Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2468/15.1T8CHV-A.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
AUTARQUIA
PROTOCOLO
TÍTULO EXECUTIVO
EMBARGOS DE EXECUTADO
Data do Acordão: 03/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO ADMINISTRATIVO – PROCESSO EXECUTIVO / ÂMBITO DE APLICAÇÃO.
Doutrina:
- Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, Coimbra, 2007, p. 117 e 118;
- Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, p. 439 e 440;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 566 e 567;
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 88 e 89 ; Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 90 e 91;
- Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, p. 57;
- Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I, e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Almedina, Coimbra, reimpressão da edição de Novembro/2004, p. 25, 26, 48 a 53;
- Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Lições, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, p. 79.
Legislação Nacional:
ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS (ETAF), APROVADO PELA LEI N.º 13/2002, 19-02: - ARTIGOS 4.º, N.º 1, ALÍNEAS E) E F) E 5.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS (CPTA): - ARTIGO 157.º, N.º 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DOS CONFLITOS:


- DE 16-12-2004, PROCESSO N.º 04/04;
- DE 09-09-2010, PROCESSO N.º 11/10;
- DE 30-06-2011, PROCESSO N.º 1/11;
- DE 25-03-2015, PROCESSO N.º 02/14;
- DE 25-06-2015, PROCESSO N.º 8/15;
- DE 09-07-2015, PROCESSO N.º 07/15;
- DE 18-02-2016, PROCESSO N.º 28/15;
- DE 12-05-2016, PROCESSO N.º 03/16;
- DE 01-06-2017, PROCESSO N.º 2/16, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, nos termos do art. 5.º, n.º 1 do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, 19-02, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.
II - Perante uma relação contratual estabelecida entre um ente público, no caso uma autarquia local (embargante) e uma instituição particular de solidariedade social (embargada/exequente), o enquadramento a fazer para efeitos de competência para a execução das obrigações assumidas no “Protocolo de Cooperação” dado à execução deve ser feito à luz das disposições do ETAF (art. 4.º, n.º 1, als. e) e f)), que disciplinam a matéria contratual.
III - Em consequência, não merece censura o acórdão recorrido que, tendo por base o referido em II e ao abrigo do disposto no art. 157.º, n.º 4 do CPTA, defere a competência material para o prosseguimento dos autos aos tribunais administrativos.


Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,


I. Relatório

1. O Executado Município de --- deduziu oposição, pelos presentes embargos, à execução comum, para pagamento de quantia certa, que lhe move a Santa Casa da Misericórdia de ---, alegando, em síntese, que o “Protocolo” dado à execução não constitui título executivo, consubstanciando apenas uma promessa de doação, a qual deve ser considerada revogada pelo menos desde finais de 2013, e, por outro lado, estão feridas de ilegalidade as deliberações que sustentaram a referida promessa, e não foi colhido o visto prévio do Tribunal de Contas.

2. A Exequente contestou a oposição defendendo a exequibilidade do referido Protocolo já que se encontra elaborado e foi assinado a coberto das deliberações dos órgãos municipais respetivos – Câmara Municipal e Assembleia Municipal – que o aprovaram, ficando, assim, o Município constituído na obrigação de o cumprir.

Mais alega que o próprio Executado, já após o novo executivo camarário estar em funções, reconheceu a existência da dívida e a validade implícita do protocolo de cooperação celebrado, reconhecendo, através de carta assinada pelo Sr. Presidente da Câmara, o débito relativo aos anos de 2013 e 2014.

3. Realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou improcedentes os embargos, determinando, consequentemente, o prosseguimento da execução.

4. Não se conformando com esta decisão, o Embargante/Executado interpôs recurso de apelação.

5. O Tribunal da Relação de --- veio conceder provimento ao recurso, revogando a decisão impugnada, julgaram “procedente a excepção dilatória de incompetência material da Secção de Execução da comarca de ---, absolvendo o Apelante da instância executiva.

6. Inconformada com tal decisão, a Exequente/Embargado Santa Casa da Misericórdia de --- interpôs recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. O pedido na presente ação traduz-se na pretensão de pagamento do que é devido à Requerente/ Exequente,

2ª. Tal pedido assenta no incumprimento de um Protocolo ou Contrato, celebrado entre ambas as partes com obrigações recíprocas, sinalagmáticas, e em que uma das partes cumpriu e outra não.

3ª. Relação jurídica estabelecida no âmbito do direito privado e por ele regulada.

