Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
517/09.1TBLGS.L2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: LIBERDADE DE IMPRENSA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
CONFLITO DE DIREITOS
TELEVISÃO
OFENSA DO CRÉDITO OU DO BOM NOME
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
RESTRIÇÃO DE DIREITOS
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
SEGREDO DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 06/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS / PESSOAS SINGULARES / DIREITOS DE PERSONALIDADE.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
Doutrina:
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, págs. 922 e 923;
-Francisco Pereira Coutinho, O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Liberdade de Imprensa: os casos portugueses, in http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/FPC_MA_24220;
-Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág.394.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 70.º E SS..
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 24.º E 37.º, N.º 1.
LEI DA TELEVISÃO APROVADA PELA LEI Nº 32/2003, DE 22 DE AGOSTO, POSTERIORMENTE REVOGADA PELA LEI Nº 27/2007, DE 30 DE JULHO.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGOS 8.º E 10.º, N.º 2.
Jurisprudência Internacional:
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (TEDH):


- DE 26-07-1979, SUNDAY TIMES (Nº 1) CONTRA REINO UNIDO, 26 DE ABRIL DE 1979, SÉRIE A Nº 30, P.38, § 62;
- DE 17-12-2004, PEDERSEN E BAADSGAARD CONTRA DINAMARCA, IN
HTTP://HUDOC.ECHR.COE.INT, N.º 78.
Sumário :
I - O correcto exercício da liberdade de expressão (art. 10.º da CEDH e n.º 1 do art. 37.º da CRP) pressupõe o cumprimento de deveres e responsabilidades, sendo passível de ser restringido, conquanto a restrição imposta seja necessária numa sociedade democrática, corresponda a uma necessidade social imperiosa, se revele proporcional e os fundamentos invocados pelas autoridades sejam suficientes e relevantes (n.º 2 do art. 10.º do TEDH).

II - A divulgação, em emissão televisiva, de que o autor frequentava “sites” pedófilos e a designação do mesmo como “britânico pedófilo” é, objectivamente, ofensiva do bom nome daquele, consubstanciando imputação grave que em nada beneficia o debate público acerca do desaparecimento de uma criança ou do fenómeno do abuso sexual de menores, sendo que o facto de o respectivo inquérito estar em segredo de justiça demandava um maior cuidado por parte da estação televisiva na averiguação da fidedignidade do noticiado.

III - A divulgação das imputações mencionadas em II não corresponde a uma necessidade social imperiosa nem é adequada ao cumprimento do dever de informar com rigor, havendo que considerar que a protecção da liberdade de imprensa não justifica a actuação dos réus.

IV - Tendo-se demonstrado que, na sequência do mencionado em III, o autor: (i) era apontado e incomodado sempre que saía à rua; (ii) recebeu ameaças dirigidas a si e aos seus familiares; (iii) sofreu um desmaio, sentiu hipertensão, amnésia e insónia e procurou ajuda psiquiátrica; e (iv) passou a evitar sair à rua, a disfarçar-se quando o fazia e mudou de casa; evidencia-se a gravidade dos danos não patrimoniais causados, sendo que o facto de os mesmos não serem exclusivamente atribuíveis aos réus não os exime da sua responsabilidade, apenas relevando para a quantificação da indemnização.

Decisão Texto Integral:
Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório:


AA intentou a presente acção declarativa de condenação contra BB, S.A., e CC, peticionando a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 25.000,00 a título de danos patrimoniais e € 35.000,00 a título de danos não patrimoniais, quantias acrescidas de juros legais desde a data da citação e até integral pagamento, com fundamento na violação do seu bom nome.

Os réus contestaram, pedindo a improcedência da acção.

Saneado o processo, foram fixados os factos assentes e organizada a base instrutória.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, anulada pelo Tribunal da Relação para efeitos de ampliação da matéria de facto.

Cumprido o determinado pela Relação, foi, após julgamento, proferida nova sentença a julgar a acção improcedente e absolver os réus do pedido.


Inconformado, apelou o autor da sentença, tendo o Tribunal da Relação de … proferido acórdão, decidindo nos seguintes termos:

«julgando-se a apelação parcialmente procedente, improcedente na parte restante, altera-se a sentença recorrida tão só, que assim no mais se mantém, para condenar os réus a pagarem, solidariamente, ao autor a quantia de dezasseis mil euros (€ 16.000,00) e para condenar a ré sociedade a pagar ao autor a quantia de quatro mil euros (€ 4.000,00) acrescidas, ambas, de juros mora, à taxa legal, que se vencerem desde a prolação desta decisão e até pagamento.

Custas em ambas as instâncias, pela ré na proporção correspondente a € 4.000,00, pela ré e réu, solidariamente, na proporção correspondente a € 16.000,00 e pelo autor na proporção restante: artigo 527° do CPC».


     Irresignados, recorrem agora os réus de revista, formulando na respectiva alegação as seguintes conclusões (sic):

«I. Decidiu o tribunal "a quo" julgar a apelação parcialmente procedente, alterando-se a sentença recorrida tão só, que assim no mais se mantém, para condenar os ora Recorrente a pagarem, solidariamente, ao agora Recorrido a quantia de dezasseis mil euros (€ 16.000,00) e condenar a Recorrente sociedade a pagar àquela a quantia de quatro mil euros (€ 4.000,00) acrescidas, ambas, de juros de mora à taxa legal que se vencerem desde a prolação da decisão.

