Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2834/18.0T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: TIBÉRIO NUNES DA SILVA
Descritores: AÇÃO DE PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO
PRÉDIO URBANO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
DIREITO DE PREFERÊNCIA
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS COMPLEMENTARES
FACTOS INSTRUMENTAIS
FACTOS NOTÓRIOS
PETIÇÃO INICIAL
TEORIA DA SUBSTANCIAÇÃO
OBJETO DO PROCESSO
CASO JULGADO
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor (art. 265º, nº1, do CPC), razão por que não tem cabimento processual, numa resposta à defesa por excepção deduzida pelos réus, o autor invocar fundamentos do direito de preferência diversos do que alegara na petição inicial, ou seja, fora do objecto do processo, desde logo delimitado pela causa de pedir daí resultante.

II.  É na petição inicial que devem ser expostos os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção e os factos a que se reporta o nº 2 do art. 5º do CPC devem ter por referência a causa de pedir que emana da petição.

II. De acordo com a teoria da substanciação, devem ser alegados os factos concretos constitutivos do direito que se pretende fazer valer. Assim, não é a mera invocação do direito de preferência que identifica a causa de pedir, mas os factos que a consubstanciam, o que importa, designadamente, para a definição do caso julgado.

IV. O dever de gestão processual deve conter-se no objecto do processo.

V. O artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do C. Civil, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário de parte específica de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal.

VI. A interpretação referida no ponto anterior não viola princípios constitucionais, designadamente o consagrado no art. 13º da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I

Município de Tomar intentou contra AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK e LL (1ºs RR.) e LEGESPA, S.A., acção declarativa, com processo comum, pedindo que seja decretado:

«i. O reconhecimento do direito de preferência da Autora na aquisição do imóvel em causa, com declaração de invalidade da escritura pública de compra e venda do imóvel entre Primeiros Réus e Ré Adquirente;

E, em consequência,

ii. A transmissão do bem imóvel em causa a favor da Autora, substituindo a sentença à vontade dos Primeiros Réus e da Ré Adquirente;

iii. O cancelamento do registo predial de aquisição do imóvel a favor da Ré Adquirente e a determinação de registo predial de aquisição do imóvel a favor da Autora com efeitos à data da outorga da escritura pública de compra e venda entre Primeiros Réus e Ré Adquirente;

iv. A nulidade do contrato de arrendamento celebrado entre a Ré Adquirente e a Autora por impossibilidade de objeto (ausência de direito);

v. A condenação da Ré Adquirente a restituir à Autora todas as rendas recebidas ao abrigo do contrato de arrendamento previsto na alínea anterior (alínea iv), bem como outras quantias que desta ou de terceiro tenha recebido por virtude ou decorrência da sua condição de proprietária, acrescidas de juros vencidos e vincendos à taxa legal em vigor».

Alegou o A. ter o direito de preferência na aquisição do prédio urbano sito em Tomar (identificado no art. 20º da p.i.), vendido pelos 1.ºs RR. à R. LEGESPA, S.A., em 11-05-2018, estribando-se na sua qualidade de arrendatário desde 1964.

Invocou, ainda, por decorrência do reconhecimento da violação do seu direito de preferência e consequente registo do mesmo a seu favor, com o cancelamento do registo de aquisição a favor da Adquirente Ré, a nulidade do contrato de arrendamento celebrado entre a Ré adquirente e o A., por carecer de objecto, pois que a adquirente deixa de ter a qualidade (putativa) de proprietária do bem em causa.

Contestaram os 1ºs RR., deduzindo a excepção de caducidade do direito de accionar e alegando, sem prescindir disso, a inexistência do direito legal de preferência e o não exercício atempado do direito convencional de preferência.

Depois de, ainda, impugnarem parte da factualidade alegada pelo A., concluíram pela improcedência da acção.

Contestou também a R. LEGESPA, S.A., defendendo a caducidade do direito de acção e a inexistência do direito legal de preferência.

Concluiu, após impugnação de factualidade da petição inicial, pela improcedência da acção.

O A. respondeu, em 11-09-2019, batendo-se pela improcedência das excepções deduzidas e pugnando pela existência de outros (para além do que invocara na petição inicial) fundamentos do direito de preferência, sustentado nos vários preceitos legais que aí enuncia.

Foi proferido saneador-sentença, que julgou verificada a caducidade do direito do Autor e a inexistência do direito legal de preferência, improcedendo, assim, a acção.

Inconformado, o A. recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, que revogou a sentença relativamente à questão da caducidade, julgando improcedente o recurso quanto ao mais decidido em 1.ª Instância, em consequência do que confirmou a improcedência da acção.

Tendo o A., na resposta à contestação, invocado, conforme se referiu, o direito legal de preferência com fundamentos diferentes do que fora alegado na petição inicial, arguiu, no recurso de apelação, a omissão de pronúncia da 1ª Instância quanto a esse aspecto, o que motivou a seguinte apreciação pelo Tribunal da Relação:

«Em 1.ª Instância não foram apreciados os direitos legais de preferência invocados  pelo Recorrente para além daquele que está consagrado no art. 1091.º do CC. Trata-se do direito de preferência estabelecido no artigo 126.º do DL n.º 380/99, de 22 de setembro, por o edifício se situar nas áreas do plano com execução programada, i.e., no âmbito do plano de pormenor do Centro Histórico de Tomar; do direito de preferência para fins e objetivos de política pública estabelecido no artigo 29.º da Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio, Lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo; do direito legal de preferência consagrado no artigo 58.º do DL n.º 307/2009, de 23 de Outubro; do direito legal de preferência consagrado na Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, nas transmissões a título oneroso para os imóveis classificados ou em vias de classificação ou imóveis localizados nas respetivas zonas de proteção.

Tais direitos, para além de contenderem com a natureza pública do Recorrente e com relações de índole administrativa, foram invocados apenas na resposta apresentada pelo A às exceções invocadas pelos RR. Na petição inicial tais direitos legais de preferência não foram trazidos à colação para sustentar a pretensão deduzida, nem nela foram carreados factos atinentes ao imóvel, à respetiva localização e situação jurídica de modo a aferir a subsunção do caso aos diversos regimes jurídicos invocados.

Na medida em que na petição inicial o Recorrente apenas se arrogou do seu direito de preferência na qualidade de arrendatário, a invocação posterior dos demais direitos legais de preferência configura alteração da causa de pedir. Alteração essa que se afigura inadmissível à luz do disposto no art. 265.º do CPC.

Não cabe, pois, apreciar os referidos direitos legais de preferência no âmbito deste processo.»

Irresignado com o acórdão da Relação, o A. interpôs recurso de revista excepcional para este Supremo Tribunal, ao abrigo do disposto no art. 672.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do CPC, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:

«A. O presente Recurso de Revista vem interposto do Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, em 09.09.2021, que decidiu confirmar parcialmente a Sentença proferida em 27.10.2020, e o seu objeto encontra-se restringido aos segmentos decisórios constantes de fls. 22 a 27, do Acórdão sob revista (cf. n.º 2, do artigo 635.º, do CPC).

B. O Recorrente tem legitimidade, está em tempo, e encontram-se reunidos os requisitos estabelecidos na Lei Processual Civil para a interposição de recurso em geral (cf. artigos 629.º, n.º 1, do CPC), e da revista excecional consagrada no artigo 672.º do CPC,

C. Pois que não só estamos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, torna a presente revista de importância fundamental (cf. alínea a), do n.º 1, do artigo 672.º, do CPC),

D. Como perante um quadro em que a revista é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cf. alínea b), do n.º 1, do artigo 672.º, do CPC),

E. E, bem assim, perante uma “oposição de julgados” (cf. alínea c), do n.º 1, do artigo 672.º, do CPC).

F. As questões retratadas na presente Revista – incorreta interpretação e aplicação do regime da (in)admissibilidade da alteração da causa de pedir, do regime previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 1091.º, do Código Civil e do regime do n.º 2, do artigo 59.º, do NRAU – são dotadas de “relevância jurídica ou social que torna a revista de importância fundamental”, porquanto não só suscitam dúvidas na Jurisprudência,

G. Como apresentam contornos indiciadores de que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto e das partes envolvidas no litígio, podendo representar, assim, uma orientação para a resolução desses prováveis futuros casos, já que se mostra de enorme suscetibilidade a ocorrência de Ações para a apreciação: daqueles regimes, impondo-se, por conseguinte, a precisão dos seus regimes em conformidade com a jurisprudência que tem vindo a ser proferida.

H. As questões relacionadas com a interpretação e aplicação do direito legal de preferência quando interpretadas no sentido restritivo perfilhado pelo Acórdão sob revista, são ainda são suscetíveis de comportar uma violação do Princípio da Igualdade consagrado no artigo 13.º, da CRP,

I. Pelo que, comprovada se encontra a relevância jurídica ou social que torna a presente revista de importância fundamental dada a panóplia de questões que no presente caso se colocam, e a suscetibilidade de violação de princípios e direitos fundamentais.

J. A presente Revista emerge de uma “Necessidade de Melhor Aplicação do Direito”, já que a decisão sob revista não se manteve dentro das soluções plausíveis de direito, revelando, antes, a existência de erro(s) manifesto(s), grosseiro(s).

K. O Acórdão sob revista revela uma errada interpretação e aplicação do regime da “alteração da causa de pedir” (cf. n.º 1, do art. 265.º, do CPC), ao presente caso, e ao decidir não ser de conhecer os direitos legais de preferência invocados pelo Recorrente, já que o conhecimento de tais factos era permitido ao abrigo do poder de cognição e gestão processual do Juiz (cf. artigo 5.º e 6.º, do CPC), por se tratarem não só de factos essenciais à procedência da pretensão formulada, como de factos notórios, que foram invocados na sequência da instrução e discussão da causa, tendo o Recorrente manifestado a vontade de se aproveitar desses factos, e tendo sido facultado aos Recorridos o exercício do contraditório.

L. Nestes termos, e ao contrário do preconizado no Acórdão sob revista, o Recorrente careou para os autos factos essenciais que lhe conferiam um direito legal de preferência, e juntou a respetiva prova, tendo aquela sido notificada aos Recorridos e ficado na disponibilidade do douto Tribunal de 1.ª instância, não tendo a mesma sido desentranhada e/ou objeto de qualquer decisão sobre o seu teor ou alcance e/ou pronúncia ou oposição por parte dos Recorridos.

