Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
47/07.6PAAMD-P.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
ADMISSIBILIDADE
LENOCÍNIO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CRIMINALIDADE VIOLENTA
Nº do Documento: SJ200904130000475
Data do Acordão: 04/13/2009
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO
Sumário :
I - Nos termos das als. a) e b) do art. 202.º do CPP são pressupostos da prisão preventiva, entre outros, a existência de fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos ou com pena de prisão de máximo superior a três anos, tratando-se de crime doloso de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada.

II - O crime de lenocínio é um crime que tem como objecto da tutela um bem jurídico eminentemente pessoal – “a liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição ou, por outras palavras, a liberdade e autodeterminação sexual da pessoa”, arredados que foram bens jurídicos de natureza supra-individual da comunidade ou do Estado “relacionados com concepções de ordem moral enquanto fundamentadoras da incriminação de condutas”.

III - O que caracteriza este tipo legal de crime e lhe confere legitimidade constitucional é a “normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência” e, por isso, deve fazer-se uma interpretação restritiva do tipo “no sentido de exigir a prova adicional do elemento típico implícito da “exploração económica e social” da vítima prostituta – cf. Acs. do TC n.ºs 144/2004 e 196/2004.

IV -Neste contexto o crime de lenocínio pode integrar-se no conceito de “criminalidade violenta”, na medida em que, em conformidade com a al. j) do art. 1.º do CPP, as respectivas condutas, que têm carácter doloso, se dirigem contra a liberdade das pessoas, aqui abrangida, como sua indispensável componente, a liberdade e autodeterminação sexual das pessoas.

V - Tendo o requerente sido condenado pela prática de 7 crimes p. e p. pelo art. 169.º, n.º 1, do CP, os quais atentam dolosamente contra a liberdade das pessoas, assumem o cariz de “criminalidade violenta” e constituem pressuposto da admissibilidade da medida coactiva de prisão preventiva, visto que punidos, cada um deles, com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.
Decisão Texto Integral:
I.
1. AA veio, por meio de advogado, requerer ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça a providência de habeas corpus, invocando em suma:
- Encontra-se sujeito à medida de prisão preventiva após a sua submissão a interrogatório judicial de arguido detido, por haver indícios de crimes de lenocínio, auxílio à imigração clandestina e posse ilegal de arma, tendo sido detido em 9/04/2008.
- A prisão preventiva foi-lhe aplicada com base no art. 202.º, n.º 1, alínea b) do CPP, com remissão para o art. 1.º. alínea j) do mesmo diploma legal.
- O arguido esteve sempre indiciado por crime de lenocínio do art. 169.º, n.º 1 do CP e não pelo seu n.º 2.
- Ora, a referida alínea j) do art. 1.º do CPP refere-se à criminalidade violenta, considerando-se como tal «as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.»
- O arguido, porém, nunca foi indiciado, nem acusado, nem julgado pela prática de lenocínio praticado com violência contra as pessoas, nomeadamente atentando contra a liberdade sexual delas - situação esta, como se disse, prevista e punida pelo n.º 2 do art. 169.º do CP.
- Dessa forma, o recurso à alínea j) do art. 1.º é abusivo e só se justifica como «argumento de assim poder justificar o decretamento da medida de coacção de prisão preventiva (…)»
- Por via disso, a prisão do requerente é ilegal, devendo o mesmo ser restituído à liberdade.


2. O juiz do processo prestou a informação a que alude o art. 223.º, n.º 1 do CPP e confirmando que o requerente foi detido em 9/04/2008 e ouvido em 1.º interrogatório em 11/04/2008, data em que lhe foi aplicada a medida coactiva de prisão preventiva, por se mostrarem indiciados os crimes de:
- 1 crime de lenocínio, p. p. pelo art. 169.º, n.º 1 do CP, com a pena de prisão de 6 meses a cinco anos;
- 1 crime de auxílio à imigração clandestina, p.p. pelo art. 183.º, n.º 2 da Lei n.~23/07, de 4/07, com a pena de prisão de 1 a 4 anos:
- 1 crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo art. 3.º, n.º 4 b) e 86.º, n.º 1 c) da Lei n.º 5/2006, de 23/02, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
Na fundamentação da medida aplicada, a juíza de instrução criminal «baseou-se, para além do mais, no art. 202.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPP, no que concerne à possibilidade de aplicar a prisão preventiva nos casos de criminalidade violenta ou altamente organizada, quando ao crime corresponde pena de prisão superior a 3 anos.
Foi proferido despacho de acusação e o arguido já foi julgado, vindo a ser proferido acórdão, que ainda não transitou em julgado.
A medida de coacção aplicada foi reexaminada e mantida com base no disposto, entre outros, no citado art. 202.º, n.º 1 b) do CPP, o mesmo sucedendo no despacho que recebeu a acusação, que manteve o estatuto processual do arguido nos mesmos termos.
O arguido chegou a requerer a substituição da medida de coacção, mas sem êxito.
Condenado na pena de 6 anos de prisão, resultante de cúmulo jurídico (7 crimes de lenocínio, pp. e pp. pelo art. 169.º, n.º 1 do CP, um crime de auxílio à imigração clandestina, p.p. pelo art. 183.º, n.º 2 da Lei n.º 23/2007, de 4/07 e um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelo art. 86.º, n.º 1 c) da Lei n.º 5/2006, de 23/02, com referência aos arts. 3.º e 4.º b) da mesma Lei, o tribunal manteve o arguido sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.