4ª. A qualidade pública de um dos intervenientes no contrato ou acordo, só por si, não define nem impõe qual o tipo de contrato/protocolo celebrado e muito menos qual a jurisdição que a regula, nas suas relações diversificadas.

5ª. A relação jurídica em causa nestes autos, tal como configurada pela exequente, e, resultante do protocolo/contrato celebrado entre a exequente e o executado é regulada, pelo Direito Civil e não pelo Direito Administrativo.

6ª. Todas as obrigações, recíprocas, que resultam do documento em causa são reguladas pelo Direito Civil, donde resultam os direitos e deveres de cada uma delas.

7ª. "Segundo FREITAS DO AMARAL, relação jurídico-administrativa é "aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração".

Independente da disputa doutrinal em torno do conceito de relação jurídica administrativa a que os artigos 212º., nº.3, da CRP e 1º. do ETAF fazem apelo a Jurisprudência tem vindo sobretudo a decidir as questões concretas que lhe têm sido colocadas a propósito da delimitação de competências dos Tribunais para ações relativas a contratos (que são as que neste momento nos importam) por referência às normas insertas nas alíneas b). e) e f) do nº.1 do artigo 4 do ETAF, que são as que ali expressamente a tais litígios [vide, designadamente, os Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 09-12-2010, Proc. 20/10; de 16-09-2010, Proc. 13/09; de 09-06-2010, Proc. 5/10; de 25-11-2010, Proc. 21/10].

E com efeito, é ao abrigo das normas específicas insertas nas alíneas b), e) e f) do n°1 daquele artigo do ETAF que devem ser resolvidas as questões da delimitação da competência dos Tribunais Administrativos no que respeita a ações relativas a contratos sempre que se esteja perante situação por elas abrangidas. Na verdade, é na área dos litígios relativos a contratos (e através daquelas normas) que sobretudo se operam os maiores desvios ao critério material (geral) de delimitação da competência dos Tribunais Administrativos vertido no artigo 212º., nº.3, da CRP e acolhido no n. °1 do artigo do ETAF. "

8ª. Estando nós perante uma relação jurídica regulada pelo direito civil, é nosso entendimento que serão os Tribunais Judiciais os competentes para em razão da matéria, decidirem o litígio.

9ª. Uma interpretação literal do artigo 4° nº.1 aI. e) do ETAF, levaria á conclusão de que todos os litígios eventualmente resultantes da celebração de um contrato privado, mesmo sem intervenção de entidades públicas, mas em que sejam exigidos ou efetuados procedimentos pré-contratuais públicos (ex. concurso público) teria de ser submetido à apreciação dos Tribunais Administrativos.

10ª.No caso dos autos, para celebração daquele contrato, cuja validade não está em causa, repete-se, não foram nem tinham de ser, era mesmo impossível serem realizados procedimentos pré-contratuais que não são exigidos por lei específica ou geral.

11ª. Estamos perante um contrato de direito privado, sujeito às normas do direito civil, em que interveio uma entidade da administração local desprovida de qualquer autoridade de direito público ou das prerrogativas que a sua qualidade de entidade pública lhe confere.

12ª. A exequente pretende tão só a cobrança de uma dívida da Câmara Municipal.

13ª. 0 contrato não foi precedido de quaisquer formalidades pré-contratuais. nem tinha de ser, pelo que a mera possibilidade de a sua celebração poder ser precedida por um procedimento pré-contratual público, conduziria "lato sensu" ao desvio de todos os litígios relativos à interpretação, validade e execução dos contratos que são puramente civis dos tribunais judiciais para os tribunais administrativos. Solução que ademais não se acha conforme à opção constitucional já referida supra de submeter à apreciação dos Tribunais Administrativos, exclusivamente, a matéria administrativa, e, deixando a competência geral para os Tribunais Judiciais.  

14ª. A correta interpretação do artigo 4° nº.1 aI. e) do ETAF, em conjugação com o artigo 211º. nº.1 e 212º. nº.3 da Constituição e artigo 1° do ETAF, impunha decisão diversa da constante no douto Acórdão em crise, reconhecendo que aos Tribunais Judiciais compete apreciar o litígio.

15ª. O Tribunal "a quo" não ponderou, a falta de meios nos Tribunais Administrativos, em sede executiva, para efetivação de ações executivas previstas e reguladas no Código de Processo Civil, (artigo 157 nº. do CPTA) como é o caso dos autos, não lhe competindo dar execução a contratos e sua efetivação.

16ª. Diferente seria se, por acaso houvesse alguma decisão praticada pelo Executado que alterasse o contrato celebrado, denunciando-o, revogando-o, alterando-o, enfim manifestando de alguma forma vontade contrária ao seu conteúdo.

