Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1453/06.9TJVNF.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: COMPRA E VENDA COMERCIAL
VENDA POR AMOSTRA
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
COISA DEFEITUOSA
DENÚNCIA
PRAZO DE CADUCIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
INTERESSE CONTRATUAL NEGATIVO
DANO EMERGENTE
TERCEIRO
CLIENTELA
Data do Acordão: 10/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Sumário : I - Celebrado um contrato comercial de compra e venda por amostra (arts. 469.º e 471.º do CCom), o ónus, que incumbe ao comprador, de invocar e demonstrar a desconformidade entre a mercadoria entregue e a amostra que serviu de base ao contrato não se confunde com a denúncia de defeitos, respeitando, antes, à verificação da condição negativa a que se encontra subordinado o contrato – a condição de a coisa ser conforme à amostra –, da qual depende a consideração do negócio como perfeito.

II - A não invocação de desconformidade relativamente à amostra não afasta a possibilidade de a coisa entregue enfermar de defeito, designadamente, de vício que impeça a realização do fim a que é destinada, como a falta, não patente, de aptidão para tal finalidade.

III - O prazo previsto no corpo do art. 471.º do CCom, de oito dias a partir da entrega da mercadoria, para exame e reclamação, é um prazo de caducidade, conforme resulta do disposto no art. 298.º, n.º 2, do CC.

IV - Quando estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes a caducidade não é apreciada oficiosamente pelo tribunal, devendo ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (art. 303.º, ex vi do art. 333.º, n.º 2, do CC).

V - A lei concede ao comprador de coisa defeituosa, além do mais, o direito à indemnização do interesse contratual negativo, que se traduz no prejuízo sofrido pelo facto de ter celebrado o negócio com o vendedor e é cumulável com a anulação do contrato, estabelecendo os arts. 908.º e 909.º do CC (aplicáveis por força do art. 913.º do mesmo Código) uma distinção entre a indemnização devida em caso de anulação por dolo e em caso de simples erro; a primeira abrange os danos emergentes e os lucros cessantes e a segunda apenas os danos emergentes.

VI - Tratando-se de anulação do contrato fundada em simples erro a ré é obrigada a indemnizar a autora pelos danos emergentes do contrato, conforme resulta do citado art. 909.º, devendo na determinação da indemnização atender-se, por exemplo, a despesas com o contrato, gastos tornados inúteis e oneração com deveres de ressarcir terceiros, designadamente clientes.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AA, S.A., propôs uma acção ordinária contra BB – …, Ldª, pedindo que se declarasse anulado o contrato que celebrou com a ré na parte respeitante ao fornecimento de treze peças de tecido de algodão e a sua con­dena­ção a pagar-lhe € 14.248,47 a título de danos patrimoniais e € 20.000 de danos não patri­moniais, com juros de mora vincendos calculados à taxa legal.

Alegou, em resumo, que celebrou com a ré um contrato de compra e venda comercial, tendo encomendado, sob amostra por ela apresentada, tecidos de diferentes cores des­tina­dos à confecção de fatos de banho, sendo que treze peças de tecido vermelho for­necidas pela ré tingiam o produto acabado com a descoloração do seu tinto, o que lhe causou danos patrimoniais e não patrimoniais.

A ré contestou.

Por excepção, invocou a pendência de oposição a uma execução entre as mesmas partes na qual se discutem, precisamente, os factos aqui em causa; por impugnação, negou parte dos factos alegados na petição inicial, sustentando que a autora não lhe deu conhecimento, ao longo de todo o processo de encomenda, fabrico e entrega do tecido, da finalidade a que o destinava, pelo que desconhecia que seria utilizado na confecção de calções de banho.

Na réplica, a autora respondeu à excepção dilatória deduzida pela ré.

No despacho saneador, com fundamento na suspensão da oposição à execução invocada pela ré até à decisão da presente acção, considerou-se não verificada a excepção dilatória arguida.

No decurso do julgamento a ré invocou ainda a caducidade do direito de acção da autora, por considerar ultrapassado o prazo de um ano previsto no artigo 287.º do Código Civil.

Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, anulando-se o contrato celebrado entre a autora e a ré relati­vamente às treze peças de tecido de algodão, poliamida, na cor vermelha, e condenando-se a ré a pagar à autora 14.248,47 € a título de danos patrimoniais e 10.000,00 € de danos não patrimoniais, bem como juros de mora desde a citação.

A ré suscitou a omissão de pronúncia quanto à alegada caducidade do direito de acção, mas por despacho de fls 433-434 a arguição foi julgada intempestiva.

Depois apelou da sentença e agravou deste despacho, mas sem êxito, pois a Relação do Porto, não obstante ter introduzido alterações na redacção da matéria de facto assente - respostas aos pontos 2, 3, 25 e 27 a 29 da base instrutória - julgou improcedentes ambos os recursos, confirmando por remissão as decisões recorridas.

Daí a presente revista, em que a ré defende a revogação do acórdão recorrido, concluindo, resumidamente e de útil, o seguinte:

1.ª) O tribunal deveria ter conhecido da excepção peremptória de caducidade do direito de acção, dado que à ré somente era exigido que a invocasse (artigos 303.º e 333.º do Código Civil), o que fez, não se mos­trando tal invocação intempestiva;

2.ª) Tratando-se de um contrato de compra e venda comercial sobre amostra, e não tendo a autora demonstrado a desconformidade entre a amostra que serviu de base à relação comercial e a mercadoria entregue, deve concluir-se que a ré entregou mercadoria com as exactas qualidades e características constantes da referida amostra;

3.ª) A autora não apresentou, no prazo de oito dias após a entrega, reclamação relativa à não con­for­midade da mercadoria com a amostra;

4.ª) Não se provou que a ré soubesse ou que o vendedor lhe tenha dito o destino a dar pela autora à enco­menda;

5.ª) Dos 1600 calções vendidos contendo o tecido tingido a vermelho, apenas 720 apresentavam cores combinadas e, como tal, a potencialidade de tingir, somente sobre estes sendo de admitir reclamação;

6.ª) Dos 1100 calções vendidos à Sacoor somente 39 foram reclamados e dos 500 vendidos à Wreck somente 7 foram devolvidos, pelo que o prejuízo real sofrido pelos clientes da autora foi de € 1864, e não de € 13.887,90; não se justifica, por isso, que deva ser a ré a suportar as consequências da inabilidade negocial da recorrida;

7.ª) No âmbito do quadro contratual em que decorreram os factos em causa, a quantia indemnizatória a atribuir à autora a título de danos morais não poderá ultrapassar o valor da indemnização devida pelos prejuízos sofridos, no montante de € 1864; mas perante a alteração da matéria de facto decidida pela Rela­ção, que reduziu a factualidade provada relativa aos danos não patrimoniais, deveria ter-se procedido à concomitante redução do valor da indemnização a atribuir à autora.

A recorrida contra alegou, defendendo a inadmissibilidade da reapreciação da questão da caducidade do direito de acção suscitada no recurso de agravo e a improcedência do recurso.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação

a) Matéria de facto

A Relação considerou provados os seguintes factos:

1. A Autora é uma sociedade comercial que, no âmbito do seu objecto comercial, se dedica, entre outras, à actividade de confecção de artigos de pronto-a-vestir.

2. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica pelo menos à venda de tecidos prontos para confecção.

3. No exercício das respectivas actividades, Autora e Ré iniciaram as suas relações comerciais há já vários anos.

4. Sendo que, durante o ano de 2002, a Ré forneceu e vendeu à Autora os tecidos.

5. Em 7/4/03 a Ré procedeu à entrega do tecido encomendado, o que fez nos termos da guia de saída.

6. Conforme se poderá verificar pelo teor da referida guia, a Ré vendeu e entregou à Autora, entre outras, 13 peças do tecido algodão, poliamida, na cor vermelha, totalizando 981 metros.

7. Em 9/4/03 a Ré emitiu e remeteu à Autora a respectiva factura, com o n.° …, a qual descriminava como importância a pagar pelo referido tecido vermelho a importância de 4.512,60 €.

8. Em Julho de 2003, atendendo à conta corrente que a Autora mantinha com a Ré, de todos os tecidos por aquela vendidos, apenas faltava liquidar o valor global 4.045,53 €.

9. Valor este titulado por dois cheques pré-datados emitidos pela Autora a favor da Ré, um no valor de 3.000 € e outro no valor de 1.045,53 €, ambos emitidos sobre o Banco Espírito Santo, respectivamente com os n.ºs … e …, a vencer-se o primeiro no dia 20/7/03 e o segundo em 10/8/03.

10. Em 28/7/03, a Ré, solicita à Autora que a informe das quantidades das peças reclamadas e quais os montantes envolvidos.

11. Três dias depois, isto é em 1/8/03, não tendo a Autora ainda respondido a tal telefax, a Ré reitera tal solicitação à Autora, ameaçando-a, desta feita, que, caso não respondesse até ao dia seguinte, entenderiam que afinal não tinham fundamento a denúncia dos defeitos efectuada pela Ré.

12. A Ré intentou uma acção executiva contra a Autora, apresentando como títulos exe­cutivos os cheques pré-datados referidos.

13. Execução esta que corre os seus termos sob o n.º 527/04.5TJVNF pelo 4.° Juízo Cível deste Tribunal [de Vila Nova de Famalicão].

14. E na qual a Autora prestou a respectiva caução com vista a obter a suspensão da exe­cução.

15. Em 2002, a Ré forneceu à Autora tecidos destinados à colecção de calções de banho das marcas Sacoor e Wreck, as quais, respectivamente, são propriedade das clientes da Autora, CC - …, S.A. e Rec – DD  S.A., ambas empresas integrantes do Grupo ...

16. Em Fevereiro de 2003, a Autora, no seguimento do que já havia feito no ano de 2002, encomendou à Ré, sob amostra por esta apresentada, os tecidos, que eram de várias cores, para confeccionar a referida colecção de fatos de banho das referidas marcas Saccor e Wreck.

17. Esta encomenda, a par do que havia sucedido com as anteriores, foi precedida de um contacto prévio, seguido de reunião, onde esteve presente o vendedor da BB, a quem foi apresentado pela autora os modelos dos fatos de banho a confeccionar, para as marcas Sacoor e Wreck, ficando aquele perfeitamente ciente de que o tecido que foi encomendado se destinava à confecção de fatos de banho.

18. Munida deste tecido, a Autora procedeu à confecção dos referidos calções de banho.

19. Os quais vendeu e entregou às referidas firmas CC, S.A. e Rec, S.A., respec­ti­vamente, nos termos das facturas n.ºs 486, 492, 500, 506, 507, 514, 515, 520, 524 e 534 (docs. n.ºs 3 a 12).

20. Facturas estas que ascendem ao valor global de 93.408,49 €. Sendo 76.600,32 Euros, correspondente às facturas n.ºs 486, 492, 500, 506, 507 e 514, da responsabilidade da firma CC, S.A., e os restantes 16.808,17 €, referente às facturas n.ºs 515, 520, 524 e 534, da responsabilidade da firma Rec, S.A..

21. Acontece que, no decurso do mês de Julho de 2003, a Autora é alertada pelos seus clientes acima referidos do manchamento das peças em que está integrado o tecido ver­melho.

22. Assim, em 15/7/03, recolhidas algumas amostras, a Autora requereu ao Centro Tec­nológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal um exame pericial sobre o referido tecido vermelho.

23. Em 21/7/03 foi elaborado o resultado deste exame pericial, do qual resulta que o tecido vermelho não assegura as condições para que foi adquirido, designadamente para ser incorporado em calções de banho, na medida em que a solidez do tinto, neste caso ver­melho, à fricção a húmido é má, donde resulta um manchamento da peça.

24. Exame este com o qual despendeu a quantia de 360,57 € (doc. nº 15).

25. No dia 24/7/03 a Autora reúne-se com os responsáveis da Ré, na qual os confronta com as amostras obtidas das peças manchadas, bem como com exame pericial efectuado ao referido tecido vermelho.

26. A Autora fez saber à Ré que ainda não estava em condições de quantificar o montante dos prejuízos.

27. Mais fez saber que o número de peças passível de ser reclamada era de 2.330 unidades, visto que foi este o número de calções em que foi utilizado o referido tecido de cor ver­melha.

28. Mais explicou que, naquela data, os seus clientes haviam mandado proceder à recolha de todas as peças que incluíam tecido vermelho das suas lojas para o armazém central para serem devolvidas à Autora, o que estava a aguardar que fosse concluído.

29. Sendo que existia uma percentagem considerável de peças que já havia sido vendida ao público e que só após o seu uso é que seriam reclamadas.

30. Contudo, já teriam sido reclamadas mais de 50 peças, as quais implicaram a devolução ao público do respectivo preço, que era cerca de 42.00 € por peça, valor este que iria ser debitado à A.

31. De tudo isto, foi a Ré informada nada tendo respondido.

32. Procurando resolver o mais rapidamente possível esta situação, a Autora tenta chegar a um acordo quanto à liquidação dos danos sofridos pelos seus clientes CC - …, S.A. e Rec - DD, S.A., ambas empresas integrantes do Grupo ....

33. Em 29 de Agosto de 2003, consegue chegar a acordo com as referidas clientes, o que fez nos seguintes termos:

a) Todos os calções reclamados e devolvidos serão pagos ao P.V.P. praticados pelas clientes;

b) Por todos os calções vendidos e que não tenham sido reclamados (mas que ainda poderiam ser), será emitida uma nota de crédito no valor de 50% do preço de custo dos mesmos;

c) Quanto aos calções que não tenham ainda sido vendidos ao público seriam devolvidos à Autora, sendo por esta emitida uma nota de crédito correspondente ao preço de custo das peças devolvidas, ou seja, como se as clientes nunca as tivessem adquirido.

34. Assim, em observância do acordado, em 10/9/03, a Autora emite uma nota de crédito a favor da sua cliente, CC - …, S.A., no valor global de 11.670,50 €, acrescido de IVA, o que totaliza 13.887,90 €.

35. Em 13/11/03 a Autora informa a Ré do valor da reclamação efectuada pelo referido cliente CC, S.A., acompanhado da respectiva nota de crédito por si efectuada.

36. Recebida esta comunicação, a Ré, remetendo-se ao silêncio, nada mais respondeu ou disse.

37. O defeito em causa apenas se tornou conhecido quando já se encontrava confec­cionado o produto acabado.

38. A Autora restituiu à sociedade comercial CC - …, S.A., a quan­tia de € 13.887,90 (treze mil oitocentos e oitenta e sete euros e noventa cêntimos), relati­vamente à nota de crédito emitida, referente às unidades de vestuário que esta lhe devolveu por deficiência.

39. Não obstante a Autora ter efectivamente suportado o custo inerente à confecção dos modelos que apresentavam defeito no tecido.

40. A Autora despendeu a quantia de € 360,57 (trezentos e sessenta euros e cinquenta e sete cêntimos) com a realização do exame pericial às peças.

41. Todos estes factos prejudicaram a imagem comercial da Autora perante os seus clientes.

42. Foi feito o apanhado do encontro referido em 4.º, 30.º e 31.º, tendo então apenas inscrito no documento junto a fls. 80, as cores e quantidades dos tecidos pretendidas.

b) Matéria de Direito

1) A recorrente suscita novamente na presente revista a questão colocada no recurso de agravo levado à Relação, razão pela qual, aplicando-se ao caso presente a versão do Código de Processo Civil anterior à reforma operada pelo DL n.º 303/2007, de 24/08, importa atender ao que se dispõe nos artigos 754.º, n.ºs 2 e 3, 678.º, n.ºs 2 e 3, e 734.º, n.º 1, al. a) para se verificar se o recurso, nesta parte, é admissível.

Ora, o artigo 754º, n.º 2, dispõe que não é admitido recurso do acórdão da Relação sobre decisão da 1.ª instância, salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B, juris­prudência com ele conforme. Acrescenta o nº 3 do mesmo preceito que o disposto na pri­meira parte do número anterior não é aplicável aos agravos referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 678.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 734.º, ressalva esta da qual resulta que o agravo é admissível se tiver por fundamento a violação das regras de competência internacional, em razão da matéria ou da hierarquia ou a ofensa do caso julgado, seja qual for o valor da causa, sendo-o ainda das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre, bem como das decisões que ponham termo ao processo.

No caso presente, a Relação confirmou o despacho da 1ª instância que julgou intempestiva a arguição da excepção de caducidade do direito de acção. Tratando-se, pois, dum acórdão proferido sobre decisão que não pôs termo ao processo, e não se invocando nenhuma das situações excepcionais previstas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 754.º, o recurso para o Supremo Tribunal, na parte correspondente àquela questão, é inadmissível, não podendo dele conhecer-se.

Assim, o objecto do recurso fica limitado ao conhecimento da matéria da apelação, não se reapreciando a questão respeitante ao agravo e indicada na conclusão 1ª.

2) Não vem posta em causa a qualificação do tipo e da natureza do contrato celebrado entre autora e ré, que as instâncias convergentemente consideraram constituir uma compra e venda comercial por amostra (artºs 469º e 471º do Código Comercial) - um contrato tipi­camente oneroso e sinalagmático, com obrigações recíprocas para ambas as partes: a de entrega do tecido encomendado para a vendedora (ré) e a de pagar o preço para a com­pra­dora (autora); as partes estão de acordo a esse respeito.

Tratando-se dum contrato celebrado entre duas sociedades comerciais, no âmbito do qual a autora encomendou à ré, sobre amostra por esta apresentada, tecidos para confeccionar uma colecção de fatos de banho destinada à venda a duas sociedades comerciais suas clientes, dúvidas não há de que se trata de um contrato de compra e venda de natureza comercial (artº 874.º do Código Civil e artºs 2.º, 13.º, § 2.º, e 463.º, § 1.º, do Código Comercial). Regulando duas das modalidades da compra e venda mercantil, dispõe o artigo 469.º do Código Comercial que as vendas feitas sobre amostra de fazenda, ou deter­mi­nando-se só uma qualidade conhecida no comércio, se consideram sempre como feitas debaixo da condição de a coisa ser conforme à amostra ou à qualidade convencionada; por seu turno, o artigo 471.º do mesmo diploma esclarece que a condição referida naquele pre­ceito se terá por verificada e os contratos como perfeitos se o comprador examinar as coisas compradas no acto da entrega e não reclamar dentro de oito dias, acrescentando o § único do referido preceito que o vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no acto da entrega, salvo caso de impossibilidade, sob pena de se haver para todos os efeitos como verificado.

Ora, provou-se que a autora encomendou à ré, sobre amostra por esta apresentada, tecidos de várias cores para confeccionar uma colecção de fatos de banho, encomenda esta reali­zada após um contacto, seguido de reunião, com um vendedor da ré, a quem a autora apre­sentou os modelos dos fatos de banho a confeccionar, ficando ele ciente de que o tecido encomendado se destinava à confecção de fatos de banho; e entregue o tecido e confec­cionados pela autora os fatos de banho, as clientes a quem esta os vendeu reclamaram em virtude do manchamento das peças em que o tecido de cor vermelha fornecido pela ré estava integrado, verificando-se que a solidez do tinto de tal tecido à fricção a húmido era má.

A recorrente não discute a falta de aptidão do tecido fornecido para a confecção de fatos de banho, mas questiona a decisão recorrida na parte em que considerou verificada a exis­tên­cia de defeito no tecido entregue: sustenta que, tratando-se de um contrato de compra e venda comercial sobre amostra e não tendo a autora provado a desconformidade entre a amostra que serviu de base ao negócio e a mercadoria entregue, deve concluir-se que esta o foi com as exactas qualidades e características constantes da amostra e que, por isso, não enferma de defeito. Mas não lhe assiste razão, pois o ónus que imputa ao com­prador - o de invocar e demonstrar a desconformidade entre a mercadoria entregue e a amostra que serviu de base ao contrato - não se confunde com a denúncia de defeitos, res­peitando, antes, à verificação da condição negativa a que se encontra subordinado o negó­cio, atrás referida, e da qual depende o seu aperfeiçoamento.

Conforme explica o Prof. Filipe Cassiano dos Santos (Direito comercial português, vol. I, Dos actos de comércio às empresas: o regime dos contratos e mecanismos comerciais no direito português, 2007, Coimbra Editora, pág. 148), “(...) se o comprador reclamar no acto de verificação ou nos oito dias seguintes à entrega (caso a verificação não tenha ocorrido no acto de entrega) contra a desconformidade entre aquilo que foi entregue e a amostra (...), a condição entende-se não verificada e o contrato cai por não verifi­cação da condição negativa (que é a inexistência de reclamação). Para que o negócio possa ficar apto a pro­duzir os seus efeitos próprios é preciso que não haja reclamação no prazo do art. 471.º (condição suspensiva negativa) (...)”. No entanto, a não invocação de desconformidade relativamente à amostra não afasta a possibilidade de a coisa entregue enfermar de defeito, designadamente, como considerou a decisão recorrida, de vício que impeça a realização do fim a que é destinada. Quanto ao âmbito da obrigação de exame das mercadorias estabelecida, para a compra e venda comercial, no aludido artigo 471.º, esclarece o Prof. Pedro Romano Martinez (Cum­primento defeituoso – em especial na compra e venda e na empreitada, 1994, Almedina, pág. 206) que o adquirente “não tem de efectuar um exame complexo, nomeadamente recorrendo a peritos, mas impõe-se-lhe uma apreciação diligente, de forma a determinar desconformidades patentes”. No caso presente resulta claramente da análise da matéria de facto provada (cfr, em especial, os factos 21 a 23 e 27) que o vício de que o tecido padecia, isto é, a sua falta de aptidão para a finalidade a que se destinava, não era patente.

Improcede, assim, a 2ª conclusão.

3) Na conclusão 3ª põe-se a questão da caducidade do direito de denúncia dos defeitos da mercadoria entregue, sustentando a recorrente que a autora não apresentou, no prazo de oito dias após a entrega, a respectiva reclamação.

O prazo previsto no corpo do artigo 471.º do Código Comercial, de oito dias a partir da entrega da mercadoria, para exame e reclamação, é um prazo de caducidade, conforme resulta do disposto no artigo 298º, nº 2, do CC. Segundo este artigo, “quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição”. Quando estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, a caducidade não é apreciada oficiosamente pelo tribunal, devendo ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (artigo 303.º, ex vi do artigo 333.º, n.º 2, do CC). No caso presente, é a ré (vende­dora) a interessada na arguição, pois o prazo em questão respeita ao exercício do direito de reclamação do comprador (a autora). Por outro lado, constituindo uma excepção peremp­tória - isto é, um facto extintivo do direito da autora - incumbia à ré a sua prova (artºs 493º, nº 3, do CPC e 342, nº 2, do CC).

A ré, todavia, não a invocou na contestação, e por isso a questão não foi, porque não tinha que sê-lo, tratada na sentença da 1.ª instância (artºs 489º, nº 1, e 660º, nº 2, CPC).  Foi sus­citada, é certo, no recurso de apelação. Mas porque a norma indicada em último lugar é aplicável tanto aos recursos de apelação como de revista (artºs 713º, nº 2, e 726.º do mesmo diploma), nem a Relação estava obrigada a conhecer da dita questão, nem o Supremo Tribunal o deve fazer agora, por se tratar, ao fim e ao cabo, de questão nova, cujo conhecimento está legalmente vedado ao tribunal de recurso. Isto porque no nosso sis­tema, conforme entendimento há muito firmado e uniformemente seguido pela juris­prudência, os recursos não são o meio adequado para obter decisão sobre matéria nova - matéria que não tenha sido posta à consideração do tribunal recorrido -, mas sim para ree­xaminar as decisões recorridas.

Improcede, portanto, esta conclusão.

4) A questão enunciada na 4.ª conclusão, relativa ao invocado desconhecimento pela ré vendedora do destino a dar pela autora aos tecidos encomendados, assenta essencialmente na rejeitada alteração do elenco dos factos dados como provados pelas instâncias. Na ver­dade, analisando a matéria de facto apurada, é manifesto que não assiste razão à recorrente, pois dos factos descritos nos pontos 16) e 17) resulta inequivocamente que o vendedor da ré, que a representou no processo negocial com a autora, tomou conhecimento e ficou bem ciente de que o tecido encomendado se destinava à confecção de fatos de banho, cujos modelos lhe foram então apresentados. E mostrando-se provado, ainda, que a ré se dedica à venda de tecidos para confecção; que no exercício desta actividade mantinha há vários anos relações comerciais com a autora, a qual, por seu turno, confecciona artigos de pronto-a-vestir; que na negociação que antecedeu a entrega, a 7/4/03, dos tecidos em causa nos presentes autos esteve presente o vendedor da ré, a quem a autora apresentou os modelos dos fatos de banho a confeccionar; e, finalmente, que a ré satisfez a encomenda, entregando e facturando a mercadoria, após o que recebeu os cheques entregues para pagamento do preço, bem como a reclamação da autora, no decurso da qual lhe solicitou informações complementares sobre a quantidade de peças reclamadas e os montantes envolvidos, mostra-se incompreensível e contrário à boa fé que na presente acção afirme não se ter provado que o vendedor lhe tenha dito o destino a dar pela autora à encomenda; semelhante conduta traduz-se num verdadeiro abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, que o artº 334º do CC proíbe.

Improcede, assim, a 4.ª conclusão.

5) O acórdão recorrido confirmou a sentença proferida na parte em que, anulando, por erro sobre o objecto, o contrato ajuizado, condenou a ré a pagar à autora a importância de 14.248,47, € a título de danos patrimoniais, e 10.000,00 € a título de danos não patri­mo­niais, bem como juros de mora desde a citação.

Quanto à determinação da indemnização pelos danos patrimoniais, a recorrente não ques­tiona o pagamento de 360,57, € gasta pela autora com a realização do exame pericial às peças de tecido, mas entende não ser devidos os 13.887,90, € pagos pela autora à cliente identificada no facto 34). Sustenta que, dos 1600 calções contendo o tecido tingido a ver­melho vendidos, apenas 720 apresentavam cores combinadas e, como tal, a potencialidade de tingir, somente sobre estes sendo de admitir reclamação; por outro lado, dos 1100 cal­ções vendidos à Sacoor, somente 39 foram reclamados e, dos 500 vendidos à Wreck, somente 7 foram devolvidos, pelo que o prejuízo sofrido pela cliente da autora foi de 1864 €; assim, acrescenta, a devolução pela autora daquela importância constituiu um “negócio desastroso”, não devendo a ré  ser obrigada a suportar semelhante inabilidade negocial.

A lei concede ao comprador de coisa defeituosa, além do mais, o direito à indemnização do interesse contratual negativo, que se traduz no prejuízo sofrido pelo facto de ter celebrado o negócio com o vendedor e é cumulável com a anulação do contrato. Os artºs 908.º e 909.º do Código Civil (aplicáveis por força do artº 913.º do mesmo Código), estabelecem uma distinção entre a indemnização devida em caso de anulação por dolo e em caso de simples erro, abrangendo a primeira os danos emergentes e os lucros cessantes o ven­de­dor deve indemnizar o comprador do prejuízo que este não sofreria se a compra e venda não tivesse sido celebrada - e a segunda apenas os danos emergentes - a indemnização abrange apenas os danos emergentes do contrato.

No caso presente, tratando-se de anulação do contrato fundada em simples erro, a ré é obrigada a indemnizar a autora pelos danos emergentes do contrato, conforme resulta do citado artigo 909.º Os danos emergentes são, nas palavras do Prof. J. Calvão da Silva (Compra e venda de coisas defeituosas, 2001, Almedina, pág. 34), “prejuízos sofridos que se traduzem na diminuição do património existente, nele incluindo as despesas tornadas necessárias”. Assim, na determinação da indemnização devida, deverá atender-se, por exemplo, a despesas com o contrato, gastos tornados inúteis e oneração com deveres de ressarcir terceiros, desig­na­damente clientes. Como explica o Prof. Paulo Mota Pinto (Interesse contratual positivo e inte­resse contratual negativo, vol. II, 2008. Coimbra Editora, pág. 1073), “elemento típico do interesse contratual negativo é também o chamado “Haftungsinteresse”, ou “interesse por causa da respon­sa­bilidade”, ou “dano por causa da responsabilidade”, do lesado, resultante de ter de responder perante tercei­ros. Com efeito, o dano do subadquirente, cujo ressarcimento ele pode pedir ao lesado (titular do direito a uma indemnização pelo interesse contratual negativo), integra simultaneamente o interesse negativo do lesado, na medida em que este seja (ou previsivelmente venha a ser) chamado a responder. O credor pode, pois, pedir, por exemplo, ao errante a reparação do interesse negativo e incluir neste o montante que teve, ou terá, que gastar como ressarcimento ao seu próprio credor(...)”.

Consequentemente, anulado o contrato relativamente às treze peças de tecido de algodão, poliamida, na cor vermelha, a autora tem direito à devolução do preço, no montante de 4512,60 € (facto 7), e ao pagamento da despesa com a realização do exame pericial (360,57 €), bem como aos demais prejuízos e despesas tornadas necessárias. Tem direito, mais pre­cisamente, a ser indemnizada pelo montante que desembolsou no cumprimento do seu dever de ressarcir a cliente a quem vendeu os calções confeccionados com o tecido defeituoso. A matéria de facto provada, no entanto - factos 26, 27, 33 e 34 - não permite aferir se os 13.887,90 € que a autora entregou à sua cliente CC, SA, correspondem à devolução do preço por esta pago e à indemnização dos danos emergentes do contrato que ambas concluíram, excluídos os lucros cessantes, nos termos que se expuseram. Com efeito, retira-se dos factos apurados que a referida importância foi estabelecida por via negocial entre a autora e aquela sua cliente, não sendo certo e seguro que o acordo a que chegaram - facto 33) - corresponda com exactidão aos danos indemnizáveis que a ré causou à autora com o seu incumprimento; na medida em que, muito provavelmente, incluirão os lucros cessantes da cliente da autora, os valores ali acordados poderão não estar abrangidos na obrigação de indemnizar discutida neste processo, excedendo o mon­tante que à recorrida é devido à luz do critério estabelecido no artº 909º do CC. É certo, por outro lado, que a alegação da ré resumida nas conclusões 5ª e 6ª não assenta em fac­tualidade considerada provada nos presentes autos, pelo que não poderá ser atendida. De qualquer modo, insiste-se, não sendo conhecidos os exactos prejuízos suportados pela empresa CC, SA, a estimativa reflectida no acordo celebrado com a autora não per­mite quantificar os danos que a esta foram causados pelo incumprimento da ré.

Deste modo, comprovada a verificação deste dano, mas inexistindo no processo elementos que permitam fixar a indemnização devida, impõe-se o recurso à norma do artigo 661º, nº2, do CPC, na esteira do que este Supremo Tribunal tem maioritariamente decidido: cfr, a título de exemplo, o acórdão de 19/5/09 (Revª  2684/04.1TBTVD.S1 - 6.ª Secção) dis­ponível em www.dgsi.pt), de cujo texto consta o seguinte: “Sempre que o tribunal verificar o dano, mas não tiver elementos para fixar o seu valor, quer se tenha pedido um montante determinado ou formulado um pedido genérico, cumpre-lhe relegar a fixação do montante indemnizatório para execução de sentença. Mesmo que se tenha deduzido na acção um pedido líquido, se o tribunal não puder fixar o valor exacto dos danos (nem mesmo com recurso à equidade), deve relegar-se a fixação da indemnização, na parte que não considerar ainda provada, para posterior liquidação – art. 661º, n.º 2, do CPC (...)”.

Em resultado do exposto, a ré deverá ser condenada a pagar o montante que se liquidar em incidente a deduzir conforme o artº 378.º, nº2, do CPC, montante esse que, somado às quantias de 4512,60 € e 360,57 € já determinadas, não poderá ser superior a 9375,30 €, por forma a não exceder o valor total do pedido - 14.248,47 € - assim respeitando os limites da condenação imperativamente impostos pelo artº 661º, nº1, do CPC.

Na medida exposta, procedem parcialmente as conclusões 5ª e 6ª.

6) No que respeita a danos não patrimoniais, a recorrente sustenta que o montante de 10.000 € arbitrado se mostra excessivo, não devendo ultrapassar a indemnização devida pelos prejuízos sofridos, que entende serem no montante de 1864 €, além de ter descon­siderado a alteração da matéria de facto que a Relação decretou.

Não questiona, portanto, o direito das sociedades comerciais a serem indemnizadas por danos morais nem, em concreto, o direito da autora a uma compensação dessa natureza na situação em causa no presente processo; contesta somente o valor atribuído. Este Tribunal, no entanto, considera que a importância estabelecida na sentença e confirmada pela Rela­ção se mostra equilibrada e conforme à equidade, como manda o artº 496º, nº 3, do CC, além de proporcionada à gravidade dos danos ocasionados. Há que ter em conta, sobre­tudo, que as reclamações da cliente da autora, que por sua vez recebeu queixas dos seus próprios clientes, adquirentes do produto final, afectaram inevitavelmente a sua imagem comercial e o prestígio de que goza num mercado que se sabe ser altamente concorrencial, criando-lhe por certo dificuldades adicionais no que toca à manutenção de clientela já fide­lizada e angariação de novos interessados nos seus produtos.

Improcede, assim, a 7ª conclusão.

III. Decisão

Nos termos expostos acorda-se:

a) Em não tomar conhecimento do objecto do agravo, julgando nesta parte findo o recurso por ser inadmissível;

b) Em conceder parcialmente a revista, alterando o acórdão recorrido na parte respeitante à indemnização por danos patrimoniais, que se fixa agora na quantia de 4873,17 €, acres­cida do montante que vier a ser determinado em posterior incidente de liquidação, relativo à responsabilidade da autora perante a firma CC - …, SA, até ao limite máximo de 9.375,30 €;

c) No mais, mantém-se o acórdão recorrido.

Custas na proporção de 1/5 para a autora e 4/5 para a ré, provisoriamente, ficando o seu acerto final na dependência do resultado da posterior liquidação.

Lisboa, 25 de Outubro de 2011

Nuno Cameira (Relator)

Sousa Leite

Salreta Pereira