II. Baseando tal decisão na verificação dos pressupostos da responsabilidade civil (concretamente o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre facto e dano), por aplicação conjugada dos arts. 483.°, n.° l e 484.° do C. C.

III. É precisamente esta decisão que os Recorrentes vêm por este meio sindicar, com ela não se conformando por entenderem que a mesma incorre em erro de interpretação e aplicação de diferentes normas legais, porquanto se não encontram preenchidos no caso concreto os pressupostos "ilicitude", "culpa" e "nexo de causalidade".

E não se encontra, desde logo, verificado o pressuposto da "ilicitude" dado que:

IV. Os Recorrentes limitaram-se a divulgar factos públicos e conhecidos, fruto da veiculação previamente realizada por outros órgãos de comunicação social nacional e estrangeira e da comunicação do próprio autor, conforme se julgou provado nos presentes autos:

"19. Os excertos referidos no quesito 1°, alínea d) e no quesito 3º, alíneas a) e b) reportam-se a divulgação de notícias escritas e publicadas noutros órgãos de comunicação social que, naquelas datas, se destacavam na imprensa diária nacional e internacional, e na elaboração dos quais a Ia R. não teve qualquer intervenção.

20. Alguns factos (nomeadamente que o A.. era suspeito do desaparecimento da menina …, que foi constituído arguido), antes de divulgados, foram objecto de investigação jornalística e outros (os referidos no quesito 3, alíneas a) e b)) fundamentaram-se em depoimento prestado pelo A. a órgãos de comunicação social ….

22. No dia 15-05-2007, pelas 9h06m a 1a R apresentou como diariamente o faz uma rubrica do programa "DD" destinado à revista da imprensa escrita daquele dia.

23. Os apresentadores e jornalistas da K no referido programa DD, nos dias 15 e 16 de Maio de 2007, apenas deram a conhecer ao público, por via de citação oral, o teor das primeiras páginas dos jornais publicados nesse dia." (sublinhados e destacados nossos)

V. Isto é, resulta claro da matéria provada que, ao contrário do que entendeu o tribunal a quo, os Recorrente cumpriram a sua função de garantir o rigor, a objetividade e a independência da informação veiculada, atuando num ambiente de liberdade de expressão e de informar (à qual corresponde um direito dos espectadores a serem informados).

VI. Assim é, uma vez ponderado o disposto nos artigos 10.°, n.° 1, alínea b), 23.°, 24.°, n.° 1 e 30.°, n.° 2, ai. d) da Lei n° 32/2003, de 22 de Agosto [Lei da Televisão - vigente à data dos factos]; 26.°, n.° 1, 37.°, n.° 1 e 38.°, n.°s 1 e 2, ai. a) da C.R.P. e 70.°, n.°l e 484.°, estes últimos do C.C., devendo concluir-se que os réus, "em exercício de liberdade de expressão, com independência, sem impedimentos nem discriminações, realiza os fins de informar e ser informado com rigor adequado a obviar a infracção ao bom nome das pessoas envolvidas na informação'' para recorrer à terminologia da lei àquela empregue no próprio acórdão recorrido.

VII. Mais a mais, verificando-se uma colisão de direitos, i.e. entre os direitos à liberdade de expressão e de informação e os direitos ao bom nome e à honra, (artigo 335.° do C.C.), tem entendido a vasta maioria da doutrina e da jurisprudência nacional e internacional (inclusive do TEDH, interpretando e aplicando o art. 10.° da CEDH, que é parte integrante da ordem jurídica portuguesa) deverem prevalecer os primeiros estando em causa interesse público e relevância social.

VIII. Interesse e relevância esses que são inegáveis e que ficaram amplamente provados ("27. Desde 03-05-2007 que os órgãos de comunicação social, imprensa escrita, nacional e estrangeira, atribuíram especial relevo ao desaparecimento de EE e foram inúmeras as vezes em que se viram capas de jornais, aberturas de telejornais e capas de revistas em que o destaque principal redundava "Caso FF').

IX. Tendo igualmente ficado provado que, por diversas vezes, jornalistas da Recorrente TVI contactaram o Recorrido no sentido de obter a sua versão dos factos, tendo este - ao contrário do que havia feito e viria a fazer com outros órgãos de comunicação social — sempre se negado a prestar qualquer depoimento.

X. Mais, a Recorrente salvaguardou que o Recorrido "não será o suspeito principal", isto apesar de ser inegável que estava em curso investigação que sobre este incidia e que havia sido constituído arguido (o que implicaria, nos termos do art. 58.° do C.P.P., todo o contexto visto e considerado, senão a indiciação, pelo menos a suspeita da prática de um crime).

XI. O que explica e contextualiza a referência do Recorrente ao Recorrido nos termos em que foi realizada e a qual não pode deixar de avaliar-se considerando a sua circunstância, isto é, o debate em directo, a pressão inerente a este contexto e o consequente maior informalismo, fluidez e desatenção pela nomenclatura, tudo características que convocam maior tolerância na aferição da sua ilicitude. Esquecê-lo ou negá-lo, descortinando aqui motivo para condenação, seria subsumir erradamente os factos às normas em causa.

XII. Não podendo ignorar-se ainda que a actuação dos Recorrentes ocorreu estando verificadas (e provadas) causas de exclusão da ilicitude, desde logo, a sua actuação no exercício de um direito que deve entender-se prevalecente sobre o direito ao bom nome do autor e, por outro lado, em cumprimento de um dever (o de informar acerca de um assunto com inegável interesse público).