17ª.Independentemente dos intervenientes nesse contrato, para esse objetivo, são competentes os Tribunais Judiciais e não os Administrativos.

18ª.Compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das ações que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

19ª. O conceito de relação jurídica administrativa é decisivo para determinar a repartição de competências entre os Tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais, na medida em que essa repartição se faz em função do litígio cuja resolução se pede, emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa.

20ª. O conceito de relação jurídica administrativa é erigido tanto na Constituição como na lei ordinária em pedra angular para a repartição da jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais.

21ª. À míngua de definição legislativa do conceito de relação jurídica administrativa, deverá esta ser entendida no sentido tradicional de relação jurídica regulada pelo direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.

22ª. Uma relação jurídica administrativa deve ser uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico- privada."

23ª. Ao assim não decidir o Venerando Tribunal da Relação de --- violou o disposto nos artigos 211° nº.1 e 212 nº.3 da CRP, e artigos 1° n01 e 4° al. e) do ETAF, pelo que o douto Acórdão em crise deverá ser substituído por outro que considere o Tribunal de Execução de --- competente para o litígio e prosseguindo o processo seus trâmites até final, fundando-se o presente recurso no estatuído nos artigos 674 no1 al. a) e 671 nº1 do C.P.Civil.

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

8. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelos Recorrentes decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à questão da competência dos tribunais administrativos.

                III. Fundamentação.
1. Do mérito do recurso
1.1.Da competência em geral e da lei aplicável

Está em causa saber se a competência para apreciar e julgar a presente execução pertence à jurisdição administrativa ou à jurisdição comum.

A competência dos tribunais é, em geral, a medida de jurisdição atribuída aos diversos tribunais, ou seja, o modo como, entre si, fracionam e repartem o poder jurisdicional que, tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais (neste sentido: Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 88 e 89).

Por seu turno, a competência em razão da matéria – que é a que ora releva – é a competência das diversas espécies de tribunais dispostos horizontalmente, isto é, no mesmo plano, sem relação de sobreposição ou subordinação entre eles.

Os Tribunais Judiciais têm uma competência material residual, competindo-lhes conhecer de todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional e, dentro dessa ordem, a competência em razão da matéria distribui-se entre tribunais de competência genérica e tribunais de competência especializada segundo o mesmo critério de competência material residual para os primeiros, em tudo o que não seja atribuído, por lei, aos segundos – artigos 37.º, 40.º, 80.º, e 81.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, e artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

No que concerne à competência dos Tribunais Administrativos, estabelece o artigo 212.º, n.º 3, da CRP que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Constitui jurisprudência pacífica que a competência em razão da matéria se fixa em função dos termos em que o autor propõe a ação, atendendo ao direito que o mesmo se arroga e pretende ver judicialmente reconhecido, devendo, por isso, a questão da competência ser decidida em conformidade com o pedido deduzido e com a causa de pedir em que o mesmo se funda.

Com efeito, tal como se deixou expresso no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 1/06/2017 (Proc. 2/16, disponível em www.dgsi.pt), constitui jurisprudência pacifica deste Tribunal o entendimento de que a competência, tal como ocorre com qualquer pressuposto processual, se afere em face do pedido concatenado com a causa de pedir, ou seja, com a natureza da relação material em litígio tal como é configurada pelo autor (V., entre outros, os Acs. do Tribunal dos Conflitos de 25.03.2015, Proc. 02/14, 25.06.2015, Proc. 8/15, 09.07.2015, proc. 07/15 e 18.02.2016, proc.28/15, todos disponíveis em www.dgsi.pt.).

É o que tradicionalmente se costuma exprimir, dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor, ou seja, a decisão de qual seja o tribunal (jurisdição) competente há-de ser feita de acordo com os termos da pretensão do autor, abrangendo os respetivos fundamentos, não importando averiguar qual a viabilidade dessa pretensão. A competência é, pois, questão prévia a tal apreciação, a decidir independentemente do mérito/demérito da ação, não dependendo da sua procedência (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 90 e 91).

Para além disso, importa ter presente que, de acordo com o disposto no artigo 38.º, n.º 1, da LOSJ, a competência se fixa no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.

O mesmo decorre do artigo 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro), no qual se preceitua que a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.

            Em consequência, considerando que a execução para pagamento de quantia certa a que se referem os presentes embargos deu entrada em juízo em 20-11-2015 e que as relevantes alterações introduzidas ao ETAF pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, no que toca ao âmbito da jurisdição, não respeitando a matéria de organização e funcionamento dos tribunais administrativos, apenas entraram em vigor 60 dias após a sua publicação (crf. artigos 15.º, n.º 1 e n.º 4, este a contrario), é aplicável ao caso o ETAF na sua anterior redação (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro e subsequentes alterações: Rect. n.º 14/2002, de 20-03, Rect. n.º 18/2002, de 12-04, Lei n.º 4-A/2003, de 19-02, Lei n.º 107-D/2003, de 31-12, Lei n.º 1/2008, de 14-01, Lei n.º 2/2008, de 14-01, Lei n.º 26/2008, de 27-06, Lei n.º 52/2008, de 28-08, Lei n.º 59/2008, de 11-09, Decreto-Lei n.º 166/2009, de 31-07, Lei n.º 55-A/2010, de 31-12, e Lei n.º 20/2012, de 14-05).

1.2.Do conceito de relação jurídica administrativa

Vejamos, então, à luz dos normativos que o caso convoca se a competência para apreciar a julgar a referida ação pertence aos Tribunais Administrativos ou aos Tribunais Judiciais.

     Dispunha o artigo 1.º do ETAF, na supra citada redação anterior, em consonância com o que se dispõe no artigo 212.º, n.º 3, da CRP, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”

Conforme se vê destes normativos, a delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa assenta na noção de relação jurídica administrativa.

A doutrina tem-se debruçado sobre este conceito:

- Gomes Canotilho e Vital Moreira referem, em anotação ao artigo 212.º, n.º 3, da CRP (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, págs. 566 e 567), que na jurisdição administrativa estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1- as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); 2- as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico civil”. Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, artigo 4.º).

  O conceito de relações jurídico-administrativas deve ser entendido neste contexto como uma referência à possibilidade de alargamento da jurisdição administrativa a outras realidades diversas das tradicionais formas de actuação (acto, contrato e regulamento), complementando aquele critério. Pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisdição administração do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à actividade de direito público, cuja característica essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado. Trata-se de um conceito suficientemente dúctil e flexível para enfrentar os desafios do «novo direito administrativo», mas que não pode deixar de ser entendido como complementar da tradicional dogmática das formas de actuação administrativa;

- Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, Lições, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 79), seguindo um critério estatutário, define a relação jurídica administrativa como aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido;

- Freitas do Amaral (Direito Administrativo, vol. III, págs. 439 e 440) define a relação jurídico-administrativa como aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos ou particulares perante a Administração;

- Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 117 e 118) afirma que deve entender-se por relação jurídico-administrativa aquela que é estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas, acrescentando que poderá tratar-se de uma relação jurídica intersubjetiva (como a que ocorre entre a Administração e os particulares), inter administrativa (quando se estabelece entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender) ou inter orgânica (quando se interpõe entre órgãos administrativos da mesma pessoa coletiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem) e, por outro lado, que tais relações jurídicas podem ser simples ou bipolares consoante decorram entre dois sujeitos ou surjam entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica;

- Já Mário Aroso de Almeida (O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 57) afirma que as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo o critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis. Nesta perspetiva, serão relações jurídicas administrativas as derivadas de atuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados.

- Por último, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira (Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I, e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Almedina, Coimbra, reimpressão da edição de Novembro/2004, págs. 25 e 26) referem que são relações jurídico-administrativas:

i) em princípio, aquelas que se estabelecem entre duas pessoas colectivas públicas ou entre dois órgãos administrativos (relações intersubjectivas públicas e relações inter-orgânicas), desde que não haja nas mesmas indícios da sua clara pertinência ao direito privado;

ii) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos (seja ele público ou privado), actua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido (…);

iii) aquelas em que esse sujeito actua no cumprimento de deveres administrativos, de autoridade pública, impostos por motivos de interesse público (v. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2002, p. 137).

Também a jurisprudência tem procurado caracterizar a relação jurídica administrativa, podendo citar-se, a título exemplificativo, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28-10-2009 (proc. 0484/09, disponível em www.dgsi.pt), sumariado nos seguintes moldes:

I - O conceito de relação jurídica administrativa pode, ser tomado em diversos sentidos. Em sentido subjectivo, onde se inclui qualquer relação jurídica em que intervenha a Administração, designadamente uma pessoa colectiva, pelo que tenderia a privilegiar-se igualmente um critério orgânico como padrão substancial de delimitação. Já em sentido predominantemente objectivo, abrangeria as relações jurídicas em que intervenham entes públicos, mas desde que sejam reguladas pelo Direito Administrativo. E há ainda um outro sentido, que faz corresponder o carácter «administrativo» da relação ao âmbito substancial da própria função administrativa.

