Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
895/17.9T8PTM.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ILICITUDE
DANOS PATRIMONIAIS PUROS
DEVERES DE SEGURANÇA NO TRÁFEGO
RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
FACTOS CONCLUSIVOS
DOCUMENTO AUTÊNTICO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANOS PATRIMONIAIS
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VIOLAÇÃO DE LEI
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
Data do Acordão: 11/26/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. Os danos invocados pelos autores nos presentes autos revestem a natureza do que vem sendo denominado como danos económicos puros ou danos puramente patrimoniais, cuja ressarcibilidade, no domínio da responsabilidade civil delitual, constitui a excepção e não a regra, estando circunscrita às seguintes situações: (i) Violação de normas de protecção, desde que se verifiquem as condições preenchedoras desta modalidade de ilicitude; (ii) Violação de previsão delitual específica que abranja tal categoria de danos; (iii) Ocorrência de abuso do direito, nas condições limitadas em que este constitua fonte de responsabilidade civil.

II. A violação de normas de direito administrativo ou de direito urbanístico – podendo ser qualificada como uma ilegalidade – não permite, por si só e de forma automática, responsabilizar civilmente, sendo necessário proceder previamente à determinação do âmbito de protecção da norma ou normas violadas para, subsequentemente, se apurar se os interesses cuja tutela se pretende assegurar se encontram inseridos nesse âmbito.

III. No caso dos autos, importa aferir do preenchimento do pressuposto da ilicitude da conduta da ré e da interveniente à luz das diversas fontes normativas consideradas, a saber: (i) Violação de normas destinadas a proteger interesses alheios ou violação de normas de protecção (art. 483.º, n.º 1, segunda parte do CC); (ii) Violação de deveres de prevenção de perigo ou deveres de segurança no tráfego (arts. 492.º e 493.º do CC); (iii) Desrespeito pela proibição de emissões nas relações de vizinhança (art. 1346.º do CC); (iv) Responsabilidade civil nas relações de vizinhança (art. 1348.º, n.º 2 do CC).

IV. Para que a ilicitude por violação de normas de protecção se dê como verificada num determinado caso concreto, não basta constatar a existência da violação de uma norma legal; é necessário ainda que se encontrem reunidas as seguintes condições: que o fim da norma violada se dirija à tutela de interesses particulares e que o dano ocorrido se integre no círculo de interesses tutelados pela norma em causa.

V. Ora, a norma que exige a licença de demolição destina-se, primacialmente, a proteger o interesse público, admitindo-se que, concomitantemente, se destine também a proteger interesses particulares. Porém, tem-se como certo que os danos abrangidos pelo círculo dos interesses particulares em causa são aqueles danos originados pela lesão de direitos absolutos (designadamente de direitos personalidade ou de direitos reais) ou equivalentes; e não danos económicos puros ou danos puramente patrimoniais como aqueles que estão em causa na presente lide.

VI. De acordo com o entendimento tradicional, prevalecente na doutrina e constante na jurisprudência, a consagração da responsabilidade por violação de deveres de prevenção do perigo ou, na terminologia de origem germânica, deveres de segurança no tráfego (“Verkehrssicherungspflicten”) – entre os quais se contam os que se encontram previstos nos arts. 492.º e 493.º do CC – visa unicamente reparar os danos causados pela lesão de posições absolutamente protegidas, excluindo-se, portanto, os danos económicos puros como aqueles que são invocados nos presentes autos.

VII. Tampouco é aplicável ao caso dos autos o regime de responsabilidade por facto lícito previsto no art. 1348.º do CC, por um lado, porque, ao referir-se a “escavações”, a norma em causa não abrange toda a actividade de construção civil, mas apenas a que se passa ao nível do subsolo, e, por outro lado, porque, uma vez que é a própria lei a enunciar que as condicionantes em causa se destinam a não privar “os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra”, se torna evidente se pretendem abranger apenas danos gerados pela lesão de posições absolutamente protegidas e não danos económicos puros (ou danos puramente patrimoniais) como os que invocados pelos autores.

VIII. Deste modo, conclui-se que os interesses dos autores apenas poderão merecer consideração à luz do direito de oposição a emissões provenientes de prédio vizinho previsto no art. 1346.º do CC.

IX. A aplicação ao caso sub judice do regime do art. 1346.º do CC, com – em caso de desrespeito pelo mesmo – as inerentes consequências indemnizatórias, implica determinar: (i) quem são os sujeitos protegidos; (ii) quem são os sujeitos obrigados; (iii) quais são os direitos abrangidos e correspondentes danos; (iv) como se conjugam as duas situações objectivas previstas na sobredita norma (importarem as emissões um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultarem da utilização normal do prédio de que emanam).

X. Resolvidas essas questões e apreciada a factualidade provada, considera-se que: (i) Não se verificam os pressupostos de que depende a responsabilidade civil da ré, uma vez que, por um lado, o uso do seu prédio não pode ser tido como anormal e, por outro lado, não se encontra provado o nexo de causalidade adequada entre as emissões produzidas pela obras de demolição e os lucros cessantes invocados; (ii) De qualquer forma, tendo ficado provados os riscos de segurança da moradia da ré, encontrava-se esta obrigada a demoli-la, o que, em si mesmo, constitui causa de exclusão de ilicitude da conduta da mesma ré, exonerando-a de responsabilidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA e marido, BB, intentaram, em …, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e marido, DD, pedindo a condenação dos RR. no pagamento:

“a) Da quantia de €75.921,44 a que se refere o artigo 21, 22, 23;

b) Na quantia de €60.000,00 relativamente aos prejuízos dos AA no decurso do ano de 2017; c) No pagamento da quantia referente à reparação da piscina da moradia dos AA que, por não quantificado se relega para execução de sentença na eventualidade de tais danos serem imputáveis aos RR o que após a perícia será determinado e quantificado;

d) As quantias mencionadas em “a” e “b” acrescidas de juros à taxa legal desse a citação até efetivo pagamento;

e) Nas quantias futuras que vierem a ser apuradas no decurso da ação e cuja liquidação se apresentara oportunamente nos autos, em conexão com a factualidade imputada aos RR.”

Alegaram, em síntese, que a A. mulher é proprietária e o A. marido é usufrutuário de uma moradia destinada a alojamento local e que arrendam a turistas através de agências de turismo. Os RR. eram proprietários de uma moradia ao lado da moradia dos AA., tendo iniciado, no dia 4 de Julho de 2015, através da empresa EE, a demolição da moradia, piscina, calçada, logradouro e demais construções ali existentes, sem deterem, no caso, licença para o efeito. A demolição causou aos vizinhos enormes e graves inconvenientes, pelo barulho e poeiras geradas. Em 02.11.2015, a Câmara Municipal de …… promoveu o embargo da obra, embargo que os RR. não respeitaram, tendo demolido integralmente toda a construção existente na sua moradia no período compreendido entre Julho de 2015 e data incerta de 2016. Devido ao comportamento dos RR. os AA. sofreram prejuízos, decorrentes do constrangimento na utilização da moradia, que quantificaram em €133.921,44, e outros que ainda não quantificaram, correspondentes a rachas e fissuras na piscina dos AA., que os mesmos suspeitam serem originadas pela obra realizada pelos RR. quer com a trepidação da máquina escavadora que utilizaram na reparação e demolição, quer com as máquinas perfuradoras e para cuja avaliação se requer prova pericial para determinar a origem e quantificação dos danos.

Os RR. contestaram: por excepção, invocando a ineptidão da petição inicial e a ilegitimidade do R. DD; e por impugnação especificada. Requereram ainda a intervenção provocada da EE, Lda., empresa que executou a obra em causa.

Em 14.09.2017 foi proferido despacho que admitiu a intervenção principal provocada de EE, Lda.

A Interveniente contestou, dizendo, em síntese, que aceita o articulado da contestação dos RR. apresentado nos autos, acrescentando ainda que tomou todas as providências que teve por adequadas para evitar danos nas propriedades vizinhas.

Em 19.01.2018 foi proferido despacho que fixou como valor da causa €133.921,44 e julgou improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial e procedente a excepção de ilegitimidade do R. DD, que foi assim absolvido da instância.

Por requerimento de 22.01.2019 vieram os AA. alterar o pedido, nos termos seguintes:

“Que sejam os RR condenados solidariamente no pagamento aos AA:

a) Da quantia de 75.921.44€ a que se refere o artigo 21, 22, 23 da “p.i”.

b) Na quantia de 29.615,90 € relativamente ao prejuízo dos AA no decurso do ano de 2017.

c) Na quantia de 22.878,87€, relativo ao ano de 2018.

d) As quantias mencionadas em “a” a “c” acrescidas de juros à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento;

e) Nas quantias futuras que os autores vierem a perder no valor de arrendamento do imóvel nos aos anos subsequentes enquanto se mantiver a situação constante da causa de pedir e cuja liquidação se fará em liquidação de sentença dado que não estão quantificados tais danos a esta data embora previsíveis.”

Por despacho de 11.02.2019 foi admitida a alteração do pedido.

Em 11.03.2019 foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a R. e a Interveniente, solidariamente, a pagar aos AA. a quantia de €12.818,75, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento, absolvendo-os do demais peticionado.

Inconformados, dela interpuseram recurso os AA., pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito; e a R. CC, pedindo a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 5 de Dezembro de 2019 foi mantida inalterada a matéria de facto e, a final, foi proferida a seguinte decisão:

“Com fundamento no atrás exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em:

a) Julgar improcedente a apelação interposta pelos autores AA e BB.

b) Julgar procedente a apelação interposta pela ré CC e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida que é substituída por outra que absolve a ré e a interveniente principal dos pedidos.

Custas de ambos os recursos pelos autores (Recorrentes e Recorridos).”


2. Vêm os AA. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“1.ª Tendo em vista o exposto na 1.ª questão, entende-se que o R. acórdão proferido é nulo, visto que não conheceu da questão exposta no relatório como Facto n.º 34 a que se referiu e demonstrou nas alegações.

2.ª Consequentemente, entende-se que este V.do Tribunal, deverá anular a decisão recorrida, devolvendo os autos à Relação de …… para suprir tal vício processual com influência direta na decisão.

3.ª Considerando o exposto na 3ª questão, e dado que o documento n.º 8 junto aos autos com a “pi”, constitui prova vinculada, o julgamento dos factos com os números 23, 24, 25, 26, 27, 30 e 31.º, deverá ser alterada, devendo a reposta única considerar:

Provado apenas que desde o ano de 2014, que a Ré tinha pendente processo para demolição e reconstrução total da moradia e piscina.

Base da Prova:

- Documento n.º 8 junto com a “p.i.” de autoria da CCDR.

4.ª Tendo em vista o exposto na 5.ª questão, deverá ser aditado um novo facto provado com a seguinte redação:

Facto N.º 34

Provado que a moradia dos apelantes a que os autos se referem sem os constrangimentos da obra mencionada no facto N.º 8, teria um rendimento anual de 60.000,00€.

Base da prova:

a) Documental

Factos provados: 6, 15, 17, 18, 19

b) Testemunhal

Depoimento das testemunhas:

a) FF, a falas:01:18 a 10:40 acima transcrito.

b) GG, a falas:02:40 a 04:20;05:10 a 08:50 acima transcrito e gravado se encontra no CD áudio a que se refere na ata de audiência de julgamento

5.ª Considerando o exposto na 4.ª, 5.ª e 6ª, questões, dos factos que resultam provados nos autos não se verifica a existência de qualquer causa de exclusão do direito de indemnização como o entendeu o Tribunal na R. decisão recorrida posto que o comportamento das apeladas foi manifestamente ilegal conforme se demonstrou no relatório, porque sem licenciamento para o efeito e depois de ter sido indeferido o pedido (Cf. Nº.3 do doc.8 da CCDR), documento de prova plena e notificado à Ré em 19.3.2015 conforme consta de tal documento.

6.ª Trata-se, no caso em concreto, de pura responsabilidade extracontratual da Ré e da interveniente que as obriga ao ressarcimento integral dos danos que, com o seu comportamento causaram e continuarão a causar sendo que à luz do disposto no artigo 483º, nº.2, 493º, 562º, a 564º, 1346º a 1348º do CC, no caso, verificam-se todos os legais pressupostos da responsabilidade civil, com inteiro nexo de causalidade entre o comportamento das apeladas e o dano causado aos autores, já vencidos, presentes e futuros.

7.ª Aliás, tal como decidido no acórdão do STJ de 10.1.2006 – Pº.06A3331, citado no relatório, a expressão “seu autor” a que se refere o nº.2 do artº.1348º, do CC significa que o proprietário do prédio em que as obras foram feitas, representando o devendo de indemnizar consagrado neste preceito, um caso excecional de responsabilidade civil extracontratual, resultante de uma atividade lícita (o que nem sequer foi o caso), em que se prescinde da culpa, tornando-se responsável pelo ressarcimento dos danos.

8ª. Tal como se decidiu neste Vdº, tribunal e citado no acórdão acima: Por outras palavras: o dono da obra, como titular do direito de propriedade da coisa, é aquele que beneficia da empreitada e, portanto, deve arcar com as consequências danosas para terceiros que essa atividade tenha originado (cf., neste sentido, o ac. deste STJ de 13.04.2010, disponível in www.dgsi.pt).

9ª. Conforme se decidiu no acórdão do STJ de 23.5.2019 na Revista 8057/13.8, o dono do prédio onde as obras foram executadas e a empreiteira, - caso da Ré e interveniente, respondem solidariamente pela satisfação da obrigação de indemnização dos lesados.