XIII. Ora, provando-se, como se provou, que "os factos, antes de divulgados, foram objeto de investigação jornalística", que as referencias consistiram na reprodução do teor de notícias não criadas pelos recorrentes, mas veiculadas por outros órgãos de comunicação social, que, inclusive, tinham por base informações provenientes do órgão de policia criminal a quem estava acometida a investigação, e que se tratavam de factos de inegável interesse público e relevância social, não resta outra hipótese de interpretação e aplicação das normas em causa que não seja semelhante à realizada pelo tribunal de l.a instância e contrária à realizada pelo tribunal a quo, isto é, que conclua pela licitude da conduta dos recorrentes, o que implica a sua absolvição do pedido pelo não preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil. ínsitos no art. 483. do CC, em conjugação com o art. 484.° do mesmo diploma.

Mais não se encontra também verificado o pressuposto "culpa" dado que:

XIV. Referindo-se as informações a um assunto de um mediatismo de uma intensidade e amplitude poucas vezes vistas, o que maximizou o seu interesse público e relevância social, os Recorrentes, órgão de comunicação social e seu colaborador, mais não fizeram do que, em respeito por tal circunstância, reproduzir, como tinham obrigação profissional de fazer, os destaques noticiosos do dia, tendo o cuidado de contactar o Recorrido por mais do que uma vez, a fim de ouvir a sua posição sobre o assunto em causa, infelizmente sem obter deste qualquer resposta.

XV. Conduta dos Recorrentes, aliás, que nunca mereceu qualquer juízo de censura pela entidade reguladora constitucionalmente definida para ajuizar os padrões de rigor e objectividade das peças jornalísticas emitidas em ….

XVI. Assim sendo, nada quanto ao dolo dos recorrentes ou da sua conduta se ter pautado por padrões inferiores aos exigíveis pelo art. 487.° do CC resultou provado.

XVII. Tendo-se provado apenas que:

"6. Alguns dos excertos supra referidos (v.g. os que se referem ao acesso a sites pedófilos) foram divulgados pela R. BB sem que se tivesse assegurado sobre a sua veraádade.2

XVIII. O que não justificar a condenação visto tratar-se de matéria em segredo de justiça, o que tornava impossível (e inexigível) a sua confirmação, tendo os Recorrentes tomado como verosímil e confiável a informação proveniente das fontes jornalísticas em causa (órgão de polícia criminal que liderava a investigação, concretamente a Polícia Judiciária), enquadradas pelas comunicações públicas desse mesmo órgão de polícia criminal.

XIX. Bem como o facto de se tratar de uma emissão televisiva em directo e de dever ser ponderado o circunstancialismo (excludente da culpa do recorrente) ao qual já nos referimos supra.

XX. Mais a mais quando tais as imputações eram dadas como certas em notícias veiculadas por outros meios de comunicação social, concorrendo também tal conjuntura para um juízo de não culpabilidade dos recorrentes.

XXI. Limitando-se os mesmos a citar e publicitar, de forma objectiva, informação que lhes merecia credibilidade e que estava devidamente documentada (cfr. fls. 332), sem qualquer intenção de ofender o bom nome e a honra do Recorrido que, é inequívoco e não despiciendo, se expôs voluntariamente à atenção mediática no âmbito do processo, em conduta incoerente com o que posteriormente veio a alegar.

XXII. Resta, pois, e a este propósito, apenas a seguinte matéria dada como provada: "7. Os excertos supra referidos tiveram como um dos fins fazer subir as audiências."

XXIII. Que nada acrescenta ao senso comum e não pode, por isso, ser base de um juízo de culpabilidade, especialmente esquecendo-se "os outros fins" e a sua relevância (bem superior) para enquadrar a conduta dos Recorrentes.

XXIV. Mais, não esqueçamos, nos termos do art. 487.°, n.°l do C.C, em conjugação com o disposto no art 342.° do mesmo Diploma e no art. 414.° do C.P.P., que o ónus de provar a culpa dos recorrentes caberia ao Recorrido e não àqueles, não tendo tal prova sido foi realizada sequer pelo seu mínimo.

XXV. O que equivale a dizer que nenhuma prova foi produzida pelo Recorrido no sentido de se concluir em sentido diverso do da decisão do tribunal de Ia instância e contrária à realizada pelo tribunal a quo, isto é, que conclua pela culpa dos recorrentes, o que implica, também por este conjunto de razões, a sua absolvição do pedido pelo não preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil. ínsitos no art. 483. do C.C.. em conjugação com o art. 484.° e 487.° do mesmo diploma.

Por fim, não se encontra verificado o pressuposto "nexo de causalidade" dado que:

XXVI. Decorre de uma correcta interpretação e aplicação do artigo 563.° do C.C. que os danos em causa têm de ser concretizados, dado que o nexo de causalidade de que depende a aplicação do instituto da responsabilidade civil não se compadece com conclusões vagas, genéricas ou ambíguas.

XXVII. Não tendo sido dado como provado mais do que "Os factos descritos nos pontos 11 a 18 supra são, em parte, consequência dos factos descritos nos pontos 2 a 5 supra" e, pelo contrário, tendo sido dado como não provado que "os factos descritos nos pontos 8 a 10 são consequência dos factos descritos nos pontos 2 a 5 da matéria de facto provada", não se encontra verificado o nível de detalhe necessário ao estabelecimento de um nexo de causalidade com significância e validade jurídicas.

XXVIII. Assim é, uma vez que foi a qualidade processual do Recorrido (e o seu fundamento) no processo em que foi constituído arguido que os Recorrentes publicitaram, tendo inclusive tido a cautela de salvaguardar que o mesmo não era o suspeito principal do desaparecimento da criança inglesa.