II - A noção de relação jurídica administrativa para efeitos de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa, deve abranger a generalidade das relações jurídicas externas ou intersubjectivas de carácter administrativo, seja as que se estabeleçam entre os particulares e os entes administrativos, seja as que ocorram entre sujeitos administrativos.

III - Para efeito de inclusão no contencioso administrativo, devem considerar-se relações jurídicas administrativas externas ou interpessoais: a) as relações jurídicas entre a Administração e os particulares, incluindo: i) as relações entre as organizações administrativas e os cidadãos (ditas «relações gerais de direito administrativo»), mas também; ii) as relações entre as organizações administrativas e os membros, utentes ou pessoas funcionalmente ligados a essas organizações (as chamadas «relações fundamentais» no contexto das «relações especiais de direito administrativo») e; iii) as relações entre entes que actuem em substituição de órgãos da Administração (no contexto do exercício privado de poderes públicos, por exemplo, os tradicionais concessionários, capitães de navios ou de aeronaves, federações de utilidade pública desportiva, a que se juntam hoje múltiplas entidades credenciadas para o exercício de funções de autoridade) e os particulares; b) as relações jurídicas administrativas, incluindo: i) as relações entre entes públicos administrativos, mas também; ii) as relações jurídicas entre entes administrativos e outros entes que actuem em substituição de órgãos da Administração, e ainda; iii) certas relações jurídicas entre órgãos de diferentes entes públicos (quando a circunstância de se tratar de órgãos de pessoas colectivas distintas puder ser considerada decisiva ou dominante para a caracterização da relação, como, por exemplo, no caso da delegação de atribuições).

Do exposto, pode concluir-se, na senda de Gomes Canotilho e Vital Moreira, que para podermos afirmar que estamos ante uma relação jurídica administrativa temos de isolar dois elementos: (i) por um lado, um dos sujeitos há-de ser uma entidade pública ou se for privada deve atuar como se fosse pública; e (ii) por outro lado, os direitos e os deveres que constituem a relação hão-de emergir de normas legais de direito administrativo ou referir-se ao âmbito substancial da própria função administrativa.

Será, pois, à luz do conceito de relação administrativa acima delineado que as diversas alíneas do artigo 4.º do ETAF devem ser lidas e interpretadas, posto que, conforme se deixou dito, face aos artigos 212.º, n.º 3, da CRP, e 1.º, n.º 1, do referido Estatuto, essencial para que a competência seja deferida aos tribunais administrativos é que o litígio se insira no âmbito de uma relação dessa natureza, o mesmo é dizer numa relação onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público.

O artigo 4.º do ETAF (na redação anterior ao Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, aqui aplicável), sob a epígrafe “Âmbito da jurisdição”, enumera, de forma exemplificativa, os litígios cuja competência se defere à jurisdição administrativa e os que dela se mostram excluídos, umas vezes em consonância com a cláusula geral plasmada no artigo 1.º, n.º 1, do ETAF e noutras em desconformidade com ela.

Em consequência, a fim de alcançar a natureza administrativa de uma relação jurídica, deverá fazer-se um juízo de articulação entre a cláusula geral do artigo 1.º, n.º 1, e os critérios do artigo 4.º, ambos do ETAF, posto que a aludida natureza apenas se alcança perante uma diversidade de elementos de conexão e será o referido artigo 4.º, na sua delimitação positiva (n.º 1), bem como na negativa (n.ºs 2 e 3), que permitirá clarificar aquilo que está, efetivamente, abrangido pelo âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos.

Conforme ensina, neste particular, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira (ob. cit., págs. 26 e 27), nos fatores de determinação das pretensões jurídicas formuláveis perante a jurisdição administrativa, o legislador fez prevalecer nuns casos critérios objetivos ou materiais abstraindo da sua pertinência subjetiva (pública) e noutros fez prevalecer o fator subjetivo ou orgânico, independentemente da natureza das relações litigiosas.

Nos primeiros casos, é, pois, a natureza administrativa da relação jurídica e a sua regulação por normas de direito administrativo o fator determinante da atribuição da jurisdição aos tribunais administrativos, levando a incluir no seu âmbito litígios em que não é parte a Administração Pública, (…) mas órgãos de outros poderes do Estado ou até sujeitos privados a atuar no exercício de poderes ou funções administrativas (tal como sucede nos casos das alíneas a), c), d), e) e f), primeira parte, do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF).

Nos segundos casos, releva, para efeitos de atribuição da competência aos tribunais administrativos, o facto de estarem em causa conflitos em que estão envolvidos entes com natureza (ou forma) jurídico-pública, independentemente de os mesmos serem regulados pelo direito administrativo ou pelo direito privado ou até de confluírem ambos na sua regulação (tal como sucede nalguns casos da alínea e) e nas alíneas g), h) e l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF).

Por último, outras situações existem em que a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa se faz através da conjugação de fatores objetivos e subjetivos (tal como sucede nos casos das alíneas b) e f), segunda parte, do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF).

1.3.Da subsunção ao caso concreto

No caso presente, entendeu o Acórdão recorrido ser de deferir a competência aos tribunais administrativos considerando que, na altura, uma das competências das Câmaras Municipais era a de celebrar protocolos com entidades que desenvolvessem atividades de prestação de serviços a estratos sociais desfavorecidos ou dependentes (cfr. art. 64.º, n.º 4, al. c), e art. 67.º da Lei que estabelece o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento, dos órgãos dos municípios e das freguesias, aprovada pela Lei n.º 169/99, de 18 de setembro, na redação introduzida pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de janeiro), estando, pois, em causa uma relação jurídica regulada, sob o ponto de vista material, pelo Direito Administrativo.

Enquadrou, por conseguinte, o caso dos autos na competência material dos tribunais administrativos, ao abrigo dos artigos 1.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, e artigo 212.º, n.º 3, da CRP, por estar em causa uma execução referente ao incumprimento de um contrato administrativo, fazendo referência aos Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 16/12/2004 (Proc. n.º 04/04), de 09/09/2010 (Proc. n.º 011/10) e de 30/06/2011 (Proc. n.º 01/11), todos respeitantes a protocolos celebrados por municípios e que deferiram a competência aos tribunais administrativos, bem como ao Acórdão do mesmo tribunal de 12/05/2016 (Proc. n.º 03/16), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

A ora Recorrente entende, contudo, nas respetivas conclusões do seu recurso de revista que está em causa uma relação jurídica de direito privado por ele regulada, porquanto, embora admita que se está perante um contrato, entende que uma correta interpretação do artigo 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, em conjugação com os demais preceitos que disciplinam a matéria da competência, deve levar à conclusão de que os tribunais judiciais são os competentes por estar em causa um contrato em que interveio uma entidade da administração local desprovida de qualquer autoridade de direito público ou de qualquer das suas prerrogativas, sem que o contrato tenha sido precedido de quaisquer formalidades pré-contratuais, ou sequer que o tivesse de ser por estas não serem exigidos por lei específica ou geral.

Adicionalmente, defendeu não ter o tribunal ponderado a falta de meios dos tribunais administrativos em sede executiva, para a efetivação das execuções previstas no Código de Processo Civil, como é o caso dos autos, sustentando, a final, não estar em causa qualquer relação jurídico administrativa.

Ora, no caso presente, afigura-se-nos merecer concordância a decisão da Relação.
Resulta do “Protocolo de Cooperação” apresentado à execução (fls. 153 vs. a 155), objeto de aprovação em reunião ordinária de 11/12/2006 da Câmara Municipal de --- (fls. 155 vs. a 157) e igualmente aprovado em sessão ordinária da Assembleia Municipal de --- realizada no dia 29/12/2006 (fls. 157 vs. a 162 vs.), ter este Município se comprometido a atribuir à Santa Casa da Misericórdia de --- um apoio financeiro de um milhão de Euros, transferindo semestralmente uma quanta de € 33.333,33, durante o período de 15 anos.
Tal quantia destinar-se-ia a comparticipar os custos com a construção, aquisição de material, conservação de espaços, entre outras despesas, com referência, por um lado, às atividades já desenvolvidas pela ora Exequente no âmbito do apoio à melhoria das condições de vida da população, através do apoio à família, proteção à infância, juventude e terceira idade, através dos equipamentos e atividades já a funcionar e, por outro, com respeito à construção de uma unidade de cuidados continuados e de uma unidade de medicina física e de reabilitação cujas obras se encontravam em fase de conclusão (cfr. cláusulas 1.ª, 2.ª e 3.ª do Protocolo).
Para além disso, previram as partes, como contrapartida, que a ora Exequente disponibilizaria gratuitamente, durante o período de 15 anos, os serviços de fisioterapia/fisiatria aos munícipes portadores do cartão municipal do idoso total, comprometendo-se, ainda, a doar ao Município um determinado prédio urbano, no qual está implantado o edifício do infantário (cláusula 4.ª do Protocolo).
Ora, atentos os termos e condições do referido Protocolo afigura-se-nos que as partes estabeleceram, efetivamente (e sem que resulte dos autos que tal seja objeto de contestação), uma verdadeira relação contratual, na medida em que são estabelecidas deveres e obrigações recíprocas que resultam de um acordo de vontades.
Estamos, assim, conforme decidiu o acórdão recorrido, perante uma relação contratual estabelecida entre um ente público, no caso uma autarquia local, como é a ora Embargante, e uma instituição particular de solidariedade social, correspondente ao Exequente, pelo que o enquadramento a fazer para efeitos de competência para a execução das obrigações assumidas no referido “Protocolo” deve ser feito à luz das disposições do ETAF que disciplinam a matéria contratual, sem prejuízo do seu enquadramento global no que se entenda ser uma relação jurídico-administrativa.
A este respeito delimitava o artigo 4.º do ETAF, o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, prevendo expressamente nas alíneas e) e f) do seu n.º 1, que estes são competentes para apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual, regulado por normas de direito público e questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
Conforme ensinam, a propósito da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigues Esteves de Oliveira (in CPTA e ETAF Anotados, Vol. I, 2004, págs. 48 a 53), a opção tomada nesta alínea e), que constitui a grande revolução do Código na matéria, traduziu-se na adição à jurisdição dos tribunais administrativos do conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente da qualidade das partes nele intervenientes – de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares – e independentemente de, pela sua natureza e regime (ou seja, pela disciplina da própria relação contratual), eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.) (...) O que é relevante (...) para determinar o âmbito “contratual” da jurisdição administrativa, continua a ser a natureza jurídica do procedimento que antecedeu – ou que devia ou podia ter antecedido – a sua celebração, e não a própria natureza do contrato.
Se se trata de um procedimento administrativo, a jurisdição competente para conhecer da interpretação, validade de execução (incluindo a modificação, responsabilidade e extinção) do próprio contrato celebrado na sua sequência – independentemente de ele ser um contrato administrativo ou de direito privado – é a jurisdição administrativa. E independentemente também de se tratar (de actos pré-contratuais ou) de contratos de uma pessoa colectiva de direito público ou de um sujeito privado que esteja submetido, por lei específica, a deveres pré-contratuais de natureza administrativa – como sucede, por exemplo, nomeadamente por força da transposição de normas comunitárias (embora o mesmo possa acontecer em virtude da sua aplicação directa) com: (…) iii) aquelas entidades a que se referem os nºs. 1 e 2 do artº 3º do Decreto-lei nº 197/99 (de 8 de Junho) quanto às aquisições desse mesmos bens e serviços, em geral. (…) Os contratos cuja interpretação, validade ou execução pertence à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos da citada alínea e), são quaisquer contratos – administrativos ou não, com excepção dos de natureza laboral, por força da alínea d) do artº 4º/3 – que uma lei específica submeta, ou admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado pelas normas de direito administrativo. O que significa que para esses litígios contratuais ficarem sujeitos à jurisdição administrativa não é necessário que o respectivo contrato seja celebrado na sequência de uma pré-contratação administrativa, desde que haja uma lei que “admita que (ele lhe) seja submetido.
A competência “contratual” da jurisdição administrativa vale, portanto, quer no caso de o procedimento prévio do contrato ter assumido a forma (fosse ou não obrigatória) de procedimento administrativo pré-contratual, quer no caso de a entidade administrativa contratante – por não ser tal norma obrigatória (só permitida) – ter optado legalmente por uma forma de pré-contratação de natureza privatista. (…).
Ora, estando em causa nos autos a execução de um Protocolo que integra o compromisso por parte do Município de atribuir a uma determinada pessoa coletiva uma quantia pecuniária como contrapartida de uma contraprestação que é prestada aos seus munícipes, entendemos que sempre se deverá reconduzir o caso a uma situação que estaria sujeita a um procedimento pré-contratual, não podendo a aquisição dos referidos serviços ou o pagamento da respectiva contraprestação deixar de estar submetida a um regime regulado por normas de direito público.
Em todo o caso, e na senda da doutrina acima explanada, ainda que se entendesse que a situação não estaria de maneira evidente coberta pela previsão do artigo 4.º, n.º 1, als. e) ou f), do ETAF, na redação aplicável, não soçobrariam dúvidas de que a mesma teria de ser enquadrada como uma relação jurídico administrativa para efeitos do artigo 1.º, n.º 1, do ETAF e do artigo 212.º, n.º 3, da CRP, conforme concluiu o acórdão recorrido.
Com efeito, é manifesto não se enquadrarem as obrigações que decorrem do Protocolo dado à execução – pelos termos em que foi firmado, pelos fins que presidiram ao seu estabelecimento e pelos respetivos intervenientes e conteúdo – numa mera relação de direito privado, tratando-se, outrossim, de uma clara manifestação de uma relação que deve ser regida pelo Direito Administrativo.
Assim, fazendo uma interpretação articulada do artigo 1.º, n.º 1, com as diversas alíneas do artigo 4.º, n.º 1, do ETAF (que recorde-se, nuns casos alarga e noutros restringe o que decorre do conceito de relações jurídico-administrativas), resulta que a atividade desenvolvida pela Câmara Municipal na celebração do Protocolo em representação do Município, insere-se no âmbito material do que é o funcionamento da administração e substancialmente no contexto de uma relação jurídico administrativa em que o ente público envolvido atuou ainda no desempenho dos poderes de autoridade visando a realização do interesse público.
Conclui-se, pois, até por não estar manifestamente em causa qualquer mera relação de natureza privada, deverá ser confirmada a atribuição da competência aos tribunais administrativos por serem, aliás, os mais bem preparados para conhecer as questões que se suscitam nos autos.
Numa situação de contornos muito idênticos, decidiu o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 16/12/2004, Proc. n.º04/04, disponível em www.dgsi.pt (citado na fundamentação do acórdão recorrido) que:
É contrato administrativo um designado “protocolo” celebrado entre uma Câmara Municipal e uma “Associação de Desenvolvimento”, visando a cooperação, associação ou colaboração desta à realização de um interesse público integrado no conjunto das atribuições da pessoa colectiva envolvida, mediante retribuição e em que ambos os outorgantes assumem determinadas obrigações, já que tal “protocolo” integra um “acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica de direito administrativo”.
Apelou-se, nomeadamente, na fundamentação do aresto precisamente ao enquadramento legal respeitante às competências atribuídas às câmaras municipais a que alude o acórdão recorrido, concluindo-se que: “A relação jurídica estabelecida entre A. e R. [uma Câmara Municipal] através do “Protocolo” em referência, encontra por conseguinte apoio legal nas citadas disposições da Lei nº 169/99, normas essas que, enquanto disciplinadoras de actividade e funcionamento da Administração ou atributivas de competências a um órgão ou a uma pessoa colectiva de direito público são, por natureza, normas jurídicas de direito público ou de direito administrativo.”
Da mesma forma, resulta dos acórdãos do Tribunal dos Conflitos proferidos em 09/09/2010, Proc. n.º11/10, e de 30/06/2011, Proc. 1/11, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, citados pelo acórdão recorrido, que em casos em que estava igualmente em causa o cumprimento de obrigações decorrentes de protocolos celebrados com entidades públicas municipais, foi considerado revestirem os mesmos a natureza de contratos administrativos sujeitas à jurisdição dos tribunais administrativos.