10.ª Considerando o exposto na 5ª. questão, os danos materiais causados aos autores até esta data, são os seguintes:

Considerando o exposto na 5ª. questão, os danos materiais causados aos autores até esta data, são os seguintes:

I) Ano de 2016                        57.100,00€

II) Honorários (facto Nº.16)   1.537,50€

II) Ano de 2017                      29.615,90€

III) Ano de 2018                     22.878,83€

SOMA                                 111.132,23€     a que acrescem os respetivos juros de mora desde a citação e até efetivo pagamento.

11.ª Tendo em vista que há danos materiais futuros previsíveis, embora não quantificados a esta data, deverá nesta parte, relegar-se para execução de sentença a sua liquidação em face do disposto no artigo 609º nº 2 do CPC.

12.ª A R. decisão recorrida, no entendimento dos apelantes, violou as seguintes normas:

a) Do código Civil.

Artigos: 8º, nº.3; 9º, 371º; 483º nº.2, 493º, 562º a 564º; 1346º a 1348º, .

b) Do Código de Processo Civil.

- Artigo 607º, nº.4 e 5 na medida em que não analisou criticamente a prova de factos provados por documento autêntico caso do documento Nº.8 junto com a “pi”, nem compatibilizou toda a prova que os autos fornecem para a decisão de mérito que dos factos provados merecia outra decisão de mérito substancialmente diferente.

-Artigo 608º nº.2 ao não conhecer de todas as questões com interesse para a decisão da causa.

-O artigo 609º, nº.2 na medida em que a R, decisão “sub judice”, deveria condenar os RR no pagamento aos autores e ora apelantes nos danos futuros que vierem a ser liquidados em execução de sentença.

-Artigo 615º, nº.1 alínea “d”, ao não conhecer de questão que teria de conhecer em face do disposto no artigo 662º, do C.P.C.

c) Da C.R.P.

Artigo 2º, e 20º, quanto à tutela jurisdicional efetiva que a decisão recorrida causou aos recorrentes ao não proceder ao conhecimento das questões que as partes colocaram em sede de recurso em segunda instância não cumprindo a Relação, o dever legal que tal norma contempla no artigo 662º, do C.P.C.”

Terminam pedindo: que, perante a nulidade suscitada, seja o processo devolvido ao tribunal recorrido para suprir tal vício; que a matéria de facto seja alterada conforme proposto; e que o recurso seja julgado procedente com as legais consequências.

Os Recorridos contra-alegaram, concluindo nos termos seguintes:

“A. O Tribunal da Relação não estava obrigado a percorrer todas as questões levantadas pela recorrente, como resulta do 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil, onde se pode ler: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…).”

B. Considerando o Tribunal, na apreciação da questão de fundo e determinante de todo o processo, que as emissões de poeiras e os barulhos realizados não satisfaziam os requisitos de: “gravidade, continuidade ou até de periodicidade” idóneos a gerarem “um prejuízo substancial para o usa do prédio, afetando de forma grave o uso deste como local de arrendamento para turistas”; proceder à análise das restantes questões formais e de apreciação da prova levantadas pela Recorrente, mais não seria que a prática de uma actividade estulta, desnecessária e inútil, dado que os pedidos dos Autores Recorrentes estavam condenados devido à apreciação de mérito realizada sobre a substância da causa.

C. A Relação atalhou caminho, suportada pela regra legal, segundo a qual: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

D. Como a Relação de …… especificou: “os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” e esses mesmos fundamentos não estão em contradição com “a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” e o Juiz não deixou de se pronunciar sobre “questões que devesse apreciar”, nem se pronunciou sobre “questões de que não podia tomar conhecimento”, é obvio que o presente acórdão não é nulo.

E. A Recorrente insurge-se contra o facto de, na decisão recorrida, não se ter apreciado a questão referente à matéria de facto, por ela reclamada, como essencial, esqueceu-se, porém que: Primeiro: segundo o já citado artigo 608.º do Código de Processo Civil, “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;” Segundo: estriba-se no artigo 662.º do mesmo CPC, mas não leu o n.º 4 da disposição legal, onde, se encontra expressamente escrito que: “4 - Das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”. Quando o presente recurso, sem ser por acaso, é dirigido ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça.

F. Logo, a conclusão segundo a qual: “O acórdão recorrido é, nesta parte, nulo, em face do disposto na alínea “d” do n.º 1 do art.º 615.º e n.º 6 do art.º 663.º do CPC, aplicável por força do disposto no art.º 666.º do CPC, nulidade essa que se invoca com as legais consequências”. Não só não é procedente, como se apresenta formulada contra a própria letra da lei.

G. Seguidamente veio discutir a distinção entre os conceitos de “conclusão” e “facto, quando é indiscutível que a frase: "provado que a moradia dos apelantes a que os autos se referem sem os constrangimentos da obra mencionada no facto n° 8, teria um rendimento anual mínimo de €60.000,00” encerra a conclusão, consubstanciada pela alegação da dita moradia, no espaço de um ano, produzir o rendimento de 60.000,00 Euros.

H. Ora, para se chegar a esse valor, seria necessário ter alegado, os valores parciais decorrentes dos diversos contratos de arrendamento, que teriam possibilitado alcançar esse montante, o que a Autora e Recorrente não fez.

I. Constitui, igualmente, um erro alegar que o presente acórdão é nulo por violar o “n.º 6 do art.º 663.º do CPC, aplicável por força do disposto no art.º 666.º do CPC”, dado que: o que se pode ler no texto do n.º 6 do artigo 663.º do CPC é: “Quando não tenha sido impugnada, nem haja lugar a qualquer alteração da matéria de facto, o acórdão limita-se a remeter para os termos da decisão da 1.ª instância que decidiu aquela matéria.” Ora, não se consegue compreender como é que este inciso legal pode fundamentar a alegação de nulidade do acórdão.

J. O Tribunal Recorrido jamais poderia remeter para o facto reclamado pela Recorrente, pela simples razão que o mesmo não foi dado como provado, por ter entendido que tal alegação não consubstanciava um facto, mas sim uma conclusão. Logo, a pretensa invocação da nulidade resultante de não se ter cumprido o estatuído no n.º 6 do artigo 663.º do CPC encerra um absurdo lógico.

K. Os Recorrentes passaram ao que qualificaram como: segunda questão, sucede que, depois de terem enumerado e reproduzido os factos que o tribunal deu como provados, identificados pelos números 1 a 33, não apresentaram qualquer argumento, nem retiraram qualquer conclusão nada mais tendo alegado. Assim, relativamente a esta putativa segunda questão, por que nada foi alegado, nada é possível escrever.

L. Relativamente ao valor probatório do dito documento n.º 8, a Relação de considerou que o dito documento era um documento autêntico, que consubstanciava prova vinculada, tal como a Recorrente deseja. Só que, no uso do poder que lhe é conferido pela Constituição e pela lei, retirou desse documento conclusões diferentes das mencionadas pela Recorrente. Isto e nada mais!

M. Sobre o alcance do dito documento n.º 8, no Acórdão recorrido, lê-se que: “Constatamos assim que este documento autêntico, não é suscetível de pôr em causa os factos nº 23, 24, 25, 26, 27, 30 e 31 já que a simples referência que consta do mesmo "25.07.02.00121.2014" não permite a interpretação pretendida pelos AA/Recorrentes.” Foi o tribunal, no uso do seu poder constitucional, reiterado pelo n.º 5 do artigo 607.º do CPC, que escreveu que, do citado documento autêntico não resultavam as consequências pretendidas e procuradas pela Recorrente. Logo, o que pretende a Recorrente?

N. A demolição não foi licenciada, como teria de ser! Mas, sucede que os tribunais cíveis nada podem fazer, quanto a esse particular. A questão teria de ter sido levantada, noutra sede e dentro dos prazos legais, constantes das regras de direito administrativo.

O. A recorrida, por falta de capacidade e competência, não se atreve a definir quais são os “argumentos jurídicos que possam convencer a parte ou a comunidade em geral porque contra a prova dos autos bem como a jurisprudência deste tribunal”, mas remete para o conteúdo do acórdão da Relação de ……, para concluir no sentido oposto, segundo o qual a decisão foi fundamentada e bem fundamentada.

P. A decisão sujeita a recurso não ignorou o regime legal, constante dos artigos 1346º a 1348º, do CC, fez foi uma aplicação do direito que a Recorrente não quer aceitar, o que é substancialmente diferente.

Q. O Tribunal da Relação de , no uso do seu poder soberano de apreciar livremente as provas que lhe são patentes, não conclui que “da pendência desde 2014 do processo para demolição total da moradia e da piscina” devesse resultar a alteração da resposta aos factos 23 a 31, matéria, sobre a qual, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, não se pode pronunciar, dado que cuida, exclusivamente, das questões de Direito, pelo que não poderá, agora, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, vir entender que: - Assim, ante a pendência de tal processo para análise e aprovação pela entidade administrativa pública competente, as Recorridas não poderiam sequer dar início a tal demolição sem prévia aprovação do projeto de licenciamento da demolição e da obra, que veio a causar os danos reclamados na ação. - Nem este comportamento ilícito da Recorrida, proprietária do imóvel em causa é compatível com o direito de usar e fruir do bem que lhe pertence posto que a Recorrida embora titular de tal bem, terá de respeitar os direitos de terceiros, designadamente dos proprietários dos prédios vizinhos, sendo responsável pelos danos que o seu comportamento causar, independente da culpa que lhe possa ser imputada.

R. Quanto à alegação segundo a qual: “A Recorrida naturalmente que tem o direito de usar e fruir da coisa que lhe pertence como bem entender. O que não pode, é com tal comportamento violar os direitos de outrem, claramente violados como os factos provados o demonstram, não se tratando sequer de qualquer facto lícito que a Recorrida e a interveniente, sem licença pudessem fazer. O que a recorrida coloca nas suas conclusões, é que ao proceder à demolição da sua casa, não violou direito algum da Recorrente, até por que esta, que tanto se insurge contra o ruído praticado, não alegou o horário dentro do qual o mesmo foi produzido, sendo certo que, nos termos da lei, é legal produzir ruídos dentro de determinado horário.

S. A Recorrente pretende que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, condene a recorrida a pagar-lhe a quantia de “111.132,23€”, contudo, quanto a este pedido, salvo o devido respeito, parece que o apuramento da quantia devida à recorrente, a título de danos causados pelas obras de demolição, constitui uma questão de facto, excluída da análise do Venerando Supremo Tribunal de Justiça, como resulta do artigo 46.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto. Logo, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, quanto a este tema, só poderá ordenar a baixa do processo à Relação de ……, para a mesma fixar o valor indemnizatório que é devido à Recorrente, no caso de dar vencimento a algum dos fundamentos de revogação do acórdão apresentados pela Recorrente.

T. De acordo com o artigo 2.ª do DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro ­ REGIME Jurídico da URBANIZAÇÃO e EDIFICAÇÃO - na redacção em vigor, nos anos de 2015 e 2016, resultante do Decreto-lei n.º 214-G/2015, de 02/10, pode-se, sem qualquer abuso sobre a matéria de facto provada, concluir que: a execução de obras de demolição, realizadas pela recorrida, constitui uma realidade prevista na Lei, a qual depende da satisfação das condições do seu licenciamento (que não podem ser discutidas no tribunal cível, nem nas suas instâncias de recurso) (e que, do mesmo modo, não são sindicáveis pelos Autores).

U. Sendo indesmentível que a demolição de um edifício é uma actividade prevista na lei e, além disso, impunha-se à recorrida, por razões de segurança, para todos os que passassem perto da moradia, dadas as evidentes consequências resultantes dos seus pilares de sustentação padecerem dos defeitos que foram dados por provados para os quais se remete.

V. Não restava outra opção responsável à recorrida, que não fosse a de ordenar a demolição do seu imóvel, por que assim tinha de agir, nos termos da lei vigente e do estatuído nas normas que regulam a responsabilidade civil, dado que, nos termos do artigo 483.º do Código Civil, bem como das normas do DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro e do artigo 1305.º do Código Civil.

X. A recorrida limitou-se a exercer o direito de proceder a obras de demolição da moradia de sua propriedade, devido à mesma apresentar os defeitos de construção, dados como provados.

Z. O exercício do direito de demolir o imóvel, neste caso, comprime, por um período de tempo limitado, mas legítima e legalmente, o direito de propriedade da Recorrente, tal como resulta dos seguintes diplomas legais: DL n.º 38382/51, de 07 de Agosto – ou seja, o REGULAMENTO GERAL DAS EDIFICACQES URBANAS, no qual encontramos, entre muitas outras, as normas dos seus artigos 135.º a 139.º, regulando a demolição de imóveis; Decreto-Lei n. º 555/99, de 16 de Dezembro, que estabelece o regime jurídico da urbanização e edificação, completamente republicado em anexo ao DL n.º 136/2014, de 09 de Setembro; Em terceiro lugar, ainda se podem e devem citar as normas constantes do Regulamento Municipal da Câmara Municipal de ...., Regulamento n.º 32/2010, aprovado pela Assembleia Municipal, na sua sessão ordinária, realizada no dia 19 de Julho de 2010, o "Regulamento Municipal de Urbanização, Edificação, Taxas e Compensações Urbanísticas".

AA. Quando a recorrida praticou os factos que aqui se discutem, o fez no exercício de um direito. Aliás, de um dever, dadas as deficientes condições [de] sustentabilidade do imóvel de que era proprietária.