XXIX. Sendo mesmo inexigível que os Recorrentes não publicitassem tais factos, tendo, aliás, ficado provado nos autos que os mesmos foram amplamente difundidos por vários quadrantes do jornalismo impresso, radiofónico e televisivo, nacional e estrangeiro, e que a conduta dos Recorrentes se insere num contexto de "revista de imprensa".

XXX. Sendo, portanto, em face das inúmeras publicações e difusões semelhantes realizadas pela referida imprensa, inaceitável que se autonomize a diluidíssima responsabilidade dos Recorrentes, descortinando aí a verificação de um nexo de causalidade entre a sua conduta e uma "parte" (não definida ou especificada) dos danos sofridos pelo Recorrido.

XXXI. Recorrido esse que assumiu, voluntariamente, desde a primeira hora, protagonismo mediático que, inevitavelmente, agudizou o interesse na razão da sua consideração como suspeito e constituição como arguido no processo em causa.

XXXII. Ora, assumir que todos os órgãos de comunicação social e jornalistas que publicaram ou reproduziram os mesmos factos sobre o autor são responsáveis pela totalidade dos danos e que cada um será responsável por uma quota-parte indeterminada dos mesmos é manifestamente insuficiente para que se considere preenchido o nexo de causalidade.

XXXIII. E não estando especificada - e, mais importante, provada - essa quota-parte, não está, evidentemente, preenchido o pressuposto previsto no art. 563.° do C.C.

XXXIV. Acresce que, certamente fruto do erro de apreciação que se encontra a montante, acabou por determinar o tribunal a quo, a jusante, um quantum indemnizatório verdadeiramente exorbitante, pois se aplicando a mesma lógica a todos os supostos prevaricadores, seria o valor atribuído aos danos sofridos pelo autor tão elevado que apenas poderia considerar-se pertencer ao domínio da pura ficção.

XXXV. O que equivale a dizer que nenhuma prova foi produzida pelo Recorrido no sentido de se concluir em sentido diverso do da decisão do tribunal de primeira instância e contrária à realizada pelo tribunal a quo, isto é, que conclua pelo estabelecimento de um nexo de causalidade entre a conduta dos recorrentes e os danos sofridos pelo autor, o que implica, também por este conjunto de razões, a sua absolvição do pedido pelo não preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, ínsitos no art. 483.° do C.C. em conjugação com o art. 563.° do mesmo Diploma.

XXXVI. Em suma, face ao exposto, não preenchem os factos imputados aos Recorrentes os pressupostos da responsabilidade civil previstos no art. 483.°, em conjugação com os arts. 484.°, 487.° e 583.°, todos do C.C., razão pela qual foi a decisão proferida pelos tribunal de primeira instância correcta e ponderada, ao contrário da decisão recorrida que incorreu em manifesto erro de interpretação e aplicação das normas jurídicas em causa.

XXXVII. Razão pela qual resta ao tribunal ad quem em respeito pela lei e pelo Direito, reparar tal erro, dando total provimento ao recurso ora interposto e assim absolvendo os Réus, ora Recorrentes, do pedido.

Termos em que, admitido o presente recurso de revista, deve o mesmo ser considerado procedente, revogando-se a decisão do Venerando Tribunal da Relação de … e substituindo-se por outra que decida pela absolvição dos Recorrentes do pedido por não preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação do instituto da responsabilidade civil, concretamente por não ter sido a conduta dos recorrentes ilícita nem culposa e por não se encontrar estabelecido e provado, com o rigor e nível de detalhe necessários, o nexo de causalidade entre tal conduta e os danos alegadamente sofridos pelo Recorrido».

           

      Contra-alegou o autor, afirmando encontrarem-se reunidos os requisitos legalmente exigidos para a verificação da obrigação de indemnizar, a saber: o facto ilícito, o nexo de amputação subjectiva, o dano e o nexo de causalidade, não padecendo, consequentemente, o acórdão recorrido de qualquer reparo jurídico, ou qualquer tipo de invalidade, nulidade, injustiça ou ilegalidade.

        Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar.


II - Fundamentos:

De facto:

Proferida decisão sobre a impugnação da decisão fáctica, que se manteve intocada, mostram-se provados os seguintes factos:

1 - No âmbito do processo relativo ao desaparecimento de EE, em 03-05-2007, na …, veio o autor a ser investigado e, no decurso dessas investigações, foi constituído arguido;

2 - Em 15/05/2007 a ré BB publicitou os seguintes excertos: a) "AA, de 35 anos, ajudou pais e polícias nas investigações e frequenta sites pedófilos"; b) “AA, … de 35 anos, é agora um dos principais suspeitos do desaparecimento da menina … de quatro anos, na …, em …"; c) “A notícia faz manchete, esta terça-feira, na imprensa diária"; d) "De acordo com o "GG, a PJ descobriu que AA frequentava páginas de violência sexual no computador e comunicava on-line através de mensagens em código. De acordo com a imprensa … AA é pai de uma menina de quatro anos também de nome HH, que vive com a mãe em …, …";

3 - Em 15/05/2007 a ré BB publicitou os seguintes excertos sob o título "AA constituído arguido", "… residente na … frequenta sites pedófilos e não será o suspeito principal";