Foram juntas várias peças do processo principal devidamente certificadas.

3. Convocada a secção criminal e notificados o MP e o defensor, teve lugar a audiência - art.s 223.º, n.º 3, e 435.º do CPP.
Importa agora, tornar pública a respectiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.



II.
4. A providência de habeas corpus é uma providência excepcional, destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade, como doutrina CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, 1986, p. 273, que a rotula de providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional, no mesmo sentido confluindo, entre outros, GERMANO MARQUES DA SILVA, para o qual a providência de habeas corpus é «uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo, em muito curto espaço de tempo, a uma situação de ilegal privação de liberdade», (Curso de Processo Penal, T. 2º, p. 260).
Porque assim, a petição de habeas corpus, em caso de prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal:
a) - Ter sido [a prisão] efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) - Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;
c)- Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial.
Confrontamo-nos, pois, com situações de violação ostensiva da liberdade das pessoas, quer por incompetência da entidade que ordenou a prisão, quer por a lei não a permitir com o fundamento invocado ou não tendo sido invocado fundamento algum, quer ainda por estarem excedidos os prazos legais da sua duração, havendo, por isso, urgência na reposição da legalidade.
No caso sub judice, de acordo com o fundamento invocado, a situação contemplada parece ser a da precedente alínea b) – ser a prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite.
Como resulta dos n.ºs 1 e 2 do precedente ponto I e ainda do despacho que aplicou a medida de coacção, bem como dos despachos que a mantiveram, antes e depois da fase de julgamento, foi aquela baseada nas circunstâncias de forte perigo de fuga, de continuação da actividade criminosa e de o caso admitir a prisão preventiva, quando existirem fortes indícios de prática de crime doloso punido com pena de prisão de máximo superior a cinco anos de prisão ou superior a 3 anos, nos casos de terrorismo e das chamadas “criminalidade violenta ou “altamente organizada” – art. 202.º, n.º 1, als. a) e b) do CPP (despacho que aplicou a medida coactiva e posteriores despachos que a mantiveram).
Ora, o requerente foi indiciado por crimes de lenocínio, do art. 169.º, n.º 1 do CP, por 1 crime de detenção de arma proibida e por outro de auxílio à imigração clandestina.
O despacho de acusação imputou ao arguido 7 crimes de lenocínio do referido artigo do CP, 2 crimes de auxílio à imigração clandestina e um crime de detenção de arma proibida, previstos e punidos pelas disposições anteriormente citadas.
Efectuado o julgamento, a decisão final condenou o arguido exactamente pelos referidos crimes, com excepção dos crimes de auxílio à imigração clandestina, em que só foi considerado um.
O que está em causa neste habeas corpus é a admissibilidade de prisão preventiva relativamente ao crime de lenocínio.
Nos termos das alienas a) e b) do art. 202.º do CPP são pressupostos da prisão preventiva, entre outros:
- a existência de fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos de prisão;
- a existência de fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.
Ora, o crime de lenocínio, segundo a desenvolvida explanação efectuada no acórdão condenatório da 1.ª instância, é um crime que tem como objecto da tutela um bem jurídico eminentemente pessoal – «a liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição, ou, por outras palavras, a liberdade e autodeterminação sexual da pessoa», arredados que foram bens jurídicos de natureza supra-individual da comunidade ou do Estado «relacionados com concepções de ordem moral enquanto fundamentadoras da incriminação de condutas»
É, deste modo, sintomático, que o crime de lenocínio apareça inserido no capítulo V – Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual- e na Secção I – Crimes contra a liberdade sexual.
Continuando a citar o referido acórdão condenatório:
«O bem jurídico aqui protegido (…) é a liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição, ou, por outras palavras, a liberdade e autodeterminação sexual da pessoa», assumindo-se o preceito incriminador «como uma dimensão de tutela jurídico-penal da garantia da dignidade humana, constitucionalmente consagrada e protegida constitucionalmente pelo art. 26.º, n.º 2 da Constituição, aqui na vertente da dignidade ínsita à auto-expressividade sexual, co-determinando tal inciso, axiológico-normativamente, a expressividade comunitária do modo de exercício do direito à liberdade e autodeterminação sexual. Ou, dito de outro modo, vinculando esse exercício de autodeterminação sexual, com projecção e relevância ético-sociais, à dignidade da pessoa, de forma a que esta não constitua uma mercadoria, res possidendi, mero instrumento de prestação sexual, ainda que com o consentimento da vítima, explorada profissionalmente ou com intenção lucrativa por outrem.»
De acordo com os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 144/2004 e 196/2004, referidos no acórdão citado, o que caracteriza este tipo legal de crime e lhe confere legitimidade constitucional é «a normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência» e, por isso, deve fazer-se uma interpretação restritiva do tipo «no sentido de exigir a prova adicional do elemento típico implícito da “exploração económica e social” da vítima prostituta (…)»
Neste contexto, o crime de lenocínio pode integrar-se no conceito de “criminalidade violenta”, na medida em que, em conformidade com a alínea j) do art. 1.º do CPP, as respectivas condutas, que têm carácter doloso, se dirigem contra a liberdade das pessoas, aqui abrangida, como sua indispensável componente, a liberdade e autodeterminação sexual das pessoas.
Deste modo, a referência ao art. 202.º b) do CPP, ou ao específico pressuposto aí previsto, tem plausível cabimento. A condenação do arguido por 7 crimes de lenocínio, pp e pp pelo art. 169.º, n.º 1 do CP, indicia muito fortemente a prática pelo requerente desses crimes que, na perspectiva focada, atentam dolosamente contra a liberdade das pessoas, assumindo o cariz de “criminalidade violenta” e constituindo pressuposto da admissibilidade da medida coactiva de prisão preventiva, visto que punidos, cada um deles, com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.
Isto, independentemente do crime de lenocínio qualificado previsto no n.º 2 do art. 169.º Uma coisa é o crime de lenocínio simples integrar, só por si, o conceito de “criminalidade violenta” e outra é o crime de lenocínio ser agravado nos termos do n.º 2, entre outros requisitos, pelo uso explícito de violência ou ameaça grave.
Assim, contrariamente ao defendido pelo requerente, a sua prisão preventiva foi determinada por facto que a admite, pelo que a petição de habeas corpus tem de ser indeferida.