BB. Não só as obras de demolição constituíam um dever, como os próprios ruídos e a emissão de poeiras, no caso concreto, foram legítimos e legais, dado que o Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro, estipula os momentos em que a produção de ruídos é licita e ilegal, sendo certo que a Recorrente não alegou os horários dentro dos quais os ruidosa foram produzidos e as poeiras emitidas.

CC. A produção de ruído temporário só é proibida depois das 20 horas de cada dia e até às 8 horas da manhã, sendo lícita durante os dias úteis, entre as 8 horas da manhã e as 20 horas da noite.”

Terminam pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

Por acórdão da conferência de 23 de Abril de 2020, o tribunal a quo pronunciou-se pela não verificação da invocada nulidade do acórdão recorrido.

Cumpre apreciar e decidir.


3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a numeração das instâncias):

1- A autora mulher é titular da nua propriedade do imóvel urbano composto de uma moradia na Urbanização …, inscrita na matriz urbana da freguesia de … sob o artigo …, descrita no Registo Predial sob a ficha ...., da qual o autor marido é usufrutuário (resposta ao art.º 1º da p.i.).

2- Os AA. ultimamente têm residência permanente na … (resposta ao art.º 2º da p.i.).

3- Os AA. têm rentabilizado o imóvel referido em 1 destes factos provados no arrendamento a turistas nacionais e estrangeiros, que procuram tal produto (resposta ao art.º 3º da p.i.).

4- A moradia em causa, é um imóvel construído em 2003, decorado, com piscina aquecida, vista de mar, 4 quartos e capacidade para 8 pessoas, situado em local tranquilo (resposta ao art.º 4º da p.i.).

5- A moradia dos AA. encontra-se legalizada e licenciada para esta atividade comercial, conforme consta dos documentos juntos como doc. 4 e doc. 5 da p.i., de onde consta a sua composição com Rés-do-chão, primeiro andar, com tipologia Tipo T4, com piscina, capacidade para oito pessoas e quatro quartos (resposta ao art.º 5º da p.i.).

6- Os preços de aluguer por semana, que foram estabelecidos em 10.7.2015 pela Agência …, com quem os AA. trabalham para o aluguer da sua moradia e com quem as reservas são tratadas com antecedência, para vigorar desde então, são os seguintes:

- de 01 janeiro até 30 junho 2016: 2.900,00€;

- de 01 julho até 31 agosto 2016: 3.900,00€;

- de 01 setembro até 31 dezembro 2016 2.900,00€;

sendo que a …cobra 20% de comissão, consistindo a época normal em 36 semanas, de abril a outubro, e que o acordo com a … não é exclusivo daquela agência e tanto os AA. como outras agências promovem o aluguer (resposta aos artºs 6º a 8º e 27º da p.i.).

7 - Os RR foram ambos proprietários da moradia implantada no lote 27, ao lado da moradia dos AA., sendo que a 4 de Julho de 2015 já só a R. era dona desse imóvel (resposta ao art.º 9º da p.i.).

8 - No dia 4 de Julho de 2015, a R iniciou a demolição da moradia, da piscina e toda a demais construção ali existente, sem deterem, no caso, licença para o efeito (resposta aos artºs 10º e 18º da p.i.).

9 - Aquela atividade foi realizada através da empresa “EE”, cujo painel se encontrava então à data ali fixado (resposta aos artºs 11º da p.i. e 9º e 13º da contestação dos RR.).

10 - A atividade de demolição causou no local aos vizinhos inconvenientes, pelo barulho e poeira que emitia (resposta ao art.º 12º da p.i.).

11 - Com data de 21.07.2015, os AA. através do seu legal representante, apresentaram na Câmara Municipal de ……, uma reclamação (a qual constitui o doc. 9 junto com a p.i, aqui se dando por reproduzido o seu teor), a que se seguiu uma notificação à Ré mulher (resposta aos artºs 13º e 14º da p.i.).

12 - Com data de 22/07/2015, o legal representante dos AA enviou à C.M. ..., o requerimento que se encontra junto como doc. 10 da p.i, aqui se dando por reproduzido o seu teor (resposta ao art.º 15º da p.i.).

13 - Com data de 02.11.2015, a Câmara Municipal de …, promoveu o embargo da obra, conforme consta da notificação que se encontra junta como doc. 11 da p.i., com a instauração do processo contraordenacional contra os RR., sendo que entretanto a demolição fora integralmente concluída (resposta aos artºs 16º e 19º da p.i. e 32º da contestação dos RR.).

14 - Em 19.12.2016, em Inspeção ao local a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do …, ali concluiu, nomeadamente, que a moradia dos RR. “…se encontra completamente demolida, com terreno já terraplanado, mas sem ter sido ainda iniciada a construção da nova moradia (resposta ao art.º 20º da p.i.).

15- Devido ao referido em 8 a 10, 13 e 14, destes factos provados, os autores tiveram de devolver a clientes que haviam efetuado reservas para estadia na sua moradia, ou deixaram de rentabilizar a moradia aos clientes que se identificam, nos seguintes valores:

- 18.7.2016 Familia HH: 3.500,00€;

- 29.8.2016 II: 4.000,00€;

- agosto de 2016 JJ: 3.900,00€;

- outubro de 2016 LL: 2.000,00€;

- novembro de 2016 MM: 2.900,00€;

- dezembro de 2016 NN: 5.800,00€;

num total de 22.100,00€ (resposta ao art.º 21º da p.i.).

16- Despenderam os AA. custo com honorários de advogado para defesa dos seus interesses na Câmara Municipal de …, no valor de 1.537,50€ (resposta ao art.º 23º da p.i.).

17- Devido ao problema havido nos anos de 2015 e 2016, a … tirou a casa dos AA. do mercado, até a situação estar resolvida (resposta aos artºs 24º a 26º da p.i.).

18- Pese embora os AA. terem perdido os valores acima referidos referente ao ano de 2016, naquele ano, os AA. ainda obtiveram de receita o valor anual de 27.000,00€ (resposta ao art.º 28º da p.i.).

19- Os AA. já foram contactados por clientes que pretendem voltar, quando não houver obras, barulho ou pó, mas a atividade de arrendamento ainda não foi retomada (resposta ao art.º 30º da p.i.).

20- Surgiram entretanto rachas e fissuras na piscina dos AA. (resposta ao art.º 33º da p.i.).

21- A EE comunicou aos RR. que estava habilitada a proceder às obras, que tudo estava autorizado e que acatava, em todas as suas obras, os regulamentos de segurança e de salvaguarda do ruído e direito ao silêncio, nunca produzindo ruídos, ou barulhos, fora dos horários permitidos por lei (resposta aos artºs 10º, 11º, 28º, 29º e 41º da contestação dos RR.).

22- Os réus não se encontravam na obra e não a dirigiam (resposta aos artºs 30º da contestação dos RR. e 22º da contestação da interveniente EE).

23- A ré viu-se forçada a demolir o seu edifício, porque o mesmo evidenciava, aos olhos dos técnicos de construção que alguns elementos estruturais verticais (pilares) estavam apoiados, diretamente, no terreno, ou sobre blocos de betão (resposta aos artºs 26º, 42º e 43º da contestação dos RR. e 19º, 31º e 32º da contestação da interveniente EE).

24- A constatação deste facto levou a que se procedesse a uma inspeção mais rigorosa, para verificar os restantes elementos estruturais, tendo-se constatado que, na generalidade, vários pilares não tinham sapatas de fundação, nem travamento através de vigas de fundação (resposta aos artºs 44º da contestação dos RR. e 33º e 52º da contestação da interveniente EE).

25- A fim de se proceder ao isolamento térmico e impermeabilização dos terraços e cobertura do piso superior, onde se verificavam, também, vestígios de infiltrações, procedeu-se na inspeção ao edificado, tendo-se concluído que as lajes de pavimento e vigas estruturais, em contacto com o exterior, apresentavam-se em estado de degradação, com oxidação das armaduras e sem recobrimento regulamentar (resposta aos artºs 45º da contestação dos RR. e 34º e 53º da contestação da interveniente EE).

26- Detetou-se, ainda, fissuração em paredes e elementos de construção (vigas e pilares) o que indiciava a existência de problemas estruturais (resposta aos artºs 46º da contestação dos RR. e 35º e 54º da contestação da interveniente EE).

27- Perante estes factos, os técnicos que assessoram os réus concluíram que não havia solução técnico-económica possível que garantisse, no futuro, a segurança dos utentes, pelo que o aproveitamento do lote de terreno, com a sua implantação, localização e vista de mar, em condições responsáveis e compatíveis com a segurança de quem lá viesse a viver, implicava necessariamente a demolição de todos os elementos estruturais que evidenciassem deterioração ou condições de execução não regulamentares (resposta aos artºs 47º, 48 e 65º da contestação dos RR. e 36º, 37º, 55º e 69º da contestação da interveniente EE).

28- A EE tem como objeto social “a construção, manutenção, renovação, e remodelação de edifícios, moradias e piscinas” (resposta ao art.º 46º da contestação da interveniente EE).

29- E exerce a atividade de construção civil licenciada para o efeito, titulada pelo respetivo Alvará de Construção Civil e Obras Públicas (resposta ao art.º 47º da contestação da interveniente EE).

30- A execução dos trabalhos contratados pela Ré consistia na remodelação interna do Lote …, com substituição de pavimentos e revestimento de paredes, instalações de abastecimento, de águas e de drenagem de águas residuais, eletricidade e telecomunicações e incluía para efeitos de garantia de acessibilidades e de mobilidade dos Réus, a execução de trabalhos de supressão dos desníveis existentes no piso inferior, sendo que só ao iniciar a execução dos referidos trabalhos, concretamente a supressão dos desníveis existentes no piso inferior, os quais obrigaram em média a uma escavação de 25 cm abaixo da cota de soleira, a EE verificou que alguns elementos estruturais verticais (pilares) estavam apoiados diretamente no terreno ou sobre blocos de betão, o que poderia causar uma derrocada iminente, com eventual perda de vidas humanas, pelo que, perante tal constatação, foi feita uma inspeção no sentido de avaliar os restantes elementos estruturais (resposta aos artºs 48º a 51º da contestação da interveniente EE).

31- A EE deu conhecimento da situação à Ré, que se decidiu pela demolição de todos os elementos estruturais que evidenciassem deterioração condições construtivas não regulamentares, o que veio a acontecer (resposta ao art.º 56º da contestação da interveniente EE).

32- A urbanização onde se incluem ambos os lotes, de AA. e R., é constituída por prédios urbanos, maioritariamente de um só piso, destinados a habitação, em estilo de moradia, limitados por muros (resposta aos artºs 57º e 58º da contestação da interveniente EE).

33- A EE procurou minimizar o impacto da emissão de poeiras, designadamente, regando o entulho que tirava da obra e carregava para ser removido e colocando tapumes (resposta ao art.º 79º da contestação da interveniente EE).


Factos dados como não provados:

A matéria dos artigos 22º da p.i., 55º da contestação dos RR., 44º e 45º, na parte em que se refere que só com a citação a interveniente teve conhecimento do pedido formulado pelos autores (sendo o demais conclusivo) e 61º da contestação da interveniente EE, Lda.


4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões. 

O presente recurso tem, assim, como objecto as seguintes questões:

- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à pretensão dos AA. de aditamento de um novo facto (n.º 34) com o seguinte teor: “Provado que a moradia dos apelantes a que os autos se referem sem os constrangimentos da obra mencionada no facto N.º 8, teria um rendimento anual de 60.000,00€”.

- Alteração da matéria de facto em função da força probatória plena do documento n.º 8 junto com a petição inicial, devendo os factos com os números 23, 24, 25, 26, 27, 30 e 31 dar lugar a um facto único com o seguinte teor: “Provado apenas que desde o ano de 2014, que a Ré tinha pendente processo para demolição e reconstrução total da moradia e piscina”.

- Reapreciação da decisão de direito, julgando-se verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e condenando-se solidariamente a R. e a Interveniente no pagamento da indemnização peticionada.


5. Antes de mais, importa ter presente os termos em que as instâncias se pronunciaram.

A sentença da 1.ª instância, tendo considerado a possibilidade de responsabilizar a R. e a Interveniente, sucessivamente, ao abrigo do regime dos arts. 1346.º, 1348.º, n.º 2, 492.º, n.ºs 1 e 2, 493.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil:

- Concluiu que a tutela dos interesses dos AA. se deve fazer no âmbito da faculdade de se oporem a emissões, prevista no art. 1346.º do CC, “o que também implica correspondentemente o direito a serem indemnizados quando tenham ocorrido essas emissões”;

- Entendendo que este direito dos AA. tem de ser conjugado, nos termos do art. 335.º do CC, com as faculdades inerentes ao direito de propriedade de que a R. é titular, incluindo a faculdade de realizar obras na sua moradia que, de resto, se provou serem indispensáveis;

- Em resultado do que deverão a R. e a Interveniente suportar 50% dos danos provados;

- No apuramento dos danos concretamente causados pelas emissões de ruído e poeiras geradas pelas obras executadas no prédio da R. considerou:

    • Haver relação causal entre tais emissões e a perda de receitas dos AA. no ano de 2016 - perda que ascendeu a €22.100,00 -, mas já não entre tais emissões e alegada perda de receitas nos anos subsequentes;
    • Àquele valor acresce o montante de €1.537,50 pago pelos AA. de honorários do advogado que acompanhou o problema junto da Câmara Municipal de ……;
    • Ao valor global assim obtido (€23.637,50), é de aplicar a indicada percentagem de 50%, obtendo-se o montante indemnizatório de €11.818,75;
    • Ao qual é de somar o valor de €1000 fixado a título de afectação do nome comercial da propriedade dos AA., quantia que o tribunal entende enquadrar-se ainda no pedido formulado.