4 - Em 16/05/2007, sob o título "PJ procura russo perigoso amigo de AA", a ré BB publicitou os seguintes excertos: a) "AA insistiu na inocência, diz-se um bode expiatório"; b) "Fui feito bode expiatório por algo que não fiz. Isto está a arruinar a minha vida e a da minha família (...). A única maneira de sobreviver a isto é o raptor ser detido pela polícia" afirmou o …"; c) "A PJ acredita que AA alegado consumidor de sites pedófilos possa conduzir as autoridades a redes de tráfico de crianças para fins sexuais";

5 - Em 16/5/2007, o réu CC, em directo, referiu-se ao autor como o "pedófilo …";

6 - Alguns dos excertos supra referidos (v.g. os que se referem ao acesso a sites pedófilos) foram divulgados pela ré BB sem que se tivesse assegurado sobre a sua veracidade;

7 - Os excertos supra referidos tiveram como um dos fins fazer subir as audiências;

8 - À data da sua constituição como arguido o autor estava em processo de criação de uma empresa on line, de nome II, o qual a partir de certa altura deixou de estar acessível;

9 - O autor ficou sem trabalho e dependente economicamente de sua mãe;

10 - Desde os 16 anos que o autor não dependia economicamente de ninguém;

11 - 0 autor passou a ser identificado, apontado e incomodado sempre que saía à rua;

12 - Recebeu constantemente cartas, e-mails e telefonemas de pessoas com ameaças veladas à sua vida e integridade física e dos seus entes queridos;

13 - Toda a situação provocou um desmaio ao autor;

14 - Numa das consultas médicas foi-lhe diagnosticado pulso acelerado e hipertensão, com ansiedade sudorese e taquicardia e início de crise depressiva com choro, amnésia e insónia;

15 - O autor procurou ajuda psiquiátrica, passou a isolar-se, a evitar sair à rua e quando necessitava de o fazer saía disfarçado, por forma a não ser reconhecido e incomodado, receando pela sua segurança;

16 - A casa do autor tornou-se ponto obrigatório de visita de curiosos que se deslocavam propositadamente ou acidentalmente à …;

17 - O autor evitou contactar os amigos por forma a evitar que estes fossem incomodados, fotografados pelos jornalistas;

18 - O autor teve de mudar-se temporariamente para casa de sua tia, no …;

19 - Os excertos referidos no quesito 1º, alínea d) (correspondente à al. d) do ponto 2 supra) e no quesito 3º, alíneas a) e b) (correspondentes às als. a) e b) do ponto 4 supra) reportam-se a divulgação de notícias escritas e publicadas noutros órgãos de comunicação social que, naquelas datas, se destacavam na imprensa diária nacional e internacional, e na elaboração dos quais a ré BB, S.A., não teve qualquer intervenção;

20 - Alguns factos (nomeadamente, que o autor era suspeito do desaparecimento da menina inglesa; que foi constituído arguido), antes de divulgados, foram objecto de investigação jornalística e outros (os referidos no quesito 3º, alínea a) e b) correspondentes às als. a) e b) do ponto 4 supra) fundamentaram-se em depoimento prestado pelo autor a órgãos de comunicação social estrangeira;

21 - Desde 03-05-2007 que os órgãos de comunicação social, imprensa escrita, nacional e estrangeira, atribuíram especial relevo ao desaparecimento de EE e foram inúmeras as vezes em que se viram capas de jornais, aberturas de telejornais e capas de revistas em que o destaque principal redundava "Caso FF";      

22 - Nos dias 15-05-2007, pelas 9h06m a ré BB, S.A., apresentou como diariamente o faz, uma rubrica do programa "DD" destinado à revista da imprensa escrita daquele dia;

23 - Os apresentadores e jornalistas da ré no referido programa DD, nos dias 15 e 16 de Maio de 2007, apenas deram a conhecer ao público, por via de citação oral, o teor das primeiras páginas dos jornais publicados nesse dia.

24 - Os factos descritos nos pontos 11 a 18 supra são, em parte, consequência dos factos descritos nos pontos 2 a 5 supra,


        De direito:

       Em face das conclusões da alegação dos réus, recorrentes, delimitadoras do objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação de questão de conhecimento oficioso, cumpre apreciar se, no caso vertente, se verificam todos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito e, na afirmativa, se os montantes indemnizatórios arbitrados ao autor são excessivos.

        A presente acção inscreve-se no âmbito da tutela dos direitos de personalidade.

Estes são direitos gerais, extrapatrimoniais e absolutos que formam um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de casa pessoa e que encontram protecção quer no âmbito do direito criminal, quer no domínio do direito civil, concretizando na lei ordinária os princípios constitucionais insertos no capítulo dos «direitos, liberdades e garantias» (artigos 24º e seguintes da Constituição).

No campo do direito civil, os artigos 70º e seguintes do Código Civil não outorgam ao titular de direitos de personalidade apenas meros poderes jurídicos de pretensão ou simples expectativas jurídicas de respeito, sendo-lhe atribuído um feixe de verdadeiros poderes jurídicos que lhe permitem exigir dos demais sujeitos o respeito da sua personalidade. De tal forma que a violação de direitos de personalidade expõe os sujeitos passivos desses direitos a sanções jurídicas, quando não se verifiquem causas de exclusão de ilicitude e ocorram os demais pressupostos da aplicação dessas sanções. (cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág.394).

       Assim, resulta claramente do nº 2 do artigo 70º do Código Civil que às ofensas à personalidade física ou moral são aplicáveis, em termos gerais, os artigos 483º e seguintes daquele código, que regem em matéria de responsabilidade civil extracontratual e estabelecem como pressupostos de verificação cumulativa: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (nº 1 do artigo 483º).