III.
5. Nestes termos, acordam na (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir, por falta de fundamento bastante, a providência de habeas corpus requerida por AA.

6. Custas pelo requerente com 4 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Abril de 2009

Os Juízes Conselheiros

Rodrigues da Costa (Relator)
Arménio Sottomayor (vencido nos termos da declaração junta)
Mota Miranda



DECLARAÇÃO DE VOTO


Após a revisão de 2007, o Código de Processo Penal passou a prever, no n° 1 do art. 202°, a possibilidade de o juiz impor a medida de coacção de prisão preventiva se houver indícios da pratica de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos [ai. a)] ou se houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada punível com pena de prisão superior a 3 anos [al. b)].
O art. 1º do Código de Processo Penal define, na alínea f), "criminalidade violenta" como sendo constituída pelas condutas que dolosamente se dirigem contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas e foram puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos. .
Ao referir-se a estes tipos de crime, o Código de Processo Penal remete para os capítulos I, III e IV do Título I do Livro II do Código Penal (cfr. neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penai - Anotado, págs 79-80), mas já não para o cap. V, epigrafado de "crimes contra a liberdade e auto-determinação sexual", capítulo a que pertence o crime de lenocínio por cuja prática o requerente foi condenado. A aplicação da medida de coacção de prisão preventiva aos crimes que integram este último capítulo será apenas de admitir quando os crimes foram puníveis com pena de prisão de máximo superior a 5 anos, ou seja, de harmonia com o disposto na alínea a) do n° 1 do art. 2o do Código de Processo Penal.
Esta interpretação é a que melhor salvaguarda o direito à liberdade, constitucionalmente consagrado no art. 27°, direito que é entendido como direito à liberdade física, ou seja o direito a não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo confinado a um determinado espaço (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa - Anotada, I, pág. 478). Se é certo que a Constituição, nesse mesmo normativo, admite excepções a este princípio, uma das quais é a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso cujo limite máximo seja superior a 3 anos [n° 3 b)], as limitações ao princípio geral do direito à liberdade, como excepções que são, devem ser interpretadas restritivamente.
Após a revisão do Código de Processo Penal de 2007 deixou, assim, de ser admissível a aplicação de prisão preventiva no caso do crime de lenocínio previsto no n° 1 do art. 169° do Código Penal, pelo que, a meu ver, não existe fundamento para manter o requerente sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, devendo assim obter deferimento o pedido de habeas corpus.

Arménio Sottomayor