O acórdão da Relação:

- Considerou que a “ilicitude administrativa” (falta de licenciamento prévio da demolição ou eventual desrespeito pelo regime legal de produção de ruído) não releva para o caso, “ainda que no limite essas normas se traduzam (ainda) na proteção e defesa de direitos individuais (para além dos coletivos)”;

- Assim, a aferição da (i)licitude da conduta da R. tem de ser feita essencialmente em função da aplicação do regime do art. 1346.º do CC, existindo ilicitude se as emissões importarem um prejuízo substancial para o uso do imóvel vizinho ou se resultarem da utilização anormal do prédio de que emanam;

- Começando por afirmar que “a emissão de ruído e poeira causada pela demolição de uma moradia que indiciava a existência de problemas estruturais, não se pode considerar desnecessária”, admitiu, apesar disso, ser de apreciar da verificação dos pressupostos do art. 1346.º. O que fez nos termos seguintes:

“Cumpre referir que não estamos perante uma área protegida, na qual seja proibida as obras de construção e demolição, pelo que a generalidade das pessoas residentes no local pode estar sujeita ao ruído e poeiras resultante destas obras, não tendo sido provado (e não foi alegado) quais os valores dos ruídos e das poeiras causados pela demolição em causa, para se poder aquilatar da gravidade dos inconvenientes.

Decorre dos factos provados, que o prédio dos AA. continua apto para poder ser utilizado para arrendamento turístico, dado que a demolição foi uma atividade ruidosa mas temporária (limitada provavelmente a alguns meses de 2015).

Acresce dizer que não decorre dos factos provados qual foi a duração da demolição, apenas sabendo que se iniciou no dia 4.07.2015 e que em 2.11.2015 quando a Câmara Municipal de ... promoveu o embargo da obra já se encontrava completamente concluída (facto 13) e que os danos que resultaram provados referem-se a reservas de 2016 (facto 15); ou seja, referentes ao ano seguinte ao da demolição.

Faltam assim os requisitos de gravidade, continuidade ou até de periodicidade na emissão de barulho e poeira para o prédio vizinho, pois só nesta medida é que a concreta perturbação se pode configurar como excessiva e, por isso, intolerável.

Entendemos assim, que os factos provados não traduzem um prejuízo substancial para o uso do prédio, afetando de forma grave o uso deste como local de arrendamento para turistas.

Também não é possível afirmar que a emissão de ruído e poeira resultem de um uso anormal do prédio da R.” [negrito nosso];

- Entendeu a Relação não servir o regime do art. 493.º do CC para responsabilizar a R. proprietária uma vez que, na actividade de execução das obras, não é ela, mas antes a empresa empreiteira, que se encontra adstrita aos deveres de prevenção do perigo previstos tanto no n.º 1 como no n.º 2 do referido preceito;

- Concluiu afirmando que, sendo a R. absolvida, nos termos do n.º 2 do art. 634.º do CPC a absolvição se estende à Interveniente, enquanto devedora solidária.


6. Antes de apreciar cada uma das questões objecto do presente recurso, afigura-se necessário atender a uma especificidade do caso sub judice que releva sobremaneira para a resolução de tais questões e, em última análise, para o próprio desfecho da acção. Reportamo-nos à problemática da natureza dos danos alegados, a qual – como se verá infra – se conexiona, em última análise, com a definição do pressuposto da ilicitude.

Vejamos.

Em sede de p.i., formularam os AA. o pedido de condenação dos RR. no pagamento das seguintes quantias:

“a) Da quantia de €75.921,44 a que se refere o artigo 21, 22, 23;

b) Na quantia de €60.000,00 relativamente aos prejuízos dos AA no decurso do ano de 2017;

c) No pagamento da quantia referente à reparação da piscina da moradia dos AA que, por não quantificado se relega para execução de sentença na eventualidade de tais danos serem imputáveis aos RR o que após a perícia será determinado e quantificado;

d) As quantias mencionadas em “a” e “b” acrescidas de juros à taxa legal desse a citação até efetivo pagamento;

e) Nas quantias futuras que vierem a ser apuradas no decurso da ação e cuja liquidação se apresentara oportunamente nos autos, em conexão com a factualidade imputada aos RR.”

Pedido que vieram alterar, sendo a alteração aceite, nos seguintes termos:

“Que sejam os RR condenados solidariamente no pagamento aos AA:

a) Da quantia de 75.921.44€ a que se refere o artigo 21, 22, 23 da “p.i”.

b) Na quantia de 29.615,90 € relativamente ao prejuízo dos AA no decurso do ano de 2017.

c) Na quantia de 22.878,87€, relativo ao ano de 2018.

d) As quantias mencionadas em “a” a “c” acrescidas de juros à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento;

e) Nas quantias futuras que os autores vierem a perder no valor de arrendamento do imóvel nos [aos] anos subsequentes enquanto se mantiver a situação constante da causa de pedir e cuja liquidação se fará em liquidação de sentença dado que não estão quantificados tais danos a esta data embora previsíveis.”

Ora, os artigos 21, 22 e 23 da p.i. referem-se:

- Ao valor de €22.100,00 correspondente à soma das quantias que os AA. devolveram aos clientes que desistiram de reservas da casa dos AA., devolução essa efectuada em datas compreendidas entre Julho e Dezembro de 2016;

- Ao valor de €1.283,94 correspondente ao custo de um voo reservado pelos AA. em Setembro de 2016 que, alegadamente, não foi por eles utilizado por não poder a A. estar em contacto com as emissões de pó provenientes da casa da R.;

- Ao valor de €1.537,50 correspondente aos honorários despendidos com o advogado dos AA. na defesa dos seus interesses junto da Câmara Municipal de …;

- Ao valor de €1.750,00 correspondente ao gasto com publicidade.

Assinale-se que, considerando os valores parcelares enunciados nos artigos 21, 22 e 23 da p.i., não se compreende como chegaram os AA. ao montante de €75.921,44 constante da alínea a) do pedido original e do pedido alterado, por remissão expressa para os sobreditos artigos 21, 22 e 23. Esta discrepância contudo não terá de ser por ora esclarecida, uma vez que a sua resolução poderá ficar prejudicada pela resolução dada a outras questões que a precedem.

Constata-se ainda que, ao alterarem o pedido, os AA. “deixaram cair” a pretensão indemnizatória por alegados danos que as obras de demolição da casa da R. teriam causado na piscina daqueles, danos correspondentes pois à afectação de direitos reais de que os AA. são titulares, mais concretamente, o direito de propriedade da autora e o direito de usufruto do autor.

Todos os demais danos invocados pelos AA. revestem a natureza daquilo que vem sendo denominado como danos económicos puros ou danos puramente patrimoniais. Conclusão que se afigura de grande relevância para a resolução das questões dos autos.

Vejamos porquê.

Nas palavras do acórdão de 08.09.2016 (proc. n.º 1952/13.6TBPVZ.P1.S1)[1], consultável em www.dgsi.pt:

«(…) ‘[D]anos económicos puros’ (também designados ‘danos puramente patrimoniais’ ou ‘danos patrimoniais puros’) (…) podem ser definidos como aqueles em que há uma perda económica (ou patrimonial) sem que tenha existido afectação de uma posição jurídica absolutamente protegida (v.g. um direito de personalidade ou um direito real) –  cfr. Carneiro da Frada/Maria João Vasconcelos, “Danos económicos puros – Ilustração de uma problemática”, in Forjar o Direito, 2015, págs. 161-162.

A problemática da ressarcibilidade dos danos económicos puros tem sido estudada na doutrina portuguesa das últimas décadas (cfr. Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, 1989, págs. 187 e segs., Carneiro da Frada, Tutela da confiança e responsabilidade civil, 2004, págs. 238 e segs., Maria João Vasconcelos, “Algumas questões sobre a ressarcibilidade delitual de danos patrimoniais puros no ordenamento jurídico português”, in Novas tendências da responsabilidade civil, 2007, págs. 147 e segs., e, mais desenvolvidamente, Adelaide Menezes Leitão, Normas de protecção e danos puramente patrimoniais, 2009). Para efeitos de um breve enquadramento dogmático do tema, socorremo-nos da síntese de Carneiro da Frada/ Mª João Vasconcelos (cit., págs. 161-166).

Considera-se que, “em sede de responsabilidade civil obrigacional, prevista nos arts. 798º e seguintes do Código Civil, a indemnizabilidade de danos patrimoniais puros não suscita dúvidas segundo a natureza do interesse afectado” (cit., pág. 162). Porém, “no campo aquiliano, a situação é diferente: nos termos do art. 483º, nº 1, do Código Civil – norma central, a imputação delitual pode resultar da violação de direitos subjectivos de outrem ou de disposições legais destinadas à protecção de interesses alheios. Entende-se que a violação de direitos subjectivos de outrem, enquanto previsão básica de responsabilidade civil delitual, tem essencialmente em vista a lesão de posições jurídicas absolutamente protegidas.” (cit., págs. 162-163).

Deste modo, “as lesões patrimoniais que não envolvem a ofensa de uma posição jurídica absolutamente protegida só dentro de pressupostos relativamente estreitos poderão dar lugar a uma obrigação de indemnizar” (cit., pág. 163). Concretamente, na responsabilidade delitual, apenas será de admitir a ressarcibilidade de danos económicos puros nas seguintes situações:

(i)  Quando tiver sido violada uma norma de protecção ou “disposição legal destinada a proteger interesses alheios” (art. 483º, nº 1, segunda regra, do CC);

(ii)    Quando exista previsão delitual específica que contemple os danos económicos puros, como por exemplo, as normas dos arts. 485º e 495º do CC, ou a norma do art. 8º do Decreto-Lei nº 147/2008, de 29 de Julho, relativamente à reparação de danos ambientais;

(iii)  Quando se verifique abuso do direito, nas condições em que este constitua fonte de responsabilidade civil.

 Na doutrina, defende-se também que se inclua nesta última via não apenas o exercício abusivo de um direito mas também o gozo da liberdade geral de agir (cfr. Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, cit. pág. 547, nota 325). Já para Carneiro da Frada/Mª João Vasconcelos, “segundo a lei, o abuso pressupõe o exercício de uma posição jurídica” pelo que “é muito discutível que possa em rigor sindicar também comportamentos ofensivos de interesses puramente económicos que não se traduzam no exercício de um direito” (cit., pág. 165). Para estes autores, seria antes de “admitir a indemnizabilidade de danos patrimoniais quando tenha havido uma ofensa grave do mínimo ético-jurídico exigível de todos os membros da comunidade, estejam ou não inseridos em relações contratuais.” (cit., pág. 165).

Conclui-se que, em sede de responsabilidade civil aquiliana, os danos económicos puros só são ressarcíveis em hipóteses circunscritas. No mesmo sentido, ver Paulo Mota Pinto (Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, 2008, págs. 550-551), Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, VIII – Direito das Obrigações, 2014, pág. 448) e Menezes Leitão, (Direito das Obrigações, I, 2016, pág. 261). Como bem se compreende, tal resulta da “necessidade de salvaguardar a liberdade de actuação dos sujeitos, pois esta opõe-se a uma protecção indiscriminada do património em sede de responsabilidade civil delitual” (Carneiro da Frada/Mª João Vasconcelos, cit., pág. 164).» [negritos nossos]

Temos assim que, diversamente do que resulta da posição assumida pelos Recorrentes ao pretenderem aplicar ao caso dos autos o princípio do ressarcimento da totalidade dos danos, no domínio da responsabilidade civil delitual – no qual, assinale-se, é patente a influência do direito alemão – a ressarcibilidade de danos económicos puros ou danos puramente patrimoniais constitui a excepção e não a regra, estando circunscrita às seguintes situações:

- Violação de normas de protecção (cfr. segunda parte do n.º 1 do art. 483.º do CC), desde que se verifiquem as condições preenchedoras desta modalidade de ilicitude;

- Violação de previsão delitual específica que abranja tal categoria de danos;

- Ocorrência de abuso do direito, nas condições limitadas em que este constitua fonte de responsabilidade civil.

Deste modo, e apesar da terminologia adoptada, esclareça-se que – como se fez no acórdão de 12.09.2019 (proc. n.º 149/16.8T8VIS.C1.S1)[2], in www.dgsi.pt – a questão dos danos económicos puros se prende, em última análise, com o pressuposto da ilicitude. Com efeito, e de acordo com as palavras de Mafalda Miranda Barbosa (Liberdade vs. Responsabilidade, A precaução como fundamento da imputação delitual?, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 214):

«(…) [Q]uando nos referimos à actualíssima problemática dos danos puramente patrimoniais, a despeito da designação dessa realidade, o que nós questionamos é o problema da ilicitude e não o problema dos danos

Em suma, entende-se que esta clarificação assume uma importância decisiva na resolução do caso sub judice. Afigura-se que, sem ela, as respostas das instâncias às diversas questões suscitadas na presente acção, ainda que eventualmente correctas, carecem de sustentação dogmática plena.


7. Tendo presente o que fica dito no número anterior, passemos a apreciar a questão da alegada nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à pretensão dos AA. de aditamento de um novo facto (n.º 34) com o seguinte teor: “Provado que a moradia dos apelantes a que os autos se referem sem os constrangimentos da obra mencionada no facto N.º 8, teria um rendimento anual de 60.000,00€”.

Ao apreciar da impugnação da decisão de facto, pronunciou-se o acórdão recorrido nos seguintes termos:

“Os AA./Recorrentes pretendem ainda que seja aditado um novo “facto provado” com a seguinte redação: “provado que a moradia dos apelantes a que os autos se referem sem os constrangimentos da obra mencionada no facto nº 8, teria um rendimento anual mínimo de €60.000,00.

Na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito.

Na verdade, dispõe o art.º 607.º, n.º 4, do CPC, “Na fundamentação (da sentença) o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (…)” – os factos, repete-se, que não conclusões, generalidades ou matéria de direito. 

O pretendido aditamento contém uma conclusão, pois era necessário terem sido alegados factos materiais (e só estes podiam constar da decisão de facto) para se poder concluir pelo rendimento anual mínimo de €60.000,00.” [negrito nosso]

Constata-se que, uma vez que o acórdão recorrido se pronunciou sobre este ponto da impugnação da matéria de facto, é evidente não padecer o mesmo do alegado vício de omissão de pronúncia gerador de nulidade previsto no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC. Porém, e ainda que indevidamente qualificado, importa apurar se, ao rejeitar liminarmente apreciar a pretensão dos apelantes de aditamento do invocado facto em virtude do seu carácter conclusivo, terá o sobredito acórdão incorrido em erro de julgamento.

O que implica que se esclareçam previamente quer os termos em que tal questão se deve colocar quer a dúvida sobre a competência deste Supremo Tribunal para a reapreciar. Socorremo-nos, a este respeito, das palavras do acórdão de 27/04/2017 (proc. nº 273/14.1TBSCR.L1.S1)[3], disponível em www.dgsi.pt:

 “[O] artigo 646.º, n.º 4, do CPC, na redação anterior à reforma introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, determinava que se tivessem por não escritas as respostas dadas, em sede de julgamento de facto, sobre questões de direito, o que implicava, nomeadamente, ajuizar sobre o préstimo do teor dessas respostas para enunciar juízos de facto. 

É certo que tal disposição não foi transposta para a atual versão do CPC, mas ainda assim deve manter-se o entendimento de que a questão de saber se determinado enunciado linguístico é adequado a descrever uma factualidade juridicamente relevante reconduz-se a uma questão de direito, de cuja solução dependerá o atendimento ou não, como espécie factual, da matéria ali vertida [ou a verter como ocorre no caso dos presentes autos], nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º todos do CPC.

Nessa medida, não obstante o preceituado no n.º 2 do artigo 682.º do mesmo Código, cabe ao tribunal de revista ajuizar sobre tal adequação e, nessa conformidade, decidir se o enunciado em causa deve ou não ser considerado como matéria de facto.” [negritos nossos]

No mesmo sentido, cfr. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.05.2015 (proc. n.º 9713/05.0TBBRG.G1.S1), de 14.01.2016 (proc. n.º 391/13.9TTCBR-C1.S1), 19.10.2017 (proc. n.º 1077/14.7TVLSB.L1.S1), de 19.12.2018 (proc. n.º 857/08.7TVLSB.L1.S2), de 12.09.2019 (proc. n.º 1333/15.7T8LMG.C1.S1) e de 17.12.2019 (proc. n.º 756/13.0TVPRT.P2.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.

A este respeito, convoca-se de novo a fundamentação do indicado acórdão deste Supremo Tribunal de 27.04.2017:

“Como é sobejamente reconhecido, nem sempre se mostra, na prática, tarefa fácil fazer a destrinça entre um juízo de facto e um juízo de direito, tanto mais que os próprios juízos probatórios integram categorias lógicas sinteticamente representativas de uma realidade concreta em que concorrem múltiplas vicissitudes que seria difícil descrever até ao ínfimo pormenor.

Ora, no respeitante à formação do juízo probatório, já longe vão os tempos da tradição empírico-narrativista, em que dominava o lema de que factos são factos e não necessitam de ser argumentados. Com efeito, a verdade judicial é fruto de um raciocínio problemático, sustentado na razão prática mediante a análise crítica dos dados de facto veiculados pela atividade probatória, em regra, mediante inferências indutivas ou analógicas pautadas pelas regras da experiência comum colhidas da normalidade social. Daí resulta que os juízos probatórios incluam, por vezes, segmentos de pendor conclusivo ou elementos categoriais compreensivos da realidade em análise.” [negrito nosso]

Deste modo, não é, por si só, a índole conclusiva de um enunciado que permite excluí-lo da factualidade dada como provada (ou, como no caso dos autos, a provar), antes sendo de ajuizar se determinados enunciados linguísticos correspondem ou não à descrição de realidades factuais.

No caso concreto, pretendiam os apelantes que fosse dado como “Provado que a moradia dos apelantes a que os autos se referem sem os constrangimentos da obra mencionada no facto nº 8, teria um rendimento anual mínimo de €60.000,00.”

Este texto, ainda que de feição conclusiva – tanto a respeito do montante do rendimento anual como da conexão causal entre as obras descritas no facto 8 e a não produção de rendimentos – contém, em si mesmo, dois enunciados factuais.

Pode assim afirmar-se que deveria ter sido considerada a pretensão dos apelantes no sentido de que o Tribunal da Relação, reapreciando os meios de prova indicados, equacionasse o aditamento de tais enunciados.

Aqui chegados, porém, entende-se que a decisão de mandar baixar os autos para que o Tribunal da Relação aprecie o referido ponto da impugnação de facto apenas se justificará se se verificar que a sua relevância – a qual se situa ao nível do apuramento do montante dos danos, assim como do estabelecimento do nexo de causalidade – não fica prejudicada pela solução dada às demais questões logicamente precedentes.


8. Passemos a apreciar a questão da alegada alteração da matéria de facto em função da força probatória plena do documento n.º 8, junto com a petição inicial, devendo os factos com os números 23, 24, 25, 26, 27, 30 e 31 dar lugar a um facto único com o seguinte teor: “Provado apenas que desde o ano de 2014, que a Ré tinha pendente processo para demolição e reconstrução total da moradia e piscina”.

A consideração da força probatória plena de um documento integra uma das situações previstas na segunda parte do n.º 3 do art. 674.º do CPC, nas quais a lei atribui competência a este Supremo Tribunal para apreciar da decisão relativa à matéria de facto.

Vejamos pois.

Dispõe o n.º 1 do art. 371.º do Código Civil que:

“Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.”

Conforme têm entendido, de forma unânime, a doutrina e a jurisprudência, o valor probatório dos documentos autênticos não respeita a tudo o que neles se contém, mas somente aos factos que se referem praticados pela autoridade ou oficial público respectivo e quanto aos factos exarados com base nas percepções da entidade documentadora. Neste sentido, cfr. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, págs. 327 e seg., Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, págs. 852 e seg.), Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 459 e seg.). Na jurisprudência deste Supremo Tribunal, ver, entre muitos outros, os acórdãos de 27.03.2014 (proc. n.º 555/2002.E2.S1), de 21.01.2014 (proc. n.º 930/06.6YBVIS.C2.S1) e de 19.01.2016 (proc. n.º 893/05.5TBPCV.C1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

O acórdão recorrido apreciou a questão da seguinte forma:

«Segundo os AA/Recorrentes o doc. 8 junto com a petição inicial é um documento autêntico e de prova vinculada de autoria da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do …… e que nenhuma das partes pôs em causa em sede de contestação nem em qualquer outro incidente foi suscitado que pudesse por em causa a força probatória de tal documento. Consta do referido documento que desde 2014 - data da pendência do processo, que os réus pretendiam a demolição e reconstrução da nova moradia e da piscina, pelo que as respostas aos factos nº 23, 24, 25, 26, 27, 30 e 31 colidem com a força probatória de tal documento, e que como tal devem ser alterados porque ali se tenta dar como provados factos com base em prova testemunhal, que contrariam a prova documental de força vinculada que tal documento da CCDR produz.

A R./apelada sustenta que tal documento não pode ser qualificado como documento autêntico.

Nos termos do artigo 363º, nº 2, CC, são autênticos os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividades que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública.

E de acordo com o artigo 369º, nº 1, CC, o documento só é autêntico quando a autoridade ou oficial público que o exara for competente, em razão da matéria e do lugar, e não estiver legalmente impedido de o lavrar, acrescentando, porém, o nº 2 deste artigo que se considera exarado por autoridade ou oficial público competente o documento lavrado por quem exerça publicamente as respetivas funções, a não ser que os intervenientes ou beneficiários conhecessem, no momento da sua feitura, a falsa qualidade da autoridade ou oficial público, a sua incompetência ou a irregularidade da sua investidura.

O artigo 370º, nº 1, CC, consagra uma presunção de autenticidade, ao estabelecer que se presume que o documento provém da autoridade ou oficial público a quem é atribuído, quando estiver subscrito pelo autor com assinatura reconhecida por notário ou com o selo do respetivo serviço.

Esta presunção de autenticidade pode ser ilidida, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, mediante prova em contrário, e pode ser excluída oficiosamente pelo tribunal quando seja manifesta pelos sinais exteriores do documento a sua falta de autenticidade; em caso de dúvida, pode ser ouvida a autoridade ou oficial público a quem o documento é atribuído.

Estes normativos reportam-se à autenticidade do documento, ou seja, à sua proveniência (força probatória formal).

A falta de reconhecimento da assinatura ou a aposição de selo branco não afasta automaticamente a autenticidade do documento; significa apenas que o documento não beneficia da presunção legal de autenticidade.

Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 4ª edição, pg. 327:

«Ao estabelecer-se uma presunção de autenticidade (consagrando assim expressamente a velha máxima jurídica do scripta publica probant se ipsa) não quer dizer que não possa, noutros casos, considerar-se o documento como autêntico. O que não existe é uma presunção legal; mas pode inclusivamente existir uma presunção de facto suficiente para formar a convicção do tribunal».

O documento foi exarado em papel timbrado do CCDR, sendo por essa razão legítimo presumir a sua autenticidade.

O artigo 371º, nº 1, CC, regula a força probatória dos documentos autênticos: os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pelo autoridade ou oficial público respetivo, assim como os factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.

Esta força probatória apenas pode ser abalada através da prova do contrário a produzir em sede de incidente de falsidade, por força do disposto no artigo 372º, nº 1, CC, incidente que não foi oportunamente deduzido (...).

O documento em causa deve ser qualificado como documento autêntico, porque foi subscrito por uma entidade dotada de autoridade pública - artigos 4º do Decreto-Lei n.º 134/2007 de 27-4 e 363.º, n.º 2, do CC.

Assente que está que o documento de fls. 8 faz prova plena dos factos aí atestados, importará determinar o seu alcance, isto é, interpretá-lo.

[o acórdão da Relação reproduz, em seguida o teor do documento nº 8]

1. Foi efetuado, pelas 11:20H de 19-12-2016, uma ação de fiscalização ao local, conjuntamente com elementos do Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) da GNR de ……

2. Nesta ação de fiscalização verificou-se que a moradia preexistente no lote n.º 27, o qual incide integralmente em área da Reserva Ecológica Nacional (REN), na tipologia «Praias, Arribas e respetivas Faixas de Proteção», se encontra já completamente demolida, com o terreno já terraplanado, mas sem ter sido ainda iniciada a construção da nova moradia com piscina, apresentando um aterro no setor sul do mesmo lote, mas que, aparentemente, grande parte já existiria previamente à demolição.

3. De relevar que, com esta ação no terreno se pretendia verificar se a nova moradia efetivamente correspondia à implantação e número de pisos previstos no projeto aprovado e/ou se a nova piscina se situava dentro do polígono de construção inicialmente aprovado para o lote em questão, ou se fora dele, situação que constitua uma infração, porquanto tal contexto tinha merecido a “definitiva decisão de rejeição” da comunicação prévia por esta CCDR, nos termos do regime jurídico da REN, conforme N/Informação nº ……, de …… .

4. Deste modo, uma vez que as novas construções ainda não tinham sido iniciadas, mas apenas concluída a demolição da moradia preexistente, não se verifica qualquer ilegalidade associada ao lote de terreno em causa, pelo que não foi levantado qualquer auto de notícia e, muito menos, seria aplicável ao momento qualquer embargo.

5. Assim, propõe-se superiormente que se aguarde os desenvolvimentos desta situação no terreno e que seja esta informação levada ao conhecimento da Camara Municipal de …… e da Administração da Região Hidrográfica (ARH) do …… da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), para os devidos efeitos, bem como da reclamante, a título de resposta às reclamações oportunamente apresentadas nesta CCDR”. [fim da transcrição do documento]

Constatamos assim que este documento autêntico, não é suscetível de por em causa os factos nº 23, 24, 25, 26, 27, 30 e 31 já que a simples referência que consta do mesmo “25.07.02.00121.2014” não permite a interpretação pretendida pelos AA/Recorrentes   

Não está assim em causa a natureza de documento autêntico do documento n.º 8, que o acórdão recorrido reconheceu, mas sim a sua interpretação, questão de que nos ocupamos em seguida.


8.1. De forma sintética, alegam os Recorrentes, em sede de conclusões de recurso, que:

“[N]ão se verifica a existência de qualquer causa de exclusão do direito de indemnização como o entendeu o Tribunal na R. decisão recorrida posto que o comportamento das apeladas foi manifestamente ilegal conforme se demonstrou no relatório, porque sem licenciamento para o efeito e depois de ter sido indeferido o pedido (Cf.Nº.3 do doc.8 da CCDR), documento de prova plena e notificado à Ré em 19.3.2015 conforme consta de tal documento.”

Qual o sentido e alcance que os Recorrentes pretendem que se atribua ao conteúdo do documento apreende-se melhor a partir do que consta do corpo das alegações de recurso:

«- De tal documento de prova vinculada consta, designadamente o seguinte:

No cabeçalho do documento a referência ao Processo n.º 25.07.02.0012.2014:

“Ação de fiscalização sobre obra de demolição e reconstrução de moradia e piscina.”

No ponto 2 de tal documento, refere-se que à data da visita 19/12/2016, a moradia já se encontrava totalmente demolida, com o terreno terraplanado “…mas sem ter sido ainda iniciada a construção da nova moradia com piscina”.(vide fotografias do documento 8), identificadas como imagem 1, 2, Foto 1, 2 a 9 em que em todas se fez referencia a que “…constando-se que a moradia e piscina preexistentes já completamente demolidas”.

- Aliás, esta referência à questão da nova construção que os réus pretendem levar a efeito é referida na imagem 1 e 2 do documento 8 onde expressamente se refere:

“Implantação do terreno com a moradia e piscina demolidas, no ortofotomapa de 2010 do IDEALG da CCDR , o qual incide em REN e em cujo lote se pretende a reconstrução de novas moradias e piscina.”

E, no ponto 3, do citado ali consta:

“De relevar que, com esta ação no terreno se pretendia verificar se a nova moradia efetivamente correspondia à implantação e numero de pisos previstos no projeto aprovado e/ou se a nova piscina se situava dentro do polígono de construção inicialmente aprovado para o lote em questão, ou se fora dele, situação que constituía uma infração, porquanto tal contexto tinha merecido a “definitiva decisão de rejeição” da comunicação previa por esta CCDR, nos termos do regime jurídico da REN, conforme N/Informação n.º , de ” (Note-se que as obras de demolição iniciaram em 4.7.2015)

- Ora, o processo é do ano de 2014 conforme consta do citado documento não impugnado e de prova vinculada e que no tribunal “a quo” não se teve em conta sendo que tal data é relevante na análise dos factos e na aplicação do direito.

- Desde 2014 – data da pendência do processo, que os Réus pretendiam a demolição e reconstrução da nova moradia e da piscina – facto esse que se afigura que o Mº, juiz do tribunal “a quo” não entendeu e que não teve em consideração, com manifesta influência no julgamento dos factos 24 a 31 e na aplicação do direito.

Daí que, o facto n.º 23 dado como provado não teve em conta esta prova vinculada que demonstra que desde 2014 – data da pendência do processo de legalização na CCDR(1), que a Ré pretendia a demolição da moradia e da piscina e a sua reconstrução pelo que, com o devido respeito, as respostas aos factos n.º 23, 24, 25, 26, 27, 30 e 31 colidem com a força probatória de tal documento e que devem ser alterados porquanto ali se tenta dar como provado factos com base em prova testemunhal, que contrariam a prova documental de força vinculada que tal documento da CCDR produz e que por si só impõe diferente julgamento (sub. nosso) e que neste tribunal se pode conhecer e decidir.

É que, estes factos tal como foram considerados, serviram como que atenuante justificativa para o comportamento das Rés – facto que o tribunal teve em conta na culpa, com direta influência no valor da condenação muito embora os apelantes entendam que o Mº Juiz se socorreu de norma jurídica inaplicável(2).

Na verdade, tal como se evidencia no documento citado, até se admite que os factos dos pontos 23, 24, 25, 27, 30 e 31 tivessem tido influência na decisão da Ré no ano de 2014 quando se decidiu pela demolição total da moradia e da piscina mas não em 2015 – data em que, SEM LICENCIAMENTO (3), as Rés iniciaram a demolição TOTAL – a qual veio a ser concluída em 23-10-2015, conforme consta do documento que a Ré juntou aos autos em audiência de julgamento.

- Assim sendo, e, perante a prova documental – documento 8 junto com a ação aos pontos 23, 24, 25, 26, 27, 30 e 31, deverão ser alterados e ter resposta conjunta como sendo: “Provado apenas que desde o ano de 2014 que a Ré tinha pendente processo para demolição e reconstrução total da moradia e piscina no lote 27” e cujo processo havia sido indeferido (cf. ponto 3 do doc. 8).

Base da prova:

- Documento da “CCDR” junto com o número 8 que prova tal facto sendo um documento de prova vinculada.

No R. acórdão do Tribunal recorrido, muito embora, se tenha considerado tratar-se de um documento de prova vinculada (pág. 31), entendeu-se que a simples referência que consta do documento “25.070200121.2014”, não permite a interpretação pretendia pelos AA/Recorrentes!

Notável a decisão pela injustiça que revela.

Com o devido respeito entende-se ser inaceitável tal conclusão, posto que, conforme acima se evidenciou, do documento em causa consta, que tal documento claramente contradiz a argumentação utilizada no R. acórdão recorrido que não encontra a força vinculada de tal documento que, por si só, põe em causa a argumentação de que no Tribunal recorrido se serviu para, nesta parte, entender que os AA/Recorrentes não têm razão.

- Aliás, só a manifesta desatenção ao conteúdo do citado documento poderá justificar tal facto, tal a clareza do documento quanto aos factos percecionados e declarados pelo autor do documento de fé publica e prova plena.

- Daí que, ante a prova que tal documento produz, os factos provados com os números 23, 24, 25, 26, 27, 30 e 31 da base instrutória, são claramente influenciados por tal documento de prova que este Vd.º tribunal pode julgar e alterar tal como acima se referiu.

“Provado apenas que desde o ano de 2014 que a Ré tinha pendente processo para demolição e reconstrução total da moradia e piscina no lote 27” e cujo processo havia sido indeferido”» [negritos nossos]

Da leitura atenta das alegações dos Recorrentes, resulta que estes pretendem essencialmente o seguinte:

- Que, atendendo-se ao conteúdo do documento n.º 8, na sua totalidade, dele se extrai que a intenção da R. de demolição total da moradia remonta ao ano de 2014;

- Que, por isso, os factos 23 a 27 e 30 a 31 – dos quais resulta que a decisão de demolição total foi determinada, em 2015, por razões de ordem técnica e de segurança – são incompatíveis com o sobredito conteúdo;

- Que, remontando a intenção da R. de demolição da sua moradia a 2014 – dando origem a um processo administrativo junto da CCDR do ……, que culminou numa decisão de indeferimento – estaria demonstrada a ilegalidade da demolição levada a cabo em 2015.

O que dizer?

Do cabeçalho do documento n.º 8 constam as seguintes indicações:

“Proc. Nº 25.07.02.00121.2014

“Assunto: Ação de fiscalização sobre obra de demolição e de reconstrução de moradia e piscina, num terreno que incide na REN, no Lote n.º … da Urbanização , .... / 19-12-2016.

Sendo o seguinte o teor dos pontos 3 e 4 do texto do mesmo documento, que aqui se reproduzem de novo:

“3. De relevar que, com esta ação no terreno se pretendia verificar se a nova moradia efetivamente correspondia à implantação e número de pisos previstos no projeto aprovado e/ou se a nova piscina se situava dentro do polígono de construção inicialmente aprovado para o lote em questão, ou se fora dele, situação que constitua uma infração, porquanto tal contexto tinha merecido a “definitiva decisão de rejeição” da comunicação prévia por esta CCDR, nos termos do regime jurídico da REN, conforme N/Informação nº , de .

4.         Deste modo, uma vez que as novas construções ainda não tinham sido iniciadas, mas apenas concluída a demolição da moradia preexistente, não se verifica qualquer ilegalidade associada ao lote de terreno em causa, pelo que não foi levantado qualquer auto de notícia e, muito menos, seria aplicável ao momento qualquer embargo.” [negritos nossos]

Da conjugação destes dados, resulta o seguinte:

- No ano de 2014 teve início, no âmbito da CCDR do …, um processo de avaliação de um projecto de alteração da construção existente no lote de terreno pertencente à R., não sendo possível – a partir do conteúdo do documento em causa – apreender quais os contornos exactos desse projecto;

- Tal projecto foi rejeitado pela CCDR por decisão de 19.03.2015;

- Em 19.12.2016 foi levada a cabo uma acção de fiscalização com o intuito de verificar se a decisão da CCDR tinha sido infringida;

- Nessa acção de fiscalização foi constatado que a construção anteriormente existente no lote de terreno da R. tinha sido demolida, sem que, naquela data, se tivesse iniciado nova construção;

- A entidade fiscalizadora concluiu pela inexistência, na mesma data, de qualquer infracção ao regime jurídico da REN.

Assim sendo, e tal como ajuizou o acórdão recorrido, temos de concluir que o conteúdo do documento n.º 8 não demonstra, em si mesmo, nem que a intenção da R. de demolição da moradia remonta a 2014 nem que esse conteúdo é incompatível com os factos provados 23 a 27 e 30 a 31.

Conclui-se, deste modo, pela improcedência da pretensão dos Recorrentes de alteração destes pontos da decisão de facto em função da força probatória plena do documento n.º 8.


8.2. Além do mais, extrai-se também do conteúdo do documento em causa que – naquilo que importa para efeitos de um processo de certificação do respeito pelo regime jurídico da REN – não é o acto de demolição da moradia da R. que releva, mas sim o acto de construção em eventual desconformidade com o projecto autorizado. Não será de mais insistir na importância desta clarificação na medida em que, ao longo de todo o processado, os AA. tendem a atribuir às alegadas ou comprovadas irregularidades administrativas um alcance que as mesmas não possuem ou não possuem necessariamente.

Posto por outras palavras, temos que a violação de normas de direito administrativo ou de direito urbanístico – podendo ser qualificada como uma ilegalidade – não permite, por si só e de forma automática, responsabilizar civilmente a R. perante os AA.. Com efeito, torna-se necessário proceder previamente à determinação do âmbito de protecção da norma ou normas violadas para, subsequentemente, se apurar se os interesses cuja tutela os AA. pretendem assegurar na presente acção se encontram ou não inseridos nesse âmbito.

Aqui chegados, e no que respeita a eventuais violações de normas do regime jurídico da REN – que não foram concretamente alegadas nem provadas pelo que não podem ser consideradas – é possível afirmar que, a existirem, tais violações não relevariam, em princípio, para efeitos de responsabilização civil da R., uma vez que as normas em causa se destinam a proteger interesses públicos e não interesses particulares; e uma vez que, mesmo quando, em certos casos, visem, concomitantemente, a tutela de interesses particulares, essa tutela não incluirá a prevenção de danos económicos puros ou danos puramente patrimoniais como os que estão em causa nos presentes autos.


9. Mantida a decisão relativa à matéria de facto – salvo se, quanto ao pretendido aditamento de um facto 34 (relativo aos montante dos danos) se vier a concluir pela necessidade de mandar baixar os autos, de novo, à Relação – passa-se a conhecer da questão da invocada alteração da decisão de direito, no sentido de dar como verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, condenando-se solidariamente a R. e a Interveniente no pagamento da indemnização peticionada.

Na senda do percurso percorrido pelas decisões das instâncias e do teor das alegações dos Recorrentes, importa, antes de mais, aferir do preenchimento do pressuposto da ilicitude da conduta da R. e da Interveniente, à luz das diversas fontes normativas consideradas, a saber:

(i) Violação de normas destinadas a proteger interesses alheios (ou violação de normas de protecção) (art. 483.º, n.º 1, segunda parte do CC);

(ii) Violação de deveres de prevenção de perigo (ou deveres de segurança no tráfego) (arts. 492.º e 493.º do CC);

(iii) Desrespeito pela proibição de emissões nas relações de vizinhança (art. 1346.º do CC);

(iv) Responsabilidade civil nas relações de vizinhança (art. 1348.º, n.º 2 do CC).

           

9.1. No que se reporta à alegada violação de normas de protecção (segunda parte do n.º 1 do art. 483.º do CC), não está em causa – como se afirmou supra – o desrespeito pelo regime normativo da REN, nem tampouco o desrespeito pelo regime normativo específico de emissão de ruído, uma vez que, como assinalado pelas instâncias, não foram alegados nem provados factos que o consubstanciassem. Está sim em causa a inexistência da licença de demolição, exigida pelo art. 4.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com sucessivas alterações, a última das quais - em vigor à data de início da demolição dos autos - a versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 136/2014, de 9 de Setembro).

Contudo, como é do conhecimento geral, para que ilicitude por violação de normas de protecção – também denominada segunda modalidade de ilicitude – se dê como verificada num determinado caso concreto, não basta constatar a existência da violação de uma norma legal; é necessário ainda que se encontrem reunidas as seguintes condições: que o fim da norma violada se dirija à tutela de interesses particulares e que o dano ocorrido se integre no círculo de interesses tutelados pela norma em causa.

Vejamos.

A norma que exige a licença de demolição destina-se primacialmente a proteger o interesse público, admitindo-se que, concomitantemente, se destine também a proteger interesses particulares [ver, neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.02.2017 (proc. n.º 528/09.7TCFUN.L2.S1) e de 25.10.2018 (proc. n.º 2511/10.0TBPTM.E2.S1), consultáveis em www.dgsi.pt]. Porém, tem-se como certo que os danos abrangidos pelo círculo dos interesses particulares em causa são aqueles danos originados pela lesão de direitos absolutos (designadamente de direitos personalidade ou de direitos reais) ou equivalentes; e não danos económicos puros ou danos puramente patrimoniais como aqueles que estão em causa na presente lide.

Deste modo, enquanto o pedido formulado na p.i., mas posteriormente abandonado, de indemnização pelos alegados danos causados à estrutura da piscina dos AA. se integraria no círculo dos interesses particulares que a exigência normativa de licença de demolição pretende tutelar, o pedido indemnizatório por lucros cessantes derivados da perda de clientes na exploração da actividade de alojamento local não se encontra abrangido pelo âmbito dos interesses tutelados.

Forçoso é concluir, como fez o tribunal a quo, ainda que sem identificar claramente o fundamento dogmático para o efeito, não poder basear-se a responsabilidade da R. no desrespeito da referida norma de direito administrativo, conjugada com a previsão da segunda parte do n.º 1 do art. 483.º do CC.

Razão pela qual não tem também cabimento o pedido indemnizatório – em que os AA. insistem no presente recurso – pelas despesas suportadas com os honorários do advogado dos mesmos AA. para acompanhar junto da Câmara Municipal de … o problema da falta de licença de demolição.


9.2. Por razões parcialmente coincidentes, cumpre afastar também a aplicabilidade à R. proprietária do regime do n.º 1 do art. 492.º do CC, assim como a aplicabilidade à Interveniente, empresa de construção civil que executou a demolição, do regime do n.º 2 do mesmo art. 492.º e dos n.ºs 1 e 2 do art. 493.º do CC.

Com efeito, de acordo com o entendimento tradicional – prevalecente na doutrina e constante na jurisprudência – a consagração da responsabilidade por violação de deveres de prevenção do perigo ou, na terminologia de origem germânica, deveres de segurança no tráfego (“Verkehrssicherungspflicten”), visa unicamente reparar os danos causados pela lesão de posições absolutamente protegidas. Excluindo-se, portanto, os danos económicos puros como aqueles que são invocados nos presentes autos.

Confirma-se, assim, o afastamento do regime dos arts. 492º e 493º do CC como fundamentos para responsabilizar a R. e/ou a Interveniente.


9.3. Importa agora passar a considerar da aplicabilidade do regime de responsabilidade civil nas relações de vizinhança. Dispõe o art. 1348.º do CC:

“1. O proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra.

2. Logo que venham a padecer danos com as obras feitas, os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor delas, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas necessárias.”

Alegam os AA. encontrar-se tutelados por esta especial fonte normativa de responsabilidade civil, na qual se dispensam os pressupostos da ilicitude e da culpa do agente. Regime especial que, por isso, é comumente qualificado como de responsabilidade civil por facto lícito tanto pela doutrina (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Vol. I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, pág. 716; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, pág. 658; Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, Univ. Católica Editora, Lisboa, 2017, pág. 200; Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 4.ª ed., Princípia, Cascais, 2020, pág. 97) como pela jurisprudência deste Supremo Tribunal [cfr., entre outros, os acórdãos de 10.01.2006 (proc. n.º 05A3331), de 25.03.2010 (proc. n.º 428/1999.P1.S1), de 13.04.2010 (proc. n.º 109/2002.C1.S1), de 13.11.2012 (proc. n.º 777/05.7TBTVD.L1.S1) e de 27.04.2017 (proc. n.º 996/05.6TBFAF.G2.S1), disponíveis em www.dgsi.pt].

Na senda do entendimento das instâncias, não assiste razão aos AA..

Por um lado, porque, ao referir-se a “escavações”, a norma em causa não abrange toda a actividade de construção civil, mas apenas a que se passa ao nível do subsolo. Ora, no caso dos autos, a actividade executada no prédio da R. consistiu em demolição da moradia, não vindo alegado nem provado que tivessem ocorrido actos qualificáveis como “escavações” ou equivalentes. Por outro lado, uma vez que é a própria lei a enunciar que as condicionantes em causa se destinam a não privar “os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra”, torna-se evidente que – também aqui – se pretendem abranger apenas danos gerados pela lesão de posições absolutamente protegidas e não danos económicos puros (ou danos puramente patrimoniais) como os que invocados pelos AA..

Confirma-se, também aqui, a não aplicação do regime do n.º 2 do art. 1348.º do CC ao caso dos autos.


9.4. Deste modo, e tal como entenderam as instâncias, temos de concluir que os interesses dos AA. apenas poderão merecer consideração à luz do direito de oposição a emissões provenientes de prédio vizinho previsto no art. 1346.º do CC:

O proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.”

Trata-se de uma norma de protecção que tutela os proprietários de prédios vizinhos, sendo que, como admitido pelas instâncias, do seu desrespeito poderá resultar a obrigação de indemnizar os lesados. Neste sentido, cfr. Elsa Vaz de Sequeira, Anotação ao artigo 1346.º, in Comentário ao Código CivilDireitos Reais, Universidade Católica Editora (a publicar), nota VII.

Como se referiu supra, a 1.ª instância, reconhecendo o direito dos AA. a serem indemnizados, procurou conjugá-lo, convocando o n.º 1 do art. 335.º do CC, com o direito da R. a usar e fruir da sua propriedade, incluindo o direito de aí realizar obras (que se provou serem indispensáveis), decidindo condenar a R. (e a Interveniente) a suportar 50% dos danos que deu como provados; e considerando que, no que aos lucros cessantes respeita, se pode afirmar existir relação causal entre as emissões e a perda de receitas no ano 2016 mas já não entre as emissões e as invocadas perdas de receitas nos anos subsequentes a 2016.

Diversamente, o acórdão da Relação, começando por afirmar que “a emissão de ruído e poeira causada pela demolição de uma moradia que indiciava a existência de problemas estruturais, não se pode considerar desnecessária”, apreciou do preenchimento dos pressupostos do art. 1386.º, concluindo, por um lado, que “os factos provados não traduzem um prejuízo substancial para o uso do prédio, afetando de forma grave o uso deste como local de arrendamento para turistas” e, por outro lado, que “não é possível afirmar que a emissão de ruído e poeira resultem de um uso anormal do prédio da R.”.

Quid iuris?


9.4.1. Afigura-se que, ainda que com algumas precisões, é de acolher a orientação assumida pela Relação. Tanto porque, tal como a mesma Relação reconheceu, a factualidade dada como provada evidencia a necessidade das obras de demolição levadas a cabo, como porque – se se concluir haver lugar à conjugação entre o exercício das faculdades do direito de propriedade da R. e os direitos dos AA. – tal passará, em primeira linha, pela aplicação do regime específico previsto no art. 1346.º do CC e não pelas regra geral do n.º 1 do art. 335.º do CC.

Vejamos.

De uma forma esquemática, a aplicação ao caso sub judice do regime do art. 1346.º do CC, com – em caso de desrespeito pelo mesmo – as inerentes consequências indemnizatórias, implica determinar: (i) quem são os sujeitos protegidos; (ii) quem são os sujeitos obrigados; (iii) quais são os direitos abrangidos e correspondentes danos; (iv) como se conjugam as duas situações objectivas previstas na sobredita norma (importarem as emissões um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultarem da utilização normal do prédio de que emanam).

Respondendo à primeira dúvida temos que sujeitos protegidos nos termos do art. 1346.º do CC tanto são os proprietários do prédio vizinho como os titulares de outros direitos reais sobre o mesmo prédio (ver neste sentido, José Alberto Vieira, Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 302, e Elsa Vaz de Sequeira, Anotação ao artigo 1346.º, cit., nota I). No caso dos autos, sendo a A. proprietária e o A. usufrutuário do prédio vizinho, a norma visa tutelar a faculdade deste último em usar e fruir a coisa (cfr. art. 1446.º do CC) pelo que, em rigor, é ele o sujeito tutelado.

Quanto aos sujeitos responsáveis são, antes de mais, o proprietário ou proprietários do prédio emitente, assim com os titulares de outros direitos reais ou, eventualmente, de direitos pessoais de gozo sobre o mesmo prédio. Mas não certamente pessoas ou entidades que nele pratiquem actos ou exerçam actividades acordados com os respectivos proprietários (ou outros obrigados) ou por estes tolerados. No caso dos autos, temos, pois, que o sujeito responsável será a R., na qualidade de proprietária, mas não a Interveniente, por aquela contratada para executar as obras de demolição. A responsabilidade da Interveniente apenas poderia fundar-se no regime geral de responsabilidade delitual (art. 483,º n.º 1, do CC). Ora, não apenas não foi provada qualquer conduta ilícita da sua empresa construtora como ficou provado que a dita empresa “procurou minimizar o impacto da emissão de poeiras, designadamente, regando o entulho que tirava da obra e carregava para ser removido e colocando tapumes” (facto 33).

Quanto à natureza dos direitos tutelados pelo art. 1346º do CC, teve lugar, ao longo das últimas décadas, uma clara evolução jurisprudencial (cfr. Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017, págs. 189 e segs.; Elsa Vaz de Sequeira, Anotação ao artigo 1346.º, cit., nota VI) no sentido de, para além da afectação das faculdades que integram o direito de propriedade (ou outros direitos reais), se abrangerem também os direitos de personalidade, ou melhor, como assinala a referida autora, no sentido de que “o âmbito de garantia efetiva de um direito de gozo é definido não apenas pelo âmbito de garantia efetiva de outro direito de gozo, mas também pelo âmbito de garantia efetiva dos direitos de personalidade”.

Porém, no caso dos autos, não está em causa a afectação da garantia efectiva de qualquer direito de personalidade dos AA. – como o seu direito ao repouso, por exemplo  – uma vez que estes têm residência permanente na …… (facto 2) e não foi alegado nem provado que, durante o decurso das obras de demolição, tivessem utilizado ou pretendido utilizar, para descanso ou lazer, a sua moradia dos autos. Afigura-se, porém, de admitir que o direito de oposição a emissões previsto no art. 1346.º, destinando-se a tutelar o conteúdo de um direito real de gozo – no caso, o direito do A. usufrutuário a usar e fruir da coisa – inclua a faculdade de aí explorar a actividade de alojamento turístico. Pelo que, consequentemente, a responsabilização pelo desrespeito por esse direito de oposição a emissões conduzirá à ressarcibilidade da perda das correspondentes receitas, não obstante a natureza de danos económicos puros que tal perda reveste.

Finalmente, quanto à conjugação das duas situações objectivas previstas na norma, tem a mesma suscitado diversas dúvidas interpretativas. Socorremo-nos da síntese de Elsa Vaz de Sequeira (Anotação ao artigo 1346.º, cit., nota V):

“A interpretação da norma não se mostra isenta de dúvidas, indagando-se até ponto estes requisitos são alternativos ou cumulativos.

Em termos puramente literais, a solução parece passar por considerar os ditos requisitos alternativos, bastando para que as emissões fossem proibidas que provocassem um prejuízo substancial ou que resultassem do exercício anormal do direito. A doutrina, no entanto, tem julgado esse resultado interpretativo desprovido de sentido, porquanto ele implica a proibição das emissões procedentes do exercício anormal do direito não lesivas. Aceitar que o titular de um direito de gozo possa vedar o exercício do direito alheio, apenas porque ele sai fora dos padrões de normalidade, não obstante ser absolutamente inócuo, redundaria numa possível situação de abuso do direito (HENRIQUE ANTUNES: 186-187)].

Por essa razão, MENEZES CORDEIRO sustenta a natureza cumulativa desses requisitos. “O proprietário só pode proibir emissões que efectivamente o prejudiquem e não resultem do uso anormal do prédio” (1979: 596). A maior parte dos autores, contudo, tem rejeitado esta visão, seja por falta de apoio literal – a lei utiliza a conjunção “ou” e não “e” –, seja por ausência de um interesse legítimo merecedor de proteção, seja por comprometer o âmbito de tutela do artigo 1346.º, reduzindo-o desmedidamente. Sob este prisma, haverá que discernir duas hipóteses: as emissões resultantes do exercício normal do direito alheio e aquelas originadas pelo seu exercício anormal (RUI PINTO DUARTE, 2013: 86). Ali, as emissões apenas serão proibidas se causarem um prejuízo substancial ao prédio vizinho. Aqui, diferentemente, a sua proibição fica dependente da produção de algum tipo de prejuízo – ainda que não substancial – no imóvel vizinho, não sendo suficiente, por isso, o cariz anómalo do referido uso (…)”.

Tendo presente esta última orientação – que se acolhe – consideremos os factos provados relevantes:

3- Os AA. têm rentabilizado o imóvel referido em 1 destes factos provados no arrendamento a turistas nacionais e estrangeiros, que procuram tal produto (resposta ao art.º 3º da p.i.).

4- A moradia em causa, é um imóvel construído em 2003, decorado, com piscina aquecida, vista de mar, 4 quartos e capacidade para 8 pessoas, situado em local tranquilo (resposta ao art.º 4º da p.i.).

5- A moradia dos AA. encontra-se legalizada e licenciada para esta atividade comercial, conforme consta dos documentos juntos como doc. 4 e doc. 5 da p.i., de onde consta a sua composição com Rés-do-chão, primeiro andar, com tipologia Tipo T4, com piscina, capacidade para oito pessoas e quatro quartos (resposta ao art.º 5º da p.i.).

6- Os preços de aluguer por semana, que foram estabelecidos em 10.7.2015 pela Agência ……, com quem os AA. trabalham para o aluguer da sua moradia e com quem as reservas são tratadas com antecedência, para vigorar desde então, são os seguintes:

- de 01 janeiro até 30 junho 2016: 2.900,00€;

- de 01 julho até 31 agosto 2016: 3.900,00€;

- de 01 setembro até 31 dezembro 2016 2.900,00€;

sendo que a …cobra 20% de comissão, consistindo a época normal em 36 semanas, de abril a outubro, e que o acordo com a … não é exclusivo daquela agência e tanto os AA. como outras agências promovem o aluguer (resposta aos artºs 6º a 8º e 27º da p.i.).

8- No dia 4 de Julho de 2015, a R iniciou a demolição da moradia, da piscina e toda a demais construção ali existente, sem deterem, no caso, licença para o efeito (resposta aos artºs 10º e 18º da p.i.).