       No caso em análise, a responsabilidade imputada aos réus assenta na alegada violação de direitos de personalidade do autor através da comunicação social, concretamente, do canal televisivo da ré BB, S.A., na qual o réu CC exercia funções.

Quer a liberdade de expressão e informação, quer a liberdade de imprensa e meios de comunicação têm consagração constitucional, também no capítulo dos «direitos, liberdades e garantias». A todos é reconhecido, no nº 1 do artigo 37º, «o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos ou discriminações», garantindo o artigo 38º nº 1 a liberdade de imprensa, cujo conteúdo programático está definido nos números subsequentes.

      Na lei ordinária vigorava ao tempo dos factos a Lei da Televisão aprovada pela Lei nº 32/2003, de 22 de Agosto (posteriormente revogada pela Lei nº 27/2007, de 30 de Julho), que tinha por objecto regular o acesso à actividade de televisão e o seu exercício no território nacional.

De harmonia com o seu artigo 10º a programação televisiva tinha, entre o mais, por finalidade: promover o exercício do direito de informar, de se informar e de ser informado, com rigor e independência, sem impedimentos nem discriminações (al. b); promover a cidadania e a participação democrática e respeitar o pluralismo político, social e cultural (al. c).

       Sobre a difícil harmonização dos direitos concorrentes em confronto – direitos de personalidade e direito de livre expressão e informação – tem-se pronunciado, além da jurisprudência nacional, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que vem apreciando questões relacionadas com a colisão de tais direitos à luz do estabelecido nos artigos 8º e 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), preceitos que salvaguardam o direito ao respeito pela vida privada e familiar e o direito à liberdade de expressão, respectivamente.

       O direito à liberdade de expressão contemplado no artigo 10º compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras (nº 1).

Implicando o exercício da liberdade de expressão deveres e responsabilidades, pode o mesmo ser submetido a certas condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, necessárias numa sociedade democrática com vista, além do mais, à protecção da honra ou dos direitos de outrem (nº 2).

Submete-se, assim, a restrição à liberdade de imprensa ao teste da sua “necessidade numa sociedade democrática”. Para esse efeito, entende o TEDH ser necessário averiguar: (i) se a medida corresponde a uma “necessidade social imperiosa”; (ii) se é proporcional – isto é, se a necessidade poderia ser provida por meios menos restritivos e se a medida é adequada à finalidade prosseguida –; (iii) se os fundamentos invocados pelas autoridades nacionais para justificar a medida são “relevantes e suficientes” (Sunday Times (nº 1) contra Reino Unido, 26 de abril de 1979, série A nº 30, p.38, § 62).

A liberdade de expressão constitui, assim, a regra. As limitações consentidas pelo n.º 2 do artigo 10.º da CEDH são restritivamente interpretadas e casuisticamente analisadas de acordo com o conteúdo da peça jornalística em causa.

Como observa Francisco Pereira Coutinho, «o TEDH distingue para o efeito entre declarações de facto (notícia) e julgamentos de valor (opinião), considerando que se as notícias podem ser provadas, as opiniões não se prestam a demonstração de veracidade, pelo que tornam impossível para um jornalista a expressão de uma opinião se a verdade é a única defesa disponível. Por outras palavras, saber se uma afirmação é uma declaração de facto (notícia) ou um juízo de valor (opinião) constitui factor decisivo no nível de protecção que recebe à luz da CEDH – se se tratar de um julgamento de valor receberá protecção ampla, quase absoluta, caso a opinião prestada não seja desprovida de base factual e seja feita de boa fé» (O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a Liberdade de Imprensa: os casos portugueses, http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/FPC_MA_24220).

Nesse sentido se pronunciou o acórdão do TEDH de 17 de Dezembro de 2004 (Pedersen e Baadsgaard contra Dinamarca), no qual se referiu que os jornalistas «devem agir de boa fé e com base factual e fornecer informação “credível e precisa” de acordo com a ética do jornalismo» (acessível em http://hudoc.echr.coe.int, n.º 78).

Traçado este breve enquadramento legal e jurisprudencial, importa analisar o caso concreto.

Para tanto, destaca-se da facticidade provada que:

1 - No âmbito do processo relativo ao desaparecimento de EE, em 03-05-2007, na …, veio o autor a ser investigado e, no decurso dessas investigações, foi constituído arguido;

2 - Em 15/05/2007 a ré BB publicitou os seguintes excertos: a) "AA, de 35 anos, ajudou pais e polícias nas investigações e frequenta sites pedófilos"; b) “AA, … de 35 anos, é agora um dos principais suspeitos do desaparecimento da menina … de quatro anos, na …, em Lagos"; c) “A notícia faz manchete, esta terça-feira, na imprensa diária"; d) "De acordo com o "GG, a PJ descobriu que AA frequentava páginas de violência sexual no computador e comunicava on-line através de mensagens em código. De acordo com a imprensa … AA é pai de uma menina de quatro anos também de nome HH, que vive com a mãe em …, …";

3 - Em 15/05/2007 a ré BB publicitou os seguintes excertos sob o título "AA constituído arguido", "… residente na … frequenta sites pedófilos e não será o suspeito principal";

