factos:
Tendo em conta o âmbito da instrução, demarcado, quanto ao seu objecto, pelo requerimento de fls. 426-436, afigura-se-nos suficientemente comprovada a verificação, face à análise crítica dos elementos de prova coligidos nos autos, dos seguintes factos:
- O arguido MCGV, enquanto Juiz de Direito do 3.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, praticou os seguintes actos:
- Ao receber os autos de Providência Cautelar com o n.º 430/99, remetidos pelo Tribunal Judicial do Seixal, e que foram autuados por apenso, com o n.º 70-A/99, ao Proc. n.º 70/99, decidiu estar o recorrente JPR ainda em tempo para apresentar alegações de recurso (cfr.fls.53-56), e, tendo a Advogada da sociedade...., LDA. suscitado a questão de tal prazo se encontrar esgotado e da impossibilidade de o Tribunal de Comércio de Lisboa abrir um novo prazo de alegações de recurso no dito Proc. 70-A/99 (cfr. fls. 65-69), sobre tal requerimento recaiu o despacho de 15-5-2000, que consta de fls.71-72 destes autos, que aqui se dá por reproduzido.
- Na sequência do alegado pelo recorrente JPR, o arguido considerou que o Tribunal de Comércio de Lisboa era competente para apreciar de novo a matéria da Providência Cautelar que já havia sido decidida pelo Tribunal do Seixal a 30-8-1999 (cfr. fls. 45-51), o que fez em 21-12-2000, em sentido contrário ao antes decidido, nos seguintes termos, no relevante (cfr.fls.58-64): «Pelo exposto julgo totalmente procedente o procedimento cautelar e, em consequência, declaro suspensas as deliberações da Assembleia Geral de 23 de Abril de 1999.
De harmonia com o disposto nos art°s 456° e 457° do CPC condeno a Requerida [..., Lda.], como litigante de má fé, na multa de 10 UC, e em indemnização, a favor do Requerente, cujo montante será fixado logo que o processo contenha os elementos necessários para o efeito.
[...]»
- O dito sócio, JPR, havia sido destituído de gerente da..., L.da, com justa causa, no âmbito de Assembleia Geral presidida, nos termos do art. 63° do Código das Sociedades Comerciais, pelo Senhor Notário do Seixal, a qual teve lugar em 20 de Agosto de 2000 (cfr.fls.28- 36).
- Porque impugnadas, as decisões do arguido atrás referidas vieram a ser apreciadas pela Relação de Lisboa no Proc. n.º 8111/01, da 6.ª secção, em despacho do Relator, de 12-7-2001, que consta de fls.75-79 destes autos, que aqui se dá por reproduzido.
- O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 9-5-2002, no Proc. n.º 9771/01, da 8.ª secção, proferido no âmbito do Proc. n.º 70/99, do 3.º Juízo do Tribunal do Comércio, apreciou as decisões do arguido em termos que constam de fls.463-484 destes autos, e que aqui se dão por reproduzidos.
- No Proc. n.º 63/99, do 30 Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, de nomeação judicial de gerente, requerida por JAF e GMR - processo de jurisdição voluntária -, o arguido ordenou a citação do sócio JPR para contestar e decidiu apreciar da validade e existência para destituição do mesmo com justa causa proferindo, a 12-7-00, a decisão sobre a matéria de facto que consta de fls. 80 - 92, e aqui se dá por reproduzida, a qual, no ponto 72°, contém: «- Por razões de economia, dá-se aqui por reproduzida a matéria do Proc.° n.º 47/99 pendente no 3° Juízo deste Tribunal, conforme doc. n° 38 adiante junto, nos termos seguintes:», sendo que, no Proc. 47/99, eram partes JPR, como requerente, e..., Lda., como requerida (cfr.fls.1 19-155).
- A 30-10-2000, o assistente e JAF interpuseram recurso da decisão que julgou tal acção improcedente (cfr.fls.93), que veio a ser admitido por despacho de 27-4-2001 (encontrando-se datada a conclusão que o antecede, de 26-4-01 - cfr.fls.95), notificado aos recorrentes a 3-5-2001 (cfr.fls.94).
- Sobre a matéria de tal recurso já recaíram, pelo menos, as seguintes decisões:
Ac. da R. de L., de 19-3-2002, Proc. n.º 421/01, da 1ª secção, constante de 97-1 17, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
Despacho do Exm° Cons.° Relator, de 5-12-2002, Proc. n.º 4049/02-1, do S.T.J., constante de fls.486-489, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
Ac. do S.T.J., de 18-12-2003, Proc. n.º 3828/03-6, constante de fls. 500-504, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
Ac. do S.T.J., de 27-11-2005, Proc. n.º 4037/04-2, constante de fls. 52 1-538, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Por outro lado, não se tem como indiciada a existência de qualquer outro facto relevante, nomeadamente que:
- ao proceder e decidir como o fez, nos identificados processos do 3.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, o arguido agiu sabendo que o fazia contra o sentido das normas jurídicas que expressa, ou implicitamente, invocava na fundamentação de tais decisões;
- e com o propósito de, directamente, causar algum prejuízo a alguém, ou beneficiar alguém;
- ou de impedir o normal andamento dos processos.
Na verdade, a falta de prova de tal complexo fáctico tem de se ter, insofismavelmente, como resultante da apreciação do contexto em que todos os factos dos autos se revelaram ocorridos, consubstanciado, entre o mais, nos documentos juntos (cfr. além dos já citados, os de fls.211-221, 490-492, 506, 509, 517 e 520) e no próprio teor do esclarecedor depoimento do arguido (de fls.440-443), que, no essencial, não se mostra, infimamente, posto em crise por quaisquer outros elementos probatórios constantes do processo.
Do direito
Defende o assistente que o arguido praticou o crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art° 369°, n° 1 e 2, do Código Penal e, por isso, pretende a sua pronúncia.
Reza o apontado normativo, no que ora interessa:
«1- O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra - ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias.
2- Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos.
[...]»
«A primeira forma de actuação criminalizada pelo artigo é a promoção do procedimento.
Por promoção deve entender-se aqui a actividade de qualquer funcionário, não aparecendo o termo, pois, com o sentido processual tradicional, isto é, como actividade exclusiva do Ministério Público.
A promoção materializa-se assim, pois, numa actuação positiva, que se pode definir como dar andamento a .
Não promover é não desencadear, não dar andamento, o que representa uma omissão do dever de promover.
Conduz-se o processo quando o agente substitui a vontade da lei pelo arbítrio, praticando um acto que lhe é contrário quando tinha o dever de praticar o que estaria de acordo com a lei.
Decide-se (ou não se decide) quando se toma posição sobre uma questão ou questões controvertidas, pondo assim fim a um litígio.
Praticam-se actos no exercício de poderes decorrentes do cargo sempre que no desenvolvimento da tramitação processual e dentro do âmbito da competência que cabe ao agente no processo considerado, se levam a cabo condutas humanas que produzem efeitos na esfera jurídica de terceiros.
Assumindo-se estes comportamentos estão corporizados os factos que podem conduzir à relevância criminal.
Mas falta mais algum coisa para que essa relevância se concretize.
Diz o legislador que é a consciência da conduta e a sua natureza anti ou contra-direito.
Isto é: para que o acto de promoção ou não promoção, de condução, de decisão, etc., produzido no âmbito processual atrás referido (inquérito, processo jurisdicional, processo por contra-ordenação ou processo disciplinar), ganhe dignidade penal é necessário, antes de mais que seja uma consequência de um vontade consciente e livre, ou seja, de uma acção dolosa, intencional, dirigida a um determinado resultado: negar ou falsear a justiça.
Estamos, pois, abertamente no âmbito do dolo directo.
Por outro lado, a acção do agente tem que se mostrar contra-direito, o que vale por dizer que tem que ser contrária a disposição expressa da lei.
No n.º 2 exige-se o dolo específico, ao reclamar-se que o agente aja com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém.»- in anotação ao art° 369°, no II Vol., do C.P., 2a ed., págs. 1162-1163, de Leal-Henriques e Simas Santos.
- O que a lei sanciona no artigo 416° do Código Penal de 1982 é a "inércia", a "omissão" ou "abstenção dolosas" (e também o próprio retardamento ou demora, igualmente dolosos), e não o erro de apreciação ou julgamento em que eventualmente haja ocorrido o autor do acto, contra o qual a lei, em geral, confere meios adequados de impugnação, que são os recursos e as reclamações.» Ac. do S.T.J., de 15-1-1986 (P. 37 644), in Bol. do Min. da Just., 353, 226.
«I - O preceito do art. 369.° do CP, prevendo o crime de denegação de justiça e prevaricação, inscreve-se na sistemática respeitante aos crimes contra a realização da justiça, em que a tónica dominante é a infidelidade aos deveres especiais inerentes à função de certas entidades, com prejuízo possível contra determinada pessoa, protegendo-se o interesse administrativo do Estado à recta administração da justiça e resolução de assuntos contenciosos, contra as entidades públicas e juízes que profiram decisões manifestamente injustas.
II - Da forma como o preceito do art. 369.°, n.º 1, do CP, se encontra redigido - ao aludir a funcionário que, no âmbito do inquérito processual, do processo judicial, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício dos poderes decorrentes do cargo que exerce - deriva que a sua amplitude não é reservada apenas aos juízes, mas também a todos aqueles que, detendo uma parcela de poder, têm como dever funcional realizar o direito, também eles fazendo justiça.
III - Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido de certeza moral da infracção, basta-se com indícios, sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma probabilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
IV - Tratando-se, no caso, de saber se, em face dos textos decisórios, decorre que a arguida, no processo, se moveu "conscientemente contra legem" e com "animus nocendi", é absolutamente essencial verificar os actos de favor ou de ódio, pois quando o juiz julga mal presume-se, em caso de dúvida, que o fez, antes, por erro de entendimento do que por favor ou ódio.
V - Como se sabe, o dolo, a intenção criminosa, pertence ao foro íntimo das pessoas; ele alcança- se a partir do fim: age intencionalmente aquele que procura realizar, objectivando o fim a que se propõe a vontade materialmente exteriorizada, em indícios que servem de meios de prova.
VI - Os indícios probatórios são os limites materiais objectivados e impostos à valoração das provas, garantia de protecção contra o grave arbítrio que representa alguém ser submetido a julgamento sem prova sobeja, não bastando, sem mais, uma divergência legal, doutrinal ou jurisprudencial para basear indícios suficientes da prática do crime (arts. 283.°, n.°s 1 e 2, e 308.°, n.º 2, do CPP).
VII - Mostrando-se as decisões da arguida fundamentadas pelo apelo a normas que julgou pertinentes, na convicção expressa de que não denegava justiça, fazendo questão de o afirmar sopesando toda a argumentação dos denunciantes e seu advogado, constituído assistente, valorando devidamente os factos, não resulta minimamente indiciado, pelo simples compulsar dos autos, que lhe tenha pré-existido o intuito de lesar os destinatários das suas decisões.
VIII - E não é a mera divergência do decidido que pode fundamentar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente - dolo genérico - contra direito, e muito menos com o propósito - dolo específico - de lesar alguém.» - ACSTJ 17-12-2003, Proc. n.º 3868/03 - 3 Secção Relator Cons. Armindo Monteiro.
Ora, tendo em conta o sentido da doutrina e da jurisprudência que vêm de se transcrever, afigura-se-nos que, no caso dos presentes autos, surgem imediatamente claras as conclusões a extrair.
Desde logo nos parece inquestionável que, perante os factos tidos por não indiciados - relativos, entre o mais, ao elemento subjectivo do tipo legal de crime, consubstanciador do indispensável dolo directo ou dolo específico, consoante se tenha em conta o n.º 1, ou o n.º 2, do art° 369°, do C.P. -, não se pode ter, de modo algum, como praticado pelo arguido, o crime que lhe era imputado pelo assistente, ou qualquer outro que permita convolação.
A finalidade da instrução é a comprovação judicial do despacho de encerramento do inquérito (art° 286°, n.º 1, do Código de Processo Penal).
No caso dos autos, foi proferido despacho de arquivamento.
Ora, para que seja proferido despacho de pronúncia exige- se a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos da aplicação de uma pena [art° 308°, n.º 1, do Código de Processo Penal].
A medida dessa suficiência é dada pelo disposto no art° 283°, n.º 2, do Código de Processo Penal, que dispõe "consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança
Isto sem prejuízo de se entender que:
O despacho de pronúncia, além de determinar os precisos termos da acusação, com interesse para fixar o âmbito da sentença e determinar o objecto do processo, delimitando, consequentemente, os poderes cognitivos e decisórios do tribunal (cfr. art°s. 309°, n.º 1 e 379°, al. b) do Cód. Proc. Penal), é uma garantia para o próprio arguido de não ser julgado, em processo penal, senão quando haja motivo sério para tal (cfr. art.° 308°, n.º 1 do Cód. Proc. Penal e Eduardo Correia, Processo Criminal, Coimbra 1956, pág. 180).
Deste princípio resulta que ninguém deve ser submetido a julgamento em processo penal, evitando ser-se sujeito a vexames e despesas inúteis, sempre que, no espírito do juiz, surjam dúvidas de que o arguido, face à matéria indiciária constante dos autos, possa vir a ser, efectivamente, condenado. Isto é, o princípio "in dubio pro reo" deve estar presente não só na fase do julgamento, mas também já na fase da pronúncia.
É que, «A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não for mesmo, em certos casos, um vexame.
Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia ou designa dia para julgamento, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art° 30 daquela Declaração Universal e 27° da Constituição da República).
É por isso que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo que aquela "possibilidade razoável" de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; "o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido" ou os indícios são suficientes quando haja" uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição" (cfr., respectivamente, Profs. Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, págs. 347-8 e Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1, 1974, págs. 133 e, entre muitos que se poderiam citar, os Acórdãos desta Relação, de 13/11/74, 241, 347, da Relação de Lisboa de 22/2/74, BMJ 234, 338 e da Relação de Évora de 19/6/74, 238, 295).»
- in Ac. da RP de 20.10.93, C.J., XVIII, IV, 261.
Diante do indicado critério decorrente do art° 283°, n.º 2, do Código de Processo Penal, respeitando os princípios supra apontados, o juiz, no final da instrução (como o Ministério Público no final do inquérito) tem que efectuar um juízo de prognose em torno da repetição da prova em sede de julgamento, colocando-se a seguinte questão:
- caso a prova constante dos autos seja repetida em julgamento existirá uma possibilidade razoável de condenação?
No caso, como decorre do já expendido, tem-se por certo que a resposta a esse juízo de prognose é, necessária e imediatamente, negativa.
Tanto basta para que se imponha, inequivocamente, a prolação de despacho de não pronúncia.

DECISÃO
Pelo exposto, tudo ponderado, e sem a necessidade de maiores considerações, decide-se não pronunciar o arguido MCGV pelos factos que o assistente GSMR lhe imputa no requerimento de abertura de instrução, susceptíveis de integrar a prática do crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art° 369°, n.º 1 e 2, do Código Penal.
Custas pelo assistente, com 4 UC de taxa de justiça, levando-se em conta o já pago pela constituição como tal [art°s 515.º, n.º 1, alínea a) e 519°, n.º 1, do Código de Processo Penal].
Notifique.
Com o trânsito em julgado da presente decisão, cessa a medida de coacção (TIR- cfr.fls.445) aplicada ao arguido [art° 2 14°, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal].»

Inconformado, recorre o assistente ao Supremo Tribunal de Justiça, assim se espraiando ao longo de mais de três dezenas de conclusões, por onde, em suma, pretende demonstrar que o despacho em crise deve ser revogado e substituído por outro de sentido inverso, ou seja, despacho de pronúncia:
«A) O presente Recurso vem interposto da decisão de não pronúncia do Arguido proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu não pronunciar o Arguido pelos factos imputados pelo Assistente;
B) Entende o Assistente, ora Recorrente, com o devido respeito, que o Tribunal a quo não aplicou correctamente o direito aos factos, concluindo erroneamente pela Decisão de Não Pronúncia;
C) Face aos factos dados como provados na aliás Douta Decisão Instrutória e resumidos no ponto 05. das Motivações, deveria ter-se concluído pela pronúncia do arguido;
D) Na decisão a quo não se dão erroneamente como provados factos que resultam como tal (i.e. provados) dos documentos juntos pelo ora Recorrente aos autos na data do Debate Instrutório e que infirmam e retiram qualquer credibilidade às afirmações do Arguido proferidas em sede instrutória;
E) Os documentos de fls. e que correspondem a despachos proferidos no âmbito dos processos envolvendo a..., Lda. e o sócio JPR foram-no depois do Arguido ter, efectivamente, conhecimento do facto de contra ele ter sido apresentada queixa-crime;
F) Na decisão a quo deveria ter-se dado como provado que o Arguido só pediu o seu afastamento dos Processos que corriam termos pelo 10 Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, para onde o Arguido transitou vindo do 3° Juízo, muito tempo depois de haver sido notificado ao abrigo do estipulado no art. 88° do Estatuto da Ordem dos Advogados então em vigor, sobre a apresentação da queixa-crime;
G) Deveria, também, a Decisão a quo ter dado como provado que o afirmado pelo Arguido nas suas Declarações, no respeitante a ter-se abstido da prática de quaisquer actos nos processos depois de notificado, em 22.Jul.02, nos termos do art. 88° do então Estatuto da Ordem dos Advogados, era falso, pois que, conforme resulta dos ditos documentos, o Arguido só o veio a fazer em 3.Dez..02;
H) Deveria, igualmente, ter-se dado como provado o facto de os recursos interpostos das várias decisões ilegais e contra direito expresso proferidas pelo Arguido, só terem sido admitidos por este cerca de 6 meses e 4 meses depois da entrada do respectivo requerimento de interposição;
I) é falso o que o Arguido afirmou quanto ao facto de sempre ter despachado dentro do prazo legal, referindo que o facto de haver admitido dois recursos com 6 e 4 meses de atraso, ficava a dever-se a mero lapso/eventual acumulação de serviço ou ao processo estar perdido no meio de outros.
É que a partir do momento em que interpôs os recursos em causa, o Recorrente, através da sua mandatária, sempre procurou saber acerca do andamento dos processos.
Conforme foi referido no debate instrutório, foram constantes (semanais) durante o prazo que mediou entre a interposição do recurso e a aceitação do mesmo, as deslocações ao Tribunal para consulta dos referidos processos, sendo que os mesmos, por informação da secretaria, se
encontravam sempre indisponíveis para consulta na medida em que estavam no Gabinete do Senhor Juiz ora Arguido para despacho;
J) os documentos juntos aos autos pelo ora Recorrente na data do debate instrutório infirmam as declarações do Arguido, na parte em que o mesmo refere que no âmbito do Proc. 63/99, foi dada razão à sua tese pelo Supremo Tribunal de Justiça. Os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça juntos provam exactamente o contrário do afirmado pelo Arguido que agiu com total desrespeito pelas normas que regem o processo de jurisdição voluntária;
K) Deveria, igualmente, ter sido dado como provado que, no âmbito do mesmo processo de jurisdição voluntária para nomeação judicial de um gerente requerida por JAlF e pelo ora Recorrente, o arguido decidiu apreciar da validade e existência para destituição com justa causa de JPR ocorrida em 20 de Agosto de 1999;
L) Dos documentos juntos aos autos e da divergência existente entre os referidos documentos, cuja falsidade não foi posta em causa e do depoimento do próprio Arguido, resulta antes inequívoco que o Arguido, com a sua conduta, violou consciente e voluntariamente a lei, havendo, em todos os processos supra mencionados e em que era suposto exercer a função jurisdicional, decidido com total desprezo pela lei material e processual, criando ele próprio "regras" destinadas a contrariarem e prejudicarem, directa e indirectamente, o ora Recorrente;
M) Contrariamente aquilo que é sustentado na Decisão proferida pelo Venerando Tribunal a quo o comportamento do Arguido acima descrito, integra e subsume-se no tipo legal de crime, previsto e punido pelo art. 369° do C.P. e tem suporte probatório quer nos documentos juntos aos autos, quer na própria divergência resultante do confronto entre estes mesmos documentos e do depoimento do Arguido;
N) O preceito legal previsto no art. 369° do C.P. prevê diversas condutas típicas que apresentam especialidades a nível do tipo objectivo e subjectivo. Existe, todavia, um elemento típico comum: todos aqueles comportamentos, activos ou passivos, hão-de, para constituírem crime, ser realizados contra direito;
O) do enquadramento fáctico que a decisão instrutória deu como provado, mais aqueloutros factos que também deveriam ter sido dados como provados por tal decorrer inclusivamente do confronto crítico, atento e criterioso dos documentos juntos aos autos das declarações do Arguido e dos depoimentos prestados em sede de inquérito não poderia concluir-se, como o faz erroneamente, a Decisão instrutória, citando extensas decisões judiciais como sendo "claras as conclusões a extrair", indo ao ponto de lhe parecer "inquestionável" que o Arguido não pode ter "de modo algum" praticado o crime p.p. pelo art. 369° do C.P.;
P) A Decisão instrutória não poderia nem de facto nem de direito ter concluído pela inexistência de indícios suficientes da prática do crime de prevaricação e denegação da justiça p.p. do art. 369° do CP.
Q) Nem sequer se cuidou na Decisão Instrutória de se verificar se as circunstâncias constantes das várias decisões que transcreve são equiparáveis às do caso sub judice, nem tão-pouco se, por isso, tal fundamento era aplicável ao caso concreto;
R) No caso em apreço é óbvio e claro que o arguido praticou uma série de actos, promovendo ou não promovendo contra direito e conduzindo os diversos processos de acordo com o seu arbítrio, violando normas jurídicas básicas elementares e essenciais, cuja existência não é suposto um magistrado ignorar;
S) No caso em apreço, não podem considerar-se os actos do arguido como resultantes de uma mera divergência legal ou doutrinal, pois, contrariamente ao que acontece com as conclusões contidas na Jurisprudência do STJ vertida na própria decisão instrutória - Ac. STJ 17- 12-2003 -, o Arguido não justificou, não fundamentou nunca, nem invocou (porque não podia) as normas legais que o levaram, vg a considerar que o despacho de admissão de recurso proferido pelo Tribunal Judicial do Seixal, no âmbito de um processo a ele submetido não tinha efeitos imediatos só porque, em tempo, no mesmo despacho se notificava o então Recorrente para indicar se tinha interposto a acção principal;
T) Percorrido todo o Código do Processo Civil, bem como a Jurisprudência ou a Doutrina proferida a propósito dos despachos de admissão de recurso, não se descortina nenhuma situação em que o despacho de admissão de recurso tenha efeitos suspensivos/interruptivos do prazo para apresentação de alegações;
U) Esquece também a Decisão de que ora se recorre que o Arguido também não justificou nem fundamentou, através da invocação de qualquer disposição normativa, porque razão, depois de a situação lhe ser exposta em requerimento, indeferiu o mesmo e manteve a decisão de abertura de novo prazo para apresentação de alegações em derrogação do despacho proferido pelo tribunal competente em 3 de Novembro de 1999, i.e., 2 meses depois do Tribunal de Comércio ter entrado em funcionamento;
V) o Arguido não justificou nem o Tribunal a quo cuidou de apurar que era falso que o despacho de admissão de recurso proferido pelo Tribunal Judicial do Seixal não houvesse sido notificado às partes em 26..Nov.99, pois, contrariamente ao alegado pelo Arguido, tal despacho foi notificado em 26.Nov.99 às partes e por estas recepcionado em 2.Dez.99, conforme alegado e comprovado nos próprios autos em que o Arguido despachou com cópia das respectivas notificações e data de efectivação das mesmas.
W) É o próprio Arguido quem intencionalmente contra o alegado e evidenciado nos autos vem falsamente invocar, como desculpa ou "fundamento" para a prática do seu acto contra direito que o despacho de admissão não tinha sido notificado às partes.
A vontade de violar a lei por parte do Arguido é, neste caso, patente.
Acresce que, também, o Arguido nunca fundamentou a razão pela qual, estando a correr - por acto seu - novo prazo de recurso da providência cautelar, decidiu na pendência da mesma, julgar, de novo, tal providência cautelar;
X) Não há qualquer fundamento nem justificação para tal acto ilegal.
O Arguido não invoca nem norma jurídica nem princípio geral de direito para fundamentar tão bizarras decisões e que se traduziram no julgamento de uma providência cautelar que já havia sido julgada improcedente por outro tribunal, tudo na pendência de um recurso (já deserto por falta de apresentação de alegações pelo então Recorrente JPR), cujo prazo para apresentação de alegações ele Arguido reabriu por sua própria iniciativa.
Ou seja, estando a correr prazo (ilegal) para apresentação de alegações foi julgada de novo a providência cautelar decidida e julgada por outro Tribunal. Tal situação ocorreu por exclusiva e única iniciativa do Arguido;
Y) Não há, igualmente, qualquer justificação ou fundamento que permita caucionar o comportamento do arguido que, no âmbito de um processo de jurisdição voluntária (Proc. 63/99) para nomeação judicial de um gerente, decide apreciar da justa causa para destituição de outro gerente, quando tal facto nunca foi posto à apreciação do Tribunal;
Z) Não há, igualmente, fundamento ou justificação para que o Arguido haja, no âmbito da decisão sobre a matéria de facto proferida no âmbito de tal processo de jurisdição voluntária (Proc. 63/99), dado como provados factos constantes de decisão proferida noutro processo, de natureza contenciosa, cujo objecto e sujeitos processuais eram diferentes.
Não se trata aqui de mera "divergência legal, doutrinal ou jurisprudencial" a conduta do Arguido não só não foi fundamentada pelo apelo a quaisquer normas, como assentou em factos que ele Arguido sabia, não podendo invocar desconhecimento, serem falsos;
AA) Relativamente às declarações do Arguido, também, não podia a Decisão Instrutória ora em recurso decidir que o teor das mesmas era "esclarecedor" depois de o Recorrente haver comprovado, através da junção de documentos, no âmbito do Debate Instrutório, que as afirmações do Arguido eram, em muitos pontos, contrárias à verdade;
BB) O núcleo típico do crime p.p. no art. 369.º do C.P. preenche-se, a partir do momento, em que o agente leva a cabo, por acção ou omissão, um comportamento contra direito.
O Arguido cometeu comprovadamente diversos actos por acção e por omissão - contra direito;
CC) Haveria, na Decisão Instrutória, que determinar em que medida é que tais actos (passivos/activos) consubstanciados em factos provados podem constituir indícios suficientes da prática do crime;
DD) acerca de determinar em que medida é que um determinado comportamento - por acção ou omissão - apesar de ser contra a lei consubstancia a prática do crime p.p. no art. 3690 do C.P., debatem-se três teorias distintas: teoria subjectiva, teoria objectiva e teoria da violação do dever;
EE) nem a teoria subjectiva que reconduz o crime p.p. pelo art. 369° do C.P. a um mero delito de convicção, abstraindo do conteúdo da decisão, bem como do resultado, para se fixar na boa e na má-fé, nem a teoria da violação do dever que se reconduz à violação do bem jurídico sob tutela, esquecendo que o dever também passa pela garantia e efectivação do direito, resolvem a questão em apreciação;
FF) Conforme defendido por Medina de Seiça, (in op. cite pág. 615), é na teoria objectiva que reside o ponto de partida para definir o que significa agir contra direito;
GG) A aplicação do direito exige "... uma participação pessoal, maxime, uma livre e subjectiva convicção sobre o sentido correcto do agir (...)."
Porém, nem toda e qualquer decisão ".. pela circunstância única de corresponder à convicção do agente poderá ter-se por... conforme ao direito objectivo."
É que, a ordem jurídica não espera do juiz uma decisão "cuja bondade ou correcção ele creia; antes fornece-lhe conteúdo da sua própria convicção por meio do estabelecimento de comandos normativos.";
HH) Sendo óbvio que o Arguido praticou actos contra direito quer por acção quer por omissão, sem buscar ao menos erroneamente, qualquer fundamentação normativa para o efeito, parece-nos que terá que se concluir pelo preenchimento do tipo legal de crime p.p. pelo art. 369° do CP, crime de prevaricação e denegação da justiça;
II) Não há que apurar para o preenchimento do núcleo típico do tipo legal de crime, se o Arguido acreditava na correcção/legalidade dos seus actos, pois, assim, sendo, no limite, muitas das atrocidades cometidas por juízes durante, vg os julgamentos no período nazi ou durante o estalinismo, passariam a ser legítimas só porque haviam sido praticadas pelos respectivos agentes na convicção da justeza da sua decisão;
JJ) Do elenco dos actos praticados pelo Arguido resulta que os actos praticados pelos mesmo não podem reconduzir-se a uma mera desconformidade com a Doutrina, a Jurisprudência ou a Lei vigente. O comportamento do Arguido ao ignorar, sem poder, de forma grosseira as mais elementares regras de processo civil em vigor, inclusivamente "fundando" a sua decisão em factos que sabia serem falsos, (vg que as partes não tinham sido notificados do despacho de admissão do recurso), não pode senão significar que o Arguido praticou intencional e conscientemente o crime que lhe é imputado;
KK) Sustentar o contrário equivale a reconhecer na pessoa do arguido uma total ignorância da lei e uma incompetência técnica de contornos tais que determinariam a sua total incapacidade para o exercício de uma função de primordial importância num Estado de Direito, qual seja a jurisdicional;
LL) Concorda-se com a decisão instrutória na parte em que esta refere que:
"Ora, para que seja proferido despacho de pronúncia exige-se a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos da aplicação de uma pena (art. 308°, n° 1 do Código do Processo Penal)."
Porém, mais uma vez o Tribunal a quo invoca os fundamentos certos para decidir mal. Com efeito, se é certo que,
"... ninguém deve ser submetido a julgamento em processo penal, evitando ser-se sujeito a vexames e despesas inúteis, sempre que, no espírito do juiz, surjam dúvidas de que o arguido, face à matéria indiciária constante dos autos, possa vir a ser, efectivamente, condenado. Isto é, o princípio "in dubio pro reo" deve estar presente não só na fase do
julgamento, mas também já na fase da pronúncia."
Não é menos verdade que, do caso concreto, tais indícios são mais do que suficientes para indiciar a prática pelo Arguido do crime que lhe é imputado.
E, não se diga, como também acontece na Decisão Recorrida que pronunciar o Arguido nas condições concretas do caso em apreço, configura uma violação do princípio "in dubio pro reo".
É que, assim sendo, ninguém seria pronunciado e, consequentemente, levado a julgamento, porque tal significaria um atentado ao princípio da inocência do Arguido;
MM) A pronúncia não equivale nem de perto nem de longe a uma decisão condenatória, bastando-se com a probabilidade de, em face da prova recolhida, ser mais provável que o Arguido haja cometido o crime do que não o haja cometido;
NN) Dos factos dados como provados, bem como daqueles que o deveriam ter sido face aos elementos constantes dos autos, decorrem indícios mais do que suficientes para pronunciar o Arguido pela prática do crime de prevaricação e denegação da justiça.
É que, a não ser assim, e usando um pouco o raciocínio contido na aliás Douta Decisão recorrida, importa perguntar o que é que seria necessário resultar como provado para se considerar que existem indícios da prática do crime.
OO) E, nem se diga que o elemento que falta para o preenchimento do tipo é o dolo, porque, ou o Arguido é absolutamente incapaz para o exercício da profissão, praticando actos contra direito em todos os processos em que intervém ou, terá que se concluir necessariamente que agiu consciente e voluntariamente.»

Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido, assim como o arguido, ambos em defesa do decidido.

Subidos os autos, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, pronunciou-se pelo improvimento do recurso:
«Nos termos e para os efeitos do disposto nos art°s. 416°. e ss. do C.P.P., diz o Ministério Público:
1. - À semelhança do considerado pela Exm.a Senhora Procuradora Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. fls. 634 a 637), afigura- se-nos que não merece provimento o recurso interposto e motivado, nos termos constantes de fls. 554 a 591, pelo assistente GSMR e, como assim, que deverá manter-se a douta decisão de 18.03.05 (cfr. fls. 542 a 549) do mesmo tribunal foi no sentido de não pronunciar o arguido Lic. MCGV, Juiz de Direito, pelos factos denunciados pelo mesmo assistente e susceptíveis de configurarem o crime de denegação de justiça e prevaricação p. p. pelo art.° 369.° n.°s 1 e 2 do Código Penal,
2. - E isto, em suma, porque:
2.1. - como bem observa aquela Senhora Magistrada do Ministério Público, e bem assim se refere na douta decisão impugnada,
A - indispensável resultando, para preenchimento do respectivo tipo legal (cujo bem jurídico tutelado é, como bem se sabe, imediatamente a administração da justiça e a defesa dos direitos do cidadão e garantia da pessoa humana, como bem flui dos art.°s 27.° e 202.° da Constituição da República Portuguesa, cujo titular é o Estado, e só indirectamente o interesse dos particulares), para além da existência de consciência da conduta e da sua natureza anti ou contra direito, o que vale dizer que a conduta seja dolosa, intencionalmente dirigida a produção de determinado resultado, e que mais não é que o de negar ou falsear a justiça, logo a existência de dolo directo, que a acção do agente se revele contra direito, isto é que se mostre contrária a disposição expressa da lei;
B - no caso do n.º 2 do preceito (afinal aquele que o queixoso considera configurar a conduta havida pelos arguidos) exige-se ainda a existência de dolo específico, consistente na intenção por parte do agente de prejudicar ou beneficiar alguém, de onde que (e para aquilo que ora releva) punível seja apenas a decisão judicial (ou promoção) do agente dirigida no sentido de prejudicar ou beneficiar alguém (cfr. entre muitos, os acs. do S.T.J. de 11.12.97, Proc. n.º 868/97 ou de 12.11.98., Proc. n.º 383/98);
2.2.- retendo estes aspectos, e não perdendo de vista a prova recolhida nos autos (e outra não se vislumbra susceptível de produzir), afigura-se-nos que inexistem indícios de que com a conduta havida tenha o arguido Lic. MCGV, Juiz de Direito, incorrido na prática do mencionado ilícito.
3..- É que,
3.1. - se da prova trazida para os autos não se extraem, quanto a nós, indícios minimamente sérios de que ao tomar as decisões referenciadas no douto despacho de fls. 542 a 549 haja o arguido conscientemente e contra disposição expressa da lei actuado com o propósito intencional, deliberado, de negar a justiça,
3.2.- com maior razão resulta-nos insustentável pretender-se, ainda que em sede meramente indiciária, que ao decidir do jeito como o fez tenha o arguido actuado com o propósito de prejudicar o queixoso.
4.- Efectivamente, e como bem enfatizado vem pela Senhora Procuradora Geral Adjunta na Relação de Lisboa (cfr. resposta de fls. 634 a fls. 637),
- se, para efeitos de preenchimento do elemento subjectivo do aludido tipo legal, objecto de previsão no art.° 369.° n.°s 1 e 2 do Código Penal, não basta o possível erro técnico (ainda que eventualmente grosseiro), como decorre dos autos, sendo as decisões porventura falhas de rigor técnico susceptíveis de recurso, uma vez interpostos estes, a sua maioria obteve ganho de causa.
Daí que, não crendo minimamente previsível a possibilidade de, mantendo-se a prova indiciária carreada para os autos, vir o arguido (se pronunciado) a ser condenado, se nos afigure não passível de censura o resolvido no douto despacho impugnado.
Termos por que, em conclusão, se entende dever ser negado provimento ao recurso do assistente GSMR e, por via disso, dever ser confirmado a douta decisão recorrida.»


2. Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Acrescenta o n.º 2, que, Versando matéria de direito, as conclusões indicam, ainda, sob pena de rejeição:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Finalmente, o n.º 3 acrescenta que quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.

Como pode concluir-se da transcrição das conclusões acima levada a cabo, o recorrente referenciando a esmo algumas normas jurídicas é certo, não especifica exactamente as que tem como violadas, o sentido exacto em que foram aplicadas e aquele em que, segundo o seu ponto de vista, o deviam ser.
A mesma falha de precisão se recolhe no que à matéria de facto diz respeito, mormente quanto à delimitação adequada dos pontos tidos por mal julgados e correspondente cirurgia das provas que imponham decisão diversa. Não basta a este respeito, como é evidente, a remissão genérica para «os documentos juntos» sem se precisar quais e onde, exactamente.
Aqueles ditames formais têm como ostensivo escopo processual, delimitar, em termos de razoabilidade técnica, o objecto do recurso, de modo a evitar que a discussão alastre para aspectos secundários ou marginais da causa, a fim de agilizar a solução do caso.
Daí que se impussesse, sem mais, a rejeição daquele.
Até porque não seria caso de convite à correcção da deficiência, que o Tribunal Constitucional tem como remédio para obviar à desproporcionalidade entre o direito de defesa do arguido e a observância formal dos requisitos do recurso. Isto porque, por um lado, não se trata de recurso do arguido e sim do assistente, a quem não são, naturalmente, extensíveis as razões reportadas ao direito de defesa, e por outro, porque as apontadas deficiências formais se prendem mesmo com correspondentes deficiências da motivação a qual não pode já ser alterada..
Porém, como foi recentemente decidido no Ac. de 02.06.2005 deste Supremo Tribunal, proferido no recurso n.º 1441/05-5, com o mesmo relator, «importa que os tribunais, na medida do possível, não caiam em práticas rotineiras, sobretudo se, com elas, afinal, acabam por beneficiar o infractor, o que no caso iria acontecer, já que tal convite se traduziria afinal num alongamento do prazo de vida do recurso, e, assim, dos prazos de prisão preventiva ainda em curso, o que não pode ser tolerado.
Por isso, e sem prejuízo do respeito pela lei processual, importa dar o devido relevo a um são princípio de responsabilização de cada qual pelos actos que lhe competem, decerto mais eficaz que qualquer convite ou condescendência com a prática de actos menos ortodoxos do ponto de vista legal. Sobretudo, quando, como no caso, não obstante, ao tribunal se afigura ser possível atingir o âmago do objecto recursivo.
Nesta óptica o recorrente que não atenta convenientemente na exigência legal de formular conclusões claras, precisas e sintéticas, sujeita-se, por vontade própria, às eventuais nefastas consequências que podem advir da circunstância de o tribunal ser colocado perante as dificuldades acrescidas de ter de desvendar o autêntico «segredo escondido» que, muitas vezes, constitui a tarefa de deslindar em que consiste a verdadeira pretensão do recorrente.
E se dessa dificuldade acrescida em que o tribunal é ilicitamente colocado resultar um imperfeito conhecimento do objecto do recurso, o recorrente só de si poderá queixar-se. Sibi imputet.
A obscuridade e a complexidade das peças processuais são, como se sabe, inimigas da Justiça.»
No caso, porque, não obstante as deficiências a motivação, se pode entender, ao menos por aproximação, alcançar o essencial do objecto do recurso, afinal a pronúncia do arguido pelo crime de denegação de justiça, e porque importa não perder de vista a celeridade processual que só por interpretação perversa da lei se podia admitir ser posta em causa por deficiências imputáveis ao próprio interessado no alongamento artificial do processo, (numa sui generis espécie de venire contra factum proprium) com o consequente prejuízo para o arguido que veria, por acto alheio, alongado o tempo de vida do processo e a correspondente agravação das restrições à sua liberdade, nomeadamente as medidas coactivas, entende-se dispensar o «convite» e prosseguir no conhecimento das demais questões.

Pois, pese, embora, a pesada roupagem com que o recorrente optou por adornar as imensas conclusões da motivação do recurso (1), o certo é que se sabe que a questão posta gira à volta do que fica exposto: pronúncia ou não do arguido pelo crime de que foi denunciado.
Mas se a rejeição não é absolutamente impositiva por esta via, o mesmo não pode dizer-se quanto ao fundo da questão.
Por um lado, pese embora a discordância do recorrente quanto aos ponto de facto dados como provados e não provados no despacho recorrido, o certo é que essa discordância assenta, afinal, na sua convicção pessoal, no seu ponto de vista, de resto confortado com a cómoda remissão para os «documentos juntos ao processo» sem demonstração relevante de que podem ter outra valoração que não a levada a cabo pelo juiz recorrido.
Documentos, que, de resto, estão longe de atingir o objectivo pretendido pelo recorrente, qual seja a ilação segura da actuação intencionalmente errónea do arguido nos despachos e decisões que o desfavoreceram.
Por outro, porque, qualquer que fosse a correcta incriminação dos factos - n.º 1 ou 2, do artigo 369 do Código Penal - sempre o tipo subjectivo se haveria de ter como doloso, na certeza de que as situações ali tipificadas «não se compaginam sequer com a forma mais débil do agir doloso que o dolo eventual traduz». (2)
Ora, se os factos provados podem deixar alguma dúvida sobre o esmero técnico de algumas decisões proferidas pelo arguido, não é lícito, da sua avaliação global extrair a conclusão minimamente consistente de que nos casos em que porventura tenha errado, o juiz o tenha feito intencionalmente ou, sequer, que necessariamente assim devesse ser entendido.
Muito menos, que desses factos se possa concluir com um mínimo de segurança que o juiz em causa tivesse, ao proferi-los, intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, como o exige a agravação fundada na intenção do agente - art.º 369, n.º 2.
Até porque, num e noutro caso, não é sequer adiantado pelo recorrente qualquer móbil ou objectivo pessoal do juiz que justificasse a voluntariedade e ou intencionalidadde do erro, deste modo devendo beneficiar, de resto, como qualquer juiz, até prova em contrário, da presunção hominis da sua integridade funcional.
Daqui resulta que, pelo menos em face dos elementos probatórios até agora reunidos, não é razoável supor que, submetido a julgamento, o arguido a venha a ser condenado, sendo, antes, deveras mais consistente a probabilidade de ser absolvido.
Como escreveu o mesmo relator no Acórdão da Relação do Porto, de 20/10/93, citado no despacho recorrido «a simples sujeição de alguém julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame.
Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art.º 3.º daquela Declaração e 27.º da Constituição da República).
E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição (...)».
Esta doutrina, que mantém a sua actualidade e ora se reitera, é a que razoavelmente há-de continuar a iluminar a interpretação do artigo 308, n.º 1, do Código de Processo Penal e que o despacho recorrido respeitou.
Tanto basta para concluir pela improcedência do recurso.

3. Termos em que, pelo exposto, negam provimento ao recurso, assim confirmando a decisão recorrida.
O recorrente pagará pelo decaimento taxa de justiça que se fixa em 5 unidade de conta.

Lisboa, 16 de Junho de 2005
Pereira Madeira,
Simas Santos,
Santos Carvalho.
_____________
(1) Afinal, bem longe da leveza de adorno que o Código de Processo Penal postula no seu artigo 412.º, n.º 1, onde a palavra resumo [das razões do pedido] endereçada como epíteto às finalidades das conclusões é, por si, eloquente, quanto à necessidade de formulação sintética, que se impõe, neste ponto, observar, para não falar já no fim a que se destinam, em suma tornar rápida e facilmente apreensível pelo tribunal ad quem o cerne das razões invocadas pelo recorrente.
(2) A. Medina Seiça, Comentário Conimbricense, III, págs. 619