10- A atividade de demolição causou no local aos vizinhos inconvenientes, pelo barulho e poeira que emitia (resposta ao art.º 12º da p.i.).

13- Com data de 02.11.2015, a Câmara Municipal de …, promoveu o embargo da obra, conforme consta da notificação que se encontra junta como doc. 11 da p.i., com a instauração do processo contraordenacional contra os RR., sendo que entretanto a demolição fora integralmente concluída (resposta aos artºs 16º e 19º da p.i. e 32º da contestação dos RR.).

14- Em 19.12.2016, em Inspeção ao local a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do …, ali concluiu, nomeadamente, que a moradia dos RR. “…se encontra completamente demolida, com terreno já terraplanado, mas sem ter sido ainda iniciada a construção da nova moradia (resposta ao art.º 20º da p.i.).

15- Devido ao referido em 8 a 10, 13 e 14, destes factos provados, os autores tiveram de devolver a clientes que haviam efetuado reservas para estadia na sua moradia, ou deixaram de rentabilizar a moradia aos clientes que se identificam, nos seguintes valores:

- 18.7.2016 Família HH: 3.500,00€;

- 29.8.2016 II: 4.000,00€;

- agosto de 2016 JJ: 3.900,00€;

- outubro de 2016 LL: 2.000,00€;

- novembro de 2016 MM: 2.900,00€;

- dezembro de 2016 NN: 5.800,00€;

num total de 22.100,00€ (resposta ao art.º 21º da p.i.).

17- Devido ao problema havido nos anos de 2015 e 2016, a … tirou a casa dos AA. do mercado, até a situação estar resolvida (resposta aos artºs 24º a 26º da p.i.).

18- Pese embora os AA. terem perdido os valores acima referidos referente ao ano de 2016, naquele ano, os AA. ainda obtiveram de receita o valor anual de 27.000,00€ (resposta ao art.º 28º da p.i.).

19- Os AA. já foram contactados por clientes que pretendem voltar, quando não houver obras, barulho ou pó, mas a atividade de arrendamento ainda não foi retomada (resposta ao art.º 30º da p.i.).

Quanto a apurar se os danos causados resultam ou não de uma utilização normal do prédio da R., temos que a demolição da moradia construída no prédio desta última não pode considerar-se, em si mesma e porque compreendida num período de tempo razoável, isto é, entre 4 de Julho e, no máximo, 2 de Novembro de 2015, uma utilização anormal do mesmo prédio.

Quanto ao segundo critério de relevância previsto no art. 1346.º do CC – importarem as emissões do prédio da R. um prejuízo substancial para o uso do imóvel pelo A. usufrutuário – vejamos os termos em que a Relação se pronunciou:

“Cumpre referir que não estamos perante uma área protegida, na qual seja proibida as obras de construção e demolição, pelo que a generalidade das pessoas residentes no local pode estar sujeita ao ruído e poeiras resultante destas obras, não tendo sido provado (e não foi alegado) quais os valores dos ruídos e das poeiras causados pela demolição em causa, para se poder aquilatar da gravidade dos inconvenientes.

Decorre dos factos provados, que o prédio dos AA. continua apto para poder ser utilizado para arrendamento turístico, dado que a demolição foi uma atividade ruidosa mas temporária (limitada provavelmente a alguns meses de 2015).

Acresce dizer que não decorre dos factos provados qual foi a duração da demolição, apenas sabendo que se iniciou no dia 4.07.2015 e que em 2.11.2015 quando a Câmara Municipal de ...... promoveu o embargo da obra já se encontrava completamente concluída (facto 13) e que os danos que resultaram provados referem-se a reservas de 2016 (facto 15); ou seja, referentes ao ano seguinte ao da demolição.

Faltam assim os requisitos de gravidade, continuidade ou até de periodicidade na emissão de barulho e poeira para o prédio vizinho, pois só nesta medida é que a concreta perturbação se pode configurar como excessiva e, por isso, intolerável.

Entendemos assim, que os factos provados não traduzem um prejuízo substancial para o uso do prédio, afetando de forma grave o uso deste como local de arrendamento para turistas.” [negrito nosso]

Se se acompanha a Relação no que se refere ao juízo de falta de continuidade e de periodicidade das emissões emanadas do prédio da R., afigura-se mais difícil acompanhar o juízo de falta de gravidade das ditas emissões. Com efeito, e como é do conhecimento comum, a demolição de uma construção volumosa como a implantada no terreno da R., não poderia ter ocorrido sem a produção de emissões de ruído e de poeira de nível elevado. Posto é que, entre as emissões produzidas pelos trabalhos de demolição da moradia da R. e os prejuízos invocados pelos AA., exista efectivamente uma relação de causalidade adequada.


9.4.2. Aqui chegados, importa apreciar do pressuposto do nexo de causalidade entre as emissões resultantes da demolição da moradia da R. e os danos alegados e provados pelo AA..

Recorde-se mais uma vez que a demolição teve início a 4 de Julho de 2015 e se encontrava já concluída quando, em 2 de Novembro de 2015, a Câmara Municipal de … promoveu o embargo da obra. Ora, os danos invocados respeitam a alegados lucros cessantes relativos não aos meses em que decorreu a demolição, mas sim aos anos de 2016, 2017, 2018, e anos subsequentes.

Perante estes dados de facto, entendeu a 1.ª instância não existir relação de causalidade adequada entre a demolição da moradia da R. e os alegados prejuízos do A. respeitantes a anos posteriores a 2016, mas ser tal relação causal de admitir quanto aos invocados prejuízos relativos ao ano 2016, atendendo a que as reservas do alojamento turístico são feitas com antecedência.

Aderimos ao juízo formulado no que respeita ao afastamento da causalidade adequada quanto aos lucros cessantes respeitantes aos anos posteriores a 2016, já o mesmo não se passando quanto à afirmação do nexo causal relativamente aos lucros cessantes respeitantes ao ano 2016.

Vejamos.

Assinale-se, antes de mais, que, sendo o juízo normativo de causalidade adequada uma questão de direito e não de facto, não pode o teor do facto 15 (Devido ao referido em 8 a 10, 13 e 14, destes factos provados, os autores tiveram de devolver a clientes que haviam efetuado reservas para estadia na sua moradia, ou deixaram de rentabilizar a moradia aos clientes que se identificam, nos seguintes valores: (…)”) revestir o sentido e alcance de impedir a reapreciação desse juízo normativo por este Supremo Tribunal.

Ora, o que se verifica é que – tendo ficado provado que a demolição da moradia da R. terminou em data não apurada, mas anterior a 2 de Novembro de 2015, e não tendo sido alegado nem provado que as reservas turísticas canceladas se reportem à utilização da moradia dos AA. durante o período em que ocorreu a demolição e as inerentes emissões nem tampouco durante o período imediatamente subsequente à dita demolição (últimos meses de 2015) e sabendo-se que, em 19 de Dezembro de 2016, ainda não se iniciara a construção de uma nova moradia no terreno da R. (facto 14) – não é possível estabelecer-se um nexo de causalidade adequada entre o facto das emissões e os danos alegados e provados nos presentes autos.

Com efeito, tanto quanto a factualidade provada permite apurar, a perda de receitas, e, em particular, a devolução aos clientes de quantias antecipadamente cobradas pelos AA., resultam essencialmente da modalidade de negócio por eles adoptado, mais concretamente do recurso à utilização dos serviços de intermediação de uma agência imobiliária (no caso, a …… - cfr. factos provados 17 e 19) que, aquando da promoção dos alojamentos turísticos no segmento de mercado a que se dirige, exige a completa estabilidade e qualidade do ambiente em que se inserem. O facto de ter sido provado (por confissão, aliás) que, no ano de 2016, “os AA. ainda obtiveram de receita o valor anual de 27.000,00€” (facto 18), permite confirmar que as perdas de receitas descritas no facto 15 se deveram a outros factores que não as emissões do prédio da R. ocorridas entre 4 de Julho de 2015 e data não apurada, mas anterior a 2 de Novembro desse mesmo ano 2015. Factores esses que, afinal, interrompem o nexo de causalidade adequada entre o facto imputável à R. e os danos alegados e provados pelos AA..


9.4.3. Contudo, ainda que assim não se concluísse e se considerasse verificada a previsão do art. 1346.º do CC (emissões causadoras de um prejuízo substancial para o uso do imóvel dos AA.), teria ainda de se averiguar da existência ou não de uma causa (geral) de exclusão de ilicitude da conduta da R., que, a verificar-se, afastará o direito de os proprietários de prédios vizinhos se oporem às emissões.

Relevam os seguintes factos provados:

23- A ré viu-se forçada a demolir o seu edifício, porque o mesmo evidenciava, aos olhos dos técnicos de construção que alguns elementos estruturais verticais (pilares) estavam apoiados, diretamente, no terreno, ou sobre blocos de betão (resposta aos artºs 26º, 42º e 43º da contestação dos RR. e 19º, 31º e 32º da contestação da interveniente EE).

24- A constatação deste facto levou a que se procedesse a uma inspeção mais rigorosa, para verificar os restantes elementos estruturais, tendo-se constatado que, na generalidade, vários pilares não tinham sapatas de fundação, nem travamento através de vigas de fundação (resposta aos artºs 44º da contestação dos RR. e 33º e 52º da contestação da interveniente EE).

25- A fim de se proceder ao isolamento térmico e impermeabilização dos terraços e cobertura do piso superior, onde se verificavam, também, vestígios de infiltrações, procedeu-se na inspeção ao edificado, tendo-se concluído que as lajes de pavimento e vigas estruturais, em contacto com o exterior, apresentavam-se em estado de degradação, com oxidação das armaduras e sem recobrimento regulamentar (resposta aos artºs 45º da contestação dos RR. e 34º e 53º da contestação da interveniente EE).

26- Detetou-se, ainda, fissuração em paredes e elementos de construção (vigas e pilares) o que indiciava a existência de problemas estruturais (resposta aos artºs 46º da contestação dos RR. e 35º e 54º da contestação da interveniente EE).

27- Perante estes factos, os técnicos que assessoram os réus concluíram que não havia solução técnico-económica possível que garantisse, no futuro, a segurança dos utentes, pelo que o aproveitamento do lote de terreno, com a sua implantação, localização e vista de mar, em condições responsáveis e compatíveis com a segurança de quem lá viesse a viver, implicava necessariamente a demolição de todos os elementos estruturais que evidenciassem deterioração ou condições de execução não regulamentares (resposta aos artºs 47º, 48 e 65º da contestação dos RR. e 36º, 37º, 55º e 69º da contestação da interveniente EE).

30- A execução dos trabalhos contratados pela Ré consistia na remodelação interna do Lote …, com substituição de pavimentos e revestimento de paredes, instalações de abastecimento, de águas e de drenagem de águas residuais, eletricidade e telecomunicações e incluía para efeitos de garantia de acessibilidades e de mobilidade dos Réus, a execução de trabalhos de supressão dos desníveis existentes no piso inferior, sendo que só ao iniciar a execução dos referidos trabalhos, concretamente a supressão dos desníveis existentes no piso inferior, os quais obrigaram em média a uma escavação de 25 cm abaixo da cota de soleira, a EE verificou que alguns elementos estruturais verticais (pilares) estavam apoiados diretamente no terreno ou sobre blocos de betão, o que poderia causar uma derrocada iminente, com eventual perda de vidas humanas, pelo que, perante tal constatação, foi feita uma inspeção no sentido de avaliar os restantes elementos estruturais (resposta aos artºs 48º a 51º da contestação da interveniente EE).

Perante a prova dos riscos estruturais que comprometiam a segurança da moradia da R., detectados aquando da execução dos trabalhos levados a cabo pela empresa de construção civil, a aqui Interveniente, forçoso é concluir encontrar-se a mesma R. obrigada a promover a demolição da mesma moradia. Obrigação que constitui uma causa geral de exclusão da ilicitude da sua conduta, apta a afastar a aplicação do regime do art. 1346.º do CC e, concomitantemente, a responsabilização da proprietária do prédio emitente.


9.4.4. Em conclusão, considera-se que: (i) Não se verificam os pressupostos de que depende a responsabilidade civil da R., uma vez que, por um lado, o uso do seu prédio não pode ser tido como anormal e, por outro lado, não se encontra provado o nexo de causalidade adequada entre as emissões produzidas pela obras de demolição – que, repete-se, decorreram entre 4 de Julho de 2015 e data não determinada, mas anterior a 2 de Novembro de 2015 – e os lucros cessantes correspondentes ao ano 2016 e anos subsequentes; (ii) De qualquer forma, tendo ficado provados os riscos de segurança da moradia da R., encontrava-se esta obrigada a demoli-la, o que, em si mesmo, constitui causa de exclusão de ilicitude da conduta da R., exonerando-a de responsabilidade.


10. Diante das conclusões a que se chegou, fica prejudicada a necessidade de mandar baixar os autos à Relação para, corrigido o erro de qualificação como questão de direito (ver supra, ponto 7. do presente acórdão), apreciar a impugnação da matéria de facto no que se refere à pretensão dos apelantes de aditamento de um novo facto (n.º 34).


11. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pelos Recorrentes.


Lisboa, 26 de Novembro de 2020


Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmas. Senhoras Conselheiras Maria Rosa Tching e Catarina Serra que compõem este colectivo.

Maria da Graça Trigo (Relatora)

Maria Rosa Tching

Catarina Serra

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[1] Relatado pela relatora do presente acórdão.
[2] Relatado pela relatora do presente acórdão.
[3] Relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes e votado nesta Secção do STJ.