4 - Em 16/05/2007, sob o título "PJ procura … perigoso amigo de AA", a ré BB publicitou os seguintes excertos: a) "AA insistiu na inocência, diz-se um bode expiatório"; b) "Fui feito bode expiatório por algo que não fiz. Isto está a arruinar a minha vida e a da minha família (...). A única maneira de sobreviver a isto é o raptor ser detido pela polícia" afirmou o britânico"; c) "A PJ acredita que AA alegado consumidor de sites pedófilos possa conduzir as autoridades a redes de tráfico de crianças para fins sexuais";

5 - Em 16/5/2007, o réu CC, em directo, referiu-se ao autor como o "pedófilo …";

6 - Alguns dos excertos supra referidos (v.g. os que se referem ao acesso a sites pedófilos) foram divulgados pela ré BB sem que se tivesse assegurado sobre a sua veracidade;

7 - Os excertos supra referidos tiveram como um dos fins fazer subir as audiências;

19 - Os excertos referidos no quesito 1º, alínea d) (correspondente à al. d) do ponto 2 supra) e no quesito 3º, alíneas a) e b) (correspondentes às als. a) e b) do ponto 4 supra) reportam-se a divulgação de notícias escritas e publicadas noutros órgãos de comunicação social que, naquelas datas, se destacavam na imprensa diária nacional e internacional, e na elaboração dos quais a ré BB, S.A., não teve qualquer intervenção;

20 - Alguns factos (nomeadamente que o autor era suspeito do desaparecimento da menina inglesa que foi constituído arguido), antes de divulgados, foram objecto de investigação jornalística e outros (os referidos no quesito 3º, alínea a) e b) correspondentes às als. a) e b) do ponto 4 supra) fundamentaram-se em depoimento prestado pelo autor a órgãos de comunicação social estrangeira;

21 - Desde 03-05-2007 que os órgãos de comunicação social, imprensa escrita, nacional e estrangeira, atribuíram especial relevo ao desaparecimento de EE e foram inúmeras as vezes em que se viram capas de jornais, aberturas de telejornais e capas de revistas em que o destaque principal redundava "Caso FF";           

22 - Nos dias 15-05-2007, pelas 9h06m a ré BB, S.A., apresentou como diariamente o faz, uma rubrica do programa "DD" destinado à revista da imprensa escrita daquele dia;

23 - Os apresentadores e jornalistas da ré no referido programa DD, nos dias 15 e 16 de Maio de 2007, apenas deram a conhecer ao público, por via de citação oral, o teor das primeiras páginas dos jornais publicados nesse dia.

Dos factos descritos extrai-se que a maioria das notícias transmitidas pela ré BB, S.A., consistiu na divulgação de notícias escritas e publicadas noutros órgãos de comunicação social que, nas datas em causa, se destacavam na imprensa diária nacional e internacional, em cuja elaboração a ré não teve qualquer intervenção.

Outras limitaram-se a dar voz a afirmações feitas pelo próprio autor e outras ainda resultaram de investigação jornalística antes de divulgados, como foi o caso de o autor ser suspeito do desaparecimento da menina inglesa e ter sido constituído arguido, afirmações objectivas e verdadeiras.

Tais segmentos noticiosos não revestem, por isso, a natureza de facto ilícito, o que permite afastar, desde logo, a responsabilidade civil da ré quanto a eles, como foi considerado, aliás, no acórdão sob censura.

Subsistem, no entanto, a referência ao autor como frequentador de sites pedófilos, divulgada em 15 de Maio de 2007 sem que a ré BB, S.A., tivesse procurado assegurar-se previamente sobre a sua veracidade, e, em 16 de Maio de 2007, como alegado consumidor de sites pedófilos e «pedófilo …», expressão utilizada, em directo, pelo réu CC.

Neste particular, não podemos deixar de acompanhar o acórdão recorrido quando nele se afirmou que: «São a razoabilidade e o bom senso que impõem, manifestamente, considerar as imputações pela difusão do autor como pedófilo [e] pela divulgação do autor como frequentador de sítios pedófilos ofensivas do bom nome.

Na verdade a difusão do autor como pedófilo, afinal, é a difusão do autor como abusador sexual de crianças (artigo 172° do Código Penal (CP) já na redacção da Lei 65/1998, de 2/9) e a difusão do autor como frequentador de sítios pedófilos, embora de menor grau, não deixa de ser ofensiva como apodo de apreciador desse tema».

      No contexto do desaparecimento de uma menina … – EE – no dia 3 de Maio de 2003, na …, a que foi dado especial relevo por vários órgãos de comunicação social portugueses e estrangeiros, aquelas referências ao autor consubstanciam imputação grave, que em nada contribuía ou contribuiu para o debate público em torno do desaparecimento da menina ou do fenómeno da pedofilia numa sociedade aberta e democrática.

      Tratou-se de um ataque pessoal e gratuito, que o facto de o autor ter sido investigado e vir a ser constituído arguido não justifica, assim como a difusão de que o mesmo era consumidor de sites de pedofilia não se explica com dificuldades na averiguação da sua veracidade pelo segredo de justiça que envolvia a investigação, pois este facto só impunha uma maior exigência e cuidado por parte da ré quanto à fidedignidade da informação antes de a veicular a coberto do exercício do seu nobre direito de informar.

Note-se que, neste particular, cabe ao lesado provar os factos lesivos do seu bom nome, recaindo sobre o lesante a prova da sua veracidade. A prova da verdade das imputações de facto (exceptio veritas), enquanto causa de exclusão da ilicitude compete ao lesante, tanto no domínio do direito penal, como no do direito civil (artigos 165º nºs 1 e 2 do Código Penal e 342º nºs 1 e 2 do Código Civil)

E se é compreensível e natural a ré pretender fazer subir as suas audiências, já não é curial que com tal desiderato procedesse também à divulgação das referidas afirmações, gravosas e lesivas da honra e bom nome do autor, não obstante o inegável interesse público e a relevância social do caso, porquanto essa divulgação não derivou de qualquer imperiosa necessidade social susceptível de se entender como necessária e adequada, logo, proporcionada ao dever de informar com rigor.