M. Este entendimento encontra fundamento nos Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação do Porto, em 15.09.2014, no âmbito do Processo n.º 3596/12.0TJVNF.P1, e em 09.03.2020, no âmbito do Processo n.º 6793/18.1T8PRT.P1, bem como no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 23.02.2016, no âmbito do Processo n.º 2316/12.4TBPBL.C1, com os quais o Acórdão sob revista se encontra em contradição (“oposição de julgados”, nos termos da alínea c), do n.º 1, do artigo 672.º, do CPC).

N. O Acórdão sob revista revela ainda uma errada interpretação e aplicação do regime do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, ao interpretar no sentido de que arrendatário de uma parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não goza do direito legal de preferência na venda ou dação do “prédio”,

O. E uma errada interpretação e aplicação do regime do transitório consagrado no n.º 2, do artigo 59.º, desse mesmo diploma, ao restringir a aplicação de tal normativo à salvaguarda do direito de preferência do arrendatário de todo o prédio e do arrendatário de fração autónoma que à data da entrada em vigor do NRAU já tivessem completado um ano de duração de Contrato.

P. Tais interpretação restritivas não encontram qualquer correspondência (ainda que mínima) como o elemento literal da Lei, ou com os objetivos que o direito de preferência visa prosseguir, sendo ainda suscetíveis de violar o Princípio da Igualdade consagrado no artigo 13.º, da CRP, ao discriminar negativamente, e sem qualquer justificação, o arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal face aos arrendatários de todo o prédio e/ou de fração autónoma.

Q. Fere o sentido de justiça aceitar-se a celebração de um contrato de arrendamento relativo a uma parte legalmente indivisa e depois não lhe reconhecer os efeitos de atribuição de preferência decorrentes desse contrato válido.

R. Este entendimento encontra oposição no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 23.06.2015, no âmbito do Processo n.º 1275/12.8TBCBR.C1, e no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 07.12.2017, no âmbito do Processo n.º 1130/15.0T8VNF-F.G1, e que servem de fundamento à presente revista (“oposição de julgados”, nos termos da alínea c), do n.º 1, do artigo 672.º, do CPC).

S. O presente Recurso de Revista deve, assim, ser admitido, por provado, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 629.º, n.º 1, e 672.º, n.º 1 alíneas a), b) e c) do CPC, cumprida que também está a formalidade de junção de cópia, ainda que não certificada, dos Acórdãos Fundamentos, nos termos do n.º 2, do artigo 637.º, do CPC.

T. A presente Revista terá como fundamento a violação da lei substantiva reconduzida a erro(s) de interpretação e aplicação do direito aplicável, consagrada na alínea a), do n.º 1 e no n.º 2, do artigo 674.º, do CPC.

U. O Acórdão sob revista padece de Erro de Julgamento porquanto os direitos legais de preferência invocados pelo Recorrente na Reposta às Exceções podiam e deveriam ter sido conhecidos nos termos do poder de cognição e dever de gestão processual do juiz (cf. artigo 5.º e 6.º, do CPC), pois que, não só foram retratados como essenciais à procedência da pretensão formulada e como notórios, como foram invocados pelo Recorrente na sequência da instrução e discussão da causa e em seu proveito, tendo os Réus tido a faculdade de se pronunciar sobre os mesmos, garantindo assim a sua defesa e o principio do contraditório.

V. Ou seja, o Recorrente cumpriu com o ónus de alegação que sobre si impendia, tendo oportunamente alegado e cabalmente provado, no decurso dos presentes autos, o elenco dos factos integradores da causa de pedir que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido pelo mesmo, que é o reconhecimento do seu direito legal de preferir na venda ou dação do prédio em causa, seja em função da sua qualidade de arrendatário, seja na posição de Município responsável pela proteção e valorização dos bem imóveis inseridos no núcleo histórico da cidade de Tomar.

W. Neste termos, o Recorrente submeteu à apreciação e ao conhecimento do douto Tribunal 1.ª instância, e às demais Partes, a questão central e fulcral da existência do seu direito legal de preferência sobre a transmissão do imóvel em causa, garantindo o contraditório destes últimos, e permitindo uma correta decisão da causa por parte do Tribunal.

X. Sem prejuízo, aqueles direitos de preferência sempre emergem de factos notórios presumidamente conhecidos pelo Tribunal por virtude do exercício de funções (cf. alínea c), do n.º 2, do art. 5.º, do CPC), porquanto recorrentes da localização do imóvel em causa, tendo esta sido desde logo descrita em sede de Petição Inicial.

Y. Nestes termos, resulta como notório o facto de o prédio se situar no núcleo histórico da cidade de Tomar (cf. Declaração n.º 76/99, publicada em Diário da República, 2.ª Série, n.º 53, de 5 de Março, e Documento n.º 2, junto ao Requerimento de 15.09.2019);

Z. Resulta também notório que, por esse motivo, o prédio seja integrado na área de reabilitação urbana da cidade de Tomar (cf. Aviso n.º 11995/2014, publicado em Diário da República n.º 2070/2014, Série II, de 27 de Outubro de 2014 e Documento n.º ..., junto à Pronúncia de 11.09.2019),

AA. E numa zona de proteção especial e geral de proteção urbana, sujeita a restrições adequadas em função da proteção e valorização dos bens imóveis classificados em causa, como o são a Igreja de São João Baptista e o Edifício dos Paços do Concelho (cf. Documento n.º 5, junto à Pronúncia de 11.09.2019, disponível no sítio da internet do Atlas do Património Classificado e em vias de Classificação – www.geo.patrimoniocultural.pt).

BB. Nestes termos, deve o Acórdão sob revista ser revogado e substituído por outro que conheça dos demais direitos legais de preferência invocados pelo Recorrente, decidindo que em face da existência de qualquer um, o Recorrente encontra(va)-se investido no direito potestativo de exigir que, por decisão judicial, fosse constituído o seu direito de propriedade sobre o imóvel objecto da preferência, com a consequente procedência da presente Ação, nos termos e com os fundamentos supra expostos, conhecidos que sejam os demais Erros de Julgamento prejudicados no seu conhecimento em função da decisão proferida no Acórdão sob revista.

CC. Sem prejuízo, o Acórdão sob revista padece ainda de erro de julgamento de/na interpretação e aplicação restritiva da previsão da alínea a), do n.º 1, do artigo 1091.º, do Código Civil, que não encontra correspondência legal na letra na lei, e nem decorre do preâmbulo da Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro, e nem da análise da sua exposição de motivos.

DD. A supressão na redação daquele preceito das expressões “prédio urbano ou de sua fracção autónoma” constantes no artigo 47.º, do RAU, não pode ser entendido nem para mais (no sentido de os titulares de fração autónoma terem direito de preferência sobre a totalidade do prédio sujeito ao regime de propriedade horizontal), e nem para menos (no sentido de suprimir o direito de preferência aos arrendatários de prédios que, por facto que lhes é alheio, não estão sujeitos ao regime de propriedade horizontal),

EE. Sob pena de se admitir uma interpretação restritiva do sentido da Lei, sem qualquer correspondência (ainda que mínima) como o elemento literal da Lei, ou com os objetivos que o direito de preferência pretende prosseguir, sendo ainda suscetível de violar o Princípio da Igualdade consagrado no artigo 13.º, da CRP, ao discriminar negativa e injustificadamente os arrendatários de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, ainda que o seu contrato seja considerado para todos os efeitos como válido por relação à parte passível de ser autonomizada.

FF. Nestes termos, e ao contrário do preconizado pelo Venerando Tribunal a quo, a interpretação que se “afigura mais correta” é a de que o arrendatário de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, continua a ter, perante o disposto no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, direito de preferência na venda ou dação em pagamento do “prédio”.

GG. Ainda que assim não se entenda – o que não se concede – o direito legal de preferência do Recorrente deve ser reconhecido em função da correta interpretação e aplicação do disposto no n.º 2, do artigo 59.º, do NRAU, já que antes da entrada em vigor deste a doutrina e jurisprudência maioritárias perfilhavam o entendimento de que o arrendatário de parte indivisa era titular de direito de preferência sobre a totalidade do prédio,

HH. Não tendo cabimento a interpretação restritiva levada a cabo pelo Venerando Tribunal a quo no sentido de aquele preceito apenas visar salvaguardar os arrendatários de todo um prédio urbano ou de uma fração autónoma, que à data da entrada em vigor do NRAU já tivessem completado 1 (um) ano de arrendamento.

II. A interpretação que se “afigura mais correta” é a de que a aplicação daquela alínea a), do n.º 1, do artigo 1091.º, do Código Civil, não pode determinar a perda do direito de preferência por parte do arrendatário que dele seja titular aquando da entrada em vigor da presente Lei, e isto independentemente daquele direito derivar ou não do decurso de 1 (um) ano de contrato antes da entrada em vigor do NRAU, e de ter como titular ou não um arrendatário de todo o prédio ou de fração autónoma,

JJ. Sob pena, uma vez mais, de injustificada restrição ao sentido da Lei, sem qualquer correspondência (ainda que mínima) como seu sentido literal, e em uma clara violação do Princípio da Igualdade consagrado no artigo 13.º, da CRP.

KK. Em face do exposto, deve o Acórdão sob revista ser revogado e substituído por outro que reconheça que o Recorrente na qualidade de arrendatário de parte indivisa do prédio encontra(va)-se investido no direito potestativo de exigir que, por decisão judicial, fosse constituído o seu direito de propriedade sobre o imóvel objecto da preferência, com a consequente procedência da presente Ação, nos termos e com os fundamentos supra expostos, conhecidos que sejam os demais Erros de Julgamento prejudicados no seu conhecimento em função da decisão proferida no Acórdão sob revista.

Termos em que,

Deve o presente Recurso de Revista ser admitido e julgado procedente, por provado, e, em consequência,

Deve o Acórdão sob revista ser revogado e substituído por outro que conheça dos demais direitos legais de preferência invocados pelo Recorrente, decidindo que em face da existência de qualquer um o Recorrente encontra(va)-se investido no direito potestativo de exigir que, por decisão judicial, fosse constituído o seu direito de propriedade sobre o imóvel objecto da preferência, com a consequente procedência da presente Ação, nos termos e com os fundamentos supra expostos, conhecidos que sejam os demais Erros de Julgamento prejudicados no seu conhecimento em função da decisão proferida no Acórdão sob revista;

Ou caso assim não se entenda,

Deve Acórdão sob revista ser revogado e substituído por decisão que reconheça que o Recorrente na qualidade de arrendatário de parte indivisa do prédio encontra(va)-se investido no direito potestativo de exigir que, por decisão judicial, fosse constituído o seu direito de propriedade sobre o imóvel objecto da preferência, com a consequente procedência da presente Ação, nos termos e com os fundamentos supra expostos, conhecidos que sejam os demais Erros de Julgamento prejudicados no seu conhecimento em função da decisão proferida no Acórdão sob revista».

Contra-alegaram os 1ºs RR. e a R. LEGESPA, pugnando pela improcedência do recurso.

 

Em despacho proferido pelo relator, foi decidido que se conheceria, a título de revista “normal”, da matéria relativa à “alteração da causa de pedir”, ou em conjunto com a restante matéria, se a revista excepcional fosse admitida pela Formação, ou isoladamente, caso a Formação não admitisse a revista excepcional.

A Formação admitiu a revista, por entender que se verificava contradição entre o acórdão recorrido e o Ac. da Rel. de Coimbra de 23-06-2015, Rel. Carlos Moreira, Proc. 1275/12.8TBCBR.C1.


*

Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, importará, neste caso, verificar se, diversamente do decidido pelo Tribunal recorrido, que entendeu estar-se perante uma alteração da causa de pedir não consentida por lei, estavam reunidos os requisitos legais para o conhecimento dos fundamentos de preferência invocados na resposta apresentada pelo A. e, de qualquer modo, assim não se entendendo, se ao Recorrente, como arrendatário da parte indivisa do prédio em apreço, deveria ter sido reconhecido o direito de preferência quanto à totalidade desse prédio.


II

No acórdão recorrido tomaram-se em consideração os seguintes factos:

«1 - O Autor é arrendatário do primeiro andar e sótão com entrada pelo n.º ... da Praça ..., que é parte do prédio urbano composto por casa de habitação de rés do chão com seis divisões e primeiro andar com catorze divisões e terraço, sito na Rua ..., na Praça ... e Rua ..., em ..., União de Freguesias ..., inscrito na matriz predial desta freguesia sob o artigo ...90, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o numero ...2 - ..., desde 26/02/1964. (arts. 22.º da petição inicial e art. 22.º da contestação)

2 - Na cláusula sétima do contrato de arrendamento, de que existe cópia a fls. 46-50 consta o seguinte:

“No caso de convir aos senhorios a venda do prédio, será concedido à arrendatária o direito de preferência em igualdade de circunstâncias.” (artº 37º da contestação)

3 - Em 26/04/2018, os Primeiros Réus dirigiram uma carta à Câmara Municipal ..., de que existe cópia a fls. 52-53, na qual vieram informar como se segue:

“Serve a presente para, nos termos do artigo 416.º do C. Civil, vos dar conhecimento, na qualidade de arrendatários do prédio urbano composto por casa de habitação de rés do chão com seis divisões e primeiro andar com catorze divisões e terraço, sito na Rua ..., com os números ... de polícia, na Praça ..., números ... de polícia e Rua ..., União de Freguesias ... (... e ...), concelho ..., inscrito na matriz predial desta freguesia sob o artigo ...90, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o numero sessenta e dois- Freguesia ..., de que é nossa intenção, na qualidade de comproprietários do mesmo, proceder à venda do mesmo, pelo preço global de quinhentos e cinquenta mil euros, correspondente a:

a) € 40.000,00 – quarenta mil euros pagos no ato de outorga de contrato de promessa de compra e venda;

b) € 510.000,00 – quinhentos e dez mil euros, a pagar por cheque bancário, no ato da outorga da escritura pública.

Ao valor acordado acresce o montante de € 8.130,08 – oito mil e trinta euros e oito cêntimos – acrescidos de IVA à taxa legal em vigor, a pagar a título de comissão pela mediação da venda do imóvel à sociedade P... Unipessoal, Lda.

A venda será realizada, livre de ónus ou encargos, e terá lugar no prazo de cinco dias após o “terminus” do prazo previsto para o exercício do direito de preferência.

Nesse sentido, sendo V. Exas titulares do direito de preferência na compra ou dação em pagamento do prédio objeto do contrato de arrendamento, deverão, querendo, exercer o vosso direito no prazo de 8 dias, sob pena de caducidade.” (artº 24º da petição inicial)

4 - Em 03/05/2018, a Exma. Sra. Presidente da Câmara Municipal ... remeteu ofício, de que existe cópia a fls. 58, na qual consta:

“Na sequência da notificação recebida nesta câmara municipal por parte dos proprietários do prédio (…), “dando conta do projeto de venda do referido imóvel pelo valor global de 550.000,00 €, do qual o Município de Tomar é arrendatário, vem o mesmo pelo presente informar que pretende preferir na venda pelo valor global supra indicado.

(…)

Cumpre-nos alertar para o facto de o projeto de venda não ser, quanto a nós, completamente claro, nomeadamente quanto à data de realização da venda, isto é, da celebração da escritura de compra e venda, sendo que a mesma não poderá ser realizada, nos termos indicados, ou seja, livre de ónus ou encargos, pelo menos até ao dia 31 de Julho de 2018, na medida em que até essa data incide sobre o referido prédio, pelo menos, o ónus do contrato de arrendamento, que entre nós vigora.

Importa também referir que a indicação do acréscimo do montante de 8.130,08€, para pagamento da comissão pela mediação da venda, é da responsabilidade de quem contratou o serviço, o vendedor, que certamente terá celebrado um contrato de mediação imobiliária com a sociedade referida, não podendo imputar a um terceiro um cumprimento de uma obrigação que é sua. Assim, consideramos que a referência a tal acréscimo de valor não poderá considerar-se incluída no projeto de venda.” (arts. 25º e 26º da petição inicial)

5 - Em 09/05/2018, os Primeiros Réus, notificados da missiva de 03/05/2018, remeteram Carta ao Município de Tomar a carta de que existe cópia a fls. 60-61, nos termos da qual vieram responder o seguinte:

“Registamos, no que ao conteúdo desta missiva diz respeito, a vossa pretensão em “preferir na venda pelo valor global supra indicado”.

Contudo, e relativamente ao demais apraz-nos informar V. Exa. o seguinte:

Não se encontrando em causa a cessação do contrato de arrendamento subjacente ao direito legal de preferência do Município, neste momento, e por qualquer via, não reconhecemos como válida, para este negócio em concreto, a reclamação de quaisquer benfeitorias que tão pouco se encontram identificadas, valorizadas, e cuja licitude cumprirá sempre apreciar.

De resto, esclarecemos ainda que, salvo melhor entendimento, os contratos de arrendamento – de génese meramente obrigacional – não configuram ónus reais, para efeitos de interpretação da expressão “livre de ónus ou encargos”, facto que naturalmente é esclarecido pelo regime geral da locação nos termos do qual “o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador (…)” – cf. 1057.º do Código Civil. Encontrando-se, nesta medida, salvaguardada a posição de arrendatário do Município e Serviços Municipalizados de Água, que poderão manter, atualizar e negociar a posição de arrendatário com o adquirente do direito de propriedade.

Consideramos ainda, e em jeito de mera anotação, que se encontram devidamente esclarecidas as condições essenciais do negócio, nos termos e em cumprimento do artigo 416.º do Código Civil, afigurando-se-nos claro que sendo a venda realizada, livre de ónus ou encargos, e no prazo de cinco dias após o “terminus” do prazo previsto para o exercício do direito de preferência, a mesma terá lugar contados cinco dias após o termo do prazo para o exercício do direito legal de preferência.

Neste sentido, e não obstante estas apreciações, uma vez registada a vossa intenção de preferir no negócio, pelo valor global indicado, informamos que a escritura de compra e venda se encontra agendada para o próximo dia 11 de Maio, às 14 horas, no Cartório Notarial a cargo da Notária Dra. MM, sito na Alameda ... em ...”. (artº 28º da petição inicial)

6 - Em 11/05/2018 foi celebrada a Escritura de Compra e Venda do imóvel entre os Primeiros Réus e a 2ª R., no Cartório Notarial, sito na Alameda ... Em ..., perante a Notária MM, de que existe cópia fls. 63-71. (artº 31º da petição inicial)

7 - Na data, hora e local indicado, compareceu a Sr.ª Presidente da Câmara Municipal ..., acompanhada de membros do seu staff para efeitos de outorga da escritura pública, dotada dos poderes legais para representar o Município no ato e com poderes para autorizar o pagamento do preço, mas não lhe foi consentida a outorga de escritura pelos Primeiros Réus, na presença dos representantes da Alienante e da Sr.ª Notária MM. (artº 32º da petição inicial)

8 - Na escritura de compra e venda, de que existe cópia fls. 63-71, consta o seguinte:

(…)

“Que, pela presente escritura e pelo preço de 550.000,00 €, que declaram para si e para os seus representados, já ter recebido e de que dão a devida quitação, vendem à sociedade representada pela sétima outorgante, livre de ónus ou encargos, o prédio.

(…)

Declararam ainda os outorgantes que este ato teve a intervenção da mediadora imobiliária P... Unipessoal, Lda., portadora da licença AMI ...63, tendo sido advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de desobediência previsto no artigo 348º do Código Penal se, perante oficial público, tiverem prestado falsas declarações, tendo os outorgantes declarado que foi pago a título de comissão imobiliária, o valor de 17.059,98 €, pagos pelos vendedores e o valor de 10.000,02 pago pela sociedade compradora.

Que o preço atrás referido de € 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil euros) foi pago da seguinte forma:

a) A título de sinal no dia 09/04/2018, a quantia de quarenta mil euros, por cheque com o número ...69 sacado sobre o Banco ....;

b) Na presente data, os restantes quinhentos e dez mil euros, através de cheque bancário com o número ...23, sacado sobre o Banco ...., nada mais terá de ser pago pela sociedade representada da sétima outorgante aos vendedores.

(…)

Depois de estes me terem declarado expressamente que mesmo depois de ter comparecido hoje neste cartório a Câmara Municipal ..., representada pela sua presidente de Câmara, como titular do direito de preferência na presente alienação em virtude de serem um dos arrendatários do identificado imóvel, e de terem referido a intenção da referida entidade querer exercer o direito de preferência, só não o exercendo hoje por não estar em condições de o fazer, nomeadamente, não trazendo os meios de pagamento para pagar o referido preço, os aqui outorgantes pretendem celebrar na mesma esta escritura, advertindo-os eu notária e tendo também eles conhecimento que esta escritura poderá vir a ser impugnada. (…)” (artºs 35º e 38º da petição inicial e artºs. 76º e 77º da contestação).»


III

III.1.

O Recorrente defende que o acórdão recorrido revela uma errada interpretação e aplicação do regime da “alteração da causa de pedir” (n.º 1, do art. 265.º, do CPC) ao presente caso e ao decidir não ser de conhecer dos direitos legais de preferência invocados pelo Recorrente, já que o conhecimento de tais factos era permitido ao abrigo do poder de cognição e gestão processual do Juiz (cf. artigo 5.º e 6.º, do CPC), por se tratar, não só de factos essenciais à procedência da pretensão formulada, como de factos notórios, que foram invocados na sequência da instrução e discussão da causa, tendo o Recorrente manifestado a vontade de se aproveitar desses factos, e tendo sido facultado aos Recorridos o exercício do contraditório.

Acrescenta que, ao contrário do preconizado no Acórdão sob revista, carreou para os autos factos essenciais que lhe conferiam um direito legal de preferência e juntou a respetiva prova, tendo aquela sido notificada aos Recorridos e ficado na disponibilidade do Tribunal de 1.ª instância, não tendo a mesma sido desentranhada e/ou objecto de qualquer decisão sobre o seu teor ou alcance e/ou pronúncia ou oposição por parte dos Recorridos.

O Tribunal da Relação emitiu pronúncia sobre esta matéria, conforme se deixou ilustrado com uma passagem do acórdão recorrido sobre esta questão.

O Tribunal a quo considerou que os invocados direitos de preferência, para além de contenderem com a natureza pública do Recorrente e com relações de índole administrativa, foram suscitados apenas na resposta apresentada pelo A. às exceções deduzidas pelos RR., não o tendo sido na petição inicial (onde apenas fez assentar a sua preferência na qualidade de arrendatário), nem nela foram carreados factos atinentes ao imóvel, à respetiva localização e situação jurídica, de modo a aferir a subsunção do caso aos diversos regimes jurídicos invocados. Entendeu, assim, que se configura uma alteração da causa de pedir que é inadmissível à luz do disposto no art. 265.º do CPC, razão por que não apreciou esses direitos.

Para o Recorrente, o acórdão impugnado padece de erro de julgamento porquanto os ditos direitos legais de preferência deveriam ter sido conhecidos, pois, para além de ter cumprido o ónus de alegação, resulta como notório o facto de o prédio se situar no núcleo histórico da cidade de Tomar (Declaração n.º 76/99, publicada em Diário da República, 2.ª Série, n.º 53, de 5 de Março, e Documento n.º 2, junto ao requerimento de 15.09.2019), como também, por esse motivo, o prédio seja integrado na área de reabilitação urbana da cidade de Tomar (Aviso n.º 11995/2014, publicado em Diário da República n.º 2070/2014, Série II, de 27 de Outubro de 2014 e Documento n.º 3, junto à pronúncia de 11.09.2019) e numa zona de protecção especial e geral de protecção urbana, sujeita a restrições adequadas em função da protecção e valorização dos bens imóveis classificados em causa, como o são a Igreja de São João Baptista e o Edifício dos Paços do Concelho (Documento n.º 5, junto à pronúncia de 11.09.2019, disponível no sítio da internet do Atlas do Património Classificado e em vias de Classificação – www.geo.patrimoniocultural.pt).

Deve, em sua opinião, o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que conheça desses direitos, decidindo-se que o Recorrente se encontra investido no direito potestativo de exigir que, por decisão judicial, seja constituído o seu direito de propriedade sobre o imóvel objecto da preferência, com a consequente procedência da presente acção.

Dispõe o art. 265º, nº1, do CPC:

«Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.»

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre explicam que, com a redução da função da réplica à de articulado reconvencional (art. 584º-1[1]), «o novo código suprimiu a possibilidade de nela o autor ampliar (acrescentando-lhe outra)  ou alterar (substituindo-a por outra) a causa de pedir primitiva (…). A proposição de segunda ação com novo pedido, ou com o mesmo pedido baseado em outra causa de pedir, e o subsequente requerimento da apensação de ambas (…) é meio que o autor tem ao seu alcance para conseguir resultado aproximado àquele que o novo código lhe nega.» (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2021, p. 527).

Invoca o Recorrente o poder de cognição e gestão processual do juiz (arts. 5.º e 6.º do CPC).

Na petição inicial, o A. alegou que celebrou com os 1ºs RR. (identificados de 1 a 12), em 26.02.1964, um contrato de arrendamento do prédio urbano, sito na Rua ..., ..., com os mais elementos identificativos que aqui se têm por reproduzidos, sendo, pois, arrendatário desse prédio urbano há mais de 50 anos.

É com base nessa qualidade de arrendatário que considera assistir-lhe o direito de preferência na venda do imóvel em apreço, estribando-se no disposto no art. 1091º do C. Civil.

Na sequência de notificação para esse efeito, o A. pronunciou-se sobre a matéria exceptiva articulada pelos RR..

Depois de defender a existência de direito legal de preferência decorrente da sua condição de arrendatário, invocou, para o caso de assim não se entender, outros fundamentos que entende também consubstanciarem o direito de preferência.

Assim, alegou, em resumo, que:

O espaço urbano da cidade de Tomar é composto pela área do núcleo histórico, pelas áreas urbanas consolidadas e pelas áreas urbanas a consolidar, e o imóvel em questão encontra-se inserido no núcleo histórico da cidade de Tomar.

O núcleo histórico da cidade de Tomar está sujeito a um plano de pormenor, ainda vigente e em processo de alteração pelo disposto no Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro.

O imóvel em causa está inserido no Plano de Pormenor do “Projecto global de conservação e recuperação do Centro Histórico de Tomar”.

Um dos instrumentos de execução dos planos é precisamente o direito de preferência, estabelecido no artigo 126.º, do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro (em cujo nº 1 se prescreve que o município tem preferência nas transmissões por título oneroso, entre particulares, de terrenos ou edifícios situados nas áreas do plano com execução programada).

Será, assim, de concluir que se encontra previsto um direito legal de preferência conferido ao Autor, nas transmissões onerosas entre particulares de terrenos ou edifícios situados nas áreas do plano com execução programada, isto é, situados no âmbito do plano de pormenor do Centro Histórico de Tomar ainda em vigor.

Refere, em seguida, que o mesmo direito de preferência também se encontra previsto no artigo 29.º, da Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio, Lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, no qual se dispõe que:

“O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais têm o direito de exercer, nos termos legalmente previstos, o direito de preferência nas transmissões onerosas de prédios entre particulares, tendo em vista a prossecução de objetivos de política pública de solos para as finalidades seguintes:

a) Execução dos programas e planos territoriais;

b) Reabilitação e regeneração de áreas territoriais rústicas e urbanas;

c) Reestruturação de prédios rústicos e urbanos;

d) Preservação e valorização do património natural, cultural e paisagístico.

e) Prevenção e redução de riscos coletivos.”

Apoia-se, igualmente, no Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de Outubro – Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, designadamente nos seus arts. 54º e 58º.

Anota que a área de reabilitação urbana se encontra devidamente delimitada, pelo que não subsistem quaisquer dúvidas de que o imóvel em causa está inserido na referida área.

Invoca também  a Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, relativamente às  transmissões a título oneroso para os imóveis  classificados ou em vias de classificação ou imóveis localizados nas respectivas zonas de protecção, fazendo menção a imóveis classificados e explicitando que o imóvel sub judice está situado numa área de sobreposição de zonas de protecção, isto é, numa zona especial de protecção atribuída, sem quaisquer restrições, à Igreja de São João Baptista e numa zona geral de protecção atribuída ao Edifício dos Paços do Concelho.

Conclui que, pelo facto de o bem imóvel estar situado sobre uma zona especial e geral de protecção, é conferido ao Autor um direito legal de preferência nos termos do disposto na mencionada Lei n.º 107/2001, de 08 de Setembro.

Defende, tendo em conta o disposto no art. 37º da Lei nº 107/2001, que os 1.ºs Réus deveriam ter efectuado a comunicação ao Estado e ao Município para o exercício do direito legal de preferência, nos termos do disposto no artigo 416.º, do Código Civil.

Vejamos.

A causa de pedir, in casu, assenta na qualidade de arrendatário do A., definida pelos limites e termos do contrato de arrendamento, em associação com o alegado incumprimento da obrigação de preferência desse contrato resultante (art. 581º, nº4, do CPC).

O A. fez radicar o seu direito de preferência na relação de arrendamento. Ora, o que veio invocar na resposta à defesa por excepção dos RR. não tem a ver com essa causa de pedir, mas, como se diz no acórdão recorrido, com a natureza pública do Recorrente e com relações de índole administrativa, sendo que os factos respectivos não foram alegados na petição inicial.

Na verdade, é na petição inicial que devem ser expostos os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção (art. 552º, nº1, al. d), do CPC) e a alteração ou ampliação da causa de pedir tem, no código actual, os limites referidos.

De acordo com a teoria da substanciação, devem ser alegados os factos concretos constitutivos do direito que se pretende fazer valer (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 605). Não é a mera invocação do direito de preferência que identifica a causa de pedir, mas os factos que permitam consubstanciar essa causa de pedir, o que importa, designadamente, para a definição do caso julgado.

O Recorrente traz à colação o disposto nos arts. 5º e 6º do CPC.

De acordo com o nº 1 do art. 5º, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.

No nº2, vem previsto o seguinte:

«2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;

c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.»

Conforme referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no Código de Processo Civil Anotado,  4ª ed. (reimpessão), Almedina, Coimbra, 2021, p. 37:

 «O juiz não pode considerar, na decisão, factos principais diversos dos alegados pelas partes (em articulado ou em resultado da instrução da causa). Por muito que suspeite da sua verificação ou que deles tenha até conhecimento, o juiz não pode, em regra, deles servir-se.»

No que se refere aos factos instrumentais, explicam o seguinte (ibid.):

«[…] para chegar à conclusão sobre a realidade dos factos principais, o tribunal, exceto, por vezes, na prova por inspeção, lança mão de regras da experiência que estabelecem a ligação entre eles e os factos (probatórios) com os quais é diretamente confrontado, tidos em conta factos (acessórios) que permitem a aferição concreta dessa ligação. Estes factos (probatórios e acessórios) são factos instrumentais, que como tais não têm de ser alegados pelas partes nem de ser incluídos na base instrutória, podendo surgir no decurso da instrução da causa, O juiz tem, portanto, de os considerar, independentemente da alegação das partes».

No que tange aos factos complementares ou concretizadores, estaremos perante factos que, patenteados na instrução da causa, tenham o carácter integrativo ou complementar relativamente a uma causa de pedir «individualizada, mediante alegação fáctica suficiente para o efeito (diverso é o caso da ineptidão da petição inicial por falta total de factos que integrem a causa de pedir: art. 186-2-a), mas não completa, por não terem sido alegados todos os factos necessários à integração da previsão normativa. Qualquer destes factos integradores da previsão da norma pode surgir em ato de instrução, sendo todos eles entre si permutáveis no papel de complementares: o facto só é complementar por não ter sido inicialmente alegado, não tendo natureza diversa dos que as partes alegaram nos articulados» (op. cit., p. 39).

A instrumentalidade e a complementaridade dos factos devem ter por referência os que foram inicialmente alegados na petição inicial, reportados à causa de pedir definida na petição.

Os fundamentos que o Autor alegou na dita resposta não são, salvo o devido respeito, o desenvolvimento do que se alegou na petição inicial, constituindo matéria nova. Daí que não possa deixar-se de ter em conta o disposto no art. 265º do CPC.

Como advertem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, na obra citada, p. 299:

«A restrição da réplica aos casos previstos no art. 584º (reconvenção e ações de simples apreciação negativa) em conjugação com as fortes limitações impostas à modificação do objeto da instância (causa de pedir e pedido), torna mais exigente para o autor a tarefa de elaboração da petição inicial, inviabiliza estratégias erráticas e obriga a uma definição séria dos contornos do litígio centrada na alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir (art. 5º, nº 1), sendo certo que a resposta a um eventual convite ao aperfeiçoamento deve deixar intacta a causa de pedir que foi invocada (art. 590º, nº 6).»

No Ac. da Rel. do Porto de 15-09-2014, Rel. Manuel Domingos Fernandes, Proc. 3596/12.0TJVNF.P1, publicado em www.dgsi.pt e invocado pelo Recorrente, refere-se, entre o mais, que:

«I – Tal como já acontecia no anterior CPCivil, também na actual lei processual podem na decisão, para além dos factos essenciais, que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, alegados pela partes, ser considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

II – A grande diferença em relação ao anterior Código de Processo Civil é que a consideração dos factos essenciais que sejam complemento ou concretização dos alegados não depende já de requerimento da parte interessada, isto é, a sua consideração pode ser oficiosa.»

Na fundamentação deste aresto, fazendo-se a afirmação de que podem ser considerados os factos a que se refere o art. 5º, nº2, do CPC (ou seja, o que resulta da lei), não se deixa de dizer que:

«(…) o juiz só pode considerar factos instrumentais e, quanto aos factos essenciais, aqueles que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado. E isto é assim porque mesmo no novo Código de Processo Civil o objecto do processo continua a ser delimitado pela causa de pedir eleita pela parte [artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), 581.º e 615.º, n.º 1, alínea d), segunda parte] e subsistem ainda as limitações à alteração dessa causa de pedir (artigos 260.º, 264.º, 265.º).»

Como se vê, o Tribunal da Relação chama a atenção para a necessidade de se ter em conta a causa de pedir definida na petição e que condiciona a consideração dos factos que possam surgir no processo, com as limitações que há em relação à alteração dessa causa de pedir.

O Ac. da Rel. do Porto de 09-03-2020, Rel. Nelson Fernandes, Proc. 6793/18.1T8PRT.P1, em www.dgsi.pt, considera que:

 «[n]ão se assume como questão nova a consideração pelo tribunal, se essa resultar da discussão da causa, de uma realidade factual que, embora não totalmente coincidente com a que foi carreada para os autos na petição inicial, esteja ainda assim nessa contida, em termos que permitisse aos réus apresentar a respetiva defesa.»

O Tribunal entendeu, pois, que a realidade factual resultante da discussão da causa é susceptível de ser considerada desde que, mesmo não sendo totalmente coincidente, esteja, ainda assim, contida na que foi carreada para os autos na petição inicial.

No Ac. da Rel. de Coimbra de 23-02-2016, Rel. António Carvalhinho Martins, Proc. 2316/12.4TBPBL.C1, em www.dgsi.pt, também se vincou que (com destaque nosso a negrito):

«1.- Os factos complementares ou concretizadores são aqueles que especificam e densificam os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor - a causa de pedir - ou do reconvinte ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, e, nessa qualidade, são decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção.

(…)

5. Os factos essenciais, a que se refere o art. 5º nCPC, têm necessariamente de ser complementares ou concretizantes de outros factos essenciais oportunamente alegados em fundamento do pedido ou da excepção.

6. Essa complementaridade ou concretização tem de ser aferida pela factualidade alegada na petição inicial, isto é, pela causa de pedir invocada pelo autor, ou pela factualidade que fundamenta a excepção invocada na contestação.»

Há, em todos estes acórdãos, o reconhecimento de que tem de se ter como base a causa de pedir oportunamente definida, sem prejuízo, naturalmente, da sua alteração nos estritos limites da lei e já se viu que, in casu, não estão preenchidos os requisitos dessa alteração.

É de concluir, assim, que não há oposição entre esses acórdãos e aquele que aqui está em análise.

Assiste, pois razão ao Tribunal recorrido ao entender que o art. 265º do CPC não consente a alteração da causa de pedir constante da resposta em apreço.

O Autor afirma que estamos perante factos notórios: o facto de o prédio se situar no núcleo histórico da cidade de Tomar (Declaração n.º 76/99, publicada em Diário da República, 2.ª Série, n.º 53, de 5 de Março, e Documento n.º 2, junto ao requerimento de 15.09.2019), como também, por esse motivo, o prédio estar integrado na área de reabilitação urbana da cidade de Tomar (Aviso n.º 11995/2014, publicado em Diário da República n.º 2070/2014, Série II, de 27 de Outubro de 2014 e Documento n.º 3, junto à pronúncia de 11.09.2019) e numa zona de protecção especial e geral de protecção urbana, sujeita a restrições adequadas em função da protecção e valorização dos bens imóveis classificados em causa, como o são a Igreja de São João Baptista e o Edifício dos Paços do Concelho (Documento n.º 5, junto à pronúncia de 11.09.2019, disponível no sítio da internet do Atlas do Património Classificado e em vias de Classificação – www.geo.patrimoniocultural.pt).

Preceitua o art. 412º, nº1, do CPC que não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.

Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa explicam, em anotação ao art. 412º, que:

«A exigência do conhecimento geral atua em vários âmbitos: na esfera pessoal, o facto notório tem de constar como certo ou falso para a generalidade de pessoas de cultura média, entre as quais se encontra o juiz; na esfera cognoscitiva, no sentido de que tal conhecimento deve integrar a cultura média, não integrando apenas um saber especializado; na esfera espacial, no sen­tido de que tal facto deve ser conhecido no território a que respeita.»

(Op. cit., p. 413)

Manuel de Andrade, em Noções Elementares do Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 196, ensina sobre os factos notórios (notoriedade geral) que:

«São os fac­tos geralmente conhecidos («do conhecimento geral» diz a lei) num círculo mais ou menos amplo (art. 514.°, n.º 1) (…). O seu conhecimento faz parte do saber privado ou cultura geral do juiz. Quanto a saber qual o círculo de pessoas que deve tomar-se em conta para este efeito, o Prof. ALBERTO DOS REIS ensina que são notórios os factos geralmente conhecidos, em Portugal (não apenas na respectiva circunscrição judicial), pelas pessoas regularmente informadas, isto é, «acessíveis aos meios normais de informação».

Paulo Pimenta refere, na mesma linha, que os factos notórios são do conhecimento geral, são os «factos conhecidos ou susceptíveis de conhecimento pela generalidade das pessoas de um círculo mais ou menos alargado, aí se incluindo as partes e o juiz da causa, em termos de não haver motivos para duvidar da sua existência» (Processo Civil Declaratório, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 361-362).

Salvo o devido respeito, não consideramos que os factos em causa sejam factos notórios, pois não são factos susceptíveis de ser conhecidos por um alargado círculo de pessoas (factos do conhecimento geral, conforme resulta do citado art. 412º, nº1, do CPC). Pelo contrário, são marcados por uma especificidade que contende com um conhecimento dessa natureza, como decorre, aliás, da demonstração que o A. necessitou de levar a efeito, e sempre careceriam de ser oportunamente alegados (e não no âmbito de uma alteração/ampliação não consentida legalmente).

De qualquer modo, os factos notórios a serem tomados em conta hão-de ser sempre aqueles que interessam ao objecto do processo, definido pelo pedido e pela causa de pedir (individualizada no tempo certo).

Também não estamos perante factos de que o tribunal tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções, cujo uso implica a junção ao processo, pelo tribunal, de documento que os comprove (art. 412º, nº 2) do CPC) e com a mesma sujeição ao objecto processual.

No que toca às potencialidades do dever de gestão processual, concorda-se com Lebre de Freitas e Isabel Alexandre quando referem que tal gestão processual permanece formal e que, sendo possível o aumento de articulados para a discussão de excepções, já não será de permitir que se extravase o objecto do processo, que é definido pelas partes nos termos que a lei admite (op. cit., p. 530).

Entende-se, pelo exposto, que não há que alterar a decisão do Tribunal recorrido na parte em que entendeu que os fundamentos para o exercício do direito de preferência invocados na dita resposta não podem ser tomados em consideração nos presentes autos.

III.2.

Considera o Recorrente que o Acórdão impugnado padece de erro de julgamento na interpretação e aplicação restritiva da previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil, que não encontra correspondência legal na letra na lei, nem decorre do preâmbulo da Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro, nem da análise da sua exposição de motivos.

Continua, dizendo que a supressão na redacção daquele preceito das expressões “prédio urbano ou de sua fracção autónoma” constantes no artigo 47.º do RAU, não pode ser entendida nem para mais (no sentido de os titulares de fracção autónoma terem direito de preferência sobre a totalidade do prédio sujeito ao regime de propriedade horizontal) nem para menos (no sentido de suprimir o direito de preferência aos arrendatários de prédios que, por facto que lhes é alheio, não estão sujeitos ao regime de propriedade horizontal), sob pena de se admitir uma interpretação restritiva do sentido da Lei, sem qualquer correspondência (ainda que mínima) como o elemento literal da Lei, ou com os objetivos que o direito de preferência pretende prosseguir, sendo ainda susceptível de violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, da CRP, ao discriminar negativa e injustificadamente os arrendatários de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, ainda que o seu contrato seja considerado para todos os efeitos como válido por relação à parte passível de ser autonomizada.

Entende que a interpretação mais correcta será a de que o arrendatário de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal continua a ter, perante o disposto no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, direito de preferência na venda ou dação em pagamento do “prédio”.

Estribou-se o Recorrente no Ac. da Rel. de Coimbra de 23-06-2015, Rel. Carlos Moreira, Proc. 1275/12.8TBCBR.C1, por referência ao qual a Formação, como se disse, considerou verificar-se oposição de julgados, nele se tendo concluído que: «O arrendatário de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, continua a ter, perante o disposto no artº 1091º nº1 al. a) do CC, direito de preferência na venda ou dação em pagamento do prédio».

Conforme se exarou no Ac. do STJ de 21-01-2016, Rel. Tavares Paiva, Proc. 9065/12.1TCLRS.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt:

«Tem sido entendimento unânime do Supremo Tribunal de Justiça que a lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretizou o acto de alienação, por o direito legal de preferência não passar de uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário que, só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo.»

No mesmo sentido, podem ver-se, por exemplo, o Ac. do STJ de 12-11-2009, Rel. Sebastião Póvoas, Proc. nº 1842/04.3TVPRT.S1, o Ac. do STJ de 11-07-2019, Rel. Tomé Gomes, Proc. 3818/17.1T8VNG.G1.S2, e  o Ac. do STJ de 25-03-2021, Rel. Rosa Tching, Proc. 10307/16.0T8PRT.P2.S, todos em www.dgsi.pt.

A essa luz deve ser interpretada a norma constante do art. 59º, nº2, da Lei nº 6/2006 de 27/02 (a aplicação da alínea a) do nº 1 do art. 1091º do Código Civil não determina a perda do direito de preferência por parte de arrendatário que dele seja titular aquando da entrada em vigor da presente lei), tal como se exarou no citado Ac. STJ de 21-01-2016. Assim o entendimento ajustado é o de que «a entrada em vigor do NRAU não afasta o direito de preferência verificado em data anterior, isto é, nascido de alienação ou dação então ocorrida» (destaque nosso). Ora, no caso tratado nesse acórdão, estava-se perante contrato de arrendamento reportado a 1968 e a venda do prédio ocorreu em 2012 (isto é, após a entrada em vigor da Lei nº 6/2006) e, no caso tratado no Ac. STJ de 11-07-2019, o contrato de arrendamento era de 1975 e a venda ocorreu em 2016.  Tal como nesses casos, também aqui o acto desencadeador do direito de preferência (a venda) ocorreu sob a redacção dada pela Lei nº 6/2006 ao art. 1091º, nº1, al. a), do C. Civil, que assim deve ser aplicada, discordando-se, por isso, com todo o respeito, da interpretação defendida pelo Recorrente, tendente a uma aplicação irrestrita do regime anterior.

Dispunha o art. 1091º, nº1, a), do C. Civil, na versão introduzida pela Lei nº 6/2006, de 27-02 (vigente, como se disse, à data da alienação):

«1 - O arrendatário tem direito de preferência:

a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;

b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.

2 - O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053.º

3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º

4 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º»

No acórdão recorrido, colocou-se a questão de saber se o regime decorrente do nº1, a), deste artigo contempla os casos em que o local arrendado consista numa parte específica de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal - ou se acolhe apenas os casos em que o local arrendado constitui um prédio ou uma fracção autónoma.

O regime anterior a esse era o que constava do art. 47º do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15-10, preceito que era do seguinte teor:

«1 - O arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano.

2 - Sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.»

Dispunha o art. 49º do mesmo normativo:

«Ao direito de preferência do arrendatário é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil.»

Na discussão sobre se ao arrendatário de apenas parte de prédio urbano indiviso era lícito exercer a preferência sobre a totalidade da venda do mesmo ou se apenas o poderia fazer quando o locado coincidisse com o prédio a alienar ou respeitasse a uma fracção autónoma dele, a jurisprudência maioritária pronunciava-se no sentido de que o arrendatário urbano, naquelas condições, poderia exercer a preferência sobre a totalidade do prédio a vender.

Disso dava conta o citado Ac. do STJ de 21/01/2016 (Proc.  9065/12.1TCLRS.L1.S1), referenciando jurisprudência e doutrina a tanto atinente e explicando que:

«Os argumentos subjacentes a este entendimento eram (1) o alargamento do direito de preferência a todos os arrendamentos urbanos vinculísticos (que não apenas os destinados a comércio, indústria, profissões liberais ou habitação) e a consagração de novos direitos de preferência, designadamente a favor dos titulares de novo arrendamento e do senhorio em caso de trespasse; (2) a manutenção das designações de “prédio urbano” e “fracção autónoma”, o que implicaria que a limitação ao local arrendado apenas diria respeito aos casos de venda de prédio já constituído em propriedade horizontal; (3) a manutenção da norma que mandava proceder à licitação em caso de concurso de preferente, que ficaria sem campo de aplicação caso não se perfilhasse o entendimento de que estes poderiam preferir na totalidade do prédio; e, (4) o preâmbulo do diploma.»

No Ac. do STJ de 12-01-2012, Rel. Orlando Afonso, Proc. 72/2001.L1.S1, www.dgsi.pt, já se concluíra que:

«V - Nem do preâmbulo do DL n.º 321-A/90, de 15-10, nem dos trabalhos preparatórios do mesmo se pode retirar ter sido intenção do legislador afastar o direito de preferência do locatário habitacional na compra e venda de todo o imóvel não constituído em regime de propriedade horizontal; pode impressionar o facto de o legislador ter utilizado a expressão «local arrendado», só que tal expressão não é sinónimo de andar arrendado, mas de todo o imóvel onde o arrendamento se situa.

VI - Se o legislador tinha intenção de restringir a preferência aos casos de compra e venda de prédio constituído em propriedade horizontal devia tê-lo dito no art. 47.º do RAU; não o tendo feito não pode a interpretação restringir com base em expressões de alcance dúbio (favorabilia amplianda, odiosa restringenda).

VII -Assim, o direito de preferência existe para a fracção autónoma arrendada, no caso de o prédio estar constituído em propriedade horizontal, ou para todo o imóvel se este não estiver legalmente parcelado a preferência não pode incidir, apenas sobre a parte arrendada, não sendo de interpretar restritivamente o art. 47.º, n.º 1, do RAU.»

No Ac. do STJ de 18-10-2018, Rel. Abrantes Geraldes, Proc. nº 3131/16.1T8LSB.L1.S1, em www.dgsi.pt, também se sintetizaram os fundamentos dessa posição, fazendo menção à jurisprudência maioritária do STJ como, no que se refere à doutrina, às «opiniões emitidas por Pires de Lima/Antunes Varela, CC anot., II vol., anot. 8 ao art. 47º do RAU, Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6ª ed. p. 314, Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3ª ed., pp. 639 e 640, Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 1ª ed., p. 247, nota 1, ou Agostinho Cardoso Guedes, O Direito de Preferência, pp. 172-208». E acrescentou        -se:

«Nos argumentos expostos era realçada a finalidade de a preferência legal concretizar a política de acesso à habitação própria ou ao espaço próprio para o exercício de atividade comercial ou industrial ou profissão liberal, encontrando esse objetivo sustentação no facto de estar consagrado um mecanismo de licitação para ser usado se acaso se apresentassem a exercer a preferência diversos interessados colocados no mesmo plano preferencial.

Não se justificando o recurso a este mecanismo nos casos em que o prédio em venda estivesse onerado com diversos contratos de arrendamento mas que incidiam sobre frações autónomas, a justificação para a previsão específica de um mecanismo de licitação apenas faria sentido quando aplicada a arrendatários de partes de prédios não constituídos em propriedade horizontal (ou seja, de arrendamentos sobre espaços não autónomos de prédios urbanos) cada um titular de direito de preferência legal relativamente à totalidade do prédio.»

Havia, contudo, uma corrente minoritária que divergia desta orientação, nela se integrando Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2.a ed.- remodelada, Almedina, Coimbra, 1991, p. 204, e Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime de Arrendamento Urbano, in ROA, ano 51.°, Tomo 1, 1991, p. 68, chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://portal.oa.pt/upl/%7B5bc8b649-00cd-4dd4-b722-d470c3fabee8%7D.pdf, aqui se referindo que:

«O direito de preferência limita-se ao local arrendado.

(…)

Em suma: perante a nova lei, ou o direito de preferência se pode exercer apenas em relação ao local arrendado, o que supõe a possibilidade de autonomização jurídica deste, ou o seu exercí­cio é impossível.»

A Lei nº 6/2006, de 17-02, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano, reintroduziu o art. 1091º do C. Civil (que fora revogado pelo DL 321-B/90), dispondo na al. a) do nº1 o seguinte (recorde-se):

«1. O arrendatário tem direito de preferência:

a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos.»

Comparando a redacção do art. 47º do RAU com a do art. 1091º, verifica-se que se deixou de fazer referência a arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma, passando a fazer-se menção a local arrendado há mais de três anos.

Foi, por outro lado, eliminado o nº2 do art. 47º (no qual se dispunha que sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante).

No mencionado Ac. do STJ de 18-10-2018 (Proc.   3131/16), vinca-se que «a determinação legal do objeto da preferência fixou-se (…) no “local arrendado”, abandonando-se a referência ao “prédio urbano” ou a “sua fração autónoma” e, mais ainda, desaparecendo a norma que resolvia o litígio decorrente da frequente concorrência, na preferência, entre arrendatários de partes não autónomas de prédio não constituído em propriedade horizontal».

Considera-se, neste aresto, que (com destaque nosso a negrito):

«(…) o sentido a extrair do disposto no art. 1091º, nº 1, do CC (…) é o de que o direito de preferência do arrendatário está limitado ao local arrendado, objeto do contrato de arrendamento, se se tratar de bem jurídico autónomo; caso o prédio vendido não tenha sido constituído em propriedade horizontal, o arrendatário de parte dele, sem autonomia jurídica, não tem direito de preferência nem sobre essa parte (sem autonomia jurídica), nem sobre a totalidade do prédio, em caso de venda ou dação em cumprimento deste último.

O direcionamento da preferência para a alienação do “local arrendado” (elemento gramatical) e a simultânea eliminação da regra cuja aplicabilidade pressupunha a concorrência da preferência de arrendatários de partes não autónomas de prédio não constituído em propriedade horizontal, levaram a maioria da doutrina e a jurisprudência mais recente a considerar que o legislador pretendeu restringir o direito de preferência a titulares de arrendamentos cujo objeto coincidisse com o da alienação.

O facto de o obrigado à preferência, no caso de venda de diversos prédios ou de frações autónomas, ter de se sujeitar ao mecanismo do art. 417º do CC, que permite definir um valor para o prédio ou fração que esteja arrendada não contraria o que se disse anteriormente.

O legislador manteve a solução tradicional, que, em virtude da natureza dos bens alvo da preferência e da transação acordada (coisas juridicamente autónomas), dá ao obrigado à preferência e ao preferente a possibilidade de modelarem o exercício da preferência. Já a eliminação do preceito que regulava a (frequente) concorrência na preferência entre arrendatários de partes diversas de prédio não submetido à propriedade horizontal, significa que, para o legislador, desapareceu o problema que estava vocacionado para resolver.»

Chama-se a atenção, neste acórdão, para os “reforços” que tal solução encontra no plano legislativo, referindo-se que:

- «O NRAU «teve como precedente legislativo mais imediato a Proposta de Lei n.º 140/IX (“Ante-projecto de decreto-lei autorizado que aprova o regime dos novos arrendamentos urbanos”, no DAR, II série A, n.º 5/IX/3, suplemento de 30-9-04), o qual continha um preceito que pretendia eliminar pura e simplesmente o direito de preferência dos arrendatários na alienação dos prédios arrendados», tendo em conta “uma velha aspiração destinada a libertar a riqueza imobiliária, permitindo a transparência requerida pela efetividade de um mercado.”;

- No art. 7º, nº 3, da Lei nº 42/17, de 14-6,  estabeleceu-se que “os arrendatários de imóvel em que esteja situado estabelecimento ou entidade reconhecidos como de interesse histórico e cultural ou social local gozam de direito de preferência nas transmissões onerosas de imóveis, ou partes de imóveis, nos quais se encontrem instalados, nos termos da legislação em vigor”, deixando-se «bem evidente a necessidade que foi sentida de assegurar uma tutela específica para os arrendamentos que apresentam as especificidades previstas na citada norma, diferenciando-a da tutela geral que é alcançada pelo regime do direito legal de preferência regulado no art. 1091º do CC», procurando o legislador com tal medida «prosseguir o objetivo de tutelar especificamente as chamadas “lojas históricas” que naturalmente, na maior parte dos casos, estão instaladas em edifícios situados nos grandes centros urbanos sobre os quais ainda não incide ou não pode incidir (por falta dos requisitos legais mínimos) o regime da propriedade horizontal».

 

E, no Ac. do STJ de 11-07-2019 (Proc. 3818/17), fez-se referência, na mesma linha, à medida adoptada na Lei nº 64/2018, de 29-10, em vigor desde 30/10/2018, que deu nova redacção ao art. 1091º do C. Civil, nele se passando a prever, designadamente que:

«1 - O arrendatário tem direito de preferência:

a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes;

b) (…)

8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:

a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;

b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;

c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.

9 - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.»

Conforme se exarou nesse Ac. do STJ de 11-07-2019 (com destaque nosso a negrito):

«A medida legislativa assim adotada confere ao arrendatário habitacional de parte específica de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal o direito de preferência legal na transmissão do prédio, mas só na proporção do valor da parte arrendada em relação ao valor total da transmissão, ficando-lhe afetado o uso exclusivo dessa parte. Não é portanto atribuído ao arrendatário, nestas condições, o direito de preferência sobre a totalidade do prédio em alienação.

Só no caso de existirem vários arrendatários do prédio não constituído em propriedade horizontal é que se permite, no n.º 9, que eles exercem os seus direitos de preferência em conjunto sobre a totalidade do prédio

Registe-se que, no Ac. do Tribunal Constitucional nº 229/2020, Diário da República n.º 183/2020, Série I de 2020-09-18, se declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro.

Entendeu-se que a norma em apreço limitava desproporcionalmente o direito de propriedade privada do senhorio, tendo-se concluído que:

«(…) o regime especial de preferência contido no n.º 8 do artigo 1091.º sacrifica excessivamente o direito à livre transmissibilidade do prédio, sem satisfazer o objetivo da estabilidade habitacional. Como vimos, para o proprietário-senhorio, o exercício do direito de preferência traduz-se num duplo limite à livre disponibilidade do bem: está impedido de alienar a totalidade do prédio e, se o arrendatário declarar preferir, está obrigado a vender uma quota ideal do mesmo; e para os demais consortes, tem o efeito de impedir o uso de parte da coisa comum, enquanto não se proceder à divisão ou venda do prédio. Por sua vez, o arrendatário converte-se em comproprietário, sem ter a certeza sobre a possibilidade da coisa comum se dividir em substância, por se verificarem os requisitos da propriedade horizontal, e sem ter quaisquer garantias de que não ação de divisão de coisa comum o local arrendado lhe poderá ser adjudicado.

Significa isto que o resultado obtido não é proporcional à carga coativa que a norma comporta. A preferência causa prejuízos consideráveis ao proprietário e posteriormente aos consortes: não é concedida em condições de igualdade com outrem; sujeita o proprietário a alienar parte alíquota do prédio contra a sua vontade; priva os demais consortes da utilização direta ou aproveitamento imediato de parte da coisa comum. Ou seja, a preferência prevista no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil acaba por desvalorizar a propriedade a que está ligada muito para além do que normalmente ocorre nas demais preferências legais, que apenas limitam a liberdade de escolha do contraente, e por diminuir o uso ou aproveitamento que os demais consortes poderiam ter e retirar da propriedade comum. Ora, estes entraves colocados ao proprietário e aos comproprietários no interesse do arrendatário são excessivos, desrazoáveis e gravosos, na medida em que também se constata que a preferência não permite alcançar os objetivos que estão na base da mesma. Com efeito, o exercício desse direito não permite o acesso imediato à propriedade plena do local arrendado, nem a compropriedade garante a estabilidade na habitação.

Trata-se, pois, de uma intervenção legislativa que, nos seus efeitos restritivos ou lesivos, não se encontra numa relação proporcional ou razoável – de justa medida – com os fins prosseguidos. A ponderação entre a intensidade da intervenção e o peso da sua justificação, o interesse da estabilidade na habitação, tem como resultado que a preferência numa quota-parte do prédio, correspondente ao locado, ultrapassa os limites impostos pela proporcionalidade à determinação do conteúdo e limites do direito de propriedade. Assim, a intervenção na propriedade excede a medida constitucionalmente adequada da vinculação social.

Por tudo o que se conclui que a norma sub juditio, ao limitar desproporcionalmente o direito de propriedade privada do senhorio, viola o disposto no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição.»

No Ac. do STJ de 11-07-2019, tendo em conta o exemplo da dita alteração legislativa (com esta declaração de inconstitucionalidade, que é posterior à prolação desse acórdão, a reforçar, a nosso ver, os seus argumentos), bem como o das “lojas históricas”, concluiu-se (com destaque nosso):

«A adoção dessas duas medidas só pode significar a assunção pelo legislador de que, nos termos do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, não assiste ao arrendatário urbano de parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento sobre a totalidade do mesmo, já que a existência deste direito tornaria desnecessárias essas medidas. Ademais, no tocante ao arrendatário habitacional, a medida adotada ficou aquém do que vinha sendo admitido pela orientação maioritária da preferência sobre a totalidade do prédio.»

O Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado neste sentido, como decorre dos seguintes Acórdãos, todos publicados em www.dgsi.pt:

- Ac. STJ de 21-01-2016, Proc. 9065/12.1TCLRS.L1.S1 (“Na vigência do artigo 1091.º do CC, introduzido pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência, sobre a parte arrendada ou a totalidade, na compra e venda ou na dação em cumprimento desse mesmo prédio) já citado;

- Ac. STJ de 24-05-2018, Rel. Maria do Rosário Morgado, Proc. 1832/15.0T8GMR.G1.S1 (“I – Atento o teor do artigo 1091.º, n.º1, al. a), do CC, o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado; II - O arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada”);

- Ac. STJ de 18-10-2018, Proc. 3131/16.1T8LSB.L1.S1 (“I. Em face do art. 1091º do CC, na versão vigente em 2015, o arrendatário comercial de uma parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não goza do direito legal de preferência na venda do prédio, direito apenas reconhecido ao arrendatário de todo o prédio urbano ou fração autónoma do mesmo prédio objeto de venda ou de dação em cumprimento. II. O facto de a proprietária do imóvel ter comunicado ao arrendatário o projeto de venda para efeitos de exercício do direito de preferência não é suficiente para constituir na esfera jurídica deste um direito de preferência com eficácia real que seja oponível ao terceiro adquirente.”), já citado;

- Ac. STJ de 26-02-2019, Rel. Graça Amaral, Proc. 9/13.4TBFAF.G1.S1 (“I - À luz do regime consagrado pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, os arrendatários de parte de imóvel não constituído em propriedade horizontal não gozam de direito de preferir na venda da totalidade do prédio. II - A expressão “local arrendado” ínsita na alínea a) do n.º1 do artigo 1091.º do Código Civil, introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, terá de ser encarada como uma restrição relativamente ao regime anterior do RAU, atento o propósito que lhe esteve subjacente de incrementar regras por forma a promover o mercado de arrendamento. Nessa medida, a preferência do arrendatário passou a ser perspectivada, tão só, em facultar o acesso à habitação própria.”);

- Ac. STJ de 11-07-2019, Proc. 3818/17.1T8VNG.G1.S2 (I. O artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário de parte específica de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal.  II. A interpretação daquele normativo nesse sentido decorre do recorte textual que lhe foi dado pela referida Lei, divergente do dantes configurado no artigo 47.º, n.º 1, do RAU, e da eliminação do n.º 2 deste artigo, apoiando-se ainda no propósito do legislador de 2006, corroborado pelas ulteriores medidas legislativas adotadas pelas Leis n.º 42/2017, de 14-06, e n.º 64/2018, de 29/10.), já citado;

- Ac. STJ de 07-11-2019, Rel. Maria do Rosário Morgado, Proc. nº 14276/18.3T8PRT.P1.S2 (com sumário idêntico ao do Proc. 1832/15);

- Ac. STJ de 09-03-2021, Rel. Fernando Samões, Proc. 2899/18.5T8ALM.L1.S1 (“I. O art.º 1091.º, n.º 1, al. a), do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27/2, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário de parte específica de prédio urbano indiviso ou não constituído em propriedade horizontal.”);

- Ac. STJ de 25-03-2021, Proc. 10307/16.0T8PRT.P2.S1 (III - O art. 1091.º, n.º 1, al. a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, deve ser interpretado no sentido de só atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fração autónoma dele, quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, não contemplando os casos em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal. IV - Esta interpretação, referenciada como teoria do local, encontra fundamento no interesse em fazer coincidir o objeto da preferência com o objeto do arrendamento, não sacrificando a autonomia negocial do proprietário para além do que a proteção que se pretendeu conceder ao arrendatário justifica.”), já citado;

- Ac. STJ de 13-10-2022, Rel. Manuel Capelo, Proc. 3391/08.1TVLSB.L1.S1 (“V - Com o NRAU e a redação do art. 1091 do CCivil passou a ser unânime na jurisprudência do STJ o entendimento de  segundo o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado não tendo o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada.”), subscrito pelo ora relator como adjunto.

Não vemos razões para nos desviarmos desta jurisprudência firme do Supremo Tribunal de Justiça.

Considera o Recorrente que a interpretação que aqui se considera ajustada é susceptível de violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, da CRP, ao discriminar negativamente, e sem qualquer justificação, o arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal face aos arrendatários de todo o prédio e/ou de fracção autónoma.

Também a questão da possível inconstitucionalidade da interpretação em causa tem sido abordada em alguns destes arestos, em termos que temos por adequados.

Conforme se ponderou no mencionado Ac. do STJ de 11-07-2019:

«(…) há que diferenciar os casos em que o contrato de arrendamento incide sobre todo o prédio urbano indiviso ou fração autónoma dele e os casos em que recai apenas sobre uma parte específica de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal.

Nesse quadro, a função económico-social do direito de preferência legal do arrendatário urbano não implica necessariamente que os dois tipos de situação tenham de ser tutelados com o mesmo alcance, nomeadamente que deva ser conferido ao arrendatário de apenas parte de prédio indiviso o direito de preferir pela totalidade na alienação do prédio, que extravasa o objeto locado.     

Cabe assim ao legislador conformar o âmbito de tutela a conferir a cada um desses tipos de situação em função do relevo que tiver por adequado atribuir à finalidade da preferência no quadro das políticas de acesso à habitação e de incremento do mercado habitacional.

Com vimos, na vigência dos regimes de preferência legal do arrendatário urbano regulados pela Lei n.º 63/77, de 25-08, e pelo RAU, veio sendo considerado predominantemente que, atenta a finalidade dessa preferência e o quadro normativo ali estabelecido, se justificava uma interpretação ampla no sentido de contemplar os casos de arrendamento de parte de prédio indiviso, ainda que, nestes casos, o exercício da preferência fosse para além do objeto material locado, o que não sucedida quando o arrendamento incidisse sobre todo o prédio.

Tal entendimento não assentava no reconhecimento de uma relação de identidade entre os dois tipos de situação nem sequer numa exigência constitucional de tratamento equiparado, mas antes numa base interpretativa de que essa era a solução mais condizente com o pensamento legislativo subjacente extraído da ratio legis e da própria sistemática do instituto.

De igual modo, a orientação aqui perfilhada sobre a interpretação do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, estriba-se em argumentos do mesmo género, considerando agora que o legislador de 2006 não deu à finalidade das referidas preferências legais o mesmo relevo e alcance que dantes vinha sendo considerado pela orientação dominante.

Pelo que já acima foi dito, não se afigura que, dada a sua diferenciação, os dois tipos de casos em referência devam merecer idêntica tutela jurídica em sede de preferência legal do arrendatário urbano, bem podendo ser diferenciados em vista da função económico-social conferida a tal preferência e ao papel que lhe for dado na realização das políticas de acesso a habitação própria e de dinamização do mercado habitacional.   

Nessa base de distinção entre os casos de arrendamento incidente sobre todo o prédio indiviso ou fração autónoma dele e os casos em que o arrendamento recai apenas sobre uma parte de prédio indiviso, não se vê que a atribuição de preferência legal aos inquilinos daqueles arrendamentos e a não atribuição deste direito aos inquilinos de parte de prédio indiviso seja discriminatória e, portanto, violadora os princípios da igualdade e da proporcionalidade nos termos consagrados nos artigos 13.º, n.º 1, 17.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição».

Importará referir que, no Ac. do Tribunal Constitucional nº 583/2016, de 9 de Dezembro, publicado no Diário da República n.º 235/2016, Série II de 2016-12-09, se decidiu o seguinte:

«Não julga inconstitucional a norma extraída da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, interpretada no sentido de o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não ter direito de preferência sobre a totalidade do prédio, na compra e venda desse mesmo prédio.»

Neste aresto expendeu-se, a dado passo, sobre a conformação constitucional do princípio da igualdade:

«Inúmeros acórdãos do Tribunal Constitucional se ocuparam das exigências inerentes à previsão constitucional do princípio da igualdade (artigo 13.º). Para o que ora importa apreciar, recorde-se que é jurisprudência estabilizada que a Constituição só proíbe o tratamento diferenciado de situações quando o mesmo se apresente como arbitrário, sem fundamento material, havendo que precisar o sentido da igualdade jurídica. Pode, assim, ler-se no Acórdão n.º 362/2016, seguindo o curso de inúmeras decisões anteriores concordantes:

“[…]

Numa perspetiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo 13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objetos que se comparam em função de um aspeto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar; é o pressuposto da respetiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objetos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum).

Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias.

[…]

Por outro lado, não é função do princípio da igualdade garantir que todas as escolhas do legislador sejam racionais e coerentes ou correspondem à melhor solução. Nesse particular, justifica-se recordar a jurisprudência constitucional firmada no Acórdão n.º 546/2011:

‘[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 –, que o caráter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, ‘racionais’. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do ‘merecimento’ – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador.

Relativamente à problemática em jogo, considerou-se que:

«(...) não pode afirmar-se igual a situação do arrendatário de uma parte de um imóvel com autonomia jurídica - designadamente, uma fração autónoma - e a do arrendatário de uma parte de um imóvel não autonomizada.

Desde logo, a igualdade não pode aferir-se por referência ao mais simplificado plano de facto, mas à situação global complexa de facto e de direito, já que é de efeitos jurídicos decorrentes da relação de arrendamento que tratamos. Ora, neste plano, é evidente que não estamos perante a mesma situação num qualquer caso em que o arrendamento incida sobre um objeto cujo domínio pode ser autonomamente transacionado e num outro caso em que incida sobre parte não autonomizada de um imóvel. Basta pensar que, no primeiro caso, a natureza da coisa dada em locação permite que a realidade física objeto do negócio sobre o domínio coincida com a realidade física do objeto do arrendamento e, no segundo caso, essa coincidência não é possível. Neste conspecto, o tratamento diferenciado de uma e outra situação não é arbitrário, parecendo razoável que o legislador tenha entendido que a autonomia negocial dos sujeitos (na dimensão de liberdade de escolha da contraparte negocial) não devia ser sacrificada no caso de o objeto do arrendamento não coincidir com o objeto do negócio real de aquisição, até mesmo porque, desse modo, se proporcionaria ao arrendatário a aquisição de mais do que o locado em função do qual a preferência é atribuída.

É certo que esta atribuição do direito de preferência a favor do arrendatário visa proporcionar o acesso à propriedade a quem beneficia já de um direito de gozo prolongado sobre o imóvel, com o que daí vem implicado de estabilidade na habitação, mas - até a essa luz - não pode dizer-se que há igualdade na situação de aquisição do espaço de habitação e na situação de aquisição de maior superfície, incluindo área que não correspondia à anterior habitação (que, aliás, até pode corresponder à habitação de terceiros).

Por outro lado, o objeto da propriedade não tem, forçosamente, que coincidir com o objeto do arrendamento, tratando-se de direitos de natureza diferente, podendo o legislador - por razões de segurança jurídica, ordenação do território, publicidade e boa gestão do registo predial e da realidade cadastral, entre outras - exigir que a propriedade tenha por objeto uma realidade física e jurídica unitária com certas características, não se fazendo sentir as mesmas exigências no caso de locação. Assim sendo, mostrando-se razoável a exigência da autonomia jurídica da coisa para que possa constituir objeto de um negócio translativo da propriedade, é também razoável que o direito de preferência a partir do arrendamento se projete por referência à mesma unidade jurídica, sendo ele tendente à aquisição do direito real. Este ponto é determinante, uma vez que a afirmação da igualdade entre situações que os Recorrentes procuram sustentar reduz os termos da questão à realidade puramente física da locação, esquecendo que o direito de preferência interfere com os termos do negócio real de compra e venda ou de dação em cumprimento.»

No sentido da não se verificar inconstitucionalidade no que tange à interpretação adoptada nos acórdãos citados (e no presente), maxime no que toca ao princípio da igualdade, vejam-se os identificados Acórdãos do STJ de 21-01-2016; 24-05-2018, 26-06-2019, 07-11-2019, 09-03-2021 e 25-02-2021.

Entendemos também não haver razões para, neste segmento, se concluir de diferente modo.

Improcede a revista.


*

Sumário (da responsabilidade do relator)

1. Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor (art. 265º, nº1, do CPC), razão por que não tem cabimento processual, numa resposta à defesa por excepção deduzida pelos réus, o autor invocar fundamentos do direito de preferência diversos do que alegara na petição inicial, ou seja, fora do objecto do processo, desde logo delimitado pela causa de pedir daí resultante.

2.  É na petição inicial que devem ser expostos os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção e os factos a que se reporta o nº 2 do art. 5º do CPC devem ter por referência a causa de pedir que emana da petição.

3. De acordo com a teoria da substanciação, devem ser alegados os factos concretos constitutivos do direito que se pretende fazer valer. Assim, não é a mera invocação do direito de preferência que identifica a causa de pedir, mas os factos que a consubstanciam, o que importa, designadamente, para a definição do caso julgado.

4. O dever de gestão processual deve conter-se no objecto do processo.

5. O artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do C. Civil, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário de parte específica de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal.

6. A interpretação referida no ponto anterior não viola princípios constitucionais, designadamente o consagrado no art. 13º da Constituição da República Portuguesa.


IV

Pelo que se deixou exposto, nega-se provimento à revista, mantendo-se a decisão recorrida.

- Custas pelo Recorrente.


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Lisboa, 10-01-2023

Tibério Nunes da Silva (Relator)

Nuno Ataíde das Neves

Sousa Pinto

______

[1] Dispõe o art. 584º, nº1, do CPC que: «Só é admissível réplica para o autor deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção, não podendo a esta opor nova reconvenção».