Finalmente, e no que concerne à circunstância do tribunal recorrido não ter ponderado a falta de meios dos tribunais administrativos em sede executiva, para a efetivação das execuções previstas no Código de Processo Civil, afigura-se-nos que tal circunstancialismo, ainda que se verificasse, não poderia em qualquer caso conduzir à procedência do recurso.
Com efeito, a alegada falta de meios técnicos ou humanos não poderia nunca conduzir a uma modificação ou desaplicação das regras da competência, e quanto ao quadro normativo aplicável, decorre do artigo 157.º, n.º 4 do CPTA que as vias de execução nesse Código “podem ser ainda utilizadas para obter a execução de qualquer outro título executivo passível de ser acionado contra uma pessoa coletiva de direito público”, pelo que não se vislumbram impedimentos legais a que a presente execução possa correr nos tribunais administrativos.

Deste modo, o Acórdão recorrido não merece censura, deferindo a competência material para o prosseguimento dos presentes autos aos tribunais administrativos.


IV. Decisão
Posto o que precede, acorda-se em negar provimento à revista, e, consequentemente, confirma-se o Acórdão recorrido.


Sem custas, atenta a isenção de que goza a Recorrente.


Lisboa, 26 de março de 2019

(Processado e integralmente revisto pelo relator, que assina e rubrica as demais folhas)





Pedro Lima Gonçalves (Relator)
Fátima Gomes
Acácio das Neves
(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo Acordo Ortográfico)