O justo equilíbrio entre a protecção da liberdade de imprensa e os direitos de personalidade do autor, na vertente do seu bom nome e reputação, não justificam, no caso, a actuação dos réus, não podendo reduzir-se a protecção desses direitos a mera questão de retórica.

Temos, assim, por verificados o facto ilícito e a culpa, ao menos na modalidade de negligência consciente.

E, como se observou no acórdão recorrido, «A matéria de facto não permite eximir o réu do controle profissional da sua emissão, como não permite eximir a ré da decisão, por intermédio dos agentes e auxiliares que utiliza na sua emissão, da divulgação sobre o autor como pedófilo, da divulgação sobre o autor como frequentador de sítios pedófilos.

Na verdade importa considerar que o emprego de agentes e auxiliares para vantagem própria, ou seja a utilização de pessoas para consecução das finalidades da actividade de televisão da ré, implica simultaneamente o encargo de arcar com os respectivos riscos, como seja o risco de incorrer em responsabilidade civil por factos ilícitos, e sem necessidade sequer de determinar o agente responsável pela produção desses factos (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil Coimbra 1973, pgs. 306 e 310, 311).

Deste modo seja em emissão indirecta, seja em emissão directa, independentemente de qual seja a sua concreta significância, sobre [n]a ré, como organização de múltiplos factores funcionalmente dirigidos à emissão televisiva, radica o controle e decisão da emissão.

Por outro lado no caso não estão determinados os agentes responsáveis pela divulgação sobre o autor como frequentador de sítios pedófilos, apenas o agente, o réu, da divulgação sobre o autor como pedófilo.

De todo o modo, visto o disposto nos artigos 165°, 500°, n.° 1, e 563° do CC, recai sobre a ré e o réu a obrigação de indemnizar o autor pelos danos sofridos com tais imputações».

Com efeito, resultou provado que o autor passou a ser identificado, apontado e incomodado sempre que saía à rua, recebeu constantemente cartas, e-mails e telefonemas de pessoas com ameaças veladas à sua vida e integridade física e dos seus entes queridos, toda a situação provocou um desmaio ao autor e numa das consultas médicas foi-lhe diagnosticado pulso acelerado e hipertensão, com ansiedade sudorese e taquicardia e início de crise depressiva com choro, amnésia e insónia e passou a isolar-se, a evitar sair à rua e quando necessitava de o fazer saía disfarçado, por forma a não ser reconhecido e incomodado, receando pela sua segurança (ponto de facto nºs 11 a 15).

Provou-se ainda que o autor procurou ajuda psiquiátrica, evitou contactar os amigos por forma a evitar que estes fossem incomodados e fotografados pelos jornalistas, a sua casa tornou-se ponto obrigatório de visita de curiosos que se deslocavam propositadamente ou acidentalmente à …, pelo que teve de mudar-se temporariamente para casa de sua tia, no … (pontos de facto nºs 15 e 16 a 18).

Esta facticidade é reveladora dos danos não patrimoniais sofridos pelo autor com as imputações lesivas do seu bom nome que lhe foram feitas pelos réus.

Estes danos assumem relevância pela sua gravidade e são merecedores de tutela jurídica, à luz do disposto no artigo 496º nº 1 do Código Civil, nos exactos termos definidos no acórdão recorrido, posto que está demonstrado o necessário nexo de causalidade entre a actuação dos réus e os ditos danos.

Na verdade, a conduta da ré, ao difundir televisivamente que o autor era frequentador de sites de pedofilia, e a actuação do réu, ao referir-se ao autor, em directo e perante as câmaras da televisão da ré, como «pedófilo britânico», são objectivamente idóneas para provocar os danos provados quer em abstracto, quer em concreto.

A circunstância de o processo factual de que resultou o dano do autor só em parte ser imputável aos réus, visto outros órgãos de comunicação social terem difundido notícias de teor idêntico não os exime da sua responsabilidade, ao contrário do que os réus sustentam, apenas relevando para efeito de quantificação da indemnização.

Como expressivamente afirma Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, págs. 922 e 923), a propósito da comparticipação (lato sensu), esta pode verificar-se em relação à mesma causa do dano ou resultar da concorrência de duas ou mais causas na direcção do mesmo dano. Contudo, «Em face do lesado, quer haja subsequência (adequada) de causa, quer haja causas cumulativas ou mera coincidência de causa de natureza distinta, qualquer dos responsáveis é obrigado a reparar todo o dano».

Concluímos, em consequência, pela verificação de todos os pressupostos legais exigidos para fundamentar a condenação dos réus com base em responsabilidade civil extracontratual ou por facto ilícito, nos termos do disposto no citado artigo 483º nº 1, nomeadamente, a ilicitude, a culpa e o nexo de causalidade.

As indemnizações arbitradas, a liquidar pela BB, SA, no valor de € 16.000,00, e a liquidar pelo réu CC, no valor de € 4.000,00, revelam-se, no contexto, equitativamente fixadas e proporcionadas para ressarcir o autor dos danos não patrimoniais provados.


III. Decisão:

Nesta conformidade, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 5 de Junho de